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São Paulo e seus rurais 1 Natália Belmonte Demétrio 2 1. Introdução Inserido no projeto temático Observatório das Migrações em São Paulo (FAPESP/CNPq), em desenvolvimento no Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (NEPO/Unicamp), sob coordenação da Profª Drª Rosana Baeninger, o trabalho aqui resumido tem por objetivo debater a heterogeneidade das populações rurais no Estado de São Paulo. Partimos do aporte teórico da urbanização para discutir a relação entre os processos históricos que estruturaram cada região do Estado e as características de sua população rural. Face à diversidade de situações empíricas, a pesquisa chama atenção para a centralidade de pensarmos a ruralidade contemporânea em termos regionais ou territoriais. Nesse sentido, o estudo explora a importância dos Sistemas de Informação Geográficas (SIG) nessa abordagem de rural. Dessa maneira, como referencial metodológico, o trabalho utiliza-se da técnica de correlação espacial Índice Local de Moran para construir uma análise de cluster a partir de dados agregados em municípios. O censo demográfico de 2010 compõe a principal fonte de informações, de onde são estimadas as seguintes variáveis: índice de envelhecimento, razão de sexo e razão de dependência. Como resultado da visualização da distribuição espacial dessas estimativas – e à luz do arcabouço teórico adotado –, levanta-se o debate sobre a necessidade de estudos que se afastem de uma perspectiva reificada de rural e urbano, categorias que devem ser tratadas sempre de forma relacional e relativa, como conceitos polissêmicos, produtos históricos que envolvem relações e processos diferentes em contextos sociais específicos (ROSEMAN; CONDE; PÉREZ, 2013). 1 Trabalho apresentado no VI Congresso da Associação Latino-americana de População, realizado em Lima-Perú, entre 12 e 15 de agosto de 2014. 2 Doutoranda em Demografia na Universidade Estadual de Campinas/[email protected] 1

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São Paulo e seus rurais1

Natália Belmonte Demétrio2

1. Introdução

Inserido no projeto temático Observatório das Migrações em São Paulo (FAPESP/CNPq), em desenvolvimento no Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (NEPO/Unicamp), sob coordenação da Profª Drª Rosana Baeninger, o trabalho aqui resumido tem por objetivo debater a heterogeneidade das populações rurais no Estado de São Paulo. Partimos do aporte teórico da urbanização para discutir a relação entre os processos históricos que estruturaram cada região do Estado e as características de sua população rural. Face à diversidade de situações empíricas, a pesquisa chama atenção para a centralidade de pensarmos a ruralidade contemporânea em termos regionais ou territoriais. Nesse sentido, o estudo explora a importância dos Sistemas de Informação Geográficas (SIG) nessa abordagem de rural. Dessa maneira, como referencial metodológico, o trabalho utiliza-se da técnica de correlação espacial Índice Local de Moran para construir uma análise de cluster a partir de dados agregados em municípios. O censo demográfico de 2010 compõe a principal fonte de informações, de onde são estimadas as seguintes variáveis: índice de envelhecimento, razão de sexo e razão de dependência. Como resultado da visualização da distribuição espacial dessas estimativas – e à luz do arcabouço teórico adotado –, levanta-se o debate sobre a necessidade de estudos que se afastem de uma perspectiva reificada de rural e urbano, categorias que devem ser tratadas sempre de forma relacional e relativa, como conceitos polissêmicos, produtos históricos que envolvem relações e processos diferentes em contextos sociais específicos (ROSEMAN; CONDE; PÉREZ, 2013).

2. A urbanização como perspectiva de análise das relações rurais/urbanas, locais/globais

Pensar as relações rurais/urbanas desde o aporte teórico da urbanização trata-se de uma chave de leitura profícua ao entendimento do rural em suas relações de interdependência com o urbano em múltiplas escalas: local, nacional e até mesmo internacional. Trabalhos como os de Redfield (1960) e Wolf (2003) chamam a atenção para a importância de análises dessa natureza na desconstrução da velha e falaciosa dicotomia campo/cidade. Enquanto o primeiro autor define sociedades rurais como um segmento de sociedade (part-society), cujo estudo não pode ser autocontido, isto é, o entendimento da dinâmica interna da comunidade local passa, também, pelo entendimento dos processos exteriores a elas, as pesquisas de Wolf (2003) destacam a heterogeneidade dessa relação: “Há diferentes tipos de indústrias e mercados, diferentes tipos de expansão industrial e crescimento de mercado que afetaram diferentes partes do mundo de modos muito diferentes” (WOLF, 2003, p.19).

