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:: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 5, Ano III, Outubro de 2006, periodicidade semestral – ISSN 1981-061X. ANTINOMIAS DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT: ACERCA DAS SUAS CRÍTICAS A KARL MARX. Ronaldo Gaspar * Resumo As análises de Hannah Arendt sobre o pensamento de Karl Marx destacam- se por sua complexidade e, num certo aspecto, pioneirismo intelectual. Este artigo analisa sua crítica à conceituação marxiana de trabalho e as repercussões desta mesma crítica sobre questões decisivas como a política e o papel da violência no processo revolucionário. Palavras-chave: Hannah Aredt, Karl Marx, trabalho, política, violência; Antinomies of Hannah Arendt's thought: concerning its criticism to Karl Marx's thought. Abstract The analysys of Hannah Arendt about Karl Marx's thought outstands for its complexity and, in a certain way, for its intellectual pioneeirism. This article analyzes her criticism of the marxian conceptualization of work, as weel as the repercussions of this criticism on decisive issues as politics and the role of violence in the revolutionary process. Keywords: Hannah Aredt, Karl Marx, work, politics, violence. 1 Ao longo de sua desconcertante obra, primordialmente centrada na tentativa de iluminar as características e os fundamentos da política no mundo

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Page 1: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Verinotio - Revista On-line de Educaccedilatildeo e Ciecircncias Humanas Nordm 5 Ano III Outubro de 2006 periodicidade semestral ndash ISSN 1981-061X

ANTINOMIAS DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

ACERCA DAS SUAS CRIacuteTICAS A KARL MARX

Ronaldo Gaspar

Resumo

As anaacutelises de Hannah Arendt sobre o pensamento de Karl Marx destacam-

se por sua complexidade e num certo aspecto pioneirismo intelectual Este artigo

analisa sua criacutetica agrave conceituaccedilatildeo marxiana de trabalho e as repercussotildees desta

mesma criacutetica sobre questotildees decisivas como a poliacutetica e o papel da violecircncia no

processo revolucionaacuterio

Palavras-chave Hannah Aredt Karl Marx trabalho poliacutetica violecircncia

Antinomies of Hannah Arendts thought concerning its criticism to Karl Marxs thought

Abstract

The analysys of Hannah Arendt about Karl Marxs thought outstands for its

complexity and in a certain way for its intellectual pioneeirism This article

analyzes her criticism of the marxian conceptualization of work as weel as the

repercussions of this criticism on decisive issues as politics and the role of violence

in the revolutionary process

Keywords Hannah Aredt Karl Marx work politics violence

1

Ao longo de sua desconcertante obra primordialmente centrada na

tentativa de iluminar as caracteriacutesticas e os fundamentos da poliacutetica no mundo

contemporacircneo Hannah Arendt (1906-75) dedicou algumas significativas e

influentes passagens agrave criacutetica do marxismo especialmente do pensamento

marxiano Num dos temas analisados nessas passagens ela criticou duramente a

abordagem marxiana acerca do papel da violecircncia nos momentos de transiccedilatildeo de

uma sociedade a outra isto eacute nos momentos revolucionaacuterios Nessas criacuteticas

enfocou prioritariamente aqueles aspectos que segundo pensa demonstram que

em Marx haacute uma glorificaccedilatildeo da violecircncia na poliacutetica Esta glorificaccedilatildeo presente

em toda a obra de Marx estaria manifesta com toda sua forccedila numa frase contida

em O capital na qual ele afirma que ldquoA violecircncia eacute a parteira de toda velha

sociedade que estaacute prenhe de uma novardquo (Marx 1985[II] p 286) Considerada

sintomaacutetica do pensamento poliacutetico marxiano Arendt afirma que nesta frase estaacute a

ldquonegaccedilatildeo do logos do discurso a forma de relacionamento que lhe eacute [agrave violecircncia]

diametralmente oposta e tradicionalmente a mais humanardquo (1972 p 50) Ambas

glorificaccedilatildeo da violecircncia e negaccedilatildeo do discurso (portanto da democracia)

resultariam da identificaccedilatildeo que Marx teria efetuado entre accedilatildeo e violecircncia Para

que pudesse chegar a tais resultados em suas anaacutelises Marx teria infundido na

accedilatildeo os procedimentos tiacutepicos da esfera produtiva ndash especialmente da atividade

produtiva de bens duraacuteveis Eacute a esta relaccedilatildeo entre trabalho poliacutetica e violecircncia

nos pensamentos de Hannah Arendt e Karl Marx que vamos dedicar nossa anaacutelise

Antes poreacutem de analisarmos melhor o conteuacutedo das afirmaccedilotildees e das

criacuteticas de Hannah Arendt eacute necessaacuterio enfatizarmos que natildeo se leva adiante

uma anaacutelise profunda sobre a poliacutetica agrave revelia ou melhor sem o sustentaacuteculo de

uma teoria mais ou menos consistente acerca dos fundamentos do ser social (em

seus proacuteprios termos da condiccedilatildeo humana) Nesse sentido deve-se recordar que

para Arendt dentre os aspectos importantes que as atividades constitutivas da vita

activa ndash as quais estaacute a accedilatildeo a atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash

desempenham na conformaccedilatildeo do ser social encontra-se na distinccedilatildeo entre

aquelas que reproduzem o homem como ser vivo e portanto dotado de

necessidades bioloacutegicas e materiais em relaccedilatildeo agravequelas que o reproduzem como

membro do gecircnero humano ou seja as que atendem suas demandas de

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indiviacuteduo-social E de acordo com o corpus de sua reflexatildeo pode-se presumir que

eacute nas diferenccedilas existentes na natureza dessas atividades e nas influecircncias de

umas sobre outras que respectivamente erguem-se a grandeza antiga e a

miseacuteria moderna da vida poliacutetica Por isso neste momento inicial eacute necessaacuterio

nos dirigirmos ao edifiacutecio principal de seu complexo teoacuterico para dele extrairmos

aqueles elementos que nos permitam analisar e entender adequadamente sua

singular visatildeo acerca do trabalho (e da fabricaccedilatildeo) e das caracteriacutesticas

potencialidades e limites da accedilatildeo poliacutetica em geral ndashespecialmente no mundo

contemporacircneo Somente partindo deste edifiacutecio de seus fundamentos e

peculiaridades eacute que poderemos entender o exato sentido de sua concepccedilatildeo

acerca da violecircncia na poliacutetica e por meio dela da criacutetica que desfia ao

pensamento de Marx

I Vita activa

Em inuacutemeras obras Hannah Arendt debruccedilou-se no desvendamento das

bases da poliacutetica contemporacircnea No entanto foi em A condiccedilatildeo humana que ela

desenvolveu aquilo que em seu pensamento mais se aproxima em termos

lukacsianos de uma anaacutelise ontoloacutegica do ser social portanto nesta obra ela

analisou mais profundamente as bases da poliacutetica e as inter-relaccedilotildees desta com

as outras atividades humanas Foi nela tambeacutem que explicitou a importacircncia

decisiva da distinccedilatildeo entre as trecircs atividades constitutivas da vita activa[1] (trabalho

fabricaccedilatildeo e accedilatildeo) para a explicitaccedilatildeo dos fundamentos da praacutetica poliacutetica E se eacute

faacutecil entender porque em seu edifiacutecio conceitual o trabalho (labor) e a fabricaccedilatildeo

(work) possuem um papel prioritaacuterio na produccedilatildeo dos fundamentos materiais da

vida social a mesma facilidade natildeo se repete quando analisamos como na

atualidade estas atividades interferem negativamente na forma e no conteuacutedo da

atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash isto eacute na accedilatildeo Em razatildeo disso uma anaacutelise

seacuteria da poliacutetica contemporacircnea deve contemplar as muacuteltiplas relaccedilotildees entre

essas atividades e as determinaccedilotildees delas decorrentes

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Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que

ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades

possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua

pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da

vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute

envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a

fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas

materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em

seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do

trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos

desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se

originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e

cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os

produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a

fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante

da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas

discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave

atividade artesanal

Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo

duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida

puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na

medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro

delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental

para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico

tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os

negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto

entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que

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se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo

separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)

Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a

percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo

do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta

para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as

qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na

verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve

como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua

problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do

trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e

sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta

atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja

caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash

inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade

Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno

O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham

sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase

obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador

comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia

(Arendt 1998 p 126)

Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio

do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves

necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos

esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro

espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o

trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que

possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e

accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da

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vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que

possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a

base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as

individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em

sociedade a proacutepria vida humana[4]

A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas

do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o

decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel

para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito

individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que

valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e

ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo

objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida

humana[6]

Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem

ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas

atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a

mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de

exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto

eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os

meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se

como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo

por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e

gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e

individual

Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica

relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos

direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este

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relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo

diferentes entre si

Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos

os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da

accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)

Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se

relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e

da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que

nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo

nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso

aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de

produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar

em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima

irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que

a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios

humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo

permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute

sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo

Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a

Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo

por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute

no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a

aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica

especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de

modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este

respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio

como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

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los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

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A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

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A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

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e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

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assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 2: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

contemporacircneo Hannah Arendt (1906-75) dedicou algumas significativas e

influentes passagens agrave criacutetica do marxismo especialmente do pensamento

marxiano Num dos temas analisados nessas passagens ela criticou duramente a

abordagem marxiana acerca do papel da violecircncia nos momentos de transiccedilatildeo de

uma sociedade a outra isto eacute nos momentos revolucionaacuterios Nessas criacuteticas

enfocou prioritariamente aqueles aspectos que segundo pensa demonstram que

em Marx haacute uma glorificaccedilatildeo da violecircncia na poliacutetica Esta glorificaccedilatildeo presente

em toda a obra de Marx estaria manifesta com toda sua forccedila numa frase contida

em O capital na qual ele afirma que ldquoA violecircncia eacute a parteira de toda velha

sociedade que estaacute prenhe de uma novardquo (Marx 1985[II] p 286) Considerada

sintomaacutetica do pensamento poliacutetico marxiano Arendt afirma que nesta frase estaacute a

ldquonegaccedilatildeo do logos do discurso a forma de relacionamento que lhe eacute [agrave violecircncia]

diametralmente oposta e tradicionalmente a mais humanardquo (1972 p 50) Ambas

glorificaccedilatildeo da violecircncia e negaccedilatildeo do discurso (portanto da democracia)

resultariam da identificaccedilatildeo que Marx teria efetuado entre accedilatildeo e violecircncia Para

que pudesse chegar a tais resultados em suas anaacutelises Marx teria infundido na

accedilatildeo os procedimentos tiacutepicos da esfera produtiva ndash especialmente da atividade

produtiva de bens duraacuteveis Eacute a esta relaccedilatildeo entre trabalho poliacutetica e violecircncia

nos pensamentos de Hannah Arendt e Karl Marx que vamos dedicar nossa anaacutelise

Antes poreacutem de analisarmos melhor o conteuacutedo das afirmaccedilotildees e das

criacuteticas de Hannah Arendt eacute necessaacuterio enfatizarmos que natildeo se leva adiante

uma anaacutelise profunda sobre a poliacutetica agrave revelia ou melhor sem o sustentaacuteculo de

uma teoria mais ou menos consistente acerca dos fundamentos do ser social (em

seus proacuteprios termos da condiccedilatildeo humana) Nesse sentido deve-se recordar que

para Arendt dentre os aspectos importantes que as atividades constitutivas da vita

activa ndash as quais estaacute a accedilatildeo a atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash

desempenham na conformaccedilatildeo do ser social encontra-se na distinccedilatildeo entre

aquelas que reproduzem o homem como ser vivo e portanto dotado de

necessidades bioloacutegicas e materiais em relaccedilatildeo agravequelas que o reproduzem como

membro do gecircnero humano ou seja as que atendem suas demandas de

2

indiviacuteduo-social E de acordo com o corpus de sua reflexatildeo pode-se presumir que

eacute nas diferenccedilas existentes na natureza dessas atividades e nas influecircncias de

umas sobre outras que respectivamente erguem-se a grandeza antiga e a

miseacuteria moderna da vida poliacutetica Por isso neste momento inicial eacute necessaacuterio

nos dirigirmos ao edifiacutecio principal de seu complexo teoacuterico para dele extrairmos

aqueles elementos que nos permitam analisar e entender adequadamente sua

singular visatildeo acerca do trabalho (e da fabricaccedilatildeo) e das caracteriacutesticas

potencialidades e limites da accedilatildeo poliacutetica em geral ndashespecialmente no mundo

contemporacircneo Somente partindo deste edifiacutecio de seus fundamentos e

peculiaridades eacute que poderemos entender o exato sentido de sua concepccedilatildeo

acerca da violecircncia na poliacutetica e por meio dela da criacutetica que desfia ao

pensamento de Marx

I Vita activa

Em inuacutemeras obras Hannah Arendt debruccedilou-se no desvendamento das

bases da poliacutetica contemporacircnea No entanto foi em A condiccedilatildeo humana que ela

desenvolveu aquilo que em seu pensamento mais se aproxima em termos

lukacsianos de uma anaacutelise ontoloacutegica do ser social portanto nesta obra ela

analisou mais profundamente as bases da poliacutetica e as inter-relaccedilotildees desta com

as outras atividades humanas Foi nela tambeacutem que explicitou a importacircncia

decisiva da distinccedilatildeo entre as trecircs atividades constitutivas da vita activa[1] (trabalho

fabricaccedilatildeo e accedilatildeo) para a explicitaccedilatildeo dos fundamentos da praacutetica poliacutetica E se eacute

faacutecil entender porque em seu edifiacutecio conceitual o trabalho (labor) e a fabricaccedilatildeo

(work) possuem um papel prioritaacuterio na produccedilatildeo dos fundamentos materiais da

vida social a mesma facilidade natildeo se repete quando analisamos como na

atualidade estas atividades interferem negativamente na forma e no conteuacutedo da

atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash isto eacute na accedilatildeo Em razatildeo disso uma anaacutelise

seacuteria da poliacutetica contemporacircnea deve contemplar as muacuteltiplas relaccedilotildees entre

essas atividades e as determinaccedilotildees delas decorrentes

3

Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que

ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades

possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua

pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da

vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute

envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a

fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas

materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em

seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do

trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos

desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se

originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e

cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os

produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a

fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante

da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas

discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave

atividade artesanal

Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo

duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida

puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na

medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro

delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental

para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico

tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os

negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto

entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que

4

se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo

separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)

Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a

percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo

do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta

para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as

qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na

verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve

como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua

problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do

trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e

sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta

atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja

caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash

inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade

Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno

O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham

sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase

obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador

comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia

(Arendt 1998 p 126)

Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio

do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves

necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos

esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro

espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o

trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que

possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e

accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da

5

vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que

possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a

base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as

individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em

sociedade a proacutepria vida humana[4]

A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas

do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o

decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel

para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito

individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que

valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e

ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo

objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida

humana[6]

Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem

ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas

atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a

mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de

exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto

eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os

meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se

como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo

por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e

gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e

individual

Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica

relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos

direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este

6

relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo

diferentes entre si

Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos

os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da

accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)

Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se

relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e

da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que

nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo

nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso

aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de

produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar

em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima

irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que

a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios

humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo

permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute

sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo

Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a

Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo

por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute

no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a

aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica

especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de

modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este

respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio

como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

8

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 3: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

indiviacuteduo-social E de acordo com o corpus de sua reflexatildeo pode-se presumir que

eacute nas diferenccedilas existentes na natureza dessas atividades e nas influecircncias de

umas sobre outras que respectivamente erguem-se a grandeza antiga e a

miseacuteria moderna da vida poliacutetica Por isso neste momento inicial eacute necessaacuterio

nos dirigirmos ao edifiacutecio principal de seu complexo teoacuterico para dele extrairmos

aqueles elementos que nos permitam analisar e entender adequadamente sua

singular visatildeo acerca do trabalho (e da fabricaccedilatildeo) e das caracteriacutesticas

potencialidades e limites da accedilatildeo poliacutetica em geral ndashespecialmente no mundo

contemporacircneo Somente partindo deste edifiacutecio de seus fundamentos e

peculiaridades eacute que poderemos entender o exato sentido de sua concepccedilatildeo

acerca da violecircncia na poliacutetica e por meio dela da criacutetica que desfia ao

pensamento de Marx

I Vita activa

Em inuacutemeras obras Hannah Arendt debruccedilou-se no desvendamento das

bases da poliacutetica contemporacircnea No entanto foi em A condiccedilatildeo humana que ela

desenvolveu aquilo que em seu pensamento mais se aproxima em termos

lukacsianos de uma anaacutelise ontoloacutegica do ser social portanto nesta obra ela

analisou mais profundamente as bases da poliacutetica e as inter-relaccedilotildees desta com

as outras atividades humanas Foi nela tambeacutem que explicitou a importacircncia

decisiva da distinccedilatildeo entre as trecircs atividades constitutivas da vita activa[1] (trabalho

fabricaccedilatildeo e accedilatildeo) para a explicitaccedilatildeo dos fundamentos da praacutetica poliacutetica E se eacute

faacutecil entender porque em seu edifiacutecio conceitual o trabalho (labor) e a fabricaccedilatildeo

(work) possuem um papel prioritaacuterio na produccedilatildeo dos fundamentos materiais da

vida social a mesma facilidade natildeo se repete quando analisamos como na

atualidade estas atividades interferem negativamente na forma e no conteuacutedo da

atividade proacutepria da esfera poliacutetica ndash isto eacute na accedilatildeo Em razatildeo disso uma anaacutelise

seacuteria da poliacutetica contemporacircnea deve contemplar as muacuteltiplas relaccedilotildees entre

essas atividades e as determinaccedilotildees delas decorrentes

3

Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que

ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades

possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua

pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da

vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute

envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a

fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas

materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em

seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do

trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos

desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se

originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e

cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os

produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a

fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante

da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas

discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave

atividade artesanal

Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo

duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida

puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na

medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro

delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental

para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico

tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os

negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto

entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que

4

se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo

separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)

Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a

percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo

do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta

para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as

qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na

verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve

como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua

problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do

trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e

sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta

atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja

caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash

inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade

Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno

O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham

sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase

obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador

comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia

(Arendt 1998 p 126)

Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio

do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves

necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos

esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro

espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o

trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que

possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e

accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da

5

vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que

possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a

base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as

individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em

sociedade a proacutepria vida humana[4]

A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas

do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o

decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel

para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito

individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que

valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e

ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo

objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida

humana[6]

Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem

ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas

atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a

mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de

exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto

eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os

meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se

como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo

por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e

gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e

individual

Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica

relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos

direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este

6

relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo

diferentes entre si

Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos

os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da

accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)

Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se

relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e

da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que

nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo

nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso

aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de

produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar

em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima

irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que

a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios

humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo

permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute

sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo

Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a

Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo

por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute

no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a

aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica

especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de

modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este

respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio

como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

8

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 4: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Naquilo que diz respeito ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Arendt acredita que

ambas as atividades apesar de serem constitutivas da esfera das necessidades

possuem diferenccedilas significativas entre si E analisando estas categorias em sua

pureza praacutetica observa que enquanto o trabalho satisfaz demandas bioloacutegicas da

vida humana produz bens de consumo natildeo-duraacuteveis ndash e que por isso estaacute

envolvido num processo ciacuteclico e interminaacutevel da produccedilatildeo material ndash a

fabricaccedilatildeo consiste naquela atividade responsaacutevel pela produccedilatildeo das demandas

materiais da vida humana que escapam agrave dimensatildeo meramente bioloacutegica em

seus termos os bens de consumo duraacuteveis Por conseguinte ao contraacuterio do

trabalho atividade ciacuteclica interminaacutevel repetitiva e cujo resultado satildeo produtos

desprovidos de durabilidade e da identidade do produtor a fabricaccedilatildeo constitui-se

originalmente de atividades cujo iniacutecio meio e fim satildeo perfeitamente delineados e

cujos resultados aleacutem de duraacuteveis expressam a individualidade de quem os

produziu Entre outras coisas isto significa que comparada ao trabalho a

fabricaccedilatildeo constitui uma atividade mais humana (porque se encontra mais distante

da mera reproduccedilatildeo bioloacutegica) Eacute evidente que pelas caracteriacutesticas

discriminadas e antes do advento da induacutestria a fabricaccedilatildeo identificava-se agrave

atividade artesanal

Ademais na condiccedilatildeo de atividade produtora do mundo humano objetivo

duradouro e ldquocomum a todosrdquo a fabricaccedilatildeo tambeacutem eacute fundamental para a vida

puacuteblica para a liberdade pois se ldquoo termo puacuteblico significa o proacuteprio mundo na

medida em que eacute comum a todos noacutes e diferente do lugar que nos cabe dentro

delerdquo (Arendt 1998 p 52) a fabricaccedilatildeo ndash e seu produto a obra ndash eacute fundamental

para sua existecircncia E isto porque aquilo que eacute puacuteblico

tem a ver com o artefato humano com a fabricaccedilatildeo das matildeos humanas com os

negoacutecios realizados entre os que juntos habitam o mundo feito pelo homem

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto

entre os que nele habitam em comum como uma mesa se interpotildee entre os que

4

se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo

separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)

Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a

percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo

do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta

para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as

qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na

verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve

como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua

problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do

trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e

sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta

atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja

caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash

inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade

Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno

O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham

sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase

obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador

comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia

(Arendt 1998 p 126)

Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio

do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves

necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos

esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro

espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o

trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que

possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e

accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da

5

vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que

possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a

base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as

individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em

sociedade a proacutepria vida humana[4]

A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas

do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o

decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel

para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito

individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que

valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e

ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo

objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida

humana[6]

Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem

ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas

atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a

mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de

exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto

eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os

meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se

como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo

por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e

gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e

individual

Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica

relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos

direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este

6

relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo

diferentes entre si

Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos

os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da

accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)

Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se

relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e

da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que

nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo

nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso

aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de

produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar

em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima

irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que

a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios

humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo

permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute

sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo

Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a

Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo

por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute

no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a

aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica

especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de

modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este

respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio

como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

8

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 5: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

se assentam ao seu redor o mundo como todo intermediaacuterio ao mesmo tempo

separa e estabelece uma relaccedilatildeo entre os homens (Arendt 1998 p 52)

Num primeiro momento eacute fundamental entender que nem mesmo a

percepccedilatildeo do importante papel da fabricaccedilatildeo e evidentemente da obra em razatildeo

do caraacuteter humano (e natildeo meramente fisioloacutegico) daquela e da durabilidade desta

para a sustentaccedilatildeo material dos assuntos humanos concede ao Homo faber as

qualificaccedilotildees necessaacuterias para participar da vida puacuteblica da vida poliacutetica Na

verdade esta percepccedilatildeo da importacircncia da fabricaccedilatildeo para a vida puacuteblica serve

como um contraponto ainda mais niacutetido agrave condiccedilatildeo inferior do trabalho e agrave sua

problemaacutetica valorizaccedilatildeo no mundo moderno E isto porque sendo os produtos do

trabalho objetos de consumo raacutepido ligados agraves necessidades vitais (bioloacutegicas) e

sustentados por uma atividade incessante ela vecirc na atual valorizaccedilatildeo desta

atividade (trabalho) os fundamentos do produtivismo contemporacircneo cuja

caracteriacutestica central eacute a de submeter cada vez mais aspectos da produccedilatildeo ndash

inclusive a proacutepria fabricaccedilatildeo[2] ndash e da accedilatildeo agrave sua loacutegica agrave sua racionalidade

Assim em relaccedilatildeo ao mundo moderno

O ponto [central] natildeo eacute que pela primeira vez na histoacuteria os trabalhadores tenham

sido admitidos com direitos iguais na esfera puacuteblica mas sim que noacutes quase

obtivemos sucesso em nivelar todas as atividades humanas ao denominador

comum de assegurar as coisas necessaacuterias agrave vida e de produzi-las em abundacircncia

(Arendt 1998 p 126)

Natildeo eacute difiacutecil a partir do exposto perceber que eacute no crescente predomiacutenio

do trabalho marcado pela racionalidade produtivista e por praacuteticas vinculadas agraves

necessidades vitais que se assenta sua visatildeo de que eacute fundamental distinguirmos

esta atividade (o trabalho) da fabricaccedilatildeo dado que a construccedilatildeo de um verdadeiro

espaccedilo puacuteblico implica a delimitaccedilatildeo de um espaccedilo social especiacutefico para o

trabalho em sua separaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo e na valorizaccedilatildeo das atividades que

possam fornecer sustentaacuteculo agravequele espaccedilo agrave esfera puacuteblica[3] ndash fabricaccedilatildeo e

accedilatildeo Por conseguinte somente a fabricaccedilatildeo produz as condiccedilotildees objetivas da

5

vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que

possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a

base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as

individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em

sociedade a proacutepria vida humana[4]

A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas

do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o

decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel

para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito

individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que

valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e

ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo

objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida

humana[6]

Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem

ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas

atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a

mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de

exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto

eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os

meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se

como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo

por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e

gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e

individual

Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica

relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos

direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este

6

relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo

diferentes entre si

Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos

os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da

accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)

Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se

relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e

da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que

nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo

nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso

aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de

produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar

em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima

irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que

a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios

humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo

permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute

sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo

Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a

Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo

por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute

no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a

aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica

especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de

modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este

respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio

como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

8

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 6: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

vida efetivamente humana produz uma espeacutecie de segunda natureza que

possibilita e daacute forma objetiva agraves relaccedilotildees entre os homens ou seja fornece a

base material que transcende as demandas fisioloacutegicas e ao mesmo tempo as

individualidades humanas (histoacuterica e espacialmente) sedimentando a vida em

sociedade a proacutepria vida humana[4]

A subsunccedilatildeo da produccedilatildeo dos objetos duraacuteveis[5] agrave loacutegica e agraves demandas

do Animal laborans ndash ou seja ao inesgotaacutevel ciclo produccedilatildeo-consumo ndash implica o

decliacutenio de um mundo humano objetivo e duraacutevel de um mundo imprescindiacutevel

para o desenvolvimento de uma vida efetivamente humana tanto no acircmbito

individualfamiliar quanto no coletivopoliacutetico Em razatildeo disso numa sociedade que

valoriza o trabalho em detrimento da fabricaccedilatildeo e com isso faz que as praacuteticas e

ideais que regem o trabalho predominem na produccedilatildeo de objetos o mundo

objetivo torna-se cada vez mais desqualificado para sustentar a proacutepria vida

humana[6]

Jaacute sabemos entretanto que as atividades da vita activa natildeo se resumem

ao trabalho e agrave fabricaccedilatildeo Haacute tambeacutem a accedilatildeo a mais elevada de suas

atividades Sinteticamente podemos defini-la como a uacutenica atividade livre e a

mediadora par excellence da plural relaccedilatildeo homem-homem cujo ambiente de

exerciacutecio eacute a esfera poliacutetica Eacute por meio da accedilatildeo e do discurso que a explicita (isto

eacute que torna possiacutevel o debate para aclarar e legitimar a proacutepria finalidade e os

meios da accedilatildeo do agente ou agentes poliacuteticos) que os homens relacionam-se

como seres livres natildeo vinculados a demandas materiais e portanto natildeo tendo

por objeto de sua atividade o mundo material mas a si mesmos (indiviacuteduos e

gecircnero humano) e a suas autopostas preocupaccedilotildees com os bens comum e

individual

Ainda no que diz respeito agrave accedilatildeo Arendt observa que se a esfera poliacutetica

relaciona os homens como iguais sendo cada individualidade dotada dos mesmos

direitos que as outras ndash primordialmente dos direitos de agir e discursar ndash este

6

relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo

diferentes entre si

Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos

os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da

accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)

Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se

relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e

da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que

nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo

nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso

aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de

produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar

em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima

irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que

a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios

humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo

permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute

sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo

Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a

Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo

por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute

no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a

aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica

especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de

modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este

respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio

como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

8

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 7: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

relacionamento soacute eacute possiacutevel porque apesar de iguais em direitos os homens satildeo

diferentes entre si

Se os homens natildeo se distinguissem se cada ser humano natildeo diferisse de todos

os que existiram existem ou viratildeo a existir eles natildeo necessitariam da fala ou da

accedilatildeo para se fazerem entender Sinais e sons seriam suficientes para comunicar

suas necessidades e desejos imediatos e idecircnticos (Arendt 1998 p 176)

Se portanto sob a condiccedilatildeo de igualdade juriacutedica os homens se

relacionam de fato apenas porque satildeo diferentes entre si eacute por meio do discurso e

da accedilatildeo que esta diferenccedila pode vir agrave tona visto que ldquoEacute com palavras e atos que

nos inserimos no mundo humano e esta inserccedilatildeo eacute como um segundo

nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato nu bruto do nosso

aparecimento fiacutesico originalrdquo (Arendt 1998 pp 176-7) Tal nascimento em vez de

produzir algo que eacute preacute-ideado pode ser refeito eou consertado aleacutem de carregar

em si as marcas do indiviacuteduo que o plasmou resultando numa produccedilatildeo anocircnima

irreversiacutevel e que aleacutem do mais traz em si forte dose de imprevisibilidade jaacute que

a pluralidade de indiviacuteduos o debate de ideacuteias e a realizaccedilatildeo destas nos negoacutecios

humanos (isto eacute natildeo em objetos mas em indiviacuteduos dotados de razatildeo) natildeo

permitem o controle sobre os resultados da accedilatildeo nos mesmos moldes a que estaacute

sujeito por exemplo o objeto nas matildeos do artesatildeo

Eacute esta inseguranccedila em relaccedilatildeo aos seus resultados que desde a

Antiguumlidade segundo Arendt motiva os seres humanos a tomarem a fabricaccedilatildeo

por modelo para a accedilatildeo Esta substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo ndash ou o que daacute

no mesmo uma accedilatildeo inspirada no modus operandi da fabricaccedilatildeo ndash visando a

aumentar o controle sobre os negoacutecios humanos natildeo eacute uma caracteriacutestica

especiacutefica da modernidade haacute muito a fabricaccedilatildeo constitui uma espeacutecie de

modelo desvirtuador da atividade tiacutepica da esfera poliacutetica da accedilatildeo[7] E a este

respeito o mundo moderno se destaca pelo fato de ter passado a valorizar as

atividades que nas eacutepocas anteriores eram relegadas a um plano secundaacuterio

como o trabalho e a fabricaccedilatildeo De acordo com Arendt mesmo que em inuacutemeros 7

