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    :: Verinotio - Revista On-line de Educao e Cincias Humanas N 7, Ano IV, Novembro de 2007, periodicidade semestral ISSN 1981-061X

    LUKCS E O STALINISMO1

    Nicolas Tertulian2

    Hoje so raros aqueles que evocando as lutas dos intelectuais contra os

    regimes totalitrios do leste fazem referncia a outras formas de oposio que

    aquelas dos dissidentes. O mrito destes homens corajosos que, desde Andrei

    Sakharov a Vaclav Haves e de Leszek Kolakowski a Alexandre Soljnitsyne,

    tem adquirido uma legtima audincia, no deveria no entanto fazer-nos

    esquecer, por um reflexo anti-comunista compreensvel mas no entanto

    simplificador, o fato de que a contestao comeou no prprio interior do

    sistema e que intelectuais marxistas como Bertolt Brecht, Ernst Bloch ou Georg

    Lukcs denunciaram com vigor as prticas stalinistas e o socialismo de

    caserna. O contedo e a finalidade de suas crticas eram evidentemente

    diferentes daquelas dos dissidentes: eles desejavam a reforma radical destas

    sociedades, sua reconstruo sobre bases autenticamente socialistas, e no a

    restaurao do capitalismo.

    Em 1958, Ernst Bloch confidenciava com amargura a seu amigo Joaquim

    Schumacher que ele mesmo e seus discpulos tinham sido na RDA objeto de

    uma represso brutal. Em sua carta, expedida por prudncia para a ustria, ele

    esplicava a seu correspondente que sua crtica contra a Satrapen-

    Misswirtschaff (desastrosa economia de strapa) havia sido por um tempo

    tolerada, e de bom ou mal grado aceita, mas que desde a apario do

    movimento contestatrio hngaro o crculo de Petfi comea a se reunir em

    1956 a situao havia mudado completamente. Vexaes e interdies se

    sucederam. Proibido de ensinar, proibido de publicar o terceiro volume do livro 1 In: Materialismo Histrico y Teora Crtica - GNESIS Y DESARROLLO DEL PENSAMIENTO CRTICO: endereo eletrnico : http://www.ucm.es/info/eurotheo/materiales/hismat/tertulian.htm - Traduo de Ronaldo Vielmi Fortes, doutorando em Filosofia Social e Poltica FAFICH UFMG. 2 - Universit Paris X-Nanterre

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    Princpio Esperana, Bloch apresentava a situao em uma frmula lapidar:

    Man brauchte einen deutschen Lukcs...3

    Havia portanto a necessidade de um Lukcs alemo na RDA de Walter

    Ulbricht, que justamente tremia com a idia de que o esprito do crculo de

    Petfi, do qual o filsofo havia sido um dos incentivadores, pudesse se

    propagar. E na boa tradio stalinista ele havia montado um processo

    barulhento, destinado a prevenir toda veleidade de colocar em questo os

    mtodos de poder vigentes. Os principais acusados deste processo tinham sido

    Wolfgang Harich e Walter Janka.

    Graas s obras publicadas4 estes ltimos anos por Walter Janka, antigo

    comunista, antigo combatente da guerra civil espanhola e, no momento de sua

    deteno, em 1956, diretor da grande casa de edio de Berlim, Aufbau-

    Verlag, podemos ter uma idia mais clara das repercusses que o papel

    desempenhado por Lukcs na sublevao hngara teve sobre o establishment

    da Alemanha do leste5.

    Durante os eventos na Hungria, enquanto reinava a confuso, Johannes

    Becher, ministro da cultura, havia pedido sob o conselho de Anna Seghers a

    Walter Janka de voltar a Budapest para conduzir Lukcs para a RDA. Amigo do

    filsofo, o ministro-poeta temia por sua vida. A operao, digna de um filme

    policial, havia sido impedida por Walter Ulbricht, que no queria imiscuir-se nos

    neggicos dos camaradas soviticos. No processo, Janka, a quem no

    pertencia portanto a iniciativa do projeto, se viu reprovado da inteno de trazer

    um agente disfarado do imperialismo... disfarado de comunista. Dentro do

    cenrio construdo pela justia da Alemanha do Leste, sob as ordens de Walter

    Ulbricht, o filsofo aparecia como inspirador ideolgico de um compl

    perpetrado pelos acusados para derrubar o regime. O procurador geral,

    Melsheimer (magistado em funo desde o regime nazista), se valeu de um

    requisitrio verdadeiro contra Lukcs, cujas intervenes nos debates do

    3 necessrio um Lukcs alemo Ernst Bloch, Briefe, 1903-1975, hrsg. von Karola Bloch, l985, Suhrkamp Verlag, Band II, pp. 6l4-6l5. 4 Walter Janka, Schwierigkeiten mit Wahrkeit, 1989, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt; Der Prozess gegen Walter Janka und andere, Eine Dokumentation, 1990, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt; Walter Janka, Spuren eines Lebens, 1991, Berlin, Rowohlt. 5 Alemanha Oriental

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    crculo de Petfi, assim como as declaraes feitas antes e durante os

    acontecimentos de 1956, serviram de peas de convico6. Uma entrevista

    dada por Lukcs em 31 de outubro de 1956 a um jornalista polons,

    Woroszilsky, largamente difundida pelas mdias ocidentais, escandalizou

    particularmente o procurador geral7. Se as eleies livres tivessem lugar na

    Hungria, afirmava Lukcs, o partido comunista no poder receberia entre 5 a

    10% dos votos; este seria, segundo ele, o resultado da poltica implementada

    durante anos pelo regime de Rakosi8.