Nesse sentido, o primeiro ponto a se destacar na interação rural/urbana diz respeito ao seu caráter heterogêneo e não linear. As transformações sofridas no universo

1 Trabalho apresentado no VI Congresso da Associação Latino-americana de População, realizado em Lima-Perú, entre 12 e 15 de agosto de 2014. 2 Doutoranda em Demografia na Universidade Estadual de Campinas/[email protected]

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rural por força da expansão das relações de mercado ocorrem em tempo, ritmos e sob condicionantes muito diversos. Daí a necessidade de pensarmos a ruralidade numa perspectiva histórica, distantes de abordagens reificadas de rural e urbano. Para Roseman, Conde e Pérez (2013), essas categorias devem ser tratadas sempre de forma relacional e relativa, como conceitos polissêmicos, constructos culturais com significados diferentes em contextos sociais específicos. Mais que atributos e recursos, rural e urbano devem ser pensados como relações e processos (ROSEMAN; CONDE; PÉREZ, 2013).

A diversidade de conjunturas empíricas nos estudos rurais ganha força no debate acadêmico nos anos 1980, quando a crise do paradigma camponês ilumina a pluralidade de pessoas e situações que antes eram pensadas à luz desse modelo conceitual (ALMEIDA, 2007). Se, até os anos 1970, os estudos rurais seguiam uma tradição de pensamento na qual a diversidade de situações era vista como pertencentes “a um mosaico ou contínuo de tipos de campesinato”, os trabalhos mais recentes – influenciados por uma leitura ‘pós-moderna’ dos processos sociais – questionam a legitimidade dos universais sociológicos e das grandes narrativas (ALMEIDA, 2007, p.160).

A morte do paradigma camponês não se trata, no entanto, do fim das peças que esse código organizava. Ao contrário, seu esgotamento tem de ser entendido apenas como o fim de uma imagem camponesa

[…] enraizada em um território, com ideias mais ou menos conservadoras em técnicas agrícolas. Essa conexão grupo social, ideias e coisas – encerradas em um território discreto e isolado do exterior – deixa de ter peso para iluminar o mundo de migrantes móveis, de famílias-redes dispersas entre diferentes zonas geográficas segundo os fluxos migratórios, de estratégias de reprodução que acionam diferentes técnicas e espaços (ALMEIDA, 2007, p.171-172).

Assim, segundo Roseman, Conde e Pérez (2013), o último quartel do século XX marca a proliferação de trabalhos que situam as populações rurais com os contextos nacionais e internacionais, corroborando uma perspectiva sistêmica na qual o local deixa de ser explicado pelo próprio local. Se, a princípio, as pesquisas sobre o universo rural seguiam uma tradição teórico-metodológica de estudos de comunidades presentistas, a contemporaneidade tem assistido a incorporação de uma perspectiva história e relacional local/global nessa área de pesquisa (ROSEMAN; CONDE; PÉRES, 2013).

Na esteira desse processo, novos aportes teóricos e metodológicos reforçam a necessidade de análises centradas nas relações sociais que se desenvolvem a partir da integração dos diversos espaços rurais à economia global (WANDERLEY, 2000). Esses estudos surgiram principalmente como forma de refutar hipóteses que atestavam a descaracterização do sistema social e cultural rural pela intensificação de trocas (de pessoas, símbolos, serviços e bens materiais) com o mundo urbano. O trabalho de Wanderley (2000) é emblemático nesse sentido. Nessa pesquisa, a autora afirma que as novas relações rurais/urbanas – construídas no contexto de uma nova relação local/global – redefinem, mas não anulam, o lugar da agricultura e do universo rural na sociedade.

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Embora reconheça as dificuldades de reprodução social das populações rurais tradicionais – aquelas dedicadas basicamente à produção de bens primários – esse fenômeno ocorre ao mesmo tempo em que novos habitantes e novas representações são incorporados no cenário social rural. Portanto, o rural permanece como uma categoria do mundo social através do qual é “possível compreender a sociedade, classificar e distinguir as pessoas e as coisas e construir uma representação do mundo social em torno do espaço e do tempo” (WANDERLEY, 2000, p.130). Em outro texto, a autora declara:

Enquanto houver em nossas sociedades indivíduos e grupos sociais que vivam ou desejem viver em conformidade com as formas sociais decorrentes da vida em pequeno grupo, nestes espaços, continuamos devedores à sociedade de um pensamento social sobre o “mundo rural”. Sem esta realidade, uma parte de nossas sociedades seria amputada e sem este pensamento social, as ciências sociais ficariam capengas (WANDERLEY, 2010, p.21).

3. A emergência de novas ruralidades: entre mudanças e permanências

A emergência de novas ruralidades tem raízes históricas na crise do modelo produtivista de modernização agrícola, no agravamento das questões sociais relacionadas ao desemprego, pobreza, concentração fundiária e segurança alimentar, bem como nos problemas ambientais decorrentes do uso indiscriminado de insumos químicos na agricultura (WANDERLEY, 2000). Além desses fenômenos, é importante destacar também dois processos estudados por Harvey (1992): a maior integração entre os diferentes mercados e o acirramento da competição capitalista. Como ressalta a passagem abaixo:

O aumento da competição em condições de crise coagiu os capitalistas a darem muito mais atenção às vantagens localizacionais relativas, precisamente porque a diminuição de barreiras espaciais dá aos capitalistas o poder de explorar, com bom proveito, minúsculas diferenciações espaciais. Pequenas diferenças naquilo que o espaço contém em termos de oferta de trabalho, recursos, infra-estrutura etc. assumem crescente importância (HARVEY, 1992, p.265).