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

8

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 8: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

casos tomassem a fabricaccedilatildeo por modelo para a accedilatildeo as eacutepocas anteriores agrave

modernidade valorizavam a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo como atividades propriamente

humanas ndash o homem era reconhecido como Animal rationale No mundo moderno

as coisas tomaram outro rumo

a convicccedilatildeo de que o homem pode conhecer somente aquilo que ele faz de que

suas capacidades supostamente superiores dependem da fabricaccedilatildeo e de que ele

eacute portanto primariamente um Homo faber e natildeo um Animal rationale trouxe agrave

tona as implicaccedilotildees muito mais antigas da inerente violecircncia em todas as

interpretaccedilotildees das esferas de negoacutecios humanos como uma esfera de fabricaccedilatildeo

(Arendt 1998 p 228)

Assim aleacutem de ressaltar uma suposta confusatildeo entre trabalho e fabricaccedilatildeo

permitindo o predomiacutenio daquele em espaccedilos antes restritos apenas agrave atividade

do artesatildeo ndash e atraveacutes dele a subsunccedilatildeo dos ideais e praacuteticas do Homo faber aos

do Animal laborans ndash Arendt enfatiza que o mundo moderno tambeacutem acabou

confundindo a fabricaccedilatildeo com a accedilatildeo o que fez com que a primeira se tornasse o

modelo da praacutexis poliacutetica da accedilatildeo Nessa ldquosubstituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeordquo

(Arendt 1998) o Animal rationale cedeu seu lugar ao Homo faber ndash ou melhor

incorporou as caracteriacutesticas deste ndash e com isso a accedilatildeo passou a ter como

principal referecircncia o modus operandi da fabricaccedilatildeo (work) da atividade produtiva

da obra[8] Isso significa que a racionalidade orientada para a adequaccedilatildeo de meios

a fins determinados preacute-ideados ndash ou seja a racionalidade que deve conduzir a

organizaccedilatildeo dos meios de acordo com um ldquomodelordquo (mental conceitual) a ser

objetivado ndash tiacutepica da fabricaccedilatildeo tambeacutem estaacute presente de maneira decisiva na

accedilatildeo na praacutexis poliacutetica do mundo moderno Ou seja justamente na accedilatildeo que eacute

(ou ao menos deveria ser) a atividade humana que estabelece a relaccedilatildeo entre

indiviacuteduos livres e iguais na esfera puacuteblica na vida poliacutetica

Enfim essa substituiccedilatildeo da accedilatildeo pela fabricaccedilatildeo expressa que a violecircncia

tatildeo necessaacuteria ao Homo faber em sua luta para arrancar da natureza os

elementos (os materiais) sobre os quais incide sua atividade e com isso adequaacute-

8

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

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assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

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Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 9: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

los a fins natildeo-naturais torna-se tambeacutem necessaacuteria e valorizada nesta atividade

(uma espeacutecie de accedilatildeo corrompida) que toma a fabricaccedilatildeo por modelo

II Poliacutetica e violecircncia

Ao considerar a violecircncia detentora um papel decisivo na fabricaccedilatildeo e por

meio dela na accedilatildeo especialmente na transiccedilatildeo de uma formaccedilatildeo social a outra

Arendt considera a poliacutetica no mundo moderno agraves voltas com um problema

fundamental toma por caracteriacutestica da accedilatildeo aquilo que na verdade constitui

caracteriacutestica da fabricaccedilatildeo E eacute justamente no cerne dessa confusatildeo conceitual

que segundo ela o pensamento de Marx se encontra ndash mais constitui um caso

exemplar Sendo assim deixemos que nesse aspecto decisivo Arendt fale por si

mesma

A afirmaccedilatildeo de Marx de que a ldquoviolecircncia eacute a parteira de toda velha sociedade

prenhe de uma sociedade novardquo ou seja de toda mudanccedila histoacuterica ou poliacutetica

somente sintetiza a convicccedilatildeo dominante em toda a era moderna e deduz as

consequumlecircncias de sua crenccedila mais iacutentima de que a histoacuteria eacute ldquofeitardquo pelo homem

do mesmo modo que a natureza eacute ldquofeitardquo por Deus

Como tem sido persistente e bem sucedida a transformaccedilatildeo da accedilatildeo em

modalidade da fabricaccedilatildeo eacute facilmente atestada por toda terminologia da teoria e

do pensamento poliacutetico a qual torna quase impossiacutevel discutir esses assuntos sem

que se utilize a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de

instrumentalidade (Arendt 1998 pp 228-9)

Num artigo de 1953 intitulado ldquoReligiatildeo e poliacuteticardquo logo apoacutes apoiar-se em

Karl Mannheim para ressaltar a dimensatildeo ideoloacutegica do marxismo e desqualificar

a abordagem acerca da relaccedilatildeo entre ser e consciecircncia por este preconizada[9]

Arendt diz

9

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

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1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 10: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

A relutacircncia de Marx em levar a seacuterio ldquoo que cada eacutepoca diz sobre si e imagina

serrdquo derivava de sua convicccedilatildeo de que a accedilatildeo poliacutetica era basicamente violecircncia e

que a violecircncia era a parteira da histoacuteria Tal convicccedilatildeo natildeo se devia agrave ferocidade

gratuita de um temperamento revolucionaacuterio mas tem seu lugar na filosofia da

histoacuteria de Marx que sustenta que a histoacuteria representada pelos homens na

modalidade da falsa consciecircncia isto eacute na modalidade das ideologias pode ser

feita pelos homens tendo eles plena consciecircncia do que estatildeo fazendo Eacute

justamente esse lado humanista dos ensinamentos de Marx que o levou a insistir

no caraacuteter violento da accedilatildeo poliacutetica ele via o fazer da histoacuteria em termos de

fabricaccedilatildeo o homem histoacuterico era para ele basicamente Homo faber A fabricaccedilatildeo

de todas as coisas feitas pelo homem implica necessariamente alguma violecircncia

que incidiraacute sobre a coisa que se torna a mateacuteria baacutesica do que foi fabricado

(Arendt 2002 pp 62-3)

Marx assim teria compreendido a histoacuteria como resultado do ldquofazerrdquo

humano como resultado de atos teleoloacutegicos que nos moldes da atividade

artesanal ndash da fabricaccedilatildeo ndash fazem do ldquoHomemrdquo ndash e natildeo dos homens ndash o artesatildeo

consciente de sua histoacuteria (cf Canovan 1998) Eacute como se Marx tivesse

transformado o processo histoacuterico resultante de muacuteltiplas interaccedilotildees dos seres

humanos entre si (e simultaneamente destes com a natureza) num processo

instrumental Ou dito de outro modo eacute como se tal qual um Hegel materialista

ele concebesse a proacutepria sociedade como um ser demiuacutergico dotado de

capacidades e formas de atuaccedilatildeo semelhantes agravequelas do indiviacuteduo singular que

substituiacutesse o Espiacuterito e o seu processo de sua autoconscientizaccedilatildeo pelos

proacuteprios homens ndash ou pelo ldquoHomemrdquo ndash e seus atos de ldquofazer a histoacuteriardquo de

ldquofabricarrdquo a sociedade ideal (comunista) Neste caso a consciecircncia de classe

cumpriria o mesmo papel que a hegeliana ldquoastuacutecia da Razatildeordquo De qualquer modo

em ambos os casos natildeo satildeo exatamente os homens em sua multiplicidade de

experiecircncias e expectativas que agem em parte de maneira coordenada e

consciente e em parte conflitiva e inconscientemente mas ao contraacuterio eacute o

ldquoHomemrdquo a humanidade unificada que age de maneira coordenada consciente e

controlada como se fosse o ldquoartesatildeo do mundordquo

10

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 11: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

A visatildeo marxista da atividade revolucionaacuteria seria entatildeo o resultado da

imputaccedilatildeo inconsciente de qualidades da fabricaccedilatildeo agrave accedilatildeo a qual por meio da

violecircncia[10] e orientada pelos mesmos criteacuterios de meios e fins que regem a

fabricaccedilatildeo faria os homens efetuarem o parto da nova sociedade cujo rebento

encontra-se emaranhado nas iacutentimas contradiccedilotildees da velha formaccedilatildeo social Seria

justamente esta exaltaccedilatildeo da violecircncia da ldquouacuteltima ratiordquo tiacutepica das relaccedilotildees entre

os baacuterbaros e caracteriacutestica da condiccedilatildeo do escravo[11] a demonstraccedilatildeo de que

em Marx predomina uma ldquohostilidade antitradicional ao discursordquo agrave busca do

consenso agrave poliacutetica (Arendt 1972 p 50)

Nesse contexto o pensamento poliacutetico de Marx representa segundo Arendt

o fim de uma trajetoacuteria do pensamento poliacutetico tradicional iniciada pelas filosofias

de Platatildeo e Aristoacuteteles Pois com esses pensadores a filosofia teria num duplo

salto se distanciado dos assuntos humanos onde reina a confusatildeo e a ilusatildeo

para retornar a eles ilustrada pela razatildeo isto eacute ldquopara [esta a razatildeo] impor seus

padrotildees aos assuntos humanosrdquo (Arendt 1972 p 44) fato altamente positivo que

teria demarcado o iniacutecio de uma fecunda relaccedilatildeo entre a filosofia e os assuntos

humanos entre ela e a poliacutetica Enquanto com Marx desgraccediladamente teria

acontecido o oposto visto que ele ldquorepudiou a Filosofia para poder lsquorealizaacute-larsquo na

poliacuteticardquo (Arendt 1972 p 44) Para ele em vez de a filosofia permanecer uma

espeacutecie de reflexatildeo sistemaacutetica e criacutetica constituiacuteda de certo modo apartada do

processo histoacuterico ela passou a emanar da proacutepria histoacuteria ldquoou antes a

consciecircncia poliacutetica [deriva] da consciecircncia histoacutericardquo (Arendt 1972 p 114) E

ainda segundo Arendt um dos fundamentos desta concepccedilatildeo reside na

identificaccedilatildeo estabelecida no mundo moderno entre sentido e fim Por meio dela

o sentido como termo que expressa o significado de um acontecimento ndash portanto

resultante de uma explicaccedilatildeo post factum ndash foi transformado em fim de

significado de acontecimentos passados passou a preacute-idear situaccedilotildees futuras

Com isso as accedilotildees individuais e instrumentais (realizadas com a finalidade de)

que explicam o processo de trabalho e seus resultados passaram a servir de

modelo para a explicaccedilatildeo do porquecirc de o indiviacuteduo (eou a sociedade) ser o que eacute

11

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 12: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

e portanto executar esta atividade (eou possuir tais caracteriacutesticas) ndash ie como

se o presente fosse a manifestaccedilatildeo ldquoaqui e agorardquo da necessidade imanente de

atos passados Enfim ao considerar as sociedades modernas degradadoras do

sentido em fim Arendt avalia que o marxismo parte integrante desta modernidade

levou esta degradaccedilatildeo agraves uacuteltimas consequumlecircncias e assim transformou a histoacuteria

em teleologia

Pois bem se ainda segundo Arendt a teoria da histoacuteria como fabricaccedilatildeo

natildeo eacute exclusiva do pensamento marxista mas constitui uma caracteriacutestica do

pensamento poliacutetico moderno aquele se distingue

de todas as demais teorias em que a noccedilatildeo de ldquofazer a histoacuteriardquo encontrou abrigo

somente [pelo] fato de apenas ele ter percebido que se se toma a histoacuteria como o

objeto de um processo de fabricaccedilatildeo ou elaboraccedilatildeo deve sobrevir um momento

em que esse objeto eacute completado e que desde que se imagina ser possiacutevel fazer

a histoacuteria natildeo se pode escapar agrave consequumlecircncia de que haveraacute um fim para a

histoacuteria (Arendt 1972 p 114)

Para que entatildeo os marxistas respondem aos apocaliacutepticos que

advogam o fim das ideologias e da histoacuteria se com um golpe de matildeo o proacuteprio

Marx eliminou a ambas Nesta visatildeo tal como o objeto que inicialmente preacute-

ideado na cabeccedila do artesatildeo completa seu ciclo de produccedilatildeo torna-se objetivo

finda a histoacuteria chegaria ao seu fim com a realizaccedilatildeo da filosofia pelo proletariado

ndash nos invertidos termos hegelianos seria este o momento da autoconscientizaccedilatildeo

do Espiacuterito da plena identificaccedilatildeo entre conceito e objeto entre pensamento e

realidade ndash fato que demarcaria o controle da vida humana nos mesmos moldes

em que o artesatildeo domina a mateacuteria a ser plasmada e lhe fornece uma forma final

Mas se Marx eacute tratado como uma espeacutecie de Hegel materialista eacute certo que

as ideacuteias de ambos natildeo satildeo idecircnticas Tanto que em oposiccedilatildeo agrave sua

predecessora hegeliana a coruja de Minerva marxiana natildeo alccedila vocirco somente ao

crepuacutesculo ela capta conceitualmente as condiccedilotildees em que este pode ocorrer e

12

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

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______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

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Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

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osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

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[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

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entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 13: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

assim auxilia na sua realizaccedilatildeo Outrossim mais importante do que saber se esta

caracteriacutestica do pensamento de Marx eacute adequadamente entendida por Arendt eacute

saber que para ela esta caracteriacutestica expressa um determinismo que torna

supeacuterflua qualquer discussatildeo sobre as finalidades e o conteuacutedo dos processos

sociais dado que a histoacuteria fabricada modelada como se fosse um objeto pelo

proletariado demiuacutergico torna a palavra o discurso um mero instrumento de

justificaccedilatildeo ideoloacutegica de ideacuteias preconcebidas a serem materializadas Foi

partindo desses pressupostos que Arendt pocircde afirmar

O que era entatildeo inexplicaacutevel na histoacuteria [a saber os muacuteltiplos interesses

conflitantes que tornam a accedilatildeo poliacutetica ineficaz no alcance de seus objetivos e a

existecircncia de um sentido no processo histoacuterico] passa agora a ser visto como o

reflexo de um significado que seguramente era tanto um produto humano quanto o

desenvolvimento teacutecnico do mundo O problema de humanizar os assuntos

poliacutetico-histoacutericos resumia-se consequumlentemente em descobrir como dominar

nossas proacuteprias accedilotildees assim como dominamos nossa capacidade produtiva ou

em outras palavras como ldquofazerrdquo histoacuteria assim como fazemos outras coisas Uma

vez que isso seja alcanccedilado com a vitoacuteria do proletariado natildeo precisaremos mais

de ideologias Mas ateacute laacute todas as accedilotildees poliacuteticas preceitos legais e

pensamentos espirituais continuaratildeo escondendo os motivos inconfessos de uma

sociedade que somente finge agir politicamente mas que na verdade ldquofaz

histoacuteriardquo ainda que de uma maneira inconsciente isto eacute natildeo-humana (Arendt

2002 p 63)

Natildeo constituindo a esfera do pleno exerciacutecio do debate de ideacuteias entre

indiviacuteduos livres e iguais ndash indiviacuteduos que por meio do uso intenso da palavra do

discurso do muacutetuo esclarecimento estabelecem consensos mais ou menos gerais

sobre os fundamentos e as finalidades da accedilatildeo ndash a poliacutetica atual constitui um

simulacro da poliacutetica autecircntica Tal como a entende Arendt esta constitui uma

esfera (puacuteblica) que antes de qualquer outra coisa deve estar apartada da

violecircncia na medida em que esta nega a palavra o discurso o debate e portanto

a accedilatildeo Definindo assim o que satildeo meios e fins o que eacute essencial e o que eacute

imposiccedilatildeo extriacutenseca agrave poliacutetica Arendt reitera que ldquoo poder eacute de fato a essecircncia

13

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 14: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

de todo governo mas natildeo a violecircnciardquo (Arendt 1994 p 40) Por conseguinte

sendo de natureza instrumental a violecircncia ldquocomo todos os meios sempre

depende da orientaccedilatildeo e da justificaccedilatildeo pelo fim que almeja E aquilo que

necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser a essecircncia de nadardquo (Arendt

