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Carmen SoaresMaria do Ceacuteu Fialho
Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel
Coordenaccedilatildeo
bull C O I M B R A 2 0 1 1
ormaamp Transgressatildeo
II
NNorm
a amp Transgressatildeo bull II
Seacuterie
Documentos
bull
Imprensa da Universidade de CoimbraCoimbra University Press
2011
9789892
601052
A riqueza e policromia da reflexatildeo em torno dos modos diversos como cada comu-
nidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na actividade regulamentadora
e no gesto de quebra das suas regras bem como numa posterior etapa na inte-
graccedilatildeo de transgressotildees executadas (sentidas como um novo campo da sua proacutepria
identidade expandida) impulsionaram a publicaccedilatildeo de Norma amp Transgressatildeo II
Esta dinacircmica de forte cariz transversal conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo
individual (local) e da comunidade (global) o que significa ser estranho e natildeo o
ser ateacute que ponto a conexatildeo tensa entre o normativo e o transgressivo constitui
um processo determinante no comportamento colectivo e individual pelo qual o
ser humano aprende avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Possam as indagaccedilotildees aqui presentes servir o puacuteblico a que antes de mais se des-
tinam os alunos dos seminaacuterios de 2ordm e 3ordm ciclo de Estudos Claacutessicos mas tambeacutem
um puacuteblico mais vasto que ultrapasse o exclusivamente acadeacutemico dado o seu
cariz pluridisciplinar e transepocal
verificar medidas da capalombada
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D O C U M E N T O S
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Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Programa Operaciona l Ciecircncia e Inovaccedilatildeo 2010
copy OutubrO 2011 imprensa da universidade de cOimbra
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3
bull C O I M B R A 2 0 1 1
Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho
Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel
Coordenaccedilatildeo
ormaamp Transgressatildeo
II
N
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5
Iacutendice
Prefaacutecio 9
cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica
1 1 polIacutetica
Mark Beck
Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15
Josep Monserrat Molas
A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39
1 2 arte
Luiacutesa de Nazareacute Ferreira
A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59
1 3 alimentaccedilatildeo
Carmen Soares
Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99
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6
cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos
para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais
2 1 literatura latina
Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel
La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115
2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura
Maria do Ceacuteu Fialho
Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155
Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva
Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175
Susana Marques Pereira
Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194
Ana Paula Arnaut
Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201
Teresa Carvalho
Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215
2 3 arquitectura
Isabel Donas-Botto
Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229
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7
cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias
Adriana Nogueira
Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252
Joseacute Ramos
Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265
Carlota Miranda Urbano
Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289
cap iV- FilosoFia
Maria Luiacutesa Portocarrero
Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307
cap V- geograFia
Norberto Santos
Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323
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9
preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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77
Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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D O C U M E N T O S
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2
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copy OutubrO 2011 imprensa da universidade de cOimbra
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3
bull C O I M B R A 2 0 1 1
Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho
Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel
Coordenaccedilatildeo
ormaamp Transgressatildeo
II
N
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5
Iacutendice
Prefaacutecio 9
cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica
1 1 polIacutetica
Mark Beck
Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15
Josep Monserrat Molas
A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39
1 2 arte
Luiacutesa de Nazareacute Ferreira
A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59
1 3 alimentaccedilatildeo
Carmen Soares
Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99
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6
cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos
para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais
2 1 literatura latina
Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel
La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115
2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura
Maria do Ceacuteu Fialho
Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155
Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva
Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175
Susana Marques Pereira
Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194
Ana Paula Arnaut
Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201
Teresa Carvalho
Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215
2 3 arquitectura
Isabel Donas-Botto
Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229
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7
cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias
Adriana Nogueira
Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252
Joseacute Ramos
Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265
Carlota Miranda Urbano
Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289
cap iV- FilosoFia
Maria Luiacutesa Portocarrero
Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307
cap V- geograFia
Norberto Santos
Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323
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9
preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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11
capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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69
vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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70
lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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71
assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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73
central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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144
ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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145
κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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146
tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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208
mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
Almeida Pedro Dias de (2008) ldquoA escrita eacute um sustordquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Visatildeo 5 de Junho 154-156
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Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44
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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
Obra protegida por direitos de autor
336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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Coordenaccedilatildeo editorial
Imprensa da Univers idade de CoimbraEmail imprensaucciucpt
URL httpwwwucptimprensa_ucVendas Online httpwwwlivrariadaimprensacom
ConCepccedilatildeo gr aacutefiCa
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infogr afia
Carlos Costa
Imprensa da Universidade de Coimbra
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Europress
iSBn
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copy OutubrO 2011 imprensa da universidade de cOimbra
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3
bull C O I M B R A 2 0 1 1
Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho
Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel
Coordenaccedilatildeo
ormaamp Transgressatildeo
II
N
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5
Iacutendice
Prefaacutecio 9
cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica
1 1 polIacutetica
Mark Beck
Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15
Josep Monserrat Molas
A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39
1 2 arte
Luiacutesa de Nazareacute Ferreira
A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59
1 3 alimentaccedilatildeo
Carmen Soares
Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99
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6
cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos
para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais
2 1 literatura latina
Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel
La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115
2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura
Maria do Ceacuteu Fialho
Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155
Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva
Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175
Susana Marques Pereira
Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194
Ana Paula Arnaut
Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201
Teresa Carvalho
Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215
2 3 arquitectura
Isabel Donas-Botto
Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229
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7
cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias
Adriana Nogueira
Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252
Joseacute Ramos
Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265
Carlota Miranda Urbano
Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289
cap iV- FilosoFia
Maria Luiacutesa Portocarrero
Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307
cap V- geograFia
Norberto Santos
Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323
Obra protegida por direitos de autor
9
preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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11
capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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69
vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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bull C O I M B R A 2 0 1 1
Carmen Soares Maria do Ceacuteu Fialho
Mariacutea Consuelo Alvarez MoraacutenRosa Mariacutea Iglesias Montiel
Coordenaccedilatildeo
ormaamp Transgressatildeo
II
N
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Iacutendice
Prefaacutecio 9
cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica
1 1 polIacutetica
Mark Beck
Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15
Josep Monserrat Molas
A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39
1 2 arte
Luiacutesa de Nazareacute Ferreira
A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59
1 3 alimentaccedilatildeo
Carmen Soares
Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99
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6
cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos
para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais
2 1 literatura latina
Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel
La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115
2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura
Maria do Ceacuteu Fialho
Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155
Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva
Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175
Susana Marques Pereira
Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194
Ana Paula Arnaut
Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201
Teresa Carvalho
Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215
2 3 arquitectura
Isabel Donas-Botto
Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229
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7
cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias
Adriana Nogueira
Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252
Joseacute Ramos
Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265
Carlota Miranda Urbano
Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289
cap iV- FilosoFia
Maria Luiacutesa Portocarrero
Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307
cap V- geograFia
Norberto Santos
Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323
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9
preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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11
capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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69
vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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5
Iacutendice
Prefaacutecio 9
cap i- Histoacuteria da antiguidade claacutessica
1 1 polIacutetica
Mark Beck
Constitutions Contingency and the Individual Solon Lycurgus and the Early Development of Greek Political Biography 15
Josep Monserrat Molas
A transgressatildeo da norma como forma de manter a ordem uma nota sobre o sentido de O poliacutetico de Platatildeo 39
1 2 arte
Luiacutesa de Nazareacute Ferreira
A representaccedilatildeo de crianccedilas na arte grega 59
1 3 alimentaccedilatildeo
Carmen Soares
Transgressotildees gastronoacutemicas Sobre o consumo de carne em Plutarco 99
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6
cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos
para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais
2 1 literatura latina
Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel
La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115
2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura
Maria do Ceacuteu Fialho
Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155
Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva
Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175
Susana Marques Pereira
Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194
Ana Paula Arnaut
Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201
Teresa Carvalho
Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215
2 3 arquitectura
Isabel Donas-Botto
Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229
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7
cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias
Adriana Nogueira
Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252
Joseacute Ramos
Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265
Carlota Miranda Urbano
Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289
cap iV- FilosoFia
Maria Luiacutesa Portocarrero
Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307
cap V- geograFia
Norberto Santos
Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323
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9
preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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11
capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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69
vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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cap ii- os claacutessicos e a sua recepccedilatildeo contributos
para a (des)construccedilatildeo de identidades culturais
2 1 literatura latina
Maria Consuelo Aacutelvarez Moraacuten e Rosa Mariacutea Iglesias Montiel
La tragedia de las mujeres troyanas en Las Metamorfosis de Ovidio 115
2 2 recepccedilatildeo de claacutessicos da literatura
Maria do Ceacuteu Fialho
Reinvenccedilatildeo de mundo e correspondecircncia de siacutembolos em Sob o Olhar de Medeia de F Hasse Pais Brandatildeo 155
Maria Antoacutenio Houmlrster e Maria de Faacutetima Silva
Espaccedilo para Medeia Notas acerca da Medeia de Maacuterio Claacuteudio 175
Susana Marques Pereira
Adaptaccedilatildeo dramaacutetica e transgressatildeo 194
Ana Paula Arnaut
Trecircs homens e um livro Boa Noite Senhor Soares de Maacuterio Claacuteudio 201
Teresa Carvalho
Norma e transgressatildeo os lusiacuteadas de Manuel da Silva Ramos e Alface 215
2 3 arquitectura
Isabel Donas-Botto
Um passado mais-que-perfeito o impacto do claacutessico na arquitectura britacircnica 229
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cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias
Adriana Nogueira
Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252
Joseacute Ramos
Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265
Carlota Miranda Urbano
Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289
cap iV- FilosoFia
Maria Luiacutesa Portocarrero
Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307
cap V- geograFia
Norberto Santos
Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323
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preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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11
capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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cap iii- religiatildeo da greacutecia aos nossos dias
Adriana Nogueira
Quando a transgressatildeo eacute norma - a religiatildeo grega em progresso 252
Joseacute Ramos
Norma e transgressatildeo agrave luz do paradigma biacuteblico 265
Carlota Miranda Urbano
Ortodoxia e heterodoxia no iniacutecio da modernidade Poesia hagiograacutefica neolatina ao serviccedilo da apologeacutetica jesuiacutetica 289
cap iV- FilosoFia
Maria Luiacutesa Portocarrero
Norma transgressatildeo e traduccedilatildeo na filosofia praacutetica de P Ricoeur 307
cap V- geograFia
Norberto Santos
Desvios e regras nos territoacuterios do quotidiano 323
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9
preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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11
capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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69
vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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145
κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
Obra protegida por direitos de autor
213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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9
preFaacutecio
Na sequecircncia do primeiro Coloacutequio Internacional sobre este tema
decorrido em 2006 o Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos e o
Instituto de Estudos Claacutessicos da Universidade de Coimbra com a colaboraccedilatildeo
da Universidade de Muacutercia organizaram um Coloacutequio Internacional dedicado
a ldquoNorma e transgressatildeordquo (II) no contexto do Projecto de Investigaccedilatildeo
Quadrienal ldquoPolisCosmopolisrdquo Decorreu nos dias 29 e 30 de Setembro de
2008 Teve como objectivo criar um espaccedilo de reflexatildeo dos modos diversos
como cada comunidade vive a sua proacutepria experiecircncia de identidade na
actividade regulamentadora e no gesto de quebra das suas regras bem
como numa posterior etapa na integraccedilatildeo de transgressotildees executadas
como um novo campo da sua proacutepria identidade expandida Esta dinacircmica
conduz agrave questatildeo das ldquofronteiras do eurdquo individual (local) e da comunidade
(global) que significa ser estranho e natildeo o ser ateacute que ponto a conexatildeo
tensa entre o normativo e o transgressivo constitui um processo determinante
no comportamento colectivo e individual pelo qual o ser humano aprende
avanccedila se compreende a si mesmo e compreende os outros
Tratou-se de um encontro de forte cariz transversal contando com
contributos das seguintes aacutereas de investigaccedilatildeo literaturas claacutessicas (grega
e latina) e modernas (anglo-americanas e germaniacutesticas) literatura biacuteblica
filosofia geografia e histoacuteria
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11
capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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69
vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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211
pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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capIacutetulo i
Histoacuteria da antiguidade claacutessica
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vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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210
prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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211
pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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212
Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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69
vasos da Eacutepoca Arcaica Felizmente o corpus de vasos aacuteticos que nos chegou
eacute bastante extenso pelo que num trabalho de anaacutelise iconograacutefica o mais
simples e correcto eacute adoptar a metodologia dos especialistas que distinguem
as decoraccedilotildees inspiradas em episoacutedios mitoloacutegicos da representaccedilatildeo de
cenas da vida quotidiana
No primeiro grupo inscrevem-se episoacutedios da infacircncia de divindades
heroacuteis e heroiacutenas destacando-se o nascimento de Afrodite Apolo e Aacutertemis
Ascleacutepio Atena Dioacutenisos Erictoacutenio Helena Hermes e Zeus bem como
Aquiles entregue aos cuidados do centauro Quiacuteron e a proeza do bebeacute
Heacuteracles que ainda no berccedilo estrangulou duas serpentes Incluem-se
tambeacutem neste grupo as decoraccedilotildees inspiradas nos mitos de infanticiacutedio ou
exposiccedilatildeo como a vinganccedila de Medeia e de Procne o assassiacutenio de Astiacuteanax
depois da queda de Troacuteia Perseu lanccedilado ao mar dentro de uma arca e
Orestes ameaccedilado por Teacutelefo No que respeita agraves cenas da vida quotidiana
em traccedilos gerais podemos dizer que os artistas aacuteticos retratam todas as
experiecircncias que preenchem o dia-a-dia de uma crianccedila designadamente
as relaccedilotildees familiares e sociais a educaccedilatildeo e as brincadeiras
Do repertoacuterio de figuras negras sobre temas mitoloacutegicos merece destaque
o nascimento de Atena que foi dos temas mais ceacutelebres na arte da Eacutepoca
Arcaica em especial na ceracircmica aacutetica embora tenha continuado a ser
tratado durante o seacuteculo V aC surgindo em evidecircncia no centro do frontatildeo
oriental do Paacutertenon (Paus 1 24 5)
Conta Hesiacuteodo que a deusa fora concebida da uniatildeo de Zeus com Meacutetis
mas quando esta estava prestes a dar agrave luz o deus supremo engoliu-a uma
vez que Geia e Urano o tinham avisado de que dela nasceriam uma filha
saacutebia e corajosa como o pai e um filho de coraccedilatildeo orgulhoso que
ambicionaria o poder de Zeus (Teogonia 886-900 924-926) Segundo um
escoacutelio de Apoloacutenio de Rodes o poeta Estesiacutecoro de Hiacutemera (seacutec VII-VI
aC) foi ldquoo primeiro a afirmar que Atena saltara armada da cabeccedila de Zeusrdquo
O fragmento de um comentaacuterio transmitido por um papiro do seacuteculo II da
nossa era descoberto em Oxirrinco cita uma parte dos versos em que
Estesiacutecoro referia esse episoacutedio ldquo a resplandecer com as armasPalas
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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139
ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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206
Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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207
homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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lanccedilou-se para a terra vastardquo22 Assim eacute possiacutevel como se pensa que o
liacuterico da Siciacutelia tenha sido o responsaacutevel pela criaccedilatildeo literaacuteria deste tema
que teraacute igualmente grande fortuna na pintura de vasos23 Nem o escoacutelio
nem o fragmento que se preservou permitem esclarecer se no poema de
Estesiacutecoro a filha de Zeus nascia crianccedila ou adulta embora a segunda
hipoacutetese seja mais plausiacutevel visto que os dois textos sublinham o ardor
belicoso da deusa De acordo com a Oliacutempica VII de Piacutendaro (vv 35-38)
composta em 464 aC para Diaacutegoras de Rodes Hefestos fendeu a cabeccedila
de Zeus com um machado e ao erguer-se da fronte paterna Atena soltou
um grito de guerra fortiacutessimo do que se depreende embora o passo natildeo
seja expliacutecito que estava pronta a combater
Satildeo basicamente estes os dados miacuteticos que os artistas aacuteticos ilustram
Numa das representaccedilotildees mais antigas de um vaso atribuiacutedo ao Pintor C
conservado no Museu do Louvre do segundo quartel do seacuteculo VI aC
Zeus sentado no trono com o ceptro na matildeo direita e o raio na esquerda
ocupa o centro da cena e eacute assistido por seis divindades entre as quais se
encontram Hefestos (com o machado) Poseacuteidon (com o tridente) e as deusas
Ilitias que amparavam as parturientes Atena de elmo posto sai da cabeccedila
do pai preparada para combater com o escudo encostado ao peito e o
braccedilo direito erguido na posiccedilatildeo de arremessar a lanccedila (cf Hino Homeacuterico
a Atena 28 8-9) Apesar da estatura reduzida da receacutem-nascida nenhum
traccedilo sugere que o artista pretendia representar uma crianccedila24
Eacute este aspecto guerreiro e ofensivo da deusa a sair da cabeccedila de Zeus ndash
este habitualmente sentado no trono rodeado de vaacuterias divindades que o
22 Fr 56 Page = fr 233 PMG Vide D L Page (1962) Poetae Melici Graeci Oxford Clarendon Press D A Campbell (1991) Greek Lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and Others Cambridge Mass Harvard University Press 162-163
23 Na arte a representaccedilatildeo mais antiga segura do nascimento de Atena eacute documentada pelos relevos martelados em bronze descobertos em Oliacutempia (fragmentos de escudos) dos finais do seacuteculo VII ou da primeira metade do seacutec VI aC e preservados no seu Museu (B 1975d) cf T Carpenter 1991 71 e nordm 98
24 Exaleiptron (vaso para guardar perfumes e unguentos) triacutepode aacutetico de figuras negras atribuiacutedo ao Pintor C c 570-560 aC (Paris Museu do Louvre CA 616 ) Vide httpcommonswikimediaorgwikiFileExaleiptron_birth_Athena_Louvre_CA616jpg (acedido em 30112010)
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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206
Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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assistem ou sauacutedam a receacutem-nascida ndash que vamos encontrar nas decoraccedilotildees
de vasos de figuras negras atribuiacutedos ao Grupo E (c 560-540 aC) assim
chamado por ter sido o ateliecirc onde se formou o grande pintor Exeacutequias
Num conjunto relevante de acircnforas preservadas em diferentes museus este
esquema iconograacutefico manteacutem-se com ligeiras variaccedilotildees comprovando a
popularidade do tema na Eacutepoca Arcaica uma pequena Atena vestida com
um peplos e armada sai da cabeccedila de Zeus que sentado num trono elaborado
e com o raio na matildeo eacute assistido de cada lado por vaacuterias divindades Aleacutem
das Ilitias (uma ou duas) que erguem o braccedilo em sinal de auxiacutelio os deuses
normalmente trecircs satildeo identificados pelos adereccedilos proacuteprios e alternam em
cada vaso (Dioacutenisos Hermes Poseacuteidon Apolo Ares Hefestos) Sob o trono
de Zeus surge a figura reduzida de um homem ou de uma divindade alada25
Outros tratamentos do nascimento de Atena na pintura de vasos aacuteticos
retratam a deusa armada sobre os joelhos de Zeus (a partir de 550 aC) ou
junto do pai mas com aspecto de adulta figuraccedilatildeo que parece ter sido
adoptada por Fiacutedias no frontatildeo oriental do Paacutertenon26 A rejeiccedilatildeo da imagem
de Atena como crianccedila natildeo eacute caso uacutenico e relaciona-se com a complexa e
interessante questatildeo que diz respeito ao tratamento literaacuterio e iconograacutefico
do nascimento de deusas e heroiacutenas De facto regra geral (Aacutertemis parece
ser a excepccedilatildeo) estas vecircm ao mundo com formas adultas ao contraacuterio dos
25 Eg Berlim Staatliche Museen Antikensammlung 1699 vide R Vollkommer 2000 376 (fig 2) Boston Museum of Fine Arts 00330 vide S Blundell and M Williamson 1998 61 (fig 45) Munique Antikensammlungen 1382 New Haven Yale University Art Gallery 198322 vide J Neils amp J Oakley 2003 116 206-207 (cat 5) Paris Museu do Louvre F 32 vide httpcommonswikimediaorgwikiFileAmphora_birth_Athena_Louvre_F32jpg (acedido em 30112010) Viena Kunsthistorisches Museum IV 3596 Acircnforas da mesma oficina com variaccedilotildees deste esquema iconograacutefico eg Atena sem elmo e com o escudo eacute retratada sobre os joelhos de Zeus (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum L 250) sete divindades (Ilitia Heacuteracles Ares Apolo Poseacuteidon Hera e Hefestos) assistem ao nascimento sob o trono surgem duas figuras masculinas nuas (Londres The British Museum B 147) Zeus sentado num elaborado trono e uma minuacutescula Atena armada (elmo escudo e lanccedila) satildeo representados frontalmente acompanhados por Hermes Ares Ilitia e outra deusa (Richmond Virginia Museum of Fine Arts 6023) vide T Carpenter 1991 nordm 100 e httpwwwvmfastatevausCollectionsAncient_ArtBlack-figured_Amphora_60_23aspx (acedido em 30112010)
26 Sobre a iconografia do nascimento de Atena vide J Boardman 1974 37 216-217 e 1991b 102 H Cassimatis (1984) in LIMC II1 sv Athena pp 985-990 1021-1023 T Carpenter 1991 71-72 L Beaumont 1995 349-351 e 1998 76-77 R Vollkommer 2000 375-377
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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206
Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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207
homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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210
prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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211
pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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212
Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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deuses e heroacuteis como Apolo Dioacutenisos Heacuteracles Hermes e Aquiles que
natildeo soacute nascem bebeacutes como vivem episoacutedios ceacutelebres na infacircncia anunciando
as qualidades ou defeitos que os distinguem na idade adulta No entanto
quando os artistas gregos optavam por retratar as deusas e heroiacutenas apenas
como adultas ndash o caso de Afrodite que emerge das aacuteguas no esplendor da
sua beleza eacute paradigmaacutetico ndash natildeo estavam de facto a seguir uma convenccedilatildeo
pictoacuterica Como observou Lesley Beaumont este eacute possivelmente um caso
em que as expressotildees artiacutesticas reflectem a mentalidade vigente na Atenas
arcaica e claacutessica que atribuiacutea agrave crianccedila e agrave mulher um lugar inferior na
hierarquia social e as considerava menos capazes ser deusa eacute partilhar de
algum modo da fragilidade do elemento feminino mas ser deusa e crianccedila
eacute elevar essa fragilidade a uma escala inaceitaacutevel pelo que o mito na sua
expressatildeo literaacuteria e artiacutestica parece ter evitado a dificuldade que seria
conciliar a ideia de ldquodivinordquo com as concepccedilotildees predominantes de crianccedila
e mulher (1995 349-361 1998 80-93 especialmente)
O corpus de vasos aacuteticos de figuras negras que representam crianccedilas
humanas natildeo eacute significativo mas as cenas retratadas satildeo diversas e constituem
um contributo valioso para o estudo da infacircncia ateniense
Uma placa votiva de meados do seacutec VI aC mostra-nos o interior de um
lar onde uma mulher sentada num banco e apoiada numa mesa se entrega
a tarefas domeacutesticas possivelmente agrave tecelagem ou confecccedilatildeo de vestuaacuterio
A decoraccedilatildeo vistosa da sua indumentaacuteria eacute um elemento que sobressai e
contrasta com a figura nua que atraacutes de si vemos sentada no chatildeo entre
os moacuteveis O penteado e atitude indicam tratar-se de uma menina mas as
formas sobretudo as matildeos e pernas muito compridas natildeo satildeo proporcionais
nem harmoniosas27
Um leacutecito do mesmo periacuteodo evoca uma situaccedilatildeo provavelmente frequente
no quotidiano infantil mas tatildeo pouco representada no corpus de vasos
aacuteticos que sugeriu o nome do artista Tal como na peccedila anterior a figura
27 Placa votiva aacutetica de figuras negras c 560 aC (Atenas Museu da Acroacutepole 2525) Vide M Golden 1990 35 (fig 6) L Beaumont 2003 63 (ldquoa rare early representation of a female infantrdquo) H Foley 2003 118-119 (fig 7)
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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144
ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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145
κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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146
tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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208
mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
Almeida Pedro Dias de (2008) ldquoA escrita eacute um sustordquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Visatildeo 5 de Junho 154-156
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Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44
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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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central ndash um menino que tenta escapar aos accediloites de um homem e corre
para os braccedilos de uma mulher ndash apenas eacute identificada como crianccedila por
estar nua e ter metade do tamanho das restantes figuras A cena no seu
conjunto faz imediatamente pensar num menino ainda pequeno que foge
da sandaacutelia do pai e busca o afecto da matildee um tema adequado a um vaso
comum e muito usado em casa como recipiente para azeite28
Os autores destas imagens natildeo foram capazes de traccedilar a fisionomia
caracteriacutestica da crianccedila mas isso natildeo significa que os artistas aacuteticos desta
eacutepoca eram menos haacutebeis ou prestavam pouca atenccedilatildeo aos elementos mais
novos da poacutelis A placa votiva que comentaacutemos proveniente da acroacutepole
de Atenas natildeo eacute decerto um trabalho profissional e o vaso embora
interessante eacute atribuiacutedo a um pintor que J Boardman (1974 33) considera
um ldquoimitador sem talentordquo No entanto numa cena de despedida de guerreiros
que decora uma acircnfora atribuiacuteda ao referido Grupo E cujas obras satildeo muito
mais elaboradas a personagem de rosto masculino e formas musculadas
que se destaca do centro da composiccedilatildeo como no vaso anterior apenas eacute
identificada como um menino ou jovem por estar nu e ter metade do
tamanho das outras figuras29 Este exemplo pode sugerir que para os pintores
aacuteticos deste periacuteodo eram mais importantes as convenccedilotildees pictoacutericas ndash como
a nudez a altura e o tamanho dos mais pequenos ndash do que o realismo da
representaccedilatildeo
Uma placa (pinax) de terracota funeraacuteria com inscriccedilotildees do comeccedilo do
seacuteculo V aC pode corroborar esta hipoacutetese30 Numa composiccedilatildeo elaborada
que retrata o ritual de exposiccedilatildeo do corpo (prothesis) no qual participam
vaacuterios homens e mulheres estas mais proacuteximas do defunto distinguem-se
28 Leacutecito aacutetico de figuras negras pelo Pintor da Sandaacutelia (vaso epoacutenimo) c 550 aC (Bolonha Museo Civico Archeologico PU 204) Vide J Boardman 1974 nordm 43 M Golden 2003 26 (fig 5)
29 Acircnfora aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Grupo E c 560-540 aC (Wuumlrzburg Martin von Wagner Museum 247) Vide L Beaumont 2003 61 (fig 1)
30 Placa funeraacuteria aacutetica de terracota atribuiacuteda ao Pintor de Safo c 500-490 aC (Paris Museu do Louvre MNB 905) Vide J Boardman 1974 nordm 265 L Beaumont 2003 61-62 H Shapiro 2003 105 J Oakley 2003 164-165 (fig 3) httpenwikipediaorgwikiFilePinax_prothesis_Louvre_MNB905jpg (acedido em 30112010)
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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78
1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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137
el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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138
sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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139
ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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206
Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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trecircs figuras mais pequenas A mais baixa encontra-se no lado esquerdo
entre o grupo dos homens e o das mulheres e as roupas sugerem que se
trata de um menino talvez ainda pequeno pois apoia-se nas pernas do
leito fuacutenebre As outras duas de alturas distintas apenas diferem das
mulheres no tamanho (a inscriccedilatildeo identifica a menina mais baixa como irmatilde
do defunto) Assim esta peccedila aleacutem de documentar a participaccedilatildeo de crianccedilas
e jovens nas cerimoacutenias familiares e religiosas designadamente nos rituais
fuacutenebres um costume antigo jaacute atestado no estilo Geomeacutetrico indica que
o tamanho e a altura podiam ser os uacutenicos elementos convencionais a
distinguir uma crianccedila de uma pessoa mais velha
As imagens que comentaacutemos revelam-nos a intimidade dos lares atenienses
e os seus momentos mais dolorosos mas o repertoacuterio de figuras negras
tambeacutem contemplava os contactos com o exterior e situaccedilotildees mais alegres
Uma conhecida pelike atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides (c 500 aC) retrata
um menino a tirar medidas na loja do sapateiro na companhia do pai ou
do pedagogo31 A presenccedila deste elemento bem como o facto de a figura
mais pequena se encontrar em cima da mesa do artesatildeo e se apoiar na
cabeccedila deste sugerem que pode ser crianccedila embora as linhas do corpo natildeo
decircem essa impressatildeo Natildeo eacute claro de facto se o artista pretendia representar
um menino em idade escolar ou um rapaz mais velho
Finalmente merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de uma acircnfora
preservada em Estugarda que retrata trecircs jovens na companhia de um
homem provavelmente o pedagogo Enquanto uma delas anda de baloiccedilo
ndash uma actividade luacutedica que se relaciona provavelmente com um ritual
tambeacutem evocado na ceracircmica de figuras vermelhas32 ndash as outras cuidam de
duas crianccedilas mais pequenas Como nos vasos comentados anteriormente
31 Pelike aacutetica de figuras negras atribuiacuteda ao Pintor de Eucaacuterides c 500 aC (Oxford Ashmolean Museum 563) Vide J Boardman 1974 nordm 229 M Golden 1990 29 (fig 2) M Vickers (1999) Ancient Greek Pottery Oxford Ashmoleum Museum 35 (nordm 23) J Neils amp J Oakley 2003 100 242 (cat 43)
32 O ritual da Aiora (ldquobaloiccedilordquo) era praticado por jovens em memoacuteria da jovem Eriacutegone que se suicidara apoacutes o assassiacutenio de seu pai Cf H Shapiro 2003 103-104 (fig 189) J Neils 2003 147 149 (fig 8) J Neils amp J Oakley 2003 288 (cat 102)
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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estas satildeo facilmente identificadas pelo tamanho reduzido mas as suas formas
grosseiras contrastam com o desenho mais elegante com que o artista
representou as donzelas33
O cataacutelogo aacutetico de figuras vermelhas eacute muito mais rico e difiacutecil de
seleccionar tanto no domiacutenio dos temas mitoloacutegicos quanto no das cenas
inspiradas na vida quotidiana nas quais nos vamos deter e eacute evidente
tambeacutem que a qualidade das peccedilas e a forma de retratar as crianccedilas varia
consideravelmente
As cenas de escola constituem uma das principais novidades desta teacutecnica
e uma das obras mais belas eacute sem duacutevida a ceacutelebre taccedila assinada por Duacuteris
no princiacutepio do seacuteculo V aC e preservada em Berlim34 Decorada no exterior
com as liccedilotildees dos mestres de muacutesica (kitharistes) e de letras (grammatistes)
sob o olhar vigilante do pedagogo estas imagens satildeo certamente um
testemunho da importacircncia crescente da literacia no dealbar da Eacutepoca
Claacutessica No seacuteculo V aC em Atenas normalmente a partir dos sete anos
os meninos iniciavam a instruccedilatildeo baacutesica no exterior enquanto as meninas
continuavam em casa e aprendiam a gerir o lar junto da matildee e das escravas
Apesar da qualidade extraordinaacuteria da taccedila de Duacuteris a idade dos alunos
retratados nestas cenas natildeo eacute facilmente perceptiacutevel pois o principal traccedilo
que os distingue dos adultos eacute a estatura menor
Um dos grandes contributos das figuras vermelhas para o estudo da
infacircncia ateniense eacute o interesse que dedica aos afectos familiares e agraves
diferentes fases da vida de uma crianccedila tema que adquire cada vez mais
importacircncia ao longo do seacuteculo V aC Assim as cenas de gineceu tornam-se
muito mais correntes e se natildeo raras vezes mostram os preparativos do
casamento ou os cuidados com o corpo dos elementos femininos as crianccedilas
passam a estar cada vez mais presentes e constituem mesmo o tema principal
33 Estugarda Wuumlrttembergisches Landesmuseum 651 Vide M Golden 1990 34 (fig 5)34 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas assinada por Duacuteris c 490-480 aC (Berlim Staatliche
Museen Antikensammlung F 2285) Vide J Boardman 1975 nordm 289 J Neils amp J Oakley 2003 66 244-246 (cat 44) httpwwwmlahanasdeGreeksLXBerlinF2285html (acedido em 30112010)
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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78
1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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137
el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
Bibliografia
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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da decoraccedilatildeo surgindo na companhia dos restantes membros do oikos a
brincarem com outras crianccedilas ou sozinhas
Um aspecto muito interessante eacute a transposiccedilatildeo para a pintura de vasos
do esquema iconograacutefico da kourotrophos ou seja a representaccedilatildeo da
crianccedila ao colo da matildee ou da ama que podemos observar num leacutecito
atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno de c 470 aC No interior de
uma casa o que eacute indicado pela presenccedila de mobiliaacuterio e objectos suspensos
uma mulher de peacute e atenta ergue um bebeacute entre as matildeos Este tem um
olhar muito vivo e embora o seu tamanho seja muito pequeno a cabeccedila
lembra a de um adulto sendo ateacute visiacuteveis os muacutesculos do peito o que pode
ser entendido como uma sugestatildeo de que se trata de um menino Apesar
da representaccedilatildeo grosseira do elemento mais jovem o artista soube transmitir
de forma expressiva a curiosidade caracteriacutestica das crianccedilas que comeccedilam
a descobrir o que as rodeia35
Numa acircnfora um pouco posterior atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas36 a
imagem da kourotrophos eacute integrada numa cena familiar de despedida a
um soldado que parte para a batalha um tema jaacute tratado na ceracircmica aacutetica
de figuras negras como vimos Numa cena dinacircmica a matildee eacute representada
de frente com o menino sentado no braccedilo esquerdo mas ambos viram o
rosto e os braccedilos em sentidos opostos sendo deste modo retratados de
perfil As matildeos apontam para o outro lado do vaso decorado com um
soldado armado e pronto a partir para a guerra Embora o desenho da
crianccedila seja mais elegante do que o do vaso anterior ndash e o artista teve o
cuidado de mostrar que se trata de um menino ndash nem as formas do corpo
nem a atitude satildeo inteiramente naturais
35 Leacutecito aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Estilo do Pintor de Pistoacutexeno c 470 aC (Oxford Ashmolean Museum 320) Vide ARV 86413 J Boardman 1989 nordm 70 L Beaumont 2003 67 (fig 7)
36 Acircnfora panatenaica aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Boacutereas c 460-450 aC (Londres The British Museum E282)Vide L Beaumont 2003 69 (fig 8b)
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77
Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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145
κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
Obra protegida por direitos de autor
213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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Merece tambeacutem destaque a decoraccedilatildeo de um vaso para conter oacuteleo ou
perfume (alabastron) do mesmo periacuteodo atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia37
Um objecto suspenso agrave esquerda e um cesto da latilde (kalathos) deixado no
chatildeo agrave direita situam a cena no interior do gineceu onde vemos uma