Nesse contexto, as tradições, amenidades e recursos naturais partilhados pelos espaços rurais de determinadas regiões são mercantilizados, reproduzidos e vendidos “como imagem, como um simulacro” (HARVEY, 1992, p.273). A esse fenômeno, combina-se uma série de movimentos sociais que tem como principal bandeira a urgência em se combater a pobreza rural – cuja incidência mesmo entre os países desenvolvidos é superior à urbana – e o uso sustentável dos recursos naturais (WANDERLEY, 2000). Essas novas demandas levaram a um reordenamento institucional organizado no

[…] reconhecimento político da necessidade de integração aos processos gerais do desenvolvimento nacional ou macrorregional, dos espaços e das populações, marginalizados ou excluídos, por meio da valorização dos recursos naturais, sociais e culturais de cada território, sejam eles ou não associados às atividades agrícolas. Seus objetivos são definidos em torno de três princípios: aproveitar as oportunidades econômicas, assegurar o bem estar das populações rurais e salvaguardar o patrimônio sociocultural das regiões rurais (WANDERELEY, 2000, p.16).

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Essa nova abordagem de desenvolvimento rural escamoteia a questão da produtividade para prezar por “um território e uma sociedade que devem imperiosamente viver tanto quanto produzir” (WANDERLEY, 2000, p.116). Assim, são alvos desses programas os espaços rurais onde, a despeito da baixa produtividade agrícola e da insatisfatória remuneração do agricultor, identifica-se “a sobrevivência a longo prazo de certas funções ambientais valorizadas pelas sociedades” (WANDERLEY, 2000, p.117). A valorização da identidade local funciona, portanto, como um alicerce a um novo projeto de rural, de modo que está cada vez mais frequente políticas de desenvolvimento rural apelar para exploração das “potencialidades de cada local, oferendo à clientela produtos cuja qualidade é reconhecida e procura, precisamente, pela vinculação que possui com a própria localidade” (WANDERLEY, 2000, p.119).

Todavia, é preciso reconhecer que essa tendência mais ampla de reordenamento das políticas de desenvolvimento rural é mediada, no nível local, por estruturas herdadas historicamente (VILELA, 1999). Assim, os espaços rurais imersos em regiões densamente povoadas (onde se concentram o grupo de consumidores de média e alta renda desses novos serviços e bens ofertados pelo rural) apresentam melhores condições de desenvolvimento de uma nova visão de rural (WANDERLEY, 2000). Com vistas a isso, Favareto (2007, p.193) encara a emergência de novas ruralidades como um fenômeno que

[…] não foi resultado exclusivo da introdução unilateral ou exógena de nenhuma norma ou sansão, mas sim da evolução de configurações historicamente determinadas, em cuja trajetória houve um crescente processo de racionalização, permitindo que, nestes termos mesmo, a um só tempo ecológico, histórico e racional, se constituíssem as estruturas sociais e as instituições necessárias para tanto.

O autor trabalha com um conceito de desenvolvimento não normativo, isto é, que não pode ser entendido como um “desejo, utopia ou ilusão, pelos conteúdos expressos num ‘dever ser’ […], mas sim como evolução de configurações determinadas, analisando a interdependência entre estruturas sociais, meio ambiente e instituições” (FAVARETO, 2007, p.158). Dessa forma, nos países latino americanos, tradicionais exportadores de bens primários, uma nova abordagem de desenvolvimento rural é muito mais restrita e fragmentada. Aqui, a crise da dívida externa dos anos 1980, os ajustes estruturais dos 1990, o abandono das políticas específicas de desenvolvimento, bem como o incremento das exportações de commodities, debilitaram seriamente as possibilidades de um novo projeto de desenvolvimento rural (FAVARETO, 2007).

4. O processo de estruturação urbana em São Paulo e a emergência de distintas espacialidades rurais na rede urbana paulista

Se as possibilidades de desenvolvimento tanto urbano como rural têm seus limites “fixados pelas condições historicamente situadas de sua produção” (HARVEY, 1992, p.308), uma investigação da maneira como se deu a formação capitalista de cada região paulista é de fundamental importância à compreensão da heterogeneidade das populações e dos espaços rurais em São Paulo. Nessa exposição, temos a pretensão de explorar a relação entre os processos históricos que estruturaram cada porção do Estado de São Paulo e as características de sua população rural.