1994 p 41) O poder encontra sua legitimidade no passado a violecircncia se

justifica pelas consequumlecircncias futuras aquele pela sua constituiccedilatildeo esta pelos

seus objetivos Em razatildeo disso ldquoa violecircncia pode ser justificaacutevel mas nunca seraacute

legiacutetimardquo (Arendt 1994 p 41) Enfim ao vincularem a violecircncia ao poder as

concepccedilotildees poliacuteticas hegemocircnicas dentre elas o marxismo demonstram a

incompreensatildeo de que aqueles satildeo na verdade opostos ldquoonde um domina

absolutamente o outro estaacute ausenterdquo (Arendt 1994 p 44)

Para natildeo cindir a argumentaccedilatildeo criacutetica e com isso tornaacute-la

demasiadamente prolixa retornaremos mais adiante a estas afirmaccedilotildees de

Hannah Arendt sobre poliacutetica e violecircncia Por ora apoacutes termos descrito algumas

categorias centrais do pensamento arendtiano e em especiacutefico os fundamentos

de sua criacutetica agrave relaccedilatildeo entre poliacutetica e violecircncia em Marx passemos na mesma

sequumlecircncia de ideacuteias desenvolvida ateacute aqui ao confronto dessas reflexotildees com

aquelas que a nosso ver correspondem adequadamente tanto ao corpo quanto

ao espiacuterito da obra marxiana

III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica

Consideramos desnecessaacuterio demonstrar ad nauseam como a concepccedilatildeo

de trabalho em Marx difere substancialmente daquelas atividades que Arendt

denomina pelos vocaacutebulos trabalho e fabricaccedilatildeo pois para o nosso objetivo

basta que o realizemos apenas em suas linhas gerais Assim em primeiro lugar eacute

necessaacuterio relembrar que ao contraacuterio da concepccedilatildeo arendtiana na obra de Marx

o trabalho natildeo consiste numa atividade que nos vincularia mais ao mundo dos

animais do que ao dos seres humanos propriamente ditos Para ele muito distante

14

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 15: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

de qualquer ilusatildeo acerca de uma vida sem trabalho[12] esta atividade constitui um

momento efetivamente fundante e fundamental da vida humana sem a qual aiacute

sim natildeo nos distinguiriacuteamos em absolutamente nada dos proacuteprios animais[13] Em

termos precisos podemos dizer que o animal natildeo se relaciona com a natureza

ele apenas vive nela eacute sua parte integrante[14] natildeo se distinguindo dela como um

ser consciente o animal eacute portanto incapaz de estabelecer uma mediaccedilatildeo

regulada conscientemente controlada com a natureza (Marx 1985 p 149)

apenas respondendo com maior ou menor labilidade agraves determinaccedilotildees e agraves

constantes mudanccedilas de seu haacutebitat O ser humano por sua vez age de maneira

preacute-ideada em sua atividade metaboacutelica pois em todos os momentos do processo

de trabalho lhe ldquoeacute exigida a vontade orientada a um fimrdquo (Marx 1985 p 150)

Assim o sujeito que trabalha ldquonatildeo apenas efetua uma transformaccedilatildeo da forma da

mateacuteria natural realiza ao mesmo tempo na mateacuteria natural seu objetivo que ele

sabe que determina como lei a espeacutecie e o modo de sua atividade e ao qual tem

de subordinar sua vontaderdquo (Marx 1985 p 150) Natildeo sendo portanto a mera

expressatildeo de determinaccedilotildees ou epifenocircmenos bioloacutegicos o trabalho eacute uma

atividade na qual inevitavelmente entrelaccedilam-se o pensar e o fazer a

consciecircncia e a accedilatildeo com aquela orientando esta para transformar a mateacuteria com

vistas a dar-lhe uma forma adequada agrave satisfaccedilatildeo de alguma necessidade

humana A ideacuteia mediada pelo trabalho cristaliza-se no objeto objeto que longe

de ser meramente natural eacute a manifestaccedilatildeo material da subjetividade humana

posto que soacute existe em razatildeo desta Tanto que no final temos que ldquoo trabalho

estaacute objetivado e o objeto trabalhadordquo (Marx 1985 p 151) num mesmo ato a

subjetividade exteriorizou-se e a materialidade tornou-se subjetiva[15] E eacute claro

como esta objetivaccedilatildeo eacute resultado de accedilotildees conscientes o metabolismo dos

homens em relaccedilatildeo agrave natureza eacute muito mais dinacircmico mutante do que aquele

efetuado pelos animais resultando em formas materiais e sociais

permanentemente alteradas ocorrendo a mesma coisa com a proacutepria

subjetividade humana

15

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 16: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Sendo uma atividade humanamente produtiva o trabalho natildeo eacute apenas a

relaccedilatildeo do homem com a natureza eacute tambeacutem uma relaccedilatildeo que ocorre entre os

proacuteprios homens ndash e verdadeiramente como trabalho soacute existe a partir desta

relaccedilatildeo Ainda em sua juventude num texto seminal para a elaboraccedilatildeo de suas

reflexotildees posteriores Marx nos diz que o homem ldquosoacute eacute um ser consciente quer

dizer a sua vida constitui para ele um objeto porque eacute um ser geneacuterico

Unicamente por isso eacute que sua atividade surge como atividade livrerdquo (Marx 1985

p 165) Se natildeo fosse um ser social geneacuterico produto e produtor de si e do

gecircnero o ser humano natildeo possuiria as faculdades (consciecircncia linguagem) sem

as quais paradoxalmente o proacuteprio trabalho natildeo existiria E que simultaneamente

como dissemos permitem o aprimoramento e a expansatildeo das fronteiras da vida

humana (individual e coletiva) para muito aleacutem daquelas a que estatildeo restritos os

seres vivos naturais[16]

Nesse caso parece-nos oacutebvio que eacute completamente irrelevante saber se

uma atividade produtiva resulta em produtos mais ou menos duraacuteveis ndash por

exemplo em alimentos ou objetos do mobiliaacuterio ndash para classificaacute-la como estando

mais proacutexima ou mais distante da vida propriamente humana Seja numa

sociedade especiacutefica ou ao longo da histoacuteria humana um produto pode durar mais

ou menos tempo devido a um sem-nuacutemero de fatores tais como os materiais e a

tecnologia empregados as relaccedilotildees sociais sob as quais foi produzido as classes

eou grupos sociais que o utilizaratildeo ndash definindo por exemplo a velocidade e o

perfil de sua obsolescecircncia ou seja se esta eacute real materialmente efetiva ou

socialmente condicionada ndash entre outros e natildeo apenas devido agrave maior ou menor

proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica dos indiviacuteduos A rigor a produccedilatildeo de um

alimento ou medicamento por meio de procedimentos complexos e sofisticados

mas cujo consumo eacute quase imediato (para Arendt ldquoproduto do trabalhordquo)

certamente expressa niacuteveis mais elevados de humanizaccedilatildeo do que a produccedilatildeo de

uma tosca mesa de madeira que perdura seacuteculos passando de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo (Marx 1985 ldquoproduto da fabricaccedilatildeordquo)

16

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

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centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 17: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Essas observaccedilotildees acerca da relaccedilatildeo entre as atividades produtivas e a

durabilidade de suas produccedilotildees natildeo significa em hipoacutetese alguma que a

durabilidade ou natildeo de um produto seja irrelevante para os indiviacuteduos e a

sociedade em geral ateacute mesmo porque os produtos satildeo elementos constitutivos e

condicionantes de certas caracteriacutesticas dos processos de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo

das formaccedilotildees sociais Significa apenas que per se ela natildeo eacute relevante para

mensurar o niacutevel de humanizaccedilatildeo da atividade e das qualificaccedilotildees subjetivas nela

envolvidas Assim nas sociedades capitalistas por exemplo saber se um

determinado objeto constitui parte do maquinaacuterio ou da edificaccedilatildeo (capital fixo) ou

entatildeo se eacute apenas insumo mateacuteria-prima ou meio de subsistecircncia (capital

circulante) eacute significativo prioritariamente em razatildeo de que as proporccedilotildees de seus

respectivos usos e o seu periacuteodo de rotaccedilatildeo afetam de maneira decisiva as taxas

de lucro do capital investido Aleacutem do mais ldquoo fato de um valor de uso aparecer

como mateacuteria-prima meio de trabalho ou produto depende totalmente de sua

funccedilatildeo determinada no processo de trabalho da posiccedilatildeo que nele ocupa e com a

mudanccedila dessa posiccedilatildeo variam essas determinaccedilotildeesrdquo (Marx 1985 p 152)

Quase desnecessaacuterio dizer que tal posiccedilatildeo tambeacutem varia de acordo com o niacutevel

de desenvolvimento das forccedilas produtivas e das relaccedilotildees sociais que constituem a

sociedade em questatildeo Em siacutentese se natildeo podemos definir um objeto como

sendo o resultado de uma atividade inferior ou superior na hierarquia das

atividades humanas (da vita activa arendtiana) devido agrave sua durabilidade[17] ou agrave

sua proximidade da reproduccedilatildeo bioloacutegica (agrave manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo do corpo)

qualquer tentativa de mensuraccedilatildeo sob este prisma nos parece completamente

arbitraacuteria inclusive eacute claro a que se funda na distinccedilatildeo arendtiana entre trabalho

e fabricaccedilatildeo

Enfatizar estas caracteriacutesticas do trabalho tambeacutem eacute importante porque

contrariamente agraves qualificaccedilotildees inerentes a ele e agrave fabricaccedilatildeo que de acordo com

Arendt estatildeo diretamente relacionadas agraves qualidades do Animal laborans e do

Homo faber no pensamento marxiano inexiste qualquer menccedilatildeo a uma essecircncia

a-histoacuterica do trabalho isto eacute uma essecircncia que agrave revelia da forma societaacuteria em

17

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 18: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

que a atividade se realiza imprime agrave subjetividade daquele que o executa

inelutaacuteveis qualificaccedilotildees Muito ao contraacuterio As anaacutelises marxianas satildeo

profundamente ancoradas na historicidade dos fenocircmenos naturais e sociais

negando qualquer essencialismo em relaccedilatildeo ao trabalho ou a qualquer outra

atividade bem como ao indiviacuteduo ou grupo de indiviacuteduos que o executa Para

Marx ldquoa essecircncia humana natildeo eacute uma abstraccedilatildeo inerente ao indiviacuteduo singular

Em sua realidade eacute o conjunto das relaccedilotildees sociaisrdquo (Marx 1987 p 13) Por

conseguinte em aberta oposiccedilatildeo agraves proposiccedilotildees arendtianas afirmamos que o

produtivismo natildeo constitui uma caracteriacutestica inerente ao trabalho ndash que com a

ascensatildeo deste agrave esfera puacuteblica teria transbordado as fronteiras da vida privada e

se generalizado socialmente ndash mas sim uma caracteriacutestica que possui suas raiacutezes

nas formas de sociabilidade vigentes no mundo contemporacircneo sejam estas

formas capitalistas ou poacutes-capitalistas[18] Dito de outro modo se o trabalho

assalariado alienado constitui cada vez mais a forma predominante da atividade

produtiva e reprodutiva dos indiviacuteduos nestas sociedades tal desventura natildeo

decorre de uma essecircncia que seja inerente a ele tanto quanto agraves formas preteacuteritas

de trabalho e que tenha se desvencilhado na atualidade das amarras que

limitavam sua expansatildeo A raiz deste fenocircmeno reside no fato de o capital

constituir a relaccedilatildeo social baacutesica das sociedades assinaladas generalizando

aquela forma de trabalho E a propoacutesito do essencialismo produtivista do trabalho

em vaacuterias passagens de sua obra Marx nos mostrou as diferenccedilas existentes

entre as sociedades antigas e as modernas sociedades capitalistas Numa dessas

passagens ele lembra que

Entre os antigos natildeo encontramos uma uacutenica investigaccedilatildeo a propoacutesito de qual a

forma de propriedade etc que seria a mais produtiva que geraria o maacuteximo de

riqueza A riqueza natildeo constituiacutea o objetivo da produccedilatildeo A pesquisa sempre

era sobre qual o tipo de propriedade que geraria os melhores cidadatildeos (Marx

1975 p 80 grifos nossos)

Mesmo em seu acircmbito estritamente privado a propriedade natildeo estava

relacionada prioritariamente aos interesses egoiacutestas do indiviacuteduo mas eram os 18

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 19: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

interesses deste ndash e portanto o uso que fazia daquela ndash que estavam

circunscritos e condicionados pelos interesses da comunidade da qual fazia parte

por mais restrita que esta fosse em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo total Desse modo nestas

formaccedilotildees sociais as atividades produtivas natildeo eram movidas por uma ldquoinerenterdquo

racionalidade produtivista uma racionalidade cujo suposto transbordamento das

fronteiras privadas e o estabelecimento do domiacutenio sobre as outras atividades

caracterizariam ndash segundo Arendt ndash o mundo moderno Em relaccedilatildeo a este sua

principal caracteriacutestica consiste na centralidade na generalizaccedilatildeo e no crescente

predomiacutenio do capital no conjunto das relaccedilotildees sociais Enfim eacute justamente esta

centralidade do capital e suas consequumlecircncias que produz o assalariamento

generalizado dos indiviacuteduos e a subsunccedilatildeo da reproduccedilatildeo socioeconocircmica como

um todo agrave loacutegica produtivista

Numa pequena digressatildeo visando apenas a estreitar as margens de accedilatildeo

das leituras vulgares do marxismo eacute necessaacuterio ressaltar que esta afirmaccedilatildeo da

centralidade do capital nas relaccedilotildees sociais contemporacircneas e do espraiamento

de sua influecircncia pela totalidade social natildeo implica reducionismo econocircmico Na

verdade ela significa apenas a explicitaccedilatildeo de caracteriacutesticas inerentes ao capital

cuja tendecircncia a subsumir a multiplicidade de dimensotildees da vida humana agrave sua

loacutegica acumulatoacuteria expansionista eacute um fato incontestaacutevel ontologicamente

enraizado e racionalmente apreensiacutevel e natildeo um grave equiacutevoco teoacuterico de um

pensamento incapaz de atentar para a complexidade do real Eacute nesse sentido que

comentando a famosa proposiccedilatildeo de Marx segundo a qual ldquoNatildeo eacute a consciecircncia

dos homens que determina o seu ser mas ao contraacuterio eacute o seu ser social que

determina sua consciecircnciardquo[19] (Marx 1982 p 25) Lukaacutecs afirma ldquonesse trecho o

mundo das formas de consciecircncia e seus conteuacutedos natildeo eacute visto como um produto

direto da estrutura econocircmica mas da totalidade do ser social A determinaccedilatildeo da

consciecircncia pelo ser social portanto eacute entendida em seu sentido mais geralrdquo

(Lukaacutecs 1979 p 41) ndash e natildeo como expressatildeo direta mecacircnica e restrita dos

processos econocircmicos

19

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Relume-Dumaraacute 2002

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Chicago University of Chicago Press 1998

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______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

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prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 20: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Neste toacutepico ateacute o momento detivemo-nos nas distintas concepccedilotildees

acerca do trabalho presentes em Arendt e Marx O caso poreacutem eacute que apesar de

significativas tais concepccedilotildees natildeo circunscrevem sua influecircncia agraves fronteiras

econocircmicas mas extravasam a economia e deitam raiacutezes na totalidade de suas

reflexotildees sobre a vida humana Assim se Arendt tem razatildeo em afirmar que para