    Ns no temos a inteno de nos determos mais longamente sobre a

    histria rocambolesca e trgica do processo Harich-Janka, que termina com

    duras penas de priso. Os exageros do procurador, que em um dado momento

    havia inclusive acusado Lukcs de ter apelado s tropas da OTAN contra a

    armada sovitica9, era uma prtica corrente da justia tipo stalinista. Uma rotina

    tambm, as declaraes feitas em uma conferncia de imprensa em fevereiro

    de 1957, por Johannes Becher. Ao mesmo tempo que rendia homenagem ao

    historiador da literatura Lukcs, o ministro lhe censurava agora por haver

    realizado uma ao dissolvente no crculo Petfi e fornecido assim seu apoio

    contra-revoluo. Interrogado sobre a sorte do filsofo, Johannes Becher

    assegurava aos jornalistas que este se encontrava em sua casa, em

    Budapeste, e que, retirado da vida pblica, se consagrava ao projeto de

    escrever uma tica10. No momento em que acontecia a conferncia de

    6 Citamos, segundo Walter Janka, a concluso do requisitrio pronunciado pelo procurados, de fato um texto preparado de antemo, de uma quinzena de pginas, dirigido contra Lukcs, que o considerava como o pai espiritualdsa contra-revoluo hngara: Und diesen Verrter Lukacs, der schon immer ein virkappter Agent des Imperialismus in den Reihen der internationalen Arbeiterbewegung war, wollte der hier auf der Anklagebank sitzende Verrter und Feind des Ersten Deutschen Arbeiter- und Bauernstaates namens Janka, der sich wie Lukacs als Kommunist tarnte nach Berlin haben und zum geistigen Inspirator der Konterrevolution in den DDR machen. (E Lukacs, este traidor que foi sempre, sob uma mscara, um agente do imperialismo nos quadros do movimento trabalhador internacional, este traidor e inimigo do primeiro Estado alemo dos trabalhadores e camponeses, assentado aqui no banco dos acusados, o chamado Janka que como Lukacs se camuflava em comunista queria fazer vir a Berlim e fazer dele o inspirados espiritual da contra-revoluo na R.D.A.) (Schwierigkeiten mit der Wahrheit, pp. 36-37 ; Spuren eines Leben, p. 270.) Anna Seghers que tinha tido a idia de tirar seu amigo Lukcs da Hungria, e determinado Becher et Janka de colocar o projeto em aplicao, se encontrava na sala, entre o pblico, no momento do requisitrio. teria escutado, de olhos baixos, sem levantar o menor protesto. 7 Walter Janka, op. cit. p. 90. 8 A declarao de Lukcs citada por Tibor Meray em seu livro Budapest (23 de outubro de 1956), Robert Laffon, 1961, 280: O comunismo est totalmente comprometido na Hungria. Certamente se agruparo em torno do Partido crculos intelectuais progressitas, escritores, alguns jovens. A classe trabalhadora seguir desde logo os social-democratas. Em eleies livres, os comunistas obteriam cinco ou no mximo dez por cento dos votos. Eles no faro provavelmente parte do governo, e passaro oposio... Mas o Partido existir, salvar suas idias, tornar um centro intelectual, e da a alguns anos, quem sabe? 9 Walter Janka, Spuren eines Leben, p. 368. 10 Ibid. p. 27l

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    imprensa, Imre Nagy com sua equipe, da qual fazia parte Lukcs, se

    encontrava deportada na Romnia. Pouco tempo depois, na Hungria como na

    RDA, como em todos os pases ditos socialistas, a campanha de imprensa

    contra o revolucionista Lukcs iria fazer furor.

    Este episdio dos anos 1956-1957, lembrado brevemente, mostra bem a

    que se expunha um filsofo marxista que queria por em acordo seus princpios

    e suas aes; pode servir de introduo a nossa discusso.

    Seria arriscado afirmar que o desmoronamento do mundo comunista havia

    surpreendido Lukcs. O autor da Ontologia do Ser Social considerava que os

    regimes do leste europeu, imobilizados em seu triunfalismo e afetados por uma

    indigncia estrutural, estariam condenados ao fim, e que precisaria proceder

    com urgncia sua reforma em profundidade para salvar a opo de um futuro

    socialista. o mesmo sentido do combate conduzido durante os quinze ltimos

    anos de sua vida pelo filsofo que permaneceu fiel ao engajamento tomado em

    sua juventude. Por isso, era preciso cortar o mal em sua origem, em outros

    termos dedicar-se ao descobrimento de um ideal de liberdade, de emancipao

    e de justia para os regimes que pretendiam servi-lo. Nutrindo a convico em

    um sentido premonitrio de que esta perverso do marxismo que o stalinismo

    representa um perigo mortal para a causa do socialismo, o filsofo

    apaixonada