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Para começar, é necessário ressaltar a peculiaridade do sistema urbano paulista, cuja rede de cidades emergiu de processos econômicos anteriores à indústria (GONÇALVES, 1998). Foi a necessidade do complexo cafeeiro de integrar distintas regiões que, na trilha das estradas de ferro, levou à formação de uma embrionária rede de cidades, na qual os “nós urbanos – dotados sempre de serviços portuários – recolhiam e canalizavam a produção do interior para o mercado externo ao mesmo tempo em que acolhiam e distribuíam para o mercado interno regional os bens importados que vinham do exterior” (GONÇALVES, 1998, p.2).

Os anos 1920 despontam-se, no entanto, como um divisor de águas no processo de ocupação capitalista do território paulista. Nessa década, as sucessivas crises de superprodução do café, somadas ao colapso do comércio internacional por ocasião da Primeira Guerra Mundial, forçaram a expansão da fronteira agrícola rumo ao oeste do Estado (Figura 1). Nessas novas zonas, a Fronte Pioneira deixa de se pautar na monocultura cafeeira e passa a assentar-se em bases mais flexíveis. Com destaca Rodrigues (2006, p.18):

[…] para manter seus domínios ou recuperar o que fora perdido com a crise, o fazendeiro cafeicultor precisava se transformar também no fazendeiro de algodão, milho e arroz, ou ainda, no empreendedor imobiliário […], parcelando e loteando as terras que possuía como reserva de capital.

Dessa maneira, longe de sustentar uma crescente homogeneização do espaço, a expansão da fronteira agrícola reforçou e estruturou uma primeira divisão sócio-espacial

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Região de ocupação madura: eixo Campinas/Ribeirão Preto

Região de ocupação antiga: Vale do Paraíba, Baixada

Santista e Grande São Paulo

Região de ocupação tardia: Oeste Paulista

Figura 1Evolução da divisão político-administrativa

Estado de São Paulo – 1920/1997

Fonte: Fundação Seade. Memórias das Estatísitcas Demográficas

do trabalho em São Paulo colada nos três tempos da dinâmica cafeeira de incorporação de terras, que “ia continuamente definindo uma velha zona, outra madura e uma nova zona” (NEGRI; GONÇALVES; CANO, 1988, p.7). Na primeira (Vale do Paraíba, Baixada Santista e Grande São Paulo), onde a já significativa concentração populacional e os antigos recursos da cafeicultura permitiram a instalação de uma densa infraestrutura urbana, despontava-se uma indústria de bens de consumo. Nessa região, a urbanização crescente e a baixa fertilidade do solo acabaram por reduzir a atividade agrícola à produção de frutas e hortaliças (TARTAGLIA; OLIVEIRA, 1988).

Já nas zonas de ocupação madura (eixo Campinas/Ribeirão Preto), a crise do café abria portas para o cultivo de matérias-primas para o emergente processo de industrialização, bem como para outras culturas exportáveis (algodão, cana e, mais tarde, a laranja). Por fim, nas novas zonas – o Oeste Pioneiro – a ocupação deu-se de forma débil e desordenada, subordinada ao ordenamento empresarial das companhias loteadoras e colonizadoras que dominavam o mercado de terras na região (NEGRI; GONÇALVES; CANO, 1988). Nessa região, inicia-se um processo de ocupação baseado na pequena propriedade familiar, com baixos níveis de capitalização e voltado principalmente à produção de alimentos para consumo interno (TARTAGLIA; OLIVEIRA, 1988).

Assim, são as ferrovias e a especulação imobiliária as grandes definidoras do processo de estruturação urbana em toda a porção oeste do Estado de São Paulo, fenômeno cuja principal característica foi a criação de inúmeros pequenos patrimônios onde se comercializava o excedente de uma produção agrícola voltada sobremaneira ao abastecimento local (VASCONCELOS, 1992; RODRIGUES, 2006). A elevada densidade de centros urbanos no Oeste Paulista é, portanto, corolário de seu próprio processo de ocupação. A grande demanda por bens e serviços (resultado da chegada maciça de imigrantes), associados aos limitados alcances espaciais (praticamente restritos ao transporte ferroviário e animal), reivindicava a fundação de uma série de núcleos urbanos de apoio à população rural próximos entre si. Floresce, assim, uma densa rede de cidades com numerosos pequenos centros que se sucediam tal como “contas de um rosário ao longo das ferrovias” (MONBEIG, 1998, p.125).

Os processos acima descritos foram resgatados na intenção de evidenciar a interação entre diferentes condicionantes sociais na conformação do sistema urbano paulista. Assentada em processos históricos diversos, a rede de cidades resultante deu sustentação a economias apoiadas em recursos igualmente diferenciados, com distintos pesos da indústria e da agricultura (NEGRI; GONÇALVES; CANO, 1988). Em consequência, o Estado de São Paulo apresenta-se como uma colcha de retalhos sobre a qual se conformam relações rurais/urbanas com sentidos variados. Temos, assim, o rural próximo ou acessível (VEIGA, 2006), típico das regiões densamente habitadas do sudeste do Estado, com forte tendência à conurbação urbana (Mapa 1); o rural dos complexos agroindustriais, predominante na porção central e nordeste; o rural localizado em áreas de recente expansão do agronegócio (Oeste Paulista); e, por fim, o rural das unidades de conservação ambiental e toda a zona sul – especialmente sudoeste – de São Paulo (Mapa 2).