Marx o trabalho ndash e a fabricaccedilatildeo apesar da irrelevacircncia desta distinccedilatildeo (trabalho x

fabricaccedilatildeo) no quadro conceitual marxiano ndash eacute tratado como uma atividade

teleoloacutegica cujas relaccedilotildees que estabelece com as outras atividades constitutivas

da vida humana satildeo fundamentais para delinear as caracteriacutesticas da totalidade

social nada justifica sua transposiccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos do trabalho

(concreto) para a concepccedilatildeo de histoacuteria marxiana No entanto eacute justamente isto

que ela faz ao afirmar que em Marx a histoacuteria eacute entendida como um processo

similar ao da fabricaccedilatildeo do artesanato um processo que contemporaneamente

exige a intervenccedilatildeo consciente de um sujeito demiuacutergico ndash o proletariado ndash para

plasmar a nova forma societaacuteria tal como o artesatildeo faz com sua mateacuteria-prima E

igualmente ao afirmar que do mesmo modo que a materializaccedilatildeo do objeto preacute-

ideado expressa o fim do processo gerido pelo artesatildeo a realizaccedilatildeo da sociedade

ldquopreacute-ideadardquo pelo proletariado significaria o fim da histoacuteria

Ora uma das questotildees mais complexas do pensamento social fruto de

inuacutemeras polecircmicas teorias e tratados ao longo dos uacuteltimos seacuteculos ndash

especialmente apoacutes o advento da sociologia ndash eacute a articulaccedilatildeo das accedilotildees

individuais e a reproduccedilatildeo da totalidade social E mesmo certos da impossibilidade

de adentrar no emaranhado de questotildees suscitado pelo tema natildeo podemos omitir

a informaccedilatildeo de que uma leitura criteriosa dos textos marxianos demonstra sem

grande dificuldade a improcedecircncia das criacuteticas de Hannah Arendt De modo

algum condiz com o ldquoespiacuteritordquo da obra marxiana a identificaccedilatildeo da reproduccedilatildeo

social como um todo e nem dos processos de transiccedilatildeo de uma forma societaacuteria a

outra ao modus operandi do trabalho O que natildeo significa por sua vez que a

instabilidade econocircmica e social natildeo fosse objeto de suas preocupaccedilotildees A bem

da verdade sendo o primeiro a entender a centralidade do trabalho e suas

20

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 21: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

consequumlecircncias na produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida humana Marx se assenhoreou

desde os Manuscritos de 1844 de conhecimentos suficientemente significativos

para criticar em relaccedilatildeo agravequele aspecto inicialmente citado das relaccedilotildees entre

indiviacuteduo e sociedade tanto o materialismo vulgar quanto o idealismo Assim em

vez da naturalizaccedilatildeo da histoacuteria humana ou da arbitrariedade da vontade e da

razatildeo em suas obras encontramos uma profunda e ponderada afirmaccedilatildeo dos

seres humanos como autoprodutores de sua proacutepria histoacuteria e simultaneamente

uma criacutetica agrave hipostasia das potencialidades da razatildeo e das forccedilas humanas nesta

autoproduccedilatildeo Invariavelmente suas anaacutelises reiteram que ldquoOs homens fazem

sua proacutepria histoacuteria mas natildeo a fazem como querem natildeo a fazem sob

circunstacircncias de sua proacutepria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam

diretamente legadas e transmitidas pelo passadordquo (Marx 1986 p 17 grifos

nossos) Nos dias atuais natildeo eacute difiacutecil perceber como por si soacute esta frase nos

mostra quatildeo distante o realismo marxiano se encontra do politicismo voluntarista e

da realpolitik que cada qual ao seu modo como faces de uma mesma moeda

dominam os discursos poliacuteticos e econocircmicos em voga

Ainda no que diz respeito agrave questatildeo do sujeito demiuacutergico e do finalismo

histoacuterico eacute necessaacuterio que se entenda que mesmo em sua fastidiosa reproduccedilatildeo

cotidiana o trabalho eacute sempre um ato de criaccedilatildeo criaccedilatildeo natildeo apenas de coisas

novas de objetos que emergem da materialidade natural sob uma forma

humanamente apropriada mas criaccedilatildeo da proacutepria subjetividade humana que se

renova a partir das experiecircncias possibilitadas pelos meios e resultados de sua

produccedilatildeo e pelas relaccedilotildees sociais que os envolvem Tendo em mente esta

dinacircmica intriacutenseca agrave atividade vital dos seres humanos e ao mesmo tempo o

caraacuteter que para Marx a totalidade do real[20] assume como concreto pensado

(Marx 1982 p 15) nem a mais poderosa das inteligecircncias humanas tampouco o

concurso delas sob a forma do coletivo partidaacuterio pode em termos conceituais

apreender subsumir absolutamente o real ao pensamento ndash e muito menos

sujeitar as proacuteprias relaccedilotildees sociais a um controle assemelhado ao das teacutecnicas

produtivas

21

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 22: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Decerto esta ilusatildeo hegeliana expressa no postulado da identificaccedilatildeo final

entre sujeito e objeto entre o conceito e o real natildeo eacute compartilhada por Marx cuja

rejeiccedilatildeo estaacute expliacutecita numa passagem de A sagrada famiacutelia em que faz

consideraccedilotildees sobre o sentimento do amor em criacutetica a certas formulaccedilotildees de

Edgar Bauer Numa frase elucidativa anunciando um aspecto de sua concepccedilatildeo

sobre a histoacuteria que diga-se de passagem o acompanharaacute pelo resto da vida ele

ironicamente afirma que em sua criacutetica aos romances de uma certa Madame Von

Paazlow Edgar Bauer profundamente influenciado pela miacutestica e pela fraseologia

hegeliana combate natildeo apenas a concepccedilatildeo de amor que ali se manifesta mas

sim ldquotoda doaccedilatildeo viva todo imediato toda experiecircncia sensiacutevel ou de modo mais

geral toda experiecircncia real da qual natildeo se pode saber antes da hora nem de

onde ela vem nem para onde vairdquo (Marx 1987b p 25) Por isso antes desta

observaccedilatildeo Marx nos diz que ldquoo amor soacute mereceria o lsquointeressersquo da criacutetica

especulativa [isto eacute de Edgar Bauer e outros criacuteticos especulativos] se a gente

pudesse construir a priori sua origem e seu fimrdquo (Marx 1987b p 25) Como isto

natildeo eacute possiacutevel ao idealista de inspiraccedilatildeo hegeliana soacute resta tal como fez o

proacuteprio mestre Hegel negar a histoacuteria concreta real incerta possiacutevel pela

histoacuteria do Espiacuterito das ideacuteias enfim pela certeza pelo necessaacuterio pela loacutegica e

seu meacutetodo que se movem de modo autocircnomo visto que constituem a forma e o

conteuacutedo do proacuteprio Espiacuterito em movimento Enfim para Marx a ldquonecessidade

histoacutericardquo ndash ou seja as determinaccedilotildees sociais ndash natildeo substitui a accedilatildeo dos homens

em seu processo de autoconstruccedilatildeo mas a condiciona limitando e abrindo

possibilidades especiacuteficas em situaccedilotildees especiacuteficas

Na anaacutelise das sociedades capitalistas em condiccedilotildees estaacuteveis ldquonormaisrdquo

de funcionamento econocircmico Marx demonstra como apesar de originaacuteria de atos

individuais orientados para fins conscientes a anarquia eacute uma caracteriacutestica

intriacutenseca a esta forma societaacuteria Nela paradoxalmente processos produtivos

altamente controlados resultam em crises econocircmicas perioacutedicas crises que

nucleiam a incontrolabilidade da reproduccedilatildeo social como um todo Eacute assim que

22

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

23

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 23: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

em seus comentaacuterios acerca das diferenccedilas entre a divisatildeo manufatureira e a

divisatildeo social do trabalho ele nos diz expressamente

a lei do valor das mercadorias [nas sociedades capitalistas] determina quanto de

todo tempo de trabalho disponiacutevel a sociedade pode despender para produzir cada

espeacutecie particular de mercadoria Todavia essa constante tendecircncia das

diferentes esferas de produccedilatildeo de se colocar em equiliacutebrio atua apenas como

reaccedilatildeo contra a contiacutenua eliminaccedilatildeo desse equiliacutebrio A regra que se segue a priori

e planejadamente na divisatildeo do trabalho dentro da oficina atua na divisatildeo do

trabalho no interior da sociedade apenas a posteriori como necessidade natural

interna muda perceptiacutevel nas flutuaccedilotildees baromeacutetricas dos preccedilos do mercado

subjugando o desregrado arbiacutetrio dos produtores de mercadorias a divisatildeo

social do trabalho confronta produtores independentes de mercadorias que natildeo

reconhecem nenhuma outra autoridade senatildeo a da concorrecircncia a coerccedilatildeo

exercida sobre eles pela pressatildeo de seus interesses reciacuteprocos do mesmo modo

que no reino animal o bellum omnium contra omnes preserva mais ou menos as

condiccedilotildees de existecircncia de todas as espeacutecies (Marx 1985 p 280)

Outrossim num pequeno texto em que condensa alguns aspectos centrais

de suas pesquisas sobre a ontologia do ser social e perseguindo criteriosamente

as reflexotildees marxianas Lukaacutecs observa que ldquotodo evento social decorre de

posiccedilotildees teleoloacutegicas individuais mas em si eacute de caraacuteter puramente causalrdquo

(Lukaacutecs 1978 p 10) E mais agrave frente complementa

O processo global da sociedade eacute um processo causal que possui suas proacuteprias

normatividades mas natildeo eacute jamais objetivamente dirigido para a realizaccedilatildeo de

finalidades Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem

realizar suas finalidades os resultados produzem via de regra algo que eacute

inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido (Lukaacutecs 1978 pp 10-1)

Quanto aos processos revolucionaacuterios em primeiro lugar eacute importante

entender que por mais profundas conscientes e abrangentes que as accedilotildees de

indiviacuteduos partidos etc possam ser neste momento elas natildeo satildeo capazes de

eliminar o hiato existente entre o caraacuteter teleoloacutegico dos atos individuais e a

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casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

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social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

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comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

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material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

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culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

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desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

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sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

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pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

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Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

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contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 24: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

casualidade que marca a reproduccedilatildeo da sociedade como um todo Isto acontece

porque a revoluccedilatildeo social natildeo consiste na consubstanciaccedilatildeo plena e acabada da

ideacuteia mas no processo pelo qual os seres humanos ou melhor parcelas

significativas de certas classes eou grupos sociais aproveitam circunstacircncias

sociais extremamente favoraacuteveis para em atos conscientes mas nunca

controlaacuteveis nos moldes do processo de trabalho dar vazatildeo a tendecircncias

objetivas do desenvolvimento histoacuterico-social Novamente eacute em Lukaacutecs que

encontramos um tratamento exemplar deste aspecto do pensamento marxiano

Em sua Ontologia do ser social ele afirma

Sabemos que o movimento ontoloacutegico objetivo no sentido de socialidades cada

vez mais explicitadas no ser social eacute composto por accedilotildees humanas ainda que as

decisotildees humanas singulares entre alternativas natildeo levem no desenvolvimento da

totalidade aos resultados visados pelos indiviacuteduos o resultado final desse

conjunto natildeo pode ser inteiramente independente desses atos singulares Essa

relaccedilatildeo deve ser formulada em sua generalidade com muita cautela e isso

porque a relaccedilatildeo dinacircmica entre os atos singulares fundados sobre alternativas e o

movimento de conjunto se apresenta de modo bastante variado ao longo da

histoacuteria ou seja eacute diferente nas diversas formaccedilotildees e em particular nas diversas

etapas de desenvolvimento e de transiccedilatildeo Eacute claro que eacute impossiacutevel neste local

tentar esboccedilar um quadro por mais breve que seja das inuacutemeras variaccedilotildees que

tal relaccedilatildeo pode apresentar Bastaraacute dizer por um lado que nas situaccedilotildees de

transiccedilatildeo revolucionaacuteria o peso das tomadas de decisatildeo de grupos humanos (que

satildeo naturalmente siacutenteses de decisotildees individuais) eacute objetivamente muito maior do

que nos periacuteodos em que uma formaccedilatildeo se desenvolve de modo tranquumlilo e

consolidado E disso resulta que as decisotildees singulares tecircm o seu peso

aumentado (Lukaacutecs 1979 p 125)

Em segundo lugar que apesar das inequiacutevocas diferenccedilas entre os atos

individuais eou coletivos do trabalho e a reproduccedilatildeo social total natildeo eacute estranha

ao pensamento marxiano a preocupaccedilatildeo com a construccedilatildeo de formas societaacuterias

mais justas fraternas e ao mesmo tempo menos assoberbadas pela instabilidade

oriunda de fenocircmenos naturais ou sociais especialmente aqueles de origem

econocircmica Na verdade o estabelecimento de um certo controle do processo

24

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 25: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

social de produccedilatildeo por parte dos produtores auto-organizados nunca esteve

ausente das reflexotildees de Marx Ao contraacuterio satildeo os representantes do capital que

historicamente criticam as pretensotildees agrave ampliaccedilatildeo do controle sobre os

processos econocircmicos utilizando-se para isso dos dogmas liberais que vecircem

uma supressatildeo dos direitos e da liberdade individuais em todo e qualquer controle

destes processos Quanto a isto o proacuteprio Marx denunciou

A mesma consciecircncia burguesa que festeja a divisatildeo manufatureira do trabalho a

anexaccedilatildeo do trabalhador por toda a vida a uma operaccedilatildeo parcial e a subordinaccedilatildeo

incondicional dos trabalhadores parciais ao capital como uma organizaccedilatildeo do

trabalho que aumenta a forccedila produtiva denuncia com igual alarido qualquer

controle e regulaccedilatildeo consciente do processo social de produccedilatildeo como uma

infraccedilatildeo dos inviolaacuteveis direitos de propriedade da liberdade e da ldquogenialidaderdquo

autodeterminante do capitalista individual Eacute muito caracteriacutestico que os mais

entusiaacutesticos apologistas do sistema fabril natildeo saibam dizer nada pior contra toda

organizaccedilatildeo geral do trabalho social aleacutem de que ela transformaria toda a

sociedade numa faacutebrica (Marx 1985 p 280)

Se o horizonte intelectual a partir do qual a classe burguesa e seus

ideoacutelogos enxergam o mundo natildeo ultrapassa como natildeo poderia deixar de ser os

limites da reproduccedilatildeo do capital obviamente toda e qualquer proposta de

intervenccedilatildeo socioeconocircmica que de algum modo impeccedila a reproduccedilatildeo social tal

qual ela existe sob a eacutegide e a centralidade do capital significa aos seus olhos

uma injustificada interferecircncia sobre tendecircncias inerentes agrave natureza humana

(lembremos que a naturalizaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais eacute um traccedilo distintivo do

pensamento burguecircs desde suas origens) Sendo os limites de sua reflexatildeo os

limites da reproduccedilatildeo do proacuteprio capital aquela interferecircncia soacute pode assumir

para ela (a classe burguesa) formas compatiacuteveis com aquelas existentes nesta

ordem social ndash por conseguinte ldquotudo o mais natildeo passa de utopiardquo

No seacuteculo XX esta concepccedilatildeo foi evidentemente reforccedilada por inuacutemeras

experiecircncias de planejamento que a Leste e a Oeste do ldquosocialismo realrdquo ao

nazismo apesar de sua multiplicidade de conteuacutedos e formas caracterizaram-se 25