mulher representada frontalmente acompanhada de dois meninos O mais
velho de peacute agrave esquerda agarra o vestido (chiton) da mulher com a matildeo
esquerda e olha no sentido contraacuterio O outro estaacute a dormir ao colo
aconchegado entre o braccedilo e o pescoccedilo da mulher que tanto pode ser a
matildee como uma ama A mulher levou a matildeo livre ao queixo numa atitude
que demonstra grande preocupaccedilatildeo e o movimento do seu rosto seguiu o
do menino mais velho Nenhuma das crianccedilas foi retratada com realismo
mas isso natildeo impediu o artista de criar um quadro de afecto conseguindo
destacar o contraste entre a inquietaccedilatildeo das figuras mais velhas e o sossego
do menino mais pequeno Outros vasos representam bebeacutes aconchegados
ao colo da matildee ou da ama mas talvez o mais comovente seja uma acircnfora
aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles que representa
Eacutedipo ao colo de Euforbo o servo de Laio que foi incumbido de o expor38
Os arqueoacutelogos recuperaram objectos e diversos brinquedos destinados
a bebeacutes que atestam a preocupaccedilatildeo dos pais gregos com os seus filhos
mais pequenos Alguns desses objectos aparecem retratados na ceracircmica
aacutetica e um dos mais famosos eacute sem duacutevida um vaso (lasanon pl lasana)
que tinha a dupla funccedilatildeo de servir de cadeira de bebeacute e de bacio pelo que
recebeu a designaccedilatildeo de sella cacatoria39 Numa dessas decoraccedilotildees de um
fundo de uma taccedila atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades recuperada em
37 Alabastron aacutetico de figuras vermelhas atribuiacutedo ao Pintor de Villa Giulia c 460-450 aC (Providence Rhode Island School of Design Museum of Art Museum Appropriation and Special Gift 25088) Vide ARV 62488 J Neils amp J Oakley 2003 236 (cat 36a)
38 Acircnfora aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao Pintor de Aquiles c 450-445 aC (Paris Bibliothegraveque Nationale de France Cabinet des Meacutedailles 372) Vide ARV 9874 J Boardman 1989 nordm 110 T Carpenter 1991 nordm 261 J Oakley 2003 178 (fig 17)
39 Um desses vasos datado do primeiro quartel do seacutec VI aC foi descoberto na Aacutegora de Atenas e encontra-se no seu museu Vide K Lynch and J Papadopoulos 2006
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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209
em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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1890 da sepultura de uma mulher jovem40 o artista compocircs uma cena
harmoniosa e feliz de uma matildee a brincar com o filho documentando para
a posteridade o modo de usar a singular cadeira-bacio Aleacutem da delicadeza
de toda a composiccedilatildeo sublinhe-se que as formas rechonchudas e a atitude
desta crianccedila que ergue animadamente os braccedilos e as pernas na direcccedilatildeo
da mulher atenta (a matildee ou a ama) sentada num banco (diphros) agrave sua
frente satildeo claramente as de um bebeacute
Em 451450 aC eventualmente numa tentativa de limitar o nuacutemero
crescente de cidadatildeos uma lei promulgada por Peacutericles decretou que a
cidadania ateniense apenas podia ser concedida aos indiviacuteduos nascidos
de pai e matildee atenienses casados legitimamente enquanto ateacute entatildeo bastava
a naturalidade do pai (Aristoacuteteles Poliacutetica 3 1278a) Eacute de supor que essa
alteraccedilatildeo juriacutedica e ciacutevica tenha tido implicaccedilotildees na iconografia da famiacutelia
e pode explicar a valorizaccedilatildeo deste tema na ceracircmica aacutetica produzida desde
a segunda metade do seacuteculo V aC (cf L Beaumont 2003 76) Um dos
exemplos mais elucidativos eacute a decoraccedilatildeo de uma hydria datada de
c440-43041 uma espeacutecie de retrato ideal de uma famiacutelia ateniense rica no
centro da cena que um tear situa no interior do gineceu uma matildee sentada
numa cadeira de encosto (klismos) entrega o seu bebeacute um menino a uma
escrava Atraacutes de si um homem jovem observa-as Uma coroa suspensa
sobre as figuras pode ser um sinal de que casaram recentemente e explica
por que razatildeo o marido eacute retratado tatildeo jovem quando normalmente seria
muito mais velho do que a esposa Tambeacutem aqui o artista realccedilou a identidade
sexual da crianccedila confirmando a importacircncia da descendecircncia masculina
Numa outra imagem de um lar ateniense de uma pelike datada de c 430-420
40 Taccedila aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ateliecirc do Pintor de Sotades c 460 aC (Bruxelas Museacutees Royaux drsquoArt et drsquoHistoire A 890) Vide ARV 7711 E Keuls 1985 110-111 (fig 95) J Neils amp J Oakley 2003 239-241 (cat 42) K Lynch and J Papadopoulos 2006 20-24 (fig 12)
41 Hydria aacutetica de figuras vermelhas atribuiacuteda ao ciacuterculo de Polignoto c 440-430 aC (Cambridge Harvard University Art Museums Arthur M Sackler Museum 1960342) Vide E Keuls 1985 73 (fig 58) S Lewis 2002 16 (fig 13) J Neils amp J Oakley 2003 221 230 (cat 29)
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137
el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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207
homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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137
el poeta emplea el teacutermino libera con la misma ambiguumledad que Euriacutepides
eleutheacutera en Hec 550 (ldquodejadme libre para que libre muerardquo) pues tanto
pueden significar libre de ataduras o de sujecioacuten cuanto no esclava es
precisamente en esta segunda acepcioacuten en la que incide al decir en 13
467-469
acceptior illi
quisquis is est quem caede mea placare paratis
liber erit sanguisque
ldquoSeraacute maacutes aceptable para aqueacutel cualquiera quien sea aqueacutel a quien os
disponeacuteis a aplacar con mi sacrificio una sangre librerdquo
versos que de nuevo insisten en la poca consideracioacuten en que la viacutectima
tiene al destinatario del sacrificio al que antes tal vez con ironiacutea ha
mencionado como numen y ahora simplemente como quisquis is est
(ldquocualquiera quien sea aqueacutelrdquo) Esa misma idea de libera como no esclava
se repite en 470-471 ldquoos lo ruega la hija del rey Priacuteamo no una cautivardquo
donde Ovidio sin duda tiene presente que Poliacutexena dice que siendo una
princesa no desea llegar como esclava al Hades en Heacutecuba 551-552 son
palabras con las que la joven viacutec t ima quiere aprovechar en las
Metamorfosis el estremecimiento que entre los aqueos despertaraacuten sus
ultima verba (469-470) reflejo a su vez de la emocioacuten contenida en la
tragedia pero empleadas por el eacutepico romano para llevar la atencioacuten
de nuevo hacia Heacutecuba y resaltar una previsioacuten de futuro anclada en
una similar situacioacuten del pasado que aunque el padre de Neoptoacutelemo
devolviera a Priacuteamo a cambio de oro el cadaacutever de su hijo la madre de
Poliacutexena podraacute reccuperar el cuerpo inerte de su hija sin pagar nada
por ella vv 469-473
siquos tamen ultima nostri
verba movent oris Priami vos filia regis
non captiva rogat genetrici corpus inemptum
reddite neve auro redimat ius triste sepulcri
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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sed lacrimis tum cum poterat redimebat et auro
ldquosi a algunos os conmueven las uacuteltimas palabras de mi boca (os lo ruega
la hija del rey Priacuteamo no una cautiva) devolved a mi madre el cuerpo
sin que tenga que comprarlo y que no pague el derecho a un sepulcro
con oro causante de tristeza sino con laacutegrimas Entonces cuando podiacutea
tambieacuten lo pagaba con orordquo
No se trata de una mera ingenuidad de la joven10 sino un deseo de
forzar el paralelismo con el final de la Iliacuteada cuando Priacuteamo mucho maacutes
padre que rey conmueve hasta las laacutegrimas a Aquiles y consigue recuperar
el cadaacutever de Heacutector pero como auacuten es rey lo logra tambieacuten con muacuteltiples
presentes entre los cuales habiacutea 10 talentos de oro (Il 24 228-236) En
este parlamento podemos observar con claridad la transposicioacuten eacutepica que
Ovidio realiza de un elemento traacutegico Poliacutexena ruega en ldquoescenardquo que su
madre no sufra con lo que ha transferido la dolorosa situacioacuten de la Heacutecuba
del drama euripiacutedeo sus suacuteplicas y el normal espiacuteritu de sacrificio de una
madre a la aceptacioacuten por parte de la joven de su inmolacioacuten lo que
constituye una muestra de la enorme generosidad de una hija que prefiere
la muerte antes de ver la afliccioacuten de su madre una joven que se comporta
todaviacutea como princesa y quiere que su madre sea tratada como una reina
tal generosidad de Poliacutexena es indicio de que es digna hija de Heacutecuba y
que es de noble cuna lo que evidencia el poeta al unir sentimientos y
tradicioacuten literaria al diseccionar el alma de una joven que va a morir y
extraer lo mejor de ella El narrador en los vv 474-480
Dixerat at populus lacrimas quas illa tenebat
non tenet ipse etiam flens invitusque sacerdos
praebita coniecto rupit praecordia ferro
illa super terram defecto poplite labens
pertulit intrepidos ad fata novissima vultus
tunc quoque cura fuit partes velare tegendas
cum caderet casti que decus servare pudoris
10 Tal es la opinioacuten de F Boumlmer 1982 ad loc de quien disentimos
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ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
Bibliografia
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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139
ldquoHabiacutea dicho mas el pueblo no contiene las laacutegrimas que ella conteniacutea
incluso el propio sacerdote llorando y mal de su grado hundiendo el
hierro desgarroacute el pecho que se le ofreciacutea Ella cayendo sobre la tierra
al fallarle las rodillas mantuvo hasta el uacuteltimo momento su animoso
rostro tambieacuten entonces se preocupoacute al caer de cubrir las partes que
debiacutean ser ocultadas y de conservar el decoro de un casto pudorrdquo
reproduce los mismos detalles que describe Taltibio a Heacutecuba en 566-
570 es decir la vacilacioacuten de Neoptoacutelemo emocionado por los ultima
verba de Poliacutexena y la famosa escena de la pudicitia de la doncella al
caer
ὁ δrsquo οὐ θέλων τε καὶ θέλων οἴκτωι κόρης τέμνει σιδήρωι πνεύματος διαρροάςκρουνοὶ δrsquo ἐχώρουν ἡ δὲ καὶ θνήισκουσrsquo ὅμως πολλὴν πρόνοιαν εἶχεν εὐσχήμων πεσεῖν͵ κρύπτουσrsquo ἃ κρύπτειν ὄμματrsquo ἀρσένων χρεών
ldquoY eacutel queriendo y no queriendo por piedad hacia la muchacha le corta
con el hierro las salidas del aire Saltaban chorros Y ella aunque
moribunda teniacutea con todo gran cuidado de caer en buena postura
ocultando lo que debe ocultarse a la mirada de los hombresrdquo
La innovacioacuten que realiza Ovidio en esta tragedia de mujeres consiste
en que puesto que las troyanas y la propia Heacutecuba no reciben la informacioacuten
de ninguacuten mensajero ya que estaacuten presentes son las cautivas y no los
aqueos como en el drama las que recogen inmediatamente el cuerpo sin
vida de Poliacutexena e inician como plantildeideras los ritos funerarios que derivan
en lamentos por la madre recordando los toacutepicos tradicionales referidos a
la reina troyana que pueden evocar algunos momentos de las Troyanas de
Euriacutepides Tales gemidos por hija y madre tienen su cliacutemax en la apoacutestrofe
proleacuteptica de los vv 483-485
teque gemunt virgo teque o modo regia coniunx
regia dicta parens Asiae florentis imago
nunc etiam praedae mala sors
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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206
Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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140
ldquoY te lloran a ti doncella y a ti llamada hace poco real esposa llamada
regia madre siacutembolo de la floreciente Asia ahora desgraciado sorteo
incluso de un botiacutenrdquo
que seguacuten la funcioacuten que detectaacuteramos en este tipo de apoacutestrofes nos
pone sobre aviso de que la tragedia no ha concluido y de que las desgracias
se veraacuten incrementadas Y asiacute es pues falta el treno de la madre y sobre
todo el descubrimiento del cadaacutever de Polidoro
El treno de Heacutecuba (13 494-532) es uno de los monoacutelogos de lamento
contenidos en las Metamorfosis que pese a ser un elemento estructural
propio del drama tiene raigambre eacutepica ya que vemos que estaacute fuertemente
influido por dos discursos de la Iliacuteada el de la despedida de Heacutector (6
441-465) y las quejas de Androacutemaca por la muerte de su esposo (24 724-
745) Con todo el anaacutelisis pormenorizado del contenido revela que los
detalles proceden de las dos tragedias de tema troyano de Euriacutepides Comuacuten
a los precedentes eacutepicos y de tragedia es que las mujeres no hacen la
guerra pero es mucho maacutes desgarrado el lamento de la Heacutecuba ovidiana
con su insistente repeticioacuten y oposicioacuten de teacuterminos (femina ferro y tutam
cecidisti) de Met 13 497-498
at te quia femina rebar
a ferro tutam cecidisti et femina ferro
ldquoPero a ti por ser mujer te creiacutea a salvo del hierro incluso siendo mujer
has muerto por el hierrordquo
Igualmente toacutepica es la idea de los numerosos hijos habidos y perdidos
a manos de Aquiles si bien Ovidio engrandece esa imagen para realzar
auacuten maacutes si cabe la desgracia que le sobreviene a esa mater orba incluso
innova al hacer que Heacutecuba en el v 502 de su treno recuerde que ldquodije
lsquoal menos ahora no ha de ser temido Aquilesrsquo rdquo para contrarrestar las palabras
dichas inmediatamente antes sobre la triste realidad del momento mediante
la insistencia de los vv 503-504 ldquoLa propia ceniza del sepultado se ensantildea
contra este linaje incluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigordquo
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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142
pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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141
insistencia que culmina en el v 505 ldquofui feacutertil para el Eaacutecidardquo eco indubitado
de las palabras de Androacutemaca a Astianacte de Tr 747-748
οὐ σφάγιον υἱὸν Δαναΐδαις τέξουσrsquo ἐμόν͵ ἀλλrsquo ὡς τύραννον Ἀσιάδος πολυσπόρου
ldquoA ti hijo miacuteo no te engendreacute para que fueras viacutectima en proveccho de
los Danaidas sino como soberano de la rica Asiardquo
Ovidio asimila asiacute a las dos madres maacutes desgraciadas del linaje dardanio
confiriendo a este momento un patetismo que a nuestro parecer11 no
responde a la mera acumulacioacuten criticada por Escauro seguacuten leemos en
Seacuteneca Contr 9 5 17
Et propter hoc et propter alia quibus orator potest poetae similis videri
solebat Scaurus Montanum inter oratores Ovidium vocare nam et Ovidius
nescit quod bene cessit relinquere Ne multa referam quae Montaniana
Scaurus vocabat uno hoc contentus ero cum Polyxene esset abducta ut
ad tumulum Achillis immolaretur Hecuba dicit [13 503-504] cinis ipse
sepulti in genus hoc pugnat Poterat hoc contentus esse adiecit [504]
tumulo quoque sensimus hostem Nec hoc contentus est adiecit [505]
Aeacidae fecunda fui Aiebat autem Scaurus rem veram non minus
magnam virtutem esse scire dicere quam scire desinere
ldquoA causa de esto y de otras cosas por las que el orador puede parecer