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Cada uma dessas espacialidades rurais está articulada a dinâmicas sócio-demográficas específicas. Nas regiões de ocupação antiga, a tendência à conurbação

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Mapa 2Distribuição da população por setor censitário

Estado de São Paulo - 2010

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010; Ministério do Meio Ambiente

1 ponto = 100 pessoas

levou a formas inéditas de uso e ocupação dos espaços rurais do entorno metropolitano e de aglomerações urbanas. Em linhas gerais, é esse o rural das ‘novas’ atividades agrícolas de Silva (1999), marcado pela expansão urbana, pela periferização da população (BAENINGER, 1997) e pela incorporação de novos habitantes, em sua maioria profissionais liberais urbanos e aposentados em busca de amenidades e lazer (WANDERLEY, 2000). Característico de regiões com interações espaciais e demográficas predominante do tipo complementaridade (CAIADO; SANTOS, 2004), esse rural tem assistido à expansão de bens e serviços antes considerados exclusivos do urbano. É nesse contexto que – como alerta Silva (1999) – está cada vez mais difícil delimitar o que é rural do que é urbano, sendo que, do ponto de vista espacial, ambos os espaços só podem ser entendidos pela existência de um continuum.

Já o rural das zonas de ocupação madura, também integrado pelos históricos eixos de desenvolvimento do Estado de São Paulo (construídos à luz dos planos nacionais de desenvolvimento dos anos 1970), o aumento de produtividade decorrente da modernização agrícola gerou divisas drenadas pelas cidades do entorno, onde se conformou um processo de industrialização voltado para dentro (NEGRI; GONÇALVES; CANO, 1988). Atingido pelos fatores de mudança (SINGER, 1980), esse é o rural mais capitalizado do Estado, onde a industrialização do processo de produção da agricultura e a consequente formação dos complexos agroindustriais ocorreram de maneira mais plena e evidente (TARTAGLIA; OLIVEIRA, 1988; KAGEYAMA, 1987).

Nos territórios de formação capitalista tardia (Oeste Pioneiro), afetado basicamente pelos efeitos de estagnação (SINGER, 1980) da modernização agrícola fordista, temos a presença de inúmeros pequenos municípios nos quais uma agricultura de base familiar pouco capitalizada vem cedendo à expansão das commoditites. Nesse contexto, a histórica vocação agrícola da região ganha outros contornos: de produtora de alimentos para abastecimento interno, essa região tem se transformado – em ritmo surpreendente – em território da produção internacional de insumos primários. A recente formação dos complexos agroindustriais guarda, contudo, importantes especificidades se comparada à era fordista, de caráter eminentemente nacional. Sob os marcos da acumulação flexível e da financeirização da produção (HARVEY, 1992), a contemporaneidade padece do que Giddens (1991) denominou de mecanismos de desencaixe, no qual a produção, agora orientada para o mercado global, não mais contempla as necessidades internas das cidades (BAENINGER, 2012).

Nesse “outro” rural do Oeste Paulista (DEMÉTRIO, 2013), assistimos ao redesenho das relações rurais/urbanas as quais passam a refletir os efeitos desconexos partilhados pela dinâmica econômica desses dois espaços: enquanto o rural abre-se cada vez mais às demandas internacionais, seus centros urbanos permanecem cumprindo a função de suprimento de bens e serviços básicos à população local. Marcado por setores rurais tradicionais, com menor tendência à conurbação urbana, suas interações demográfico-espaciais são, em linhas gerais, de subordinação, fenômeno típico de redes urbanas pouco adensadas (CAIADO; SANTOS, 2004). No âmbito dos processos de redistribuição da população, as recentes transformações na estrutura produtiva têm levado à constituição de uma força de trabalho excedente móvel (BAENINGER, 2012) que – diante do esgotamento das fronteiras agrícolas e do aprofundamento dos processos de reestruturação urbana – circula pelos próprios municípios da região, seja no mercado formal o informal, nas ocupações urbanas ou rurais.

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Por fim, a análise do rural da porção sudoeste de São Paulo (região com indicadores sociais mais deprimidos do Estado) demanda maior revisão bibliográfica que explore a relação entre o seu processo de ocupação, a presença de uma série de unidades de conservação e as especificidades de sua dinâmica econômico-populacional. Certamente, esse fenômeno apresentar-se-á bastante diferente do verificado para o Oeste Paulista, onde quase não existem unidades de conservação que podem dificultar o desenvolvimento de uma atividade agrícola baseada no latifúndio e na monocultura.