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

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______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 26: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

pelo caraacuteter autocraacutetico e pela manutenccedilatildeo da centralidade do capital nas

relaccedilotildees sociais ndash e isto mesmo naqueles paiacuteses em que a proacutepria burguesia foi

drasticamente expropriada e com isso numericamente reduzida ou praticamente

desapareceu[21] Igualmente mantida a centralidade do capital tambeacutem os paiacuteses

capitalistas centrais (liberais e democraacutetico-burgueses) e suas experiecircncias de

regulaccedilatildeo socioeconocircmica nas deacutecadas subsequumlentes ao poacutes-guerra natildeo

resultaram em sociedades humanamente exemplares apesar de sua draacutestica

reduccedilatildeo da pobreza e do desemprego Para Arendt a ineficaacutecia destas

experiecircncias em constituir sociedades capazes de permitir o desabrochar pleno da

humanidade do homem se assentou principalmente no fato de o trabalho e sua

loacutegica produtivista continuarem a ocupar o centro do cenaacuterio social tornando a

accedilatildeo e a poliacutetica meras coadjuvantes e assim ofuscando a esfera puacuteblica com

seu brilho duvidoso Por isso para ela qualquer tentativa de controle social

passou a se apresentar como uma aberraccedilatildeo societaacuteria e as proposiccedilotildees

marxianas sobre o planejamento econocircmico assumiram o pavoroso status de

regulaccedilatildeo social global de controle dos processos histoacuterico-sociais nos mesmos

moldes do processo de trabalho E como corolaacuterio desta avaliaccedilatildeo que a

consolidaccedilatildeo deste estado de coisas significaria apocalipticamente a proacutepria

redenccedilatildeo universal

O fato poreacutem eacute que tal leitura natildeo corresponde ao espiacuterito e muito menos

ao proacuteprio corpo (o texto) da obra marxiana NrsquoA ideologia alematilde refutando as

acusaccedilotildees de utopismo endereccediladas ao movimento comunista Marx e Engels

salientaram que ldquoo comunismo natildeo eacute um estado que deve ser estabelecido

um ideal para o qual a realidade teraacute que se dirigir Denominamos comunismo o

movimento real que supera o estado de coisas atualrdquo (Marx Engels 1987a p 52)

O comunismo natildeo eacute algo que oriundo dos desejos e da vontade torna-se

realidade mas a resoluccedilatildeo positiva das tendecircncias do desenvolvimento histoacuterico

do proacuteprio movimento do real Outrossim longe de assumir a pretensatildeo hegeliana

de ser o fim da histoacuteria a encarnaccedilatildeo societaacuteria uacuteltima da vida humana ldquoo

comunismo eacute a forma necessaacuteria e o princiacutepio do futuro imediato mas o

26

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 27: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

comunismo natildeo constitui em si mesmo o objetivo da evoluccedilatildeo humana ndash a

forma da sociedade humanardquo (Marx 1989 p 205 os grifos em negrito satildeo

nossos) Superar o capital o Estado e as restriccedilotildees que ambos impotildeem ao

desenvolvimento humano satildeo as finalidades de uma revoluccedilatildeo (e de uma

sociedade) comunista fato que natildeo implica no entanto adentrar no paraiacuteso (o

comunismo como forma societaacuteria uacuteltima e redentora da humanidade) ou pior no

fim da histoacuteria[22]

Por fim retornando agrave questatildeo da violecircncia e no contexto do pensamento

marxiano ao seu significado num processo revolucionaacuterio emancipatoacuterio ndash isto eacute

capaz de implementar a construccedilatildeo de condiccedilotildees superiores de liberdade e

desenvolvimento humanos ndash atentemos para o fato de que em Marx a afirmaccedilatildeo

ou a negaccedilatildeo da violecircncia natildeo se baseiam no puro arbiacutetrio ou no primeiro caso

numa concepccedilatildeo anti-humanista acerca dos fundamentos da emancipaccedilatildeo[23]

mas anaacutelise concreta do real e no discernimento das caracteriacutesticas que podem ou

natildeo favorecer a eliminaccedilatildeoamenizaccedilatildeo das desumanidades da vida humana

Para Marx a proacutepria existecircncia da poliacutetica jaacute eacute uma evidecircncia das contradiccedilotildees

que atravessam as sociedades nas quais ela se faz presente Assim

contrariamente a Arendt que visualiza na poliacutetica uma esfera de explicitaccedilatildeo das

caracteriacutesticas propriamente humanas ele a considera uma das expressotildees da

limitaccedilatildeo desta natildeo eacute portanto uma das ou a principal atividade sob a qual os

homens podem manifestar-se plenamente mas justamente uma clara

manifestaccedilatildeo da incapacidade destes ainda natildeo se manifestarem como tal

Em sua radicalidade o pensamento marxiano em nada se assemelha aos

extremismos e fundamentalismos contemporacircneos pois longe de pregar a

violecircncia em geral abstrata como meio exclusivo de viabilizar a emancipaccedilatildeo

Marx apenas demonstra como as relaccedilotildees socioeconocircmicas e poliacuteticas do

capitalismo marcadas pelo radical antagonismo de posiccedilotildees e de interesses entre

a burguesia e o proletariado natildeo apenas impedem como de fato sob pena de os

revolucionaacuterios naufragarem em seus propoacutesitos exigem tambeacutem o uso da forccedila

27

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 28: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

material ndash o que natildeo significa de maneira alguma o desmerecimento e a

utilizaccedilatildeo puramente ocasional e acessoacuteria do uso da forccedila das ideacuteias e de

recursos persuasivos Num ilustrativo trecho de seu realismo intelectual o

revolucionaacuterio alematildeo afirma de modo enfaacutetico

Eacute certo que a arma da criacutetica natildeo pode substituir a criacutetica das armas que o poder

material tem que ser derrocado por meio do poder material mas tambeacutem a teoria

se converte em poder material tatildeo logo se apodera das massas E a teoria eacute capaz

de se apoderar das massas quando argumenta e demonstra ad hominem e

argumenta e demonstra ad hominem quando se torna radical Ser radical eacute atacar

o problema pela raiz Mas a raiz para o homem eacute o proacuteprio homem (Marx 1987 p

497)

Por certo negando a violecircncia e afirmando meios propriamente humanos

(palavra discurso convencimento concoacuterdia) para a superaccedilatildeo das diferenccedilas o

discurso natildeo-revolucionaacuterio natildeo-violento humanista parece agrave primeira vista

muito mais elevado nobre do que aquele (estigmatizado como anti-humanista)

que afirma a violecircncia (um meio desumano) como uma accedilatildeo necessaacuteria no

encaminhamento da resoluccedilatildeo dos profundos conflitos que atravessam as

sociedades de classes Neste caso ao contraacuterio do discurso a violecircncia parece

ser a negaccedilatildeo dos proacuteprios fins almejados Poreacutem haacute que perguntar como um

discurso e uma praacutetica verdadeiramente humanos voltados agrave superaccedilatildeo dos

constrangimentos impostos ao desenvolvimento multifacetado das

individualidades e da coletividade dos homens e portanto dotados de finalidades

eacuteticas tendentes agrave universalizaccedilatildeo podem afirmar-se num mundo desumano

mundo no qual os indiviacuteduos mediados pelas classes sociais opotildeem-se em

campos de interesses essencialmente inconciliaacuteveis Como se pode afirmar

plenamente uma accedilatildeo que possua como fundamento o homem como sujeito de

sua histoacuteria se nas condiccedilotildees atuais este ainda luta arduamente para abandonar

sua condiccedilatildeo de predicado natildeo tanto da natureza mas das forccedilas que ele proacuteprio

colocou (e cotidianamente coloca) em movimento Como esperar pelo improvaacutevel

convencimento do ldquooutrordquo (antagocircnico em termos socioeconocircmicos poliacuteticos e

28

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 29: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

culturais) pelo discurso se os urgentes problemas a serem enfrentados dizem

respeito pura e simplesmente a questotildees vitais dos indiviacuteduos das classes

subalternas e em certos casos agrave proacutepria sobrevivecircncia da espeacutecie humana[24]

Nestas circunstacircncias a negaccedilatildeo da violecircncia como um dos meios (jamais o uacutenico)

de superar problemas vitais da nossa existecircncia coletiva natildeo atuaria ao contraacuterio

das intenccedilotildees postuladas como impossibilidade de resoluccedilatildeo destes e portanto

natildeo se consubstanciaria em resultados ainda mais desumanos podendo inclusive

atualmente culminar na proacutepria eliminaccedilatildeo da espeacutecie

No atual estaacutegio do desenvolvimento humano por mais que as ciecircncias

naturais e a tecnologia nos impressionem com suas faccedilanhas demonstrando o

crescente senhorio dos homens em relaccedilatildeo agrave natureza as relaccedilotildees sociais ainda

escapam clamorosamente ao nosso controle Sob a forma do capital este objeto-

sujeito que nucleia as relaccedilotildees sociais das mais diversas sociedades do mundo

contemporacircneo a dinacircmica da reproduccedilatildeo social vive agrave ldquosombra da

incontrolabilidaderdquo (Meacuteszaacuteros 2002) E se natildeo eacute apenas pelas produccedilotildees

materiais que mensuramos o desenvolvimento da nossa espeacutecie natildeo podemos

afirmar que os seres humanos jaacute adquiriram o status de plenos sujeitos de seus

processos metaboacutelicos pois apesar destes natildeo serem produccedilotildees de objetos

inertes mas dos proacuteprios homens tais processos subordinam-se aos imperativos

da incontrolaacutevel expansatildeo do capital e natildeo agrave satisfaccedilatildeo das necessidades

humanas Por conseguinte nas sociedades contemporacircneas nas quais o capital eacute

o sujeito os homens atuam apenas como predicados daquele ndash burgueses

trabalhadores etc ndash isto eacute como suas ldquomaacutescaras sociaisrdquo (Marx 1985)

Nos Grundrisse Marx reflete sobre como a relaccedilatildeo entre os homens e suas

produccedilotildees permite mensurar o niacutevel de desenvolvimento humano Numa

penetrante passagem sobre o tema lemos

O nexo [social isto eacute aquilo que vincula os indiviacuteduos mutuamente] eacute um produto

dos indiviacuteduos Eacute um produto histoacuterico Pertence a uma determinada fase de

29

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

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______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 30: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

desenvolvimento da individualidade A alienaccedilatildeo e a autonomia com que esse

nexo [no caso atual o valor de troca o dinheiro] existe frente aos indiviacuteduos

demonstra somente que estes ainda estatildeo em vias de criar as condiccedilotildees de sua

vida social em lugar de iniciaacute-la a partir dessas condiccedilotildees O nexo eacute criado

naturalmente entre os indiviacuteduos colocados em condiccedilotildees de produccedilatildeo

determinadas e estreitas Os indiviacuteduos universalmente desenvolvidos cujas

relaccedilotildees sociais enquanto relaccedilotildees proacuteprias e coletivas estatildeo jaacute submetidas a seu

proacuteprio controle coletivo natildeo satildeo um produto da natureza mas da histoacuteria (Marx

1973 pp 89-90)

Nas sociedades capitalistas e poacutes-capitalistas os processos metaboacutelicos

sociais natildeo foram submetidas ao controle coletivo Ao contraacuterio assentados sob a

centralidade do capital os indiviacuteduos e a coletividade encontram-se submetidos

aos imperativos deste por isso de certo modo ainda somos produto da natureza

e natildeo da histoacuteria Nessa condiccedilatildeo natildeo apenas os produtos do trabalho ganham

vida adquirindo poderes sobre os proacuteprios produtores e com isso exigindo a

intervenccedilatildeo universal de uma potecircncia autocircnoma e sedutora o dinheiro (o

equivalente geral das mercadorias) mas extravasando o aspecto estritamente

econocircmico sob as mais diversas formas e nos mais diversos aspectos da vida

social as relaccedilotildees entre as classes e entre os indiviacuteduos necessitam da

permanente intervenccedilatildeo de uma forccedila externa mediadora e legitimadora de suas

relaccedilotildees reciacuteprocas o Estado Assim os antagonismos insuperaacuteveis no acircmbito

da sociedade civil assumem a forma abstrata de normas juriacutedico-poliacuteticas

universais normas que nada mais satildeo do que a expressatildeo alienada e fetichizada

das proacuteprias relaccedilotildees sociais Sob estas relaccedilotildees alienadas e alienantes os

homens ainda natildeo se colocam como sujeitos propriamente ditos de sua histoacuteria

mas tal como o aprendiz de feiticeiro como objetos de suas proacuteprias magias das

forccedilas que colocaram em movimento e sobre as quais perderam (ou natildeo

adquiriram) o controle agem portanto como homens desumanos ou ao menos

homens que natildeo humanizaram plenamente os fundamentos de sua existecircncia

O entendimento disto eacute pressuposto fundamental para que tambeacutem se

compreenda que no caso dos processos revolucionaacuterios comunistas a violecircncia 30

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

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Relume-Dumaraacute 2002

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Chicago University of Chicago Press 1998

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ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem

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1986

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prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 31: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

neles contida ndash isto eacute a violecircncia revolucionaacuteria ndash natildeo atenta contra a afirmaccedilatildeo

do homem enquanto tal mas constitui um dos meios necessaacuterios agrave reapropriaccedilatildeo

pela sociedade civil daqueles poderes que em algum momento do decurso

histoacuterico foram alienados no Estado e nesta condiccedilatildeo voltam-se inclusive

violentamente contra a maioria daqueles que coexistem sob a dominaccedilatildeo deste

(Marx 1987b) Isto porque longe de ser a expressatildeo da vontade do consenso

resultante do discurso ldquoo poder poliacutetico eacute o resumo oficial do antagonismo na

sociedade civilrdquo (Marx 1989b p 160) Como o Estado natildeo pode suprimir os

antagonismos sob os quais se assenta (Marx 1987b p 513) estes acabam por

ser velados sob uma forma aparentemente universal e destacada dos interesses

das classes dominantes o proacuteprio Estado e seus dispositivos juriacutedico-poliacuteticos

Por isso a tatildeo apregoada igualdade que caracteriza os homens na vida poliacutetica

natildeo eacute de forma alguma a expressatildeo da supressatildeo de suas desigualdades

reais[25] mas a confirmaccedilatildeo destas sob a forma da igualdade poliacutetica isto eacute a

estreita igualdade sob o estreito ponto de vista poliacutetico

Neste caso a igualdade poliacutetica emancipa a sociedade como um todo da

cisatildeo entre cidadatildeos e natildeo-cidadatildeos ndash e com isso suprime todos os meios

juriacutedico-poliacuteticos que mantinham os privileacutegios para corpus especiacuteficos da

sociedade ndash para ao seu modo instituir uma nova e mais profunda cisatildeo aquela

que transforma a todos os indiviacuteduos das sociedades modernas em membros de

duas esferas distintas e sob certos aspectos antagocircnicas ainda que

complementares a vida privada e a vida puacuteblica ser social geneacuterico e indiviacuteduo

concreto

O Estado poliacutetico acabado eacute pela proacutepria essecircncia a vida geneacuterica do homem em

oposiccedilatildeo agrave sua vida material Todas as premissas desta vida egoiacutesta permanecem

de peacute agrave margem da esfera estatal na sociedade civil poreacutem como qualidade

desta Onde o Estado poliacutetico jaacute atingiu seu verdadeiro desenvolvimento o homem

leva natildeo soacute no plano do pensamento da consciecircncia mas tambeacutem no plano da

realidade da vida uma dupla vida uma celestial e outra terrena a vida na

comunidade poliacutetica na qual ele se considera um ser coletivo e a vida na

31

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972

______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

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Relume-Dumaraacute 2002

CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition

Chicago University of Chicago Press 1998

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Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999

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Paz e Terra 1979

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n4 Ciecircncias Humanas 1978

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______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