semejante a un poeta Escauro soliacutea llamar a Montano lsquoOvidio entre los
oradoresrsquo en efecto tampoco sabe Ovidio poner fin a lo que le ha salido
bien Para no recordar muchas cosas que Escauro designaba como propias
de Montano me contentareacute con esto solamente al ser arrebatada Poliacutexena
para ser inmolada junto al tuacutemulo de Aquiles dice Heacutecuba lsquola propia
ceniza del sepultado se ensantildea contra este linajersquo Podiacutea estar contento
con esto antildeadioacute lsquoincluso en su sepulcro lo hemos sentido como enemigorsquo
Y no se contentoacute con esto tampoco antildeadioacute lsquofui feacutertil para el Eaacutecidarsquo
Escauro por tanto deciacutea la verdad no es menos grande virtud saber
decir como saber dejar de decirrdquo
11 No creemos que en esta ocasioacuten el tantas veces dado al humor Ovidio (cf R Mordf Iglesias-Mordf C Aacutelvarez 2005 403-419) quisiera superar con la reiteracioacuten el excesivo dramatismo de la situacioacuten provocando una relajacioacuten en la tensioacuten narrativa
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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pues una madre que acaba de perder a su hija de forma tan cruel
forzosamente tiende a repetir sin cesar reproches contra el que ha provocado
esa muerte maacutexime si como en el caso de Heacutecuba el causante la ha dejado
orba sin hijos La reina consciente del gran poder que tuvo y de haberlo
perdido todo y de su condicioacuten de esclava continuacutea hablando en Met
13 505-520
iacet Ilion ingens
eventuque gravi finita est publica clades
sed finita tamen soli mihi Pergama restant
in cursuque meus dolor est modo maxima rerum
tot generis natisque potens nuribusque viroque
nunc trahor exul inops tumulis avulsa meorum
Penelopes munus quae me data pensa trahentem
matribus ostendens Ithacis haec Hectoris illa est
clara parens haec est dicet Priameia coniunx
postque tot amissos tu nunc quae sola levabas
maternos luctus hostilia busta piasti
inferias hosti peperi quo ferrea resto
quidve moror quo me servas annosa senectus
quo di crudeles nisi uti nova funera cernam
vivacem differtis anum quis posse putaret
felicem Priamum post diruta Pergama dici
ldquoYace postrada la enorme Ilio y con un penoso suceso ha acabado la
desgracia del pueblo pero con todo ha terminado para miacute sola permanece
Peacutergamo y mi dolor sigue su curso Hasta hace poco la maacutes importante
de todo poderosa por tantos yernos e hijos nueras y marido Ahora soy
arrastrada en mi exilio pobre arrancada de los tuacutemulos de los miacuteos
presente para Peneacutelope la cual mostraacutendome a las matronas de Iacutetaca a
miacute cuando arrastre la tarea encomendada diraacute lsquoEacutesta es la famosa ilustre
madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquo iexcly despueacutes de que tantos
se han perdido ahora tuacute la uacutenica que aliviabas mi luto de madre has
aplacado con tu sacrificio la pira del enemigo He parido ofrendas fuacutenebres
para un enemigo iquestPara queacute resisto fuerte como el hierro iquestO queacute espero
iquestPara queacute me reservas antildeosa vejez iquestPara queacute dioses crueles a no ser
para contemplar nuevos funerales alargaacuteis la vida a una anciana iquestQuieacuten
creeriacutea que podriacutea ser llamado feliz Priacuteamo despueacutes de la destruccioacuten
de Peacutergamordquo
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143
quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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145
κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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212
Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
Obra protegida por direitos de autor
213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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quejas que son ecos de Troyanas y de Heacutecuba en que se reflejan los
momentos previos a tener constancia de la muerte de Poliacutexena Asiacute en Tr
104-106 dice la abatida soberana
αἰαῖ αἰαῖ τί γὰρ οὐ πάρα μοι μελέαι στενάχειν͵ ἧι πατρὶς ἔρρει καὶ τέκνα καὶ πόσις
ldquoiexclAy ay ay iquestQueacute maacutes me falta para llorar desgraciada de miacute a quien se
le han ido patria hijos y esposordquo
y continuacutea en 140-142
δούλα δrsquo ἄγομαι γραῦς ἐξ οἴκων πενθήρη κρᾶτrsquo ἐκπορθηθεῖσrsquo οἰκτρῶς
ldquoSoy llevada de mi casa como una esclava vieja llena de dolor al haber
sido destruido mi poder lastimeramenterdquo
Y en diaacutelogo con el coro dice en 190-199
φεῦ φεῦ τῶι δrsquo ἁ τλάμων ποῦ πᾶι γαίας δουλεύσω γραῦς͵ ὡς κηφήν͵ ἁ δειλαία͵ νεκροῦ μορφά͵ νεκύων ἀμενηνὸν ἄγαλμα͵ αἰαῖ αἰαῖ͵ τὰν παρὰ προθύροις φυλακὰν κατέχουσrsquo ἢ παίδων θρέπτειρrsquo͵ ἃ Τροίας ἀρχαγοὺς εἶχον τιμάς
ldquoiexclAy ay iquesta quieacuten coacutemo y doacutende servireacute yo como esclava esta vieja
resignada como una zaacutengana esta miserable figura de cadaacutever efigie
fugaz de la muerte iexclay ay iquestmontando guardia a la entrada de una puerta
cuidando nintildeos yo que teniacutea el honor de gobernar Troyardquo
Y de modo especial recoge lo dicho por la propia Heacutecuba en 474-476
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
Bibliografia
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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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ἦ μὲν τύραννος κἀς τύραννrsquo ἐγημάμην͵ κἀνταῦθrsquo ἀριστεύοντrsquo ἐγεινάμην τέκνα͵ οὐκ ἀριθμὸν ἄλλως ἀλλrsquo ὑπερτάτους Φρυγῶν
ldquoYo era reina y me caseacute con un rey y entonces engendreacute hijos superiores
no solamente en nuacutemero sino en excelencia a todos los Frigiosrdquo
y por el mensajero Taltibio cuando en Hec 492-496 aparece en escena y
descubre a la reina a la que maacutes tarde relataraacute coacutemo se desarrolloacute el
sacrificio de Poliacutexena
οὐχ ἥδrsquo ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν͵ οὐχ ἥδε Πριάμου τοῦ μέγrsquo ὀλβίου δάμαρ καὶ νῦν πόλις μὲν πᾶσrsquo ἀνέστηκεν δορί͵ αὐτὴ δὲ δούλη γραῦς ἄπαις ἐπὶ χθονὶ κεῖται͵ κόνει φύρουσα δύστηνον κάρα
ldquoiquestNo es eacutesta la reina de los Frigios ricos en oro iquestNo es eacutesta la esposa
de Priacuteamo el muy dichoso Y ahora toda su ciudad estaacute devastada por
la lanza y ella esclava vieja sin hijos yace por tierra manchando de
polvo su desgraciada cabezardquo
Ovidio con tales precedentes quiere resaltar ahora la soledad de Heacutecuba
como madre del homeacuterico Heacutector en 13 512-513
ldquohaec Hectoris illa est
clara parens haec estrdquo dicet ldquoPriameia coniunxrdquo
ldquo lsquoEacutesta es la famosa ilustre madre de Heacutector eacutesta es la esposa de Priacuteamorsquordquo
presuponiendo las palabras que diraacute Peneacutelope cuando muestre a su nueva
esclava vieja y sin valor alguno que evocan los tristes aguumleros que para
siacute vaticina Heacutecuba en Tr 489-497
τὸ λοίσθιον δέ͵ θριγκὸς ἀθλίων κακῶν͵ δούλη γυνὴ γραῦς Ἑλλάδrsquo εἰσαφίξομαι ἃ δrsquo ἐστὶ γήραι τῶιδrsquo ἀσυμφορώτατα͵ τούτοις με προσθήσουσιν͵ ἢ θυρῶν λάτριν
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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146
tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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211
pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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κλῆιδας φυλάσσειν͵ τὴν τεκοῦσαν Ἕκτορα͵ ἢ σιτοποιεῖν κἀν πέδωι κοίτας ἔχειν ῥυσοῖσι νώτοις͵ βασιλικῶν ἐκ δεμνίων͵ τρυχηρὰ περὶ τρυχηρὸν εἱμένην χρόα πέπλων λακίσματrsquo͵ ἀδόκιμrsquo ὀλβίοις ἔχειν
ldquoY por uacuteltimo el colmo de todos los males como una vieja mujer
esclava voy a llegar a la Heacutelade lo maacutes inapropiado para esta vejez
me encargaraacuten de estas cosas custodiar las llaves como portera yo la
que engendroacute a Heacutector o a fabricar el pan y a tener en el suelo un
camastro para mis arrugados lomos en vez de mis lechos reales a vestir
este andrajoso cuerpo con andrajosos retales de peplos insulto para
los ricosrdquo
Con el toacutepico del padre muerto que ya no contemplaraacute maacutes desgracias
de los suyos la Heacutecuba ovidiana en 13 521-522 al decir
felix morte sua est nec te mea nata peremptam
adspicit et vitam pariter regnum que reliquit
ldquoEs feliz con su muerte iexclno te contempla asesinada hija miacutea y abandonoacute
a la vez la vida y el reinordquo
auacutena las palabras que reina y coro intercambian en el eacutexodos de Troyanas
1312-1316
Εκ ἰὼ ἰώ͵ Πρίαμε Πρίαμε͵ σὺ μὲν ὀλόμενος ἄταφος ἄφιλος ἄτας ἐμᾶς ἄιστος εἶ Χο μέλας γὰρ ὄσσε κατεκάλυ-ψε θάνατος ὅσιος ἀνοσίοις σφαγαῖσιν
ldquoHe- iexclOh oh iexclPriacuteamo Priacuteamo iexclTuacute muerto insepulto sin amigos no
ves mis desgracias Co- Pues piadosa la negra muerte cubrioacute los ojos
con impiacuteo deguumlellordquo
con el lamento que emite Evandro por la muerte de su hijo Palante
consolaacutendose de que su esposa ya fallecida no pueda verlo en Aen 11
158-161
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146
tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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146
tuque o sanctissima coniunx
felix morte tua neque in hunc seruata dolorem
contra ego uiuendo uici mea fata superstes
restarem ut genitor
ldquoY tuacute oh santiacutesima esposa iexclfeliz en tu muerte al no haber sido reservada
para este dolor Por el contrario yo viviendo venciacute mi destino para
sobrevir siendo su padrerdquo
La simplificacioacuten de las escenas ulteriores en Metamorfosis no disminuye
el dramatismo de la accioacuten sino que lo intensifica auacuten maacutes pues sin duda
no soacutelo el hecho de que Heacutecuba haya sido testigo directo de la inmolacioacuten
de Poliacutexena sino tambieacuten la peacuterdida de sus atribuciones de reina contribuyen
a agrandar el pathos Tengamos presente que en la Heacutecuba de Euriacutepides ha
recibido a traveacutes del mensajero Taltibio la orden de enterrar a su hija que
se dispone a realizarlo y que enviacutea a una sierva para que le traiga una urna
llena de agua de mar y esa sierva seraacute la que en lugar de la urna volveraacute
portando el cadaacutever de Polidoro mientras que en Metamorfosis tan soacutelo se
repite el detalle de la peticioacuten del recipiente ya que el verso 534 (lsquodate
Troades urnamrsquo) resume Hec 609-610
σὺ δrsquo αὖ λαβοῦσα τεῦχος͵ ἀρχαία λάτρι͵ βάψασrsquo ἔνεγκε δεῦρο ποντίας ἁλός
ldquoY tuacute vieja esclava cogiendo una vasija tras meterla en el el agua del
mar traacuteela aquiacuterdquo
pero Ovidio innova al hacer que sea la propia Heacutecuba la que se dirija al
mar y alliacute de improviso descubra el cuerpo sin vida de su hijo al que
como uacutenico superviviente y consuelo de sus padecimientos se ha referido
en los uacuteltimos versos del treno (527-530) Frente a las muchas palabras de
dolor que emite en Troyanas y en Heacutecuba en Ovidio hay silencio mas tal
vez recordando una frase de la Heacutecuba euripiacutedea que es tan soacutelo una frase
maacutes entre todos los lamentos la del verso 683 ldquohe muerto triste de miacute y
ya no existo maacutesrdquo el narrador parece indicarnos que la reina casi se muere
de dolor pues sus reacciones como vemos en los vv 538-544
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205
Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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213
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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Mas o que eacute afinal este Boa Noite Senhor Soares A ideia como Maacuterio
Claacuteudio confessa em entrevistas a Isabel Lucas e a Pedro Dias de Almeida12
surgiu da leitura de um dos fragmentos do Livro do Desassossego de Bernardo
Soares O fragmento em causa que natildeo resistimos a citar relata a despedida
do moccedilo do escritoacuterio
Foi-se hoje embora diz-se que definitivamente para a terra que eacute natal
dele o chamado moccedilo do escritoacuterio aquele mesmo homem que tenho
estado habituado a considerar como parte desta casa humana e portanto
como parte de mim e do mundo que eacute meu Foi-se hoje embora No
corredor encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despedida
dei-lhe eu um abraccedilo timidamente retribuiacutedo e tive contra-alma bastante
para natildeo chorar como em meu coraccedilatildeo desejavam sem mim meus olhos
quentes
Cada coisa que foi nossa ainda que soacute pelos acidentes do conviacutevio ou
da visatildeo porque foi nossa se torna noacutes O que se partiu hoje pois para
uma terra galega que ignoro natildeo foi para mim o moccedilo do escritoacuterio foi
uma parte vital porque visual e humana da substacircncia da minha vida Fui
hoje diminuiacutedo Jaacute natildeo sou bem o mesmo O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Tudo que se passa no onde vivemos eacute em noacutes que se passa Tudo que
cessa no que vemos eacute em noacutes que cessa Tudo que foi se o vimos quando
era eacute de noacutes que foi tirado quando se partiu O moccedilo do escritoacuterio foi-se
embora
Eacute mais pesado mais velho menos voluntaacuterio que me sento agrave carteira
alta e comeccedilo a continuaccedilatildeo da escrita de ontem Mas a vaga trageacutedia de
hoje interrompe com meditaccedilotildees que tenho que dominar agrave forccedila o processo
automaacutetico da escrita como deve ser Natildeo tenho alma para trabalhar senatildeo
porque posso com uma ineacutercia activa ser escravo de mim O moccedilo do
escritoacuterio foi-se embora
12 I Lucas 2008 42 e P D de Almeida ent cit 154 respectivamente
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Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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206
Sim amanhatilde ou outro dia ou quando quer que soe para mim o sino
sem som da morte ou da ida eu tambeacutem serei quem aqui jaacute natildeo estaacute
copiador antigo que vai ser arrumado no armaacuterio por baixo do vatildeo da
escada Sim amanhatilde ou quando o Destino disser teraacute fim o que fingiu em
mim que fui eu Irei para a terra natal Natildeo sei para onde irei Hoje a
trageacutedia eacute visiacutevel pela falta sensiacutevel por natildeo merecer que se sinta Meu
Deus meu Deus o moccedilo do escritoacuterio foi-se embora13
Todavia e ao contraacuterio do que podem sugerir os espaccedilos em branco
do fragmento em questatildeo ndash os motivos da partida do moccedilo do escritoacuterio
para a aldeia e as suas implicaccedilotildees no estado de espiacuterito de Bernardo
Soares ndash natildeo cumpriraacute agrave maacutescara de Pessoa assumir a narrativa dos
acontecimentos Pelo contraacuterio a responsabilidade do relato caberaacute ao
moccedilo do escritoacuterio cujo nome e retrato fiacutesico e psicoloacutegico a narrativa
claudiana completa (alterando aqui como em outros momentos as
indicaccedilotildees facultadas pelo Livro do Desassossego) de Antoacutenio14 passa a
Antoacutenio Feliacutecio proveniente de Escalos de Cima concelho de Idanha-a-
Nova (pp 11-12) e natildeo de uma aldeia galega de referecircncia pontual passa
a narrador da histoacuteria ou melhor passa a responsaacutevel por uma histoacuteria
cujo protagonismo divide com o meio heteroacutenimo e cuja responsabilidade
narrativa ndash em mais um jogo agora sobre a proacutepria escrita ndash assumidamente
delega num ldquoautor mais ou menos respeitadordquo15 (assim transformando
Maacuterio Claacuteudio em ghost writer) Citamos o excerto em causa que apesar