5. Do conceitual ao operacional: dificuldades metodológicas ao estudo das populações rurais em São Paulo

Desde pelo menos a década de 1970, as transformações ocorridas tanto no rural como no urbano animaram o debate em torno dos problemas de classificação de situação de domicílio resultantes de concepções engessadas dessas categorias, as quais “já não são suficientes para explicar os complexos processos socioeconômicos em curso no Estado de São Paulo” (CAIADO; SANTOS, 2003, p.115). Para Veiga (2003), as precárias definições de rural e urbano adotadas pelo governo brasileiro (a mesma desde 1938) despontam-se como o primeiro e mais fundamental obstáculo à análise das populações rurais no Brasil. Por ser uma prerrogativa dos municípios a definição seus perímetros urbanos e rurais, essa classificação pode não apenas variar de uma região a outra, como também depender de “injunções e interesses que, como se sabe, nem sempre obedecem a uma lógica racional ou funcional” (CUNHA, 2005, p.13).

Nas regiões beneficiadas pelo processo de interiorização do desenvolvimento fordista, a tendência à conurbação repercutiu na surpreendente recuperação das taxas de crescimento da população rural do entorno metropolitanos e de aglomerações urbanas, principalmente para o período 1991/2000 (BAENINGER, 1997; Tabela 1). Diante dessa evidência empírica, Rodrigues (2001) propõe-se a investigar as causas dessa reversão à tendência de esvaziamento da população rural dessas áreas. Embora reconheça a importância dos chamados neorurais (WANDERLEY, 2000) e das ‘novas’ atividades agrícolas (SILVA, 1999) na dinamização da economia rural das regiões mais desenvolvidas, a autora acredita na hipótese de erro de classificação, problema por meio do qual áreas demarcadas pela legislação municipal como rurais passam a ser ocupadas do ponto de vista urbano (RODRIGUES, 2001). Essa hipótese é reiterada ao se verificar a grande disparidade na taxa de crescimento da população rural da Região Metropolitana de São Paulo entre 1980/2010, muito provavelmente em função da reclassificação (Tabela 1).

A fim de denunciar essa “falácia classificatória”, desde 1991, o IBGE passou a contar com uma maior desagregação da informação sobre situação de domicílio, “possibilitando que a análise dos dados pudesse ir além da simplificada dicotomia rural-urbana” (CUNHA, 2005, p.13). A partir de então, os setores censitários são classificados em três categorias de urbano e quatro situações de rural. No primeiro caso, distinguem-se as áreas urbanas normais, as urbanas não urbanizadas (aquelas legalmente definidas como urbanas, mas ocupadas com atividades agropecuárias) e o urbano isolado (setores não contíguos ao núcleo do município). Já no lado rural, definem-se os aglomerados rurais-extensão urbana (cuja distância deve ser inferior a 1 km do perímetro urbano), os aglomerados rurais isolados (povoados ou núcleos) e os

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setores rurais exclusive aglomerados (o rural tradicional) (IBGE, 1988 apud SILVA, 1999).

nº % nº % nº % nº % 1980/91 1991/2000 2000/2010402.583 14,20 332.731 14,63 758.476 31,13 224.857 13,42 -1,72 9,59 -11,4582.530 2,91 88.998 3,91 89.508 3,67 76.996 4,60 0,69 0,06 -1,495.129 0,18 5.239 0,23 6.028 0,25 3.456 0,21 0,19 1,57 -5,41

151.407 5,34 138.567 6,09 140.020 5,75 133.194 7,95 -0,80 0,12 -0,50428.923 15,13 406.355 17,86 405.656 16,65 378.770 22,61 -0,49 -0,02 -0,68532.007 18,77 438.819 19,29 385.863 15,84 318.262 19,00 -1,74 -1,42 -1,9176.938 2,71 59.767 2,63 38.996 1,60 30.946 1,85 -2,27 -4,63 -2,29

134.687 4,75 92.107 4,05 63.465 2,60 59.195 3,53 -3,40 -4,05 -0,69278.147 9,81 181.781 7,99 141.900 5,82 118.057 7,05 -3,79 -2,71 -1,82122.103 4,31 82.587 3,63 61.512 2,52 57.860 3,45 -3,49 -3,22 -0,61204.894 7,23 134.359 5,91 115.046 4,72 93.193 5,56 -3,76 -1,71 -2,08193.312 6,82 131.187 5,77 93.394 3,83 72.796 4,34 -3,46 -3,71 -2,4696.973 3,42 83.303 3,66 65.631 2,69 47.255 2,82 -1,37 -2,61 -3,2355.060 1,94 43.518 1,91 31.828 1,31 22.651 1,35 -2,12 -3,42 -3,3469.705 2,46 55.750 2,45 39.051 1,60 37.989 2,27 -2,01 -3,88 -0,28

2.834.398 100,00 2.275.068 100,00 2.436.374 100,00 1.675.477 100,00 -1,98 0,76 -3,67Fonte: Fundação SEADE. Informação dos Municípios Paulistas.