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prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 32: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

sociedade civil em que atua como particular considera outros homens como

meios degrada-se a si proacuteprio como meio e converte-se em joguete de poderes

estranhos O homem em sua realidade imediata na sociedade civil eacute um ser

profano Aqui onde passa ante si mesmo e frente aos outros por um indiviacuteduo real

eacute uma manifestaccedilatildeo carente de verdade Pelo contraacuterio no Estado onde o homem

eacute considerado como um ser geneacuterico ele eacute o membro imaginaacuterio de uma

soberania imaginaacuteria acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de

uma generalidade irreal (Marx 1991 pp 26-7)

Para recompor a unidade dos seres humanos para que estes ajam real e

imediatamente como seres unitaacuterios ndash isto eacute natildeo como cidadatildeos ou indiviacuteduos

privados (burgueses trabalhadores) mas como homens ndash natildeo basta uma

revoluccedilatildeo que os emancipe da violecircncia contida na poliacutetica liberando esta res

publica decaiacuteda de todo traccedilo de coerccedilatildeo mas uma na qual a proacutepria poliacutetica seja

eliminada[26] Eacute necessaacuteria portanto uma accedilatildeo poliacutetica que os emancipe da

proacutepria poliacutetica visto que a mera existecircncia desta pressupotildee a usurpaccedilatildeo a

violecircncia Pois se estaacute fora de duacutevida que a plena emancipaccedilatildeo poliacutetica

consubstanciada nos modernos Estados democraacutetico-burgueses permite que a

accedilatildeo poliacutetica de dominaccedilatildeo seja muito mais sutil e consentida do que sob a

vigecircncia de restriccedilotildees agrave expressatildeo individual natildeo se pode afirmar de forma

alguma que ela nega que o poder poliacutetico seja inerentemente violento

Ainda sobre o tema importa observar que a violecircncia natildeo constitui a

essecircncia do poder poliacutetico porque em si e por si este a origina mas porque o

proacuteprio poder poliacutetico ratifica uma violecircncia original geneacutetica perante a qual a sua

violecircncia atua apenas como serva a saber a violecircncia contida na relaccedilatildeo entre

dominantes e dominados entre exploradores e explorados Sendo a dominaccedilatildeo

de uns homens sobre outros em si mesma violenta os meios institucionais que a

perpetuam tambeacutem natildeo podem deixar de secirc-lo pois aquilo que perpetua a

violecircncia eacute sempre de algum modo violecircncia E se a afirmaccedilatildeo de Arendt

segundo a qual ldquoaquilo que necessita de justificaccedilatildeo por outra coisa natildeo pode ser

a essecircncia de nadardquo (Arendt 1994 p 41) possui algum significado este somente

32

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972

______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994

______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998

______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo

Relume-Dumaraacute 2002

CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition

Chicago University of Chicago Press 1998

CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1

t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000

DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad

Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999

ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem

Satildeo Paulo Global 1986

FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983

HOBSBAWM Eric A era dos extremos Satildeo Paulo Cia das Letras 1995

KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976

LAFER Celso Hannah Arendt pensamento persuasatildeo e poder Rio de Janeiro

Paz e Terra 1979

LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo

n4 Ciecircncias Humanas 1978

______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias

Humanas 1979

MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt

Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985

37

MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica

(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973

______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra

1975

______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os

Economistas) 1982

______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985

______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 33: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

pode ser o de que sendo a manifestaccedilatildeo oficial de antagonismos que o

antecedem e o fundamentam o poder poliacutetico natildeo constitui essencialmente as

relaccedilotildees sociais mas sim uma esfera secundaacuteria de atividades passiacutevel de

supressatildeo e portanto descartaacutevel no curso do desenvolvimento humano

Eacute improcedente portanto afirmar que como poder poliacutetico o poder

dispensa a violecircncia sendo poder de uns homens sobre outros ele somente se

faz respeitar mesmo que em uacuteltima instacircncia por possuir mecanismos de

violecircncia meios de coerccedilatildeo Nas palavras de Marx e Engels ldquoO poder poliacutetico eacute o

poder organizado de uma classe para a opressatildeo de outrardquo (1998 p 59) Numa

revoluccedilatildeo comunista os meios violentos ao inveacutes de negar suas finalidades

viabilizam-na pois estatildeo em consonacircncia com o niacutevel de desenvolvimento

humano alcanccedilado e em condiccedilotildees de superar positivamente contradiccedilotildees tatildeo

profundamente enraizadas contradiccedilotildees diante das quais a esperanccedila de uma

resoluccedilatildeo discursiva puramente dialogada apresenta-se esta sim como

desumanidade visto que claramente irresolutiva e perpetuadora do status quo

Para os fundadores da filosofia da praacutexis a organizaccedilatildeo do proletariado

como classe dominante a centralizaccedilatildeo dos instrumentos de produccedilatildeo nas matildeos

do Estado e com isso o raacutepido desenvolvimento das forccedilas produtivas soacute

poderatildeo resultar ldquoa princiacutepio por intervenccedilotildees despoacuteticas no direito de

propriedade e nas relaccedilotildees de produccedilatildeo burguesasrdquo (Marx Engels 1998 p 58)

Isto natildeo deve ocorrer para que o proletariado instaure novas relaccedilotildees de

dominaccedilatildeo de classe e para mantecirc-las perpetue o poder poliacutetico mas ao

contraacuterio

Se o proletariado em sua luta contra a burguesia se organiza forccedilosamente como

classe se por meio de uma revoluccedilatildeo se converte em classe dominante e como

classe dominante destroacutei juntamente com essas relaccedilotildees de produccedilatildeo as

condiccedilotildees de existecircncia dos antagonismos entre as classes destroacutei as classes em

geral e com isso sua proacutepria dominaccedilatildeo como classe (Marx Engels 1998 p 59)

33

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972

______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994

______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998

______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo

Relume-Dumaraacute 2002

CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition

Chicago University of Chicago Press 1998

CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1

t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000

DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad

Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999

ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem

Satildeo Paulo Global 1986

FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983

HOBSBAWM Eric A era dos extremos Satildeo Paulo Cia das Letras 1995

KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976

LAFER Celso Hannah Arendt pensamento persuasatildeo e poder Rio de Janeiro

Paz e Terra 1979

LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo

n4 Ciecircncias Humanas 1978

______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias

Humanas 1979

MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt

Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985

37

MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica

(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973

______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra

1975

______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os

Economistas) 1982

______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985

______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 34: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Por conseguinte a declamada ldquoalma socialrdquo da revoluccedilatildeo poliacutetica (Marx

1987b) eacute de fato nas revoluccedilotildees comunistas a substacircncia que faz da accedilatildeo

poliacutetica uma luta contra a proacutepria poliacutetica e desse modo contra toda e qualquer

forma de alienaccedilatildeo estatal As tentativas em contraacuterio como sob as mais variadas

formas vimos tantas vezes acontecer ao longo do seacuteculo XX soacute podem resultar

em novos e perigosos fracassos Estes talvez imperdoaacuteveis e incontornaacuteveis

Quanto a isso eacute importante relembrar que

O intelecto poliacutetico eacute poliacutetico exatamente na medida em que pensa dentro dos

limites da poliacutetica Quanto mais agudo ele eacute quanto mais vivo tanto menos eacute

capaz de compreender os males sociais O princiacutepio da poliacutetica eacute a vontade

Quanto mais unilateral isto eacute quanto mais perfeito eacute o intelecto poliacutetico tanto mais

ele crecirc na onipotecircncia da vontade e tanto mais eacute cego frente aos limites naturais e

espirituais da vontade e consequumlentemente tanto mais eacute incapaz de descobrir a

fonte dos males sociais (Marx 1987b p 514)

Para finalizar vejamos como numa precisa abordagem da relaccedilatildeo poliacutetica-

violecircncia Ruy Fausto argumenta que ldquopostular uma praacutetica lsquohumanarsquo (natildeo

violecircncia etc) num universo inumano (o do capitalismo e em geral de todo o lsquopreacute-

socialismorsquo) implica aceitar ndash se tornar cuacutemplice drsquo ndash este universo inumanordquo

(Fausto 1983 p 32) Para ele a contraposiccedilatildeo entre humanismo e anti-

humanismo soacute pode levar agrave irresoluccedilatildeo do problema pois tanto a postulaccedilatildeo

humanista de uma praacutetica plenamente humana num universo desumano quanto a

rejeiccedilatildeo anti-humanista de ldquotoda referecircncia ao homem (tanto no niacutevel dos meios

quanto dos fins)rdquo impedem cada qual a seu modo a superaccedilatildeo do atual estado de

coisas(Fausto 1983 p 32) Em suas proacuteprias palavras

A poliacutetica marxista natildeo deve ser definida nem como um humanismo nem como um

anti-humanismo ela deve ser definida e pensada em termos de supressatildeo

(Aufhebung) de negaccedilatildeo (no sentido dialeacutetico) do humanismo Assim

negamos o homem (a natildeo violecircncia etc) para que ele natildeo negue a si proacuteprio (Se

natildeo fosse esse o caso natildeo o negariacuteamos) Assumimos a negaccedilatildeo (dialeacutetica) para

natildeo sofrer a negaccedilatildeo (vulgar) E na medida em que a negaccedilatildeo dialeacutetica conteacutem a

34

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972

______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994

______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998

______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo

Relume-Dumaraacute 2002

CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition

Chicago University of Chicago Press 1998

CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1

t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000

DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad

Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999

ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem

Satildeo Paulo Global 1986

FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983

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KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976

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Paz e Terra 1979

LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo

n4 Ciecircncias Humanas 1978

______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias

Humanas 1979

MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt

Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985

37

MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica

(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973

______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra

1975

______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os

Economistas) 1982

______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985

______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 35: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

contradiccedilatildeo ndash com efeito se negamos o homem o conservamos ao mesmo tempo

(ou se se quiser a violecircncia de que partimos aqui natildeo eacute a violecircncia do anti-

humanismo que ldquoexpulsardquo a natildeo violecircncia mas eacute a violecircncia-que-suprime-a-natildeo-

violecircncia que eacute portanto afetada de natildeo violecircncia) ndash poderiacuteamos dizer que

assumimos a contradiccedilatildeo para natildeo nos contradizer (Fausto 1983 p 33)

Assim ao contraacuterio de Hannah Arendt para quem o humanismo de Marx

caracterizado pela qualificaccedilatildeo do homem como sujeito histoacuterico senhor do seu

proacuteprio destino transfigura-se em seu oposto (anti-humanismo) devido aos meios

empregados em sua senhoridade temos aqui a afirmaccedilatildeo da coerecircncia da relaccedilatildeo

entre meios e fins no pensamento poliacutetico marxiano Neste afirma-se que em vez

de serem negados pela accedilatildeo violenta a plena realizaccedilatildeo dos princiacutepios do

humanismo tambeacutem se faz nesse caso (o das sociedades capitalistas e poacutes-

capitalistas) por meio dela Meios e fins encontram-se assim numa relaccedilatildeo

dialeacutetica a qual incorpora e supera a oposiccedilatildeo loacutegico-formal que a princiacutepio os

torna incompatiacuteveis[27]

IV Agrave guisa de conclusatildeo

Uma obra extensa e complexa como a de Arendt ndash e eacute claro como a de

Marx ndash exige uma investigaccedilatildeo longa exaustiva e criteriosa portanto algo ainda

distante das pretensotildees que nos levaram a escrever este texto Lendo as obras de

Hannah Arendt natildeo eacute difiacutecil verificar quatildeo controversas satildeo afirmaccedilotildees acerca do

pensamento de Marx ali contidas (do mesmo modo que tambeacutem o satildeo aquelas

que natildeo dialogam ndash ao menos explicitamente ndash com o marxismo) Aqui por meio

da anaacutelise de algumas dessas controversas e criacuteticas afirmaccedilotildees especialmente

sobre o papel da violecircncia nos processos revolucionaacuterios objetivamos contribuir

de maneira criteriosa para a referida investigaccedilatildeo desentranhando alguns

aspectos criticados do pensamento de Marx do invoacutelucro ideoloacutegico no qual foram

envolvidos pela leitura arendtiana

35

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972

______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994

______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998

______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo

Relume-Dumaraacute 2002

CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition

Chicago University of Chicago Press 1998

CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1

t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000

DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad

Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999

ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem

Satildeo Paulo Global 1986

FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983

HOBSBAWM Eric A era dos extremos Satildeo Paulo Cia das Letras 1995

KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976

LAFER Celso Hannah Arendt pensamento persuasatildeo e poder Rio de Janeiro

Paz e Terra 1979

LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo

n4 Ciecircncias Humanas 1978

______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias

Humanas 1979

MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt

Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985

37

MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica

(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973

______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra

1975

______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os

Economistas) 1982

______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985

______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 36: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Se agrave primeira vista as motivaccedilotildees e os objetivos desta reflexatildeo parecem

ser puramente acadecircmicos uma observaccedilatildeo mais atenta concluiraacute que sem

duacutevida ela se relaciona com o curso dos movimentos emancipatoacuterios do trabalho

Por um lado porque apoacutes deacutecadas de experiecircncias social-democratas e

estalinistas (e suas variantes maoiacutestas guevaristas etc) frustradas e do

solapamento de suas bases estruturais pela reestruturaccedilatildeo produtiva e pelo

neoliberalismo tais movimentos ainda natildeo se reorganizaram em conformidade

com as novas exigecircncias histoacuterico-sociais e do mesmo modo ainda natildeo se

reencontraram com a uacutenica corrente teoacuterica que pode fornecer os fundamentos

intelectuais adequados para a orientaccedilatildeo de suas accedilotildees o marxismo Por outro

porque as criacuteticas de Arendt aleacutem de contribuiacuterem para obliterar o pensamento

marxiano inauguraram a vertente de criacuteticas agrave categoria trabalho tal qual

formulada pelo pensador alematildeo Sob este aspecto suas ideacuteias encontraram eco

em dois dos mais influentes criacuteticos de Marx na atualidade Juumlrgen Habermas e

Andreacute Gorz Apenas estes ilustres disciacutepulos constituem motivos suficientes para

o pensamento de Arendt ser objeto de muitos estudos por acadecircmicos e

revolucionaacuterios

Por fim se como diz o historiador inglecircs Eric Hobsbawm o breve seacuteculo

XX foi uma ldquoera dos extremosrdquo nele assistimos aos movimentos do trabalho

caminharem das esperanccedilas despertadas pelo assalto aos ceacuteus efetuado pelos

revolucionaacuterios russos ao vertiginoso decliacutenio da Uniatildeo Sovieacutetica Neste imenso

imbroacuteglio praacutetico e teoacuterico o pensamento de Marx tanto foi criticado lido sob

muacuteltiplos acircngulos abandonado e inclusive declarado morto incontaacuteveis vezes

natildeo obstante isto seus elementos centrais tecircm resistido e mais do que nunca

demonstrado vitalidade analiacutetica e revolucionaacuteria[28] Assim uma investigaccedilatildeo

sistemaacutetica da obra de Arendt eacute importante natildeo apenas para demonstrar suas

proacuteprias fragilidades intriacutensecas mas principalmente para implodir os

argumentos de suas equivocadas criacuteticas a Marx visto que entender o verdadeiro

sentido (a letra e o espiacuterito) da obra marxiana eacute crucial para que as proacuteximas

ondas revolucionaacuterias natildeo sejam apenas heroacuteicos assaltos aos ceacuteus mas uma