de longo em tudo nos interessa
Por intermeacutedio do amigo de um amigo meu inteirado da ambiccedilatildeo em
que eu andava de contactar um profissional a fim de que escrevesse ele
o relato do meu conviacutevio com o senhor Soares consegui abordar um autor
mais ou menos respeitado Eu achava-me ao corrente do facto de que o
13 R Zenith 2003 frag 27914 R Zenith 2003 frag 13015 A mesma estrateacutegia eacute utilizada em Amadeo
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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homem possuiacutea uma larga experiecircncia em se aproveitar das histoacuterias
alheias transformando-as em suas e declarando parece que se especializara
nisso que lhe haviam enviado uns papeacuteis e que natildeo era ele se bem se
considerasse o responsaacutevel pelas obras que paria O fulano atendeu-me
com cortesia mas foi tambeacutem muito directo laquoSenhor Feliacutecioraquo disse ele
laquoeacute claro que natildeo lhe cobro um tostatildeo pela tarefa mas quero avisaacute-lo do
seguinte aquilo que eu contar distinguir-se-aacute bastante daquilo que o
senhor contariaraquo E explicou-se laquoEu utilizo palavras que o senhor eacute capaz
de ignorar recuso-me a aplicar umas quantas daquelas que o senhor usa
cometo umas elegacircncias que alguns acham excessivas mas de que haacute
quem goste e acrescento por capricho vaacuterios po[z]inhos ao que para certas
pessoas merecia um po[z]inho soacuteraquo E continuou laquoA verdade eacute que nenhum
de noacutes narra um enredo de maneira igual nem o senhor nem eu nem
seja quem for que tente decifrar o que noacutes redigimosraquo E lanccedilou-me este
ultimatum laquoAqui tem as minhas condiccedilotildees e eacute pegar senhor Feliacutecio ou
largarraquo (91-92)16
E ldquoatordoado com semelhante discursordquo Antoacutenio Feliacutecio pegou E para
comeccedilarmos ou continuarmos a responder agrave interrogaccedilatildeo sobre o que eacute
que dali iria sair Saiu em primeiro lugar um extraordinaacuterio texto que ao
preencher as vidas e o quotidiano dos empregados do escritoacuterio da Rua
dos Douradores apenas semi-contadas em Livro do Desassossego permite
pintar o retrato social e humano de uma Lisboa que oscila entre ldquoum certo
garridismordquo e ldquouma certa depressatildeordquo17
Neste acircmbito se podem enquadrar as referecircncias agrave devoccedilatildeo ao doutor
Sousa Martins (p16) as descriccedilotildees das merendas ldquodaqueles domingos nas
hortasrdquo com ldquoa irmatilde Florindardquo o ldquocunhado Gomes a menina deles e a
16 A delegaccedilatildeo da competecircncia e da responsabilidade narrativa jaacute se havia feito notar no seguinte comentaacuterio ldquoa vida de cada uma daquelas pessoas conforme ao que sucede com a de toda a gente a avaliar pelo que me explica o escritor a quem ando a contar estas coisas servia para um romancerdquo (p 51)
17 Apud P D de Almeida 2008 156
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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mastronccedila da tia Celesterdquo (p 30) a celebraccedilatildeo dos 18 anos de Antoacutenio e a
consequente ida ldquoagraves putasrdquo (pp 35-41) ou o jantar dado pelo soacutecio capitalista
Alcino dos Santos Camacho quando a filha atinge a maioridade Nesta festa
agrave qual o senhor Soares natildeo comparece por andar ldquomuito neurasteacutenicordquo
deixa-se claro ainda que nem todos satildeo iguais todo o pessoal do escritoacuterio
foi convidado ldquomas apenas o patratildeo Vasques e os senhores Moreira e
Borges eacute que participaram no banquete a seacuteriordquo Antoacutenio ldquoos caixeiros de
praccedila e mais o moccedilordquo abancaram ldquoa uma mesa de taacutebuas armada no jardim
das traseirasrdquo (pp 21-22)
A ideia de uma Lisboa triste cujo calor afugenta ldquodas ruas os lisboetas
atirados para a penumbra dos seus quartos a matutar no dia seguinte que
seria de trabalho igual aos da semana anterior e da proacuteximardquo (p 31) natildeo
se aplica portanto a todos Mas aplica-se com certeza a Antoacutenio Feliacutecio
cuja permanecircncia em casa da irmatilde e do cunhado se torna cada vez mais
opressiva e deprimente Leva-o este sentimento a encetar e a viver aventurosas
viagens imaginaacuterias (pp 59 68) ndash afinal as uacutenicas permitidas a quem como
ele natildeo eacute rico ndash e finalmente depois da morte da irmatilde a optar pelo
regresso (natildeo definitivo poreacutem) agrave aldeia (p 88)
Em segundo lugar saiu um livro que em concomitacircncia com o relato
mais alargado da vida familiar de Antoacutenio Feliacutecio entre 1932 e 1985
preenche essencialmente o jogo relacional e disfarccediladamente afectivo
entre este Bernardo Soares ndash aqui natildeo um ldquocondenado agrave rotina de
preencher com preccedilos e quantias o Livro de Razatildeo de um armazeacutem de
fazendasrdquo18 mas um empregado elevado agrave categoria de tradutor e redactor
de cartas (pp 14 18) sem horaacuterio fixo (p 13) tal como o proacuteprio Pessoa19
Da teia de relaccedilotildees que gradualmente se vai consolidando constroacutei-se
uma figura de algueacutem que apesar de ser visto como esquisito (p 18)
neurasteacutenico (pp 22 71) ensimesmado (p 29) estranho (p 43) resignado
e fraacutegil (passim) natildeo deixa por isso de suscitar em Antoacutenio Feliacutecio (como
18 R Zenith 2003 1519 Ibid 15
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
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em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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em alguns dos outros funcionaacuterios) a maior admiraccedilatildeo e o maior apreccedilo
Tal acontece sem duacutevida natildeo apesar das caracteriacutesticas que acabamos de
enumerar mas justamente por causa delas No entanto cremos que o
fasciacutenio exercido por Bernardo Soares pode tambeacutem ser explicado por
outros factores
Decorre da sua humanidade afectiva quando notamos a antipatia por
Seacutergio (p 16 e passim) quando num poacutelo diametralmente oposto deixa
a Antoacutenio por exemplo ldquosobre a secretaacuteria um barquinho de almaccedilo pautadordquo
com o nome deste no casco (p 20) ou quando ainda no final se despede
do moccedilo num abraccedilo com choro dentro (p 89)
Adveacutem da sua humanidade de homem que apesar de poeta e por isso
supostamente distante e diferente do comum dos mortais natildeo deixa de ter
no mundo da sua casa um calendaacuterio em cuja gravura sobressai uma rapariga
ldquode cabeccedila atirada para traacutes e de decote que lhe deixava a nu metade das
mamas sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia
sobre os laacutebios vermelhosrdquo (p 78)20 Relembremos num outro exemplo
afim que fica por esclarecer a duacutevida de Antoacutenio Feliacutecio sobre a presenccedila
do poeta e tradutor na Calccedilada do Combro nas imediaccedilotildees da casa de
meninas (p 42)
O fasciacutenio que Bernardo Soares exerce sobre Antoacutenio acontece ainda
porque na intimidade da casa surge de ldquopeacutes descalccedilos encafuados nuns
chinelosrdquo apercebendo-se o moccedilo do escritoacuterio ldquode que pelo buraco de
um destes espreitava o dedo maior de unha por aparar uma unha dura
e encardida como natildeo se admitia nem mesmo a um limpa-chamineacutesrdquo
Natildeo se pense contudo que o quase grotesco desta aparecircncia destroacutei no
jovem a admiraccedilatildeo sentida Eacute exactamente o oposto que sucede E a
explicaccedilatildeo encontrada anos depois tida como afectivamente maluca eacute
20 Na paacutegina 19 jaacute havia sido dito que o senhor Soares se punha a fitar ldquocom grande concentraccedilatildeordquo ldquoum calendaacuterio de 1931 que ningueacutem quisera tirar da parederdquo acabando ldquopor sorrir para aquela gravura da rapariga de laacutebios vermelhos de fita rosa nos negros cabelos de blusa de decote aberto e a abraccedilar um molho de papoulasrdquo
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prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
Obra protegida por direitos de autor
213
Bibliografia
Almeida Pedro Dias de (2008) ldquoA escrita eacute um sustordquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Visatildeo 5 de Junho 154-156
Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa
Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi
Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote
Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos
Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23
Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44
Machado Aacutelvaro Manuel (2008) ldquoCroacutenica pessoanardquo in ExpressoActual 16 de Maio 16
Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
Obra protegida por direitos de autor
336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
Obra protegida por direitos de autor
337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
Obra protegida por direitos de autor
338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
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210
prova disso ldquolaquoEacute um sinal de Deus eacute dali com toda a certeza que lhe nasce
a sabedoriaraquordquo (p 77)
Mas retornemos ao que saiu deste livro Saiu em terceiro lugar fazendo
prova de que cada um tem a sua maneira de narrar a possibilidade de
reconhecermos e certificarmos dois aspectos importantes e caracteriacutesticos
do modo como Maacuterio Claacuteudio procede ao registo de vidas Por um lado a
praacutetica de uma escrita que natildeo tem que seguir necessaacuteria e inevitavelmente
um fio linear cronoloacutegico Pelo contraacuterio a partir do capiacutetulo IV a narrativa
eacute sujeita a constantes oscilaccedilotildees entre a recuperaccedilatildeo do passado dos anos
trinta e quarenta e o presente de 1985
Por outro lado o que ressalta eacute a apetecircncia de Maacuterio Claacuteudio para se
imbuir do espiacuterito das mateacuterias e das pessoas que de acordo com o meacutetodo
proustofiacutelico investiga e usa nos seus livros Natildeo se estranha portanto
que a narrativa se natildeo limite a preencher os vazios deixados pelo fragmento
que deu azo a Boa Noite Senhor Soares Com efeito vaacuterios momentos da
histoacuteria remetem para um profundo conhecimento e harmoniosa incor-
poraccedilatildeo do Livro (intervalar) de Bernardo Soares Eacute o que sucede por
exemplo com o registo da existecircncia da pianista vizinha do senhor Soares
(pp 75-7621)
Em concomitacircncia sobressai uma notaacutevel capacidade para se impregnar
do espiacuterito do estilo do artista de quem fala Se em Amadeo por exemplo
o caraacutecter ziguezagueante da escrita reproduz em larga medida os traccedilos
de certos quadros do pintor em Boa Noite Senhor Soares natildeo eacute difiacutecil
encontrar excertos em que se torna possiacutevel observar a dinacircmica de
representaccedilatildeo de Fernando Pessoa-Bernardo Soares Um dos mais ilustrativos
exemplos acontece no capiacutetulo IV quando no seu presente de 1985 ao
mesmo tempo que ldquoLentamente desliz[a] para o sonordquo (p 55) Antoacutenio ndash
ou melhor o autor contratado em sua substituiccedilatildeo ndash recorda o senhor
Soares (Fernando Pessoa) a passar ldquopela Rua Augusta pela Rua da Prata
21 Cf R Zenith 2003 frag 266
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211
pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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212
Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
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Bibliografia
Almeida Pedro Dias de (2008) ldquoA escrita eacute um sustordquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Visatildeo 5 de Junho 154-156
Claacuteudio Maacuterio (2005) Os sonetos italianos de Tiago Veiga Porto Asa
Claacuteudio Maacuterio (2007) O Eixo da buacutessola Vila Nova de Famalicatildeo Ediccedilotildees Quasi
Claacuteudio Maacuterio (2008) Boa noite senhor Soares Lisboa Dom Quixote
Greimas A J e COURTEgraveS J (1982) Semioacutetica Diccionario razonado de la Teoria del Lenguaje Madrid Editorial Gredos
Lino Pedro Sena (2005) ldquoVersos de um muito ningueacutemrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in PuacuteblicoMil Folhas 10 de Dezembro 22-23
Lucas Isabel (2008) ldquoQuem escreve mal pensa malrdquo Entrevista com Maacuterio Claacuteudio in Diaacuterio de Notiacutecias 4 de Junho 43-44
Machado Aacutelvaro Manuel (2008) ldquoCroacutenica pessoanardquo in ExpressoActual 16 de Maio 16
Zenith Richard (ed) (2003) Livro do Desassossego 4ordf ed Lisboa Assiacuterio e Alvim
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
Obra protegida por direitos de autor
335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
Obra protegida por direitos de autor
336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
Obra protegida por direitos de autor
337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
Obra protegida por direitos de autor
338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
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pela Rua dos Douradores e pela Rua dos Fanqueiros com as abas da
gabardina desfraldadas ao vento que vem do Tejordquo (pp 53-54)
O senhor Soares percorre as aacuteleas do Jardim da Estrela o qual se estende
como o fantasma de um parque antigo E enquanto os cisnes deslizam no
espelho de aacutegua o senhor Soares contemplando-os com os olhos semifechados
por detraacutes das lentes magica numa quermesse em que participam columbinas
e pierrots e arlequins () E tudo se mistura na minha visatildeo natildeo sei bem
porquecirc com um romance ancestral em cujas linhas intervecircm Hamlet e
Ofeacutelia heroacuteis do grande Shakespeare que soacute conheccedilo de ouvir falar ()
O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela passeando a par
da jovem que o esperava () E eacute entatildeo que principio a resvalar em definitivo
para o sono quando a claridade me entra jaacute pelas frinchas da persiana e
o senhor Soares se dirige a um paiacutes muito distante que no meu torpor se
chama laquoMar Portuguecircsraquo Atraacutes dele segue uma fosca multidatildeo e a primeira
individualidade que nela distingo eacute aquele famoso doutor Reis () (pp
56-57) (sublinhados nossos)
Se compararmos estas linhas com breviacutessimos excertos do iniacutecio de ldquoNa
Floresta do Alheamentordquo22 as semelhanccedilas natildeo passam despercebidas
Sei que despertei e que ainda durmo O meu corpo antigo moiacutedo de
eu viver diz-me que eacute muito cedo ainda Sinto-me febril de longe Peso-me
natildeo sei porquecirc
Num torpor luacutecido pesadamente incorpoacutereo estagno entre o sono e a
vigiacutelia num sonho que eacute uma sombra de sonhar Minha atenccedilatildeo boacuteia entre
dois mundos ()
Um vento de sombras sopra cinza de propoacutesitos mortos sobre o que eu
sou de desperto ()
22 Este fragmento constitui um dos Grandes Trechos do Livro do Desassossego tendo sido inicialmente publicado (A Aacuteguia 1913) com a assinatura de Fernando Pessoa e soacute posteriormente atribuiacutedo a Bernardo Soares
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212
Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
Obra protegida por direitos de autor
213
Bibliografia
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ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
Obra protegida por direitos de autor
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
Obra protegida por direitos de autor
336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