R. A. de Presidente Prudente

Regiões Administrativas

Região Metropolitana de São PauloR. A. de RegistroR. A. de SantosR. A. de São José dos CamposR. A. de SorocabaR. A. de CampinasR. A. de Ribeirão PretoR. A. de BauruR. A. de São José do Rio PretoR. A. de Araçatuba

R. A. de MaríliaR. A. CentralR. A. de BarretosR. A. de Franca

Estado de São Paulo

1991 2000 2010 Taxa de crescimento (em % a.a.)

Tabela 1Evolução da população rural segundo Regiões Administrativas - Estado de São Paulo

1980, 1991, 2000 e 2010

1980

Como era de se esperar, os setores rural-extensão urbana tratam-se de um fenômeno típico das regiões metropolitanas e de aglomerações urbanas do sudeste do Estado (Mapa 3). Na análise da população desse rural, além dos novos habitantes descritos por Wanderley (2000), Silva (1999, p.53) julga necessário considerar também a “demanda da população de baixa renda por terrenos para a autoconstrução de suas moradias em áreas situadas nas cercanias das cidades”. Desse modo, o crescimento das ocupações não-agrícolas no rural brasileiro não pode ser associado apenas à paridade em termos de infraestrutura entre o rural e o urbano, tal como na Europa e nos EUA (WANDERLEY, 2000).

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Mapa 3Número de setores rural-extensão urbana, segundo municípios

Estado de São Paulo - 2010

No tocante à distribuição dos setores rural-exclusive aglomerados, verifica-se a sua dispersão por todo o território estadual, ainda que o município de São Paulo concentre grande parte deles. Observa-se, também, que os poucos municípios onde não há setores assim classificados encontram-se, em sua maioria, no entorno dessa cidade (Mapa 4).

O Mapa 5 aponta, por sua vez, o volume de população rural segundo município. Com exceção do Vale do Ribeira (porção Sudoeste do Estado), todos os outros municípios com população rural superior a 20 mil localizam-se em importantes aglomerações urbanas (Campinas, Sorocaba, São José dos Campos e Grande São Paulo). Ou seja, o problema de classificação está claramente inserido nesse contexto.

A análise do Mapa 5 e da Tabela 2 mostra ainda que a maioria dos 561 municípios paulistas com população rural inferior a 5 mil habitantes estão na porção oeste e norte do Estado. Na avaliação da população rural dessas localidades – grande parte delas situadas à margem dos eixos de desenvolvimento –, as principais limitações das fontes de dados censitários remetem às conotações políticas da definição de urbano e rural vigente no Brasil, problema que a inovação trazida pelo IBGE não é capaz de contornar (CUNHA, 2005). Nas palavras de Caiado e Santos (2006, 4), “a maior abertura das informações não resolveu o problema principal, que é de considerar urbana toda sede de município, independente de sua função, dimensão ou situação”. Veiga (2003) denomina de cidades imaginárias municípios de tamanho irrisório – simples aglomerações de agricultores –, apontando a falsa verdade que esse recorte produz ao apresentar a população brasileira como sendo 81% urbana, de acordo com o Censo de 2000 (84%, segundo as estimativas de 2010).

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Mapa 4Número de setores rural-exclusive aglomerados, segundo municípios

Estado de São Paulo - 2010

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010.

Até 5.000De 5.000 a 10.000De 10.000 a 20.000Mais de 20.000

56161185

População rural Número de municípios

Tabela 2Número de municípios por volume de população rural

Estado de São Paulo - 2010

Com uma perspectiva semelhante ao dos autores acima citados, Abramovay (2000) expõe o argumento segundo qual a autoridade concedida às prefeituras em definir suas próprias áreas rurais e urbanas permite que, “desde que haja extensão de serviços públicos a um certo aglomerado populacional, ele tenderá a ser definido como urbano: é assim que, no Brasil, as sedes de distritos com centenas ou dezenas de casas são definidas como ‘urbanas’” (ABRAMOVAY, 2000, p.4). Como resultado, o rural tende a ser apreendido, a priori, pela carência, “o que não pode ser adequado sob qualquer ponto de vista” (ABRAMOVAY, 2000, p.4). O lugar institucional do rural vinculado à pobreza e ao subdesenvolvimento é, portanto, produto de nossas classificações oficiais, as quais, de antemão, já o considera como uma “expressão, sempre minguada, do que vai restando das concentrações urbanas” (ABRAMOVAY, 2000, p.3).