36

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972

______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994

______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998

______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo

Relume-Dumaraacute 2002

CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition

Chicago University of Chicago Press 1998

CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1

t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000

DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad

Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999

ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem

Satildeo Paulo Global 1986

FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983

HOBSBAWM Eric A era dos extremos Satildeo Paulo Cia das Letras 1995

KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976

LAFER Celso Hannah Arendt pensamento persuasatildeo e poder Rio de Janeiro

Paz e Terra 1979

LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo

n4 Ciecircncias Humanas 1978

______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias

Humanas 1979

MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt

Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985

37

MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica

(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973

______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra

1975

______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os

Economistas) 1982

______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985

______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 37: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

verdadeira conquista de novas terras e ares sociais E se de algum modo o texto

que aqui finda suscitou no leitor o interesse por estas questotildees ele certamente jaacute

cumpriu a funccedilatildeo para a qual foi produzido

V REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ARENDT Hannah Entre o passado e o futuro Satildeo Paulo Perspectiva 1972

______ Da revoluccedilatildeo Satildeo PauloBrasiacutelia AacuteticaEditora da UnB 1990

______ Sobre a violecircncia Satildeo Paulo Relume-Dumaraacute 1994

______ The human condition Chicago University of Chicago Press 1998

______ A dignidade da poliacutetica ensaios e conferecircncias 3 ed Satildeo Paulo

Relume-Dumaraacute 2002

CANOVAN Margareth ldquoIntroductionrdquo In ARENDT Hannah The human condition

Chicago University of Chicago Press 1998

CHASIN J Rota e prospectiva de um projeto marxista Ensaios Ad Hominem n 1

t III Santo Andreacute Ad Hominem 2000

DUSSEL Enrique As quatro redaccedilotildees de O capital (1857-1880) Ensaios Ad

Hominem n 1 t I Santo Andreacute Ad Hominem 1999

ENGELS Friedrich O papel do trabalho na transformaccedilatildeo do macaco em homem

Satildeo Paulo Global 1986

FAUSTO Ruy Loacutegica e poliacutetica v I Satildeo Paulo Brasiliense 1983

HOBSBAWM Eric A era dos extremos Satildeo Paulo Cia das Letras 1995

KOSIK Karel A dialeacutetica do concreto Rio de Janeiro Paz e Terra 1976

LAFER Celso Hannah Arendt pensamento persuasatildeo e poder Rio de Janeiro

Paz e Terra 1979

LUKAacuteCS Georg As bases ontoloacutegicas da atividade humana Temas Satildeo Paulo

n4 Ciecircncias Humanas 1978

______ Os princiacutepios ontoloacutegicos fundamentais de Marx Satildeo Paulo Ciecircncias

Humanas 1979

MAGALHAtildeES Maria Thereza C A categoria de trabalho (labor) em H Arendt

Ensaio n 14 Satildeo Paulo Ensaio 1985

37

MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica

(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973

______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra

1975

______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os

Economistas) 1982

______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985

______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 38: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

MARX K Elementos fundamentales para la criacutetica de la economiacutea poliacutetica

(borrador) 1857-1858 (I) Buenos Aires Siglo XXI 1973

______ Formaccedilotildees econocircmicas preacute-capitalistas Rio de Janeiro Paz e Terra

1975

______ Para a criacutetica da economia poliacutetica Satildeo Paulo Abril Cultural (Col Os

Economistas) 1982

______ O capital Satildeo Paulo Nova Cultural (Col Os Economistas) 1985

______ O 18 brumaacuterio e Cartas a Kugelmann 5 ed Rio de Janeiro Paz e Terra

1986

______ Criacutetica del derecho del Estado de Hegel Introduccioacuten Obras

fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud de Carlos Marx

Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987a

______ Glosas criacuteticas al artiacuteculo ldquoEl rey de Prusia y la reforma social Por un

prusianordquo Obras fundamentales de Marx y Engels v I ndash Escritos de juventud

de Carlos Marx Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1987b

______ Manuscritos econocircmico-filosoacuteficos Lisboa Ediccedilotildees 70 1989a

______ A miseacuteria da filosofia 2 ed Satildeo Paulo Global 1989b

______ A questatildeo judaica 2 ed Satildeo Paulo Moraes 1991

MARX K ENGELS F A ideologia alematilde (Feuerbach) 6 ed Satildeo Paulo Hucitec

1987a

______ A sagrada famiacutelia Satildeo Paulo Moraes 1987b

______ Manifesto comunista Satildeo Paulo Boitempo 1998

MEacuteSZAacuteROS I Poliacutetica radical e transiccedilatildeo para o socialismo reflexotildees sobre o

centenaacuterio de Marx Revista EscritaNova Ensaio n 1112 Satildeo Paulo Ensaio

1983

______ Para aleacutem do capital Satildeo Paulo Boitempo 2002

Notas

38

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 39: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

Professor de sociologia no curso de pedagogia da Universidade Camilo Castelo

Branco (Unicastelo) e em diversos cursos da Faculdade Diadema (FAD) [1] Dimensatildeo praacutetica da existecircncia oposta no discurso arendtiano agrave sua dimensatildeo

teoacuterica a vita contemplativa [2] ldquoOs ideais do Homo faber o fabricante do mundo que satildeo a permanecircncia a

estabilidade e a durabilidade foram sacrificados em benefiacutecio da abundacircncia o

ideal do Animal laborans Noacutes vivemos numa sociedade de trabalhadores porque

somente o trabalho com sua inerente fertilidade eacute capaz de produzir a

abundacircnciardquo (Arendt 1998 p 126) [3] O problema eacute que como vimos ldquocom a civilizaccedilatildeo industrial os artesatildeos

que tinham a dimensatildeo do Homo faber converteram-se em Animal laborans e

isto veio a dificultar com o peso da necessidade a terceira experiecircncia baacutesica [a

accedilatildeo]rdquo (Lafer 1979 p 30) [4] ldquoA vida humana na medida em que eacute a criadora do mundo estaacute engajada num

constante processo de reificaccedilatildeo e o grau de mundaneidade das coisas

produzidas cuja soma total constitui o artifiacutecio humano depende de sua maior ou

menor permanecircncia neste mundordquo (Arendt 1998 p 96) [5] Na terminologia da autora objetos de uso em oposiccedilatildeo aos objetos de

consumo produzidos pelo trabalho 7] ldquoO exaspero ante a tripla frustraccedilatildeo da accedilatildeo ndash a imprevisibilidade dos resultados

a irreversibilidade do processo e o anonimato de seus autores ndash eacute quase tatildeo

antigo quanto a histoacuteria escritardquo (Arendt 1998 p 220) [8] ldquoA accedilatildeo logo passou a ser e ainda eacute quase exclusivamente entendida em

termos de fazer e fabricar exceto que o fazer por causa de sua mundaneidade e

inerente indiferenccedila agrave vida era agora visto como apenas outra forma de trabalho

como funccedilatildeo mais complicada mas natildeo mais misteriosa do processo vitalrdquo (Arendt

1998 p 322) [9] De modo mais especiacutefico Arendt questiona a observaccedilatildeo de Marx e Engels

segundo a qual para uma anaacutelise adequada de uma sociedade ldquonatildeo se parte

daquilo que os homens dizem imaginam ou representam e tampouco dos

homens pensados e imaginados para a partir daiacute chegar aos homens de carne e

39

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

42

43

massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 40: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

osso parte-se dos homens realmente ativos e a partir de seu processo de vida

real expotildee-se tambeacutem o desenvolvimento dos reflexos ideoloacutegicos e dos ecos

desse processo de vidardquo (Marx Engels 1986 p 37) [10] ldquoNatildeo se pode fazer uma mesa sem matar uma aacutervorerdquo (Arendt 2002 p 62) [11] Pois como vimos a accedilatildeo eacute a atividade que no acircmbito de sua reflexatildeo

corresponde agrave condiccedilatildeo da pluralidade da racionalidade e da liberdade

efetivamente humanas e natildeo agrave violecircncia e agrave necessidade [12] Segundo Arendt Marx almeja um mundo sem trabalho um mundo no qual ldquoa

produtividade do trabalho tornar-se-aacute tatildeo grande que o trabalho de alguma forma

aboliraacute a si mesmordquo (Arendt 1972 p 45) Poreacutem natildeo eacute isto que afirma o proacuteprio

Marx Em O capital ele nos diz que o trabalho ldquoeacute atividade orientada a um fim para

produzir valores de uso apropriaccedilatildeo do natural para satisfazer a determinadas

necessidades humanas condiccedilatildeo universal do metabolismo entre o homem e a

Natureza condiccedilatildeo natural eterna da vida humana e portanto independente de

qualquer forma dessa vida sendo antes igualmente comum a todas as suas

formas sociaisrdquo (Marx 1985 p 153) [13] No mais abrangente e sistemaacutetico estudo sobre o papel do trabalho na

constituiccedilatildeo do ser social intitulado A ontologia do ser social estudo que a nosso

ver vai ao encontro do espiacuterito das formulaccedilotildees marxianas o marxista huacutengaro

Georg Lukaacutecs considera o trabalho ldquoa protoforma da praacutexis socialrdquo (Lukaacutecs 1979) [14] ldquoO animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital Natildeo se

distingue dela Eacute a sua proacutepria atividaderdquo (Marx 1989 p 164) [15] ldquo o objeto do trabalho eacute a objetivaccedilatildeo da vida geneacuterica do homem ao natildeo

reproduzir-se apenas intelectualmente como na consciecircncia mas ativamente ele

duplica-se de modo real e intui o seu proacuteprio reflexo num mundo por ele criadordquo

(Marx 1989 p 165) [16] Segundo Engels ldquoo trabalho eacute fundamento da vida humana Podemos ateacute

afirmar que sob determinado aspecto o trabalho criou o proacuteprio homemrdquo (Engels

1986 p 19)

40

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

41

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 41: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

[17] NB natildeo estamos tratando aqui em hipoacutetese alguma de sua durabilidade

esteacutetica ou intelectual pois estas envolvem questotildees completamente diversas

daquelas que satildeo aqui analisadas [18] Sobre a presenccedila do capital e sua loacutegica alienada e alienante nas sociedades

capitalistas e poacutes-capitalistas e portanto negadora da satisfaccedilatildeo das profundas

carecircncias individuais e coletivas para a construccedilatildeo de uma vida mais justa e

propriamente humana ver Meacuteszaacuteros (2002) [19] No mesmo sentido lemos jaacute nrsquoA ideologia alematilde ldquoNatildeo eacute a consciecircncia que

determina a vida mas a vida que determina a consciecircnciardquo (Marx Engels 1987a

p 37) [20] Sobre isso ver Kosik (1976) [21] De acordo com Istvaacuten Meacuteszaacuteros ldquoa fase poacutes-capitalista como um todo [que

sem duacutevida engloba todas as sociedades que ao longo do seacuteculo XX sofreram

transformaccedilotildees sociais supressoras do capitalismo] permanece ndash mesmo se em

grau potencialmente diminuiacutedo ndash no interior dos constrangimentos e dos

paracircmetros estruturais objetivos das determinaccedilotildees finais do capital

Consequumlentemente o verdadeiro processo de reestruturaccedilatildeo radical ndash condiccedilatildeo

crucial para o sucesso do projeto socialista ndash soacute pode progredir se os objetivos

estrateacutegicos para a supressatildeo radical do capital enquanto tal reduzirem

consciente e persistentemente o poder regulador do capital sobre o metabolismo

social ao inveacutes de proclamar como realizaccedilatildeo do socialismo algumas limitadas

conquistas poacutes-capitalistasrdquo (Meacuteszaacuteros 1983 pp 108-9) [22] Numa consideraccedilatildeo que a nosso ver eacute bastante coerente com o pensamento

marxiano o filoacutesofo brasileiro Joseacute Chasin assevera que o comunismo ldquonatildeo

implica o ceacuteu na terra a ausecircncia absoluta de entraves sociais de

estranhamentos no prosseguimento infinito da humanizaccedilatildeo daiacute pra frente natildeo

significa a supressatildeo definitiva de toda ordem de empecilhos na universalizaccedilatildeo

dos indiviacuteduos de uma vez por todas mas que a vida humano-societaacuteria eacute uma

luta infinita contra os estranhamentos ou seja essa luta coincide com a infinitude

do processo de hominizaccedilatildeo Mas em cada eacutepoca e em todos os momentos de

uma eacutepoca histoacuterica dada certo tipo de estranhamento em especial constitui o

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entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
Page 42: :: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas · umas sobre outras que, respectivamente, erguem-se a grandeza antiga e a miséria moderna da vida política. Por

entrave fundamental a ser objetivamente aniquilado hoje a propriedade privada

dos meios de produccedilatildeo e o estadordquo (Chasin 2000 p 62) [23] Como vimos na citaccedilatildeo das pp 5-6 Arendt possui plena consciecircncia destas

caracteriacutesticas do pensamento de Marx [24] Como lembra Meacuteszaacuteros ldquoA dificuldade [com que se deparam os movimentos

do trabalho e por conseguinte a proacutepria espeacutecie humana] natildeo estaacute apenas no

fato de os perigos inseparaacuteveis do atual processo de desenvolvimento serem hoje

muito maiores do que em qualquer outro momento mas tambeacutem no fato de o

sistema do capital global ter atingido seu zecircnite contraditoacuterio de maturaccedilatildeo e

saturaccedilatildeo Os perigos agora se estendem por todo o planeta consequumlentemente

a urgecircncia de soluccedilotildees para eles antes que seja tarde demais eacute especialmente

severardquo (2002 p 95) [25] Por desigualdade aqui natildeo se entende a desigualdade cultural ou de

personalidade mas sim aquela referente agrave apropriaccedilatildeo desigual dos meios de

objetivaccedilatildeo do trabalho e portanto dos poderes envolvidos nos processos de

produccedilatildeo e reproduccedilatildeo da vida Para Marx muito longe de equalizar culturas e

personalidades o comunismo vai pela primeira vez na existecircncia humana criar

condiccedilotildees adequadas para o desenvolvimento multifacetado daquelas Sua

perspectiva eacute a de que ldquoA livre individualidade fundada no desenvolvimento

universal dos indiviacuteduos e na subordinaccedilatildeo de sua produtividade coletiva social

como patrimocircnio social constitui o terceiro estadordquo [o comunismo] (Marx 1973 p

85) [26] Deve-se frisar que natildeo se advoga aqui o ideaacuterio ou a praacutetica anarquista que

apregoa a supressatildeo do poder poliacutetico sem as devidas mediaccedilotildees A revoluccedilatildeo

aqui concebida nada tem que ver com o blanquismo tiacutepico do anarquismo e do

esquerdismo voluntarista por mais heroacuteico que este seja mas com um longo e

complexo processo de transformaccedilatildeo dos fundamentos do metabolismo social em

relaccedilatildeo ao qual a tomada do poder eacute apenas o primeiro passo [27] Um dos aspectos que tornam aparentemente incompatiacuteveis os meios

revolucionaacuterios e os fins emancipatoacuterios eacute analisado em A ideologia alematilde ldquoA

transformaccedilatildeo em larga escala dos homens torna-se necessaacuteria para a criaccedilatildeo em

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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo
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massa desta consciecircncia comunista como tambeacutem para o sucesso da proacutepria

causa Ora tal transformaccedilatildeo soacute se pode operar por um movimento praacutetico por

uma revoluccedilatildeo esta revoluccedilatildeo eacute necessaacuteria entretanto natildeo soacute por ser o uacutenico

meio de derrubar a classe dominante mas tambeacutem porque apenas uma revoluccedilatildeo

permitiraacute agrave classe que derruba a outra varrer toda a podridatildeo do velho sistema e

tornar-se capaz de fundar a sociedade sobre bases novasrdquo (Marx Engels 1987a

p 109) [28] Para Dussel (1999) por exemplo o seacuteculo XXI seraacute o ldquoseacuteculo de Marxrdquo

  • I Vita activa
  • II Poliacutetica e violecircncia
  • III Marx trabalho histoacuteria e violecircncia na poliacutetica
  • IV Agrave guisa de conclusatildeo