Obra protegida por direitos de autor
337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
Obra protegida por direitos de autor
338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
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Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967
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212
Com uma lentidatildeo confusa acalmo Entorpeccedilo-me Boacuteio no ar entre velar
e dormir e uma outra espeacutecie de realidade surge e eu em meio dela natildeo
sei de que onde que natildeo eacute este23 (sublinhados nossos)
Deixamos de lado a possibilidade de estabelecermos um paralelismo
entre a ldquofosca multidatildeordquo os heteroacutenimos de Pessoa que no texto de Maacuterio
Claacuteudio segue(m) Bernardo Soares e o facto de ldquoNa Floresta do Alheamentordquo
podermos certificar embrionariamente a existecircncia da constelaccedilatildeo
heteroniacutemica que em breve haveria de ganhar corpo (e alma) Natildeo podemos
no entanto deixar de apontar as semelhanccedilas entre as atmosferas descritas
os estados de alma entre a vigiacutelia e o sono a sensaccedilatildeo de diluiccedilatildeo corpoacuterea
o sonhoo sono como figuraccedilatildeo alienante e como ponto de partida para a
descoincidecircncia com o real ou ainda a interpenetraccedilatildeo a mistura das
sensaccedilotildees a fazer lembrar a teacutecnica interseccionista de alguns poemas de
Pessoa ele mesmo
O que em derradeira instacircncia parece ter saiacutedo deste livro eacute afinal a
hipoacutetese de Bernardo Soares cumprir um outro sonho o de ldquoviver tudo em
romance repousando na vida ndash ler as [suas] emoccedilotildees viver o [seu] desprezo
delasrdquo sabendo que ldquoPara quem tenha as emoccedilotildees agrave flor da pele as aventuras
de um protagonista de romance satildeo emoccedilatildeo proacutepria bastante e mais pois
que satildeo dele e nossasrdquo24
Boa noite e boa leitura entatildeo senhor Soares
Boa noite Maacuterio Claacuteudio
23 In R Zenith op cit 452-45324 R Zenith 2003 frag 348
Obra protegida por direitos de autor
213
Bibliografia
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Obra protegida por direitos de autor
334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
Obra protegida por direitos de autor
336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
Obra protegida por direitos de autor
337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
Obra protegida por direitos de autor
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa
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Obra protegida por direitos de autor
334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
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335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
Obra protegida por direitos de autor
337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
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as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra
Obra protegida por direitos de autor
342
Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra
Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
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334
Y) que ofereceraacute horaacuterios de trabalho flexiacuteveis e mais tempo livre Segundo
ela as pessoas que adoptam este estilo de vida querem produtos de turismo
de sauacutede e bem-estar trilhos e itineraacuterios naturais e culturais (rurais e
urbanos) ecoturismo enoturismo e geoturismo As geraccedilotildees mais jovens
parecem querer seguir um caminho diferente dos seus pais e avoacutes Podem
ficar em casa com os filhos mas vatildeo viajar pelo mundo e trabalhar menos
Com certeza procuraratildeo ter mais tempo de lazer
Nesta perspectiva o puacuteblico-alvo dos lazeres somos todos noacutes as pessoas
comuns E porquecirc Na nossa sociedade vertiginosa rotineira sedentaacuteria com
poucas oportunidades para actividades de destreza fiacutesica e poucas oportu-
nidades de forte excitaccedilatildeo emocional as transgressotildees e desvios no acircmbito
das actividades de lazer seratildeo uma actividade econoacutemica em crescimento
porque essa eacute a vontade das pessoas e porque se trata de nichos que permitem
mais-valias econoacutemicas significativas e por isso mesmo seratildeo tambeacutem incutidos
agrave populaccedilatildeo enquanto consumidora de bens e serviccedilos
Lazeres normas e desvios
Hoje a autonomia tradicional dos tempos sociais e o princiacutepio da distinccedilatildeo
dos eventos satildeo postos em causa como refere Stebbins (1996) As festas
religiosas ou civis do calendaacuterio perdem o seu caraacutecter ritual porque as
suas significaccedilotildees satildeo alteradas e os propoacutesitos satildeo diversificados e
mercadorizados Na verdade a festa tradicional vista como normativa e
integradora surge como entidade patrimonial que necessita de preservaccedilatildeo
e de orientaccedilatildeo para puacuteblicos especiacuteficos de forma a manter a sua existecircncia
enquanto actividade religiosa e luacutedico-cultural Surgem novas festas como
as rave as free parties e grandes cerimoacutenias desportivas que satildeo tambeacutem
responsaacuteveis pela utilizaccedilatildeo de tempos inusitados e de espaccedilos tecnolo-
gicamente evoluiacutedos e espectaculares
Eacute contudo interessante referir que a temaacutetica das normas e desvios
abrange um outro acircmbito que envolvendo o lazer diz especialmente respeito
Obra protegida por direitos de autor
335
agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
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339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
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341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
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Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
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agrave relaccedilatildeo da pessoa como o seu corpo e a sua imagem Um corpo natildeo
espartilhado e valorizado pela moda e por opccedilotildees cosmeacuteticas variadas
juntamente com novas formas de identidade social eacute algo que ganha expressatildeo
na sociedade actual O corpo eacute uma mateacuteria-prima que noacutes podemos
consertar completar (Le Breton 2002) e transforma-se em instrumento e
campo de lazer atribuindo-lhe valecircncias resultantes de uma curiosa mistura
que alia a procura de bem-estar da esteacutetica da sauacutede com o culto da
excelecircncia e da performance (Fournier 2004)
Hoje a atracccedilatildeo pela novidade e pelo desconhecido satildeo mais do que
nunca responsaacuteveis por acccedilotildees humanas (individuais ou colectivas) com
uma contextualizaccedilatildeo espaacutecio-temporal diferenciada em acircmbito de lazer
A importacircncia em definir praacuteticas concretas de actuaccedilatildeo e expressotildees
imageacuteticas dessas praacuteticas sempre promoveu a organizaccedilatildeo de grupos mais
ou menos fechados e com manifestaccedilotildees identitaacuterias especiacuteficas de que os
maccedilons satildeo uma referecircncia superlativa que encontra hoje significado nas
tribos urbanas Com identidades bem vincadas e resultando muitas vezes de
ideologias ou expressotildees sociais de oposiccedilatildeo com acontecia com os teddyboys
mods rockers hoje mantecircm-se as referecircncias com os betos os dreads os
goacuteticos os fashions os streetwearers os punks os surfistas sempre com estilos
de vida e comportamentos diferenciados e muitas vezes desviantes em relaccedilatildeo
agraves normas sociais vigentes De facto nas faixas etaacuterias que compreendem os
adolescentes e os jovens-adultos estes grupos satildeo expressatildeo de individualidade
e podem conduzir a atitudes de marginalizaccedilatildeo e de discriminaccedilatildeo
Tambeacutem o tempo pode funcionar como despoletador de comportamentos
desviantes A relaccedilatildeo entre o lazer e a noite expressa hoje num mercado
que eacute habitualmente referido como ENTE (evening-night time economy)
conteacutem em si sementes de revoluccedilatildeo social e cultural atitudes em relaccedilatildeo
ao sexo e relacionamento inter-geacutenero e agrave superlativaccedilatildeo do hedonismo
porque a noite eacute um periacuteodo em que o tempo livre associado ao lazer se
sobrepotildee ao tempo de emprego
O tempo da noite impulsiona a libertaccedilatildeo das rotinas quotidianas insinua
a transgressatildeo a alteraccedilatildeo das normas de comportamento atraveacutes do prazer
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da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
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nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
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mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa
Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967
Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223
Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris
Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre
Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra
Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988
Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres
Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz
Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82
Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris
Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario
Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290
Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob
Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa
Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra
Obra protegida por direitos de autor
342
Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra
Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor
336
da emoccedilatildeo da excitaccedilatildeo (Santos amp Moreira 2008) A ocupaccedilatildeo do tempo
livre nomeadamente do nocturno eacute cada vez mais individualizada socialmente
diferenciada e diferenciadora reflectindo categorias como a idade os geacuteneros
a etnia os niacuteveis de rendimento O uso e abuso de produtos socialmente
integradores estatildeo associados ao lazer nocturno e o consumo excessivo de
aacutelcool tabaco e outros produtos estupefacientes despoleta comportamentos
desviantes de risco e perigosos em populaccedilotildees cada vez mais jovens Eacute o
caso do binge drinking fenoacutemeno que estaacute ligado agrave cultura da noite e ao
consumo excessivo de aacutelcool com o intuito de obter uma situaccedilatildeo de
embriaguez o mais rapidamente possiacutevel em ambiente de lazer
Interessa perguntarmo-nos como nos estamos noacutes a modificar perante
esta continuada exposiccedilatildeo a novos tempos a novos espaccedilos e a novos
modos Ou como questiona Aubert (2004) em que nos tornaacutemos noacutes
Passaacutemos de um periacuteodo de submissatildeo ao tempo para um outro em que
natildeo paramos de o violentar Apenas nos interessamos pelo imediato
explorando as possibilidades de mudanccedila e adaptaccedilatildeo tornando-se quase
impossiacutevel a sustentaccedilatildeo de valores num tempo longo Somos hipermodernos
Esta noccedilatildeo de hipermodernidade encontra nos lazeres modernos modos
de valorizaccedilatildeo muito significativos Eacute o caso da passagem de um corpo
submisso a um corpo livre e autofabricado de um tempo onde nos
escoaacutevamos a um tempo que violentamos e que nos tiraniza de um modo
de relaccedilatildeo com os outros onde os sentimentos se desvanecem agraves sensaccedilotildees
de efemeridade e de volatilidade do indiviacuteduo da medida justa ao indiviacuteduo
que procura e vive o excesso da procura de eternidade situada para aleacutem
dos tempos agrave procura de intensidade no instante (Aubert 2004)
Somos confrontados com mudanccedilas e desvios e como refere Dumazedier
(2002) o que ontem podia ser preguiccedila em relaccedilatildeo agraves exigecircncias do
empreendimento eacute hoje dignidade aquilo a que ontem se chamava egoiacutesmo
em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo familiar chama-se hoje respeito pelos
caracteres dos seus membros uma parte do que antes era pecado aos olhos
da instituiccedilatildeo religiosa eacute hoje reconhecido como arte de viver (a moral do
hedonismo) a eacutetica do lazer natildeo eacute a da desocupaccedilatildeo que rejeita o trabalho
Obra protegida por direitos de autor
337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
Obra protegida por direitos de autor
338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
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Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82
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Obra protegida por direitos de autor
342
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Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
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Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor
337
nem a da licenccedila que infringe as obrigaccedilotildees eacute a de um novo equiliacutebrio
entra as exigecircncias utilitaacuterias da sociedade e as exigecircncias desinteressadas
da pessoa
Todas estas actividades apresentam como funccedilatildeo principal o estabe-
lecimento de relaccedilotildees que ao conquistarem a materializaccedilatildeo o intuito de
obtenccedilatildeo de propriedade tecircm que ir mais aleacutem para conseguirem a
diferenciaccedilatildeo O bem de consumo eacute interpretado como signo cultural e
iacutecone contemporacircneo mas haacute que encontrar no intangiacutevel e no imaterial
as novas formas de propriedade que se expressam em portefoacutelios de
experiecircncias e participaccedilotildees que envolvem actividades e acccedilotildees muitas
vezes mal toleradas ou natildeo toleradas por partes significativas da populaccedilatildeo
Tudo parece estar virado do avesso jaacute que facilmente grandes partes da
cultura perdem o seu valor simboacutelico ou identitaacuterio devido a uma desclas-
sificaccedilatildeo dos significados do mesmo modo que as pessoas que representam
uma certa ordem de valores comprometem os siacutembolos de que estatildeo
investidos como acontece com os poliacuteticos nas televisotildees em emissotildees de
puro divertimento e a identificaccedilatildeo das figuras mediaacuteticas de uma cultura
popular como os gurus orientadores da sociedade em substituiccedilatildeo dos
filoacutesofos das geraccedilotildees passadas
Eacute possiacutevel afirmar que a sociedade actual se apresenta algo desregrada
extremamente flexiacutevel ou muito fluida Se bem que estas conotaccedilotildees possam
ser interpretadas de forma negativa elas envolvem tambeacutem aspectos positivos
que tem uma expressatildeo relevante nas actividades de lazer
O lazer pode ser interpretado com uma fuga aos padrotildees de comporta-
mento ro tineiro e alienante Assim sendo o lazer eacute um desvio ao mundo
do trabalho consentido e promovido pela ideologia capitalista de obtenccedilatildeo
de lucro De facto esta promoccedilatildeo pode acontecer em todos os tempos em
todos os espaccedilos em todas as acccedilotildees e eacute a expressatildeo de uma identidade
social valorizada pelo consumo de bens de serviccedilos e de espaccedilos
Esta leitura das praacuteticas de lazer estaacute de acordo com a valorizaccedilatildeo
conceptual da sociedade moderna da mudanccedila e heterogeneidade (expressatildeo