De modo a driblar essa limitação de nossas fontes de informação, Abramovay (2000) aposta numa definição territorial ou regional de rural, na qual o importante não é saber se tal localidade ou município é urbano ou rural, segundo os critérios estipulados, mas se, em termos globais, uma região é ou não rural, ainda que ela integre grandes e médios municípios cuja dinâmica de seu mercado de bens e serviços permita, a justo título, que sejam considerados como urbanos (ABRAMOVAY, 2000). Nesse sentido,

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Fonte: FIBGE, Censo Demográfico 2010 - Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/Unicamp - FAPESP/CNPq)

Mapa 5Volume de população rural, segundo municípios

Estado de São Paulo - 2010

uma abordagem territorial é útil não apenas para pensar o rural das regiões mais desenvolvidas do país, onde grande parte dos rurais dedica-se às atividades não agrícolas, mas também

[…] pode revelar dimensões inéditas das relações cidade-campo e sobretudo mostrar dinâmicas regionais em que as pequenas aglomerações urbanas dependem de seu entorno disperso para estabelecer contatos com a economia nacional e global, seja por meio da agricultura, seja por outras atividades (ABRAMOVAY, 2000, p.27).

Em concordância com a perspectiva de análise desse estudo, o autor prossegue:

O meio rural só pode ser compreendido em suas relações com as cidades, com as regiões metropolitanas e também com os pequenos centros em torno dos quais se organiza a vida local. É crucial o papel destes pequenos centros na dinamização das regiões rurais (ABRAMOVAY, 2000, p.27).

Ao pensar meios de como avançar teórica e metodologicamente nos estudos sobre população rural, Cunha (2005) ressalta as possibilidades abertas pelos SIGs. Como expõe esse autor:

Com o desenvolvimento dos Sistemas de Informação Geográfica e da diversificação dos dados espaciais (imagens de satélite, fotos aéreas, mapeamento vai GPS, etc.) pode-se pensar em importantes avanços analíticos. Combinando informações de distintas naturezas, seria possível chegar a uma melhor configuração dos assentamentos humanos e, quem sabe, ir muito além da velha dicotomia rural/urbana e da visão da expansão urbana a partir das ‘engessadas’ divisões administrativas municipais (CUNHA, 2005, p.16).

Informado por uma concepção territorial de rural, e como exercício de aplicação de um SIG, a parte final desse trabalho tem a pretensão de explicitar a heterogeneidade das populações rurais em São Paulo, a partir da visualização da distribuição espacial de três estimativas demográficas: razão de sexo, razão de dependência e índice de envelhecimento. Em primeiro lugar, recorremos a uma breve discussão sobre os Sistemas de Informação Geográficas para, em seguida, apresentar os dados.

6. O que é um SIG e para que serve?

Um SIG consiste em uma base de dados arranjada, de maneira que os dados espaciais e os atributos ligados às localizações sejam facilmente relacionados (CUNHA e JAKOB, 1994). Ou seja, “pode-se dizer que um GIS [ou SIG, em português] permite estabelecer uma ‘ligação’ direta e imediata entre um conjunto de dados e sua localização no espaço” (CUNHA e JAKOB, 1994, p.7). A partir dessa técnica seria possível, portanto, identificar padrões espaciais de ocorrência de um determinado evento. Para Logan, Zhang e Xu (2010) a percepção de um relacionamento espacial na distribuição de um fenômeno é o objetivo central do SIG.

A análise da distribuição de um determinado evento no espaço esbarra, no entanto, em dois problemas fundamentais: o problema da ‘unidade de área modificável’ e da falácia ecológica (BUENO e D´ANTONA, 2012). O primeiro deles está relacionado ao efeito escala, isto é, ao fato de obtermos inferências diferentes em

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escalas diferentes. Se qualquer estudo sobre dependência espacial baseia-se no pressuposto de que coisas semelhantes tendem a estar mais próximas umas das outras (Primeira Lei da Geografia de Tobler), é razoável supormos que a relação entre dois eventos diminua gradualmente com o aumento da distância entre eles. Por conta disso, um padrão espacial observado em uma certa escala pode desaparecer ao adotarmos outra escala maior ou menor. Já o segundo problema discriminado ocorre quando análises baseadas em dados agregados levam a conclusões diferentes daquelas baseadas em dados individuais (BUENO e D´ANTONA, 2012).

Segundo Bueno e D´Antona (2012, p.4) esses empecilhos “são inerentes aos dados agregados em áreas, não podendo ser removidos, nem tampouco ignorados”. Como forma de minimizá-los, esses autores recomendam o uso de dados no menor nível de agregação possível o que, por vez, incide em outra questão: o problema da privacidade das informações (BUENO e D´ANTONA, 2012). Haja vista a dificuldade de encontrarmos microdados georreferenciados, tanto o texto de Logan, Zhang e Xu (2010), como o trabalho de Bueno e D´Antona (2012) apresentam técnicas de análise que validam, do ponto de vista estatístico, a distribuição de agrupamentos com feições parecidas. Se o objetivo é a identificação de clusters a partir de dados agregados em polígonos (que podem ser setores censitários, bairros, municípios, etc.), os autores apresentam o Índice Local de Moran como a melhor opção. Essa técnica mede vizinhança, ou seja, avalia a distribuição de eventos em determinado espaço, de modo a identificar os locais onde existem aglomerados de áreas com elevados valores cujos polígonos vizinhos apresentam também valores significativamente altos (e ainda áreas com baixos valores