da relaccedilatildeo entre o ecletismo e a individuaccedilatildeo) Casa pessoa tem cada vez
Obra protegida por direitos de autor
338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa
Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967
Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223
Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris
Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre
Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra
Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988
Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres
Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz
Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82
Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris
Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario
Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290
Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob
Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa
Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra
Obra protegida por direitos de autor
342
Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra
Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor
338
mais possibilidades de participar em muacuteltiplas esferas de acccedilatildeo que definem
o seu estilo de vida e caracterizam a sua identidade social (entre a semelhanccedila
e a diferenccedila) Esta sociedade envolve algumas particulares principais de
que importa relevar a instantaneidade na circulaccedilatildeo de informaccedilatildeo a
autonomia da esfera financeira o aumento da importacircncia das firmas
mundiais na mercadorizaccedilatildeo de bens e serviccedilos (neoliberalismo) E na
realidade aquilo que eacute entendido como desvio numa comunidade toleraacutevel
e natildeo toleraacutevel num periacuteodo particular da histoacuteria reflecte os valores
assumidos por aqueles que tecircm um poder colectivo suficiente para definirem
legislativa executiva e judicialmente as praacuteticas (influecircncia na opiniatildeo
puacuteblica) (Stebbins 1996)
Estamos perante uma sociedade que evidencia sinais de toleracircncia e
pluralismo muito associados agraves alteraccedilotildees dos estilos de vida das mobilidades
e das tecnologias Cada vez mais pessoas estabelecem contactos e obtecircm
conhecimentos de outras culturas e modos de vida A experiecircncia turiacutestica
autecircntica em regiotildees remotas do mundo tornada possiacutevel pela actual
facilidade de viagens pelo mundo tem tido um papel fundamental no
aumento dos contactos Aliaacutes para os que satildeo obrigados a ficar em casa
os mass media modernos trazem a diversidade agraves suas habitaccedilotildees
promovendo um niacutevel significativo de indulgecircncia atraveacutes da diferenccedila
da informaccedilatildeo e do contacto virtual com situaccedilotildees desconhecidas desviantes
ou mesmo natildeo toleradas De qualquer modo a vivecircncia urbana surge mais
associada agrave toleracircncia do que a vivecircncia rural fundamentalmente pela
facilidade de adopccedilatildeo de inovaccedilotildees de experiecircncias de vida de maior
intensidade e diversidade de contactos
Um dos veiacuteculos principais desta toleracircncia e pluralismo eacute precisamente
o lazer que veio permitir a valorizaccedilatildeo de novos valores com a criaccedilatildeo de
novas normas a aceitaccedilatildeo social de desvios
Efectivamente existem desvios que passam a ser considerados toleraacuteveis
no lazer Os desvios toleraacuteveis satildeo vistos pela maior parte dos que os
procuram como algo interessante ou divertido de fazer num tempo de natildeo
trabalho especialmente significativos porque o divertimento puacuteblico manteacutem
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa
Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967
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Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris
Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre
Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra
Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988
Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres
Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz
Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82
Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris
Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario
Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290
Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob
Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa
Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra
Obra protegida por direitos de autor
342
Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra
Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor
339
as pessoas longe do viacutecio Esta era a perspectiva da sociedade industrial
em que o lazer era aceite apenas como forma de recuperaccedilatildeo e regeneraccedilatildeo
dos trabalhadores entre periacuteodos de trabalho Muito lazer era considerado
soacute por si como praacutetica desviante O trabalho era visto como a actividade
central da vida humana
Quando se aborda a temaacutetica do lazer e das praacuteticas desviantes eacute possiacutevel
identificar diferentes motivaccedilotildees Todavia estas podem ser encaixadas em
trecircs referecircncias principais Enquanto alguns pretendem explorar alternativas
particulares para aleacutem das formas institucionalizadas pela comunidade
outros procuram os desvios (entendidos como toleraacuteveis) por ser excitante
ir contra as normas sociais sendo comportamentos procurados por partes
significativas da populaccedilatildeo porque implicam apenas pequenas sanccedilotildees e
poucas hipoacuteteses de ser apanhado em flagrante Por uacuteltimo haacute que afirmar
que muitos dos que apresentam comportamentos desviantes toleraacuteveis natildeo
avaliam negativamente esses comportamentos Afirmam apenas ter um
comportamento diferente (Stebbins 1996) Isto evidencia o quatildeo difiacutecil pode
ser discernir quais os limites da tolerabilidade e da normatividade
Os desportos radicais o lazer activo e o turismo aventura (com diversas
situaccedilotildees de sobreposiccedilatildeo) implicam precisamente praacuteticas em que pode ser
difiacutecil efectuar essas delimitaccedilotildees Ainda assim o conceito de radical eacute
associado a uma certa carga de irreverecircncia loucura muita adrenalina e risco
Natildeo deixar de notar contudo que as modalidades de risco acrescido satildeo
praticadas por pessoas disciplinadas jaacute que a falta de disciplina (incuacuteria das
normas) dos praticantes penaliza algumas pessoas e os proacuteprios
Na sua essecircncia estas actividades promovem a fuga agrave rotina e satildeo
responsaacuteveis por novas relaccedilotildees com o espaccedilo e com os tempos que se
assumem como desvio eou transgressatildeo tambeacutem porque o desafio passou
da competiccedilatildeo directa da necessidade de superaccedilatildeo de um adversaacuterio
a um desafio muito mais intriacutenseco eacute o nosso proacuteprio eu o adversaacuterio a
conquistar (como acima foi referido)
A praacutetica de turismo de aventura surge tambeacutem como uma forma de
escapar do quotidiano das aacutereas metropolitanas e de participar em aventuras
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa
Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967
Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223
Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris
Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre
Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra
Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988
Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres
Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz
Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82
Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris
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Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob
Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa
Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra
Obra protegida por direitos de autor
342
Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra
Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor
340
em meio natural formas de actividades inovadoras e pouco habituais para
muitas pessoas Claro que haacute que utilizar os equipamentos adequados para
o efeito mas eacute tambeacutem cada vez mais faacutecil aceder a esses utensiacutelios capazes
de melhorar as performances e reduzir os riscos dos turistas de aventura
Notas Finais
Satildeo muitos os motivos que levam as pessoas normais a fazerem coisas
fora do comum e que podem ser integrados na atractividade pelo turismo
de aventura pelos lazeres activos e pelos desportos radicais Como eacute oacutebvio
esta atractividade natildeo resulta apenas do desejo ou interesse da procura
mas depende e muito do apelo efectuado pelas agecircncias de turismo e
operadoras para tornarem o empreendimento um sucesso (cativar clientela)
atraveacutes da criaccedilatildeo de alternativas agradaacuteveis emocionantes ambientalmente
sustentaacuteveis (vivenciar de actividades nas montanhas nos rios em lagos
em oceanos em florestas em ilhas em quedas de aacutegua nos campos em
trilhos) e diferente dos espaccedilos de actuaccedilatildeo habituais das pessoas
Interessa de facto saber porque eacute que pessoas comuns acostumadas aos
haacutebitos e comodidades da vida moderna aceitam participar neste tipo de
actividades Acostumadas ao conforto agrave tecnologia e agrave seguranccedila o turismo
aventura e o lazer activo vatildeo muito para aleacutem da contemplaccedilatildeo dos cenaacuterios
Porque se expotildeem entatildeo as pessoas a actividades de aventura que envolvem
riscos Claro que a percepccedilatildeo da seguranccedila necessaacuteria agraves modalidades
oferecidas (emoccedilotildees com riscos controlados) eacute fundamental mas trata-se da
procura de emoccedilotildees fortes por meio da praacutetica de actividades que podem
ser realizadas em lugares diversos Isto porque as pessoas querem ter trunfos
para contrapor ou justapor nos diversos processos de socializaccedilatildeo e
sociabilizaccedilatildeo em que vatildeo participando no seu quotidiano onde se incluem
tambeacutem aqueles que tem a ver com o emprego e as com as obrigaccedilotildees
As actividades de aventura satildeo responsaacuteveis por um determinado tipo
de catarse que natildeo se verifica facilmente em outros tipos de actividades
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa
Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967
Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223
Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris
Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre
Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra
Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988
Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres
Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz
Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82
Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris
Nazareth Linda (2007) ndash The leisure economy How changing demographics economics and generational attitudes will reshape our lives and our industries Wiley amp Sons Ontario
Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290
Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob
Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa
Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra
Obra protegida por direitos de autor
342
Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra
Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor
341
o corpo eacute uma bandeira desfraldada e liberta os espaccedilos satildeo os que estatildeo
cada vez mais longe que satildeo mais exoacuteticos ou mais arriscados os tempos
assumem-se num contiacutenuo de utilizaccedilatildeo e a compensaccedilatildeo natildeo eacute o suficiente
Eacute preciso atingir a superaccedilatildeo Eacute preciso criar uma agenda de lugares tempos
e modos que possa servir de identidade ou identificaccedilatildeo para cada um de
noacutes integrando-nos em grupos de pertenccedila e para os outros aqueles com
que menos nos identificamos
Bibliografia
Baudrillard Jean (1970) ndash A sociedade de consumo Ediccedilotildees 70 Lisboa
Deacutebord Guy (1991) ndash A sociedade de espaectaacuteculo- Mobilis in Mobile Cascais 1ordf ed 1967
Dumazedier Joffre (2002) ndash Lazer valores residuais ou existenciais In Poirier Jean Histoacuteria dos Costumes Eacuteticas e Esteacuteticas 1ordf Ed 1990 Editorial Estampa Lisboa pp 147-223
Dumazedier Joffre (1968) ndash Vers une civilization du loisir Coll Points Eacuteditions Seuil Paris
Fournier Martine (2004) ndash Souci du corps et sculpture de soi Sciences Humaines 154 Novembro Auxerre
Gama Antoacutenio amp Santos Norberto Pinto (1992) ndash Tempo livre lazer e terciaacuterio Cadernos de Geografia 10 IEG Coimbra
Gama Antoacutenio (2008) ndash Notas para uma Geografia do tempo livre In Santos Norberto P amp Gama Antoacutenio Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra 1ordf ed 1988
Gronow Jukka (1997) ndash The sociology of taste Routledge Londres
Kurz R (1998) - Mataram o lazer On line httpwwwistoecombr Acesso Dezembro de 1998 Entrevista a Eduardo Ferraz
Langman Lauren (1992) Neon cages Shopping for subjectivity In Rob Shields (ed) Lifestyle shopping The subject of consumption The International Library of Sociology Routledge Londres pp 40-82
Le Breton David (2002) ndash Conduites agrave risque Presses Universitaires de France Paris
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Nielsen Niels Kayser (1999) ndash Knowledge by doing Home and identity in a bodily perspective In Crouch David Leisuretourism geographies Practices and geographical knowledge Routledge Londres pp 277-290
Rochefort Robert (1995) La socieacuteteacute des consommateurs Paris Editions Odile Jacob
Santos Norberto Pinto (2001) ndash A sociedade de consumo e os espaccedilos vividos pelas famiacutelias Ediccedilotildees Colibri CEGC Lisboa
Santos Norberto Pinto (2008) ndash Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Imprensa da Universidade CEG Coimbra
Obra protegida por direitos de autor
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Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
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Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor
342
Santos Norberto Pinto e Moreira Claudete (2008) ndash O lazer e a noite Imagens de uma cidade universitaacuteria Coimbra in Lazer Da libertaccedilatildeo do tempo agrave conquista das praacuteticas Santos Norberto Pinto amp Gama Antoacutenio Imprensa da universidade CEG Coimbra
Stebbins Robert (1996) ndash Tolerable Differences Living with Deviance 2ordf ed McGraw-Hill Ryerson Toronto
Stebbins Robert (2008) ndash Serious Leisure A perspective for our time Transaction Publishers Londres
Simotildees Joseacute Manuel amp Ferreira Carlos Cardoso (2009) ndash Turismos de nicho Motivaccedilotildees Produtos Territoacuterios CEG Universidade de Lisboa Lisboa
Soares Bernardo (2006) - Livro do Desassossego Assiacuterio amp Alvim Lisboa
sue Roger (1982) - Vers une socieacuteteacute du temps Libre Sociologie drsquoAujourdhui PUF Paris
Tuan Yi Fu (1996) ndash Space and place Humanistic perspective In Agnew John Livingstone David amp Rogers Alisdair Human Geography An essential anthology Blackwell Cambridge 1ordf ed 1974
Obra protegida por direitos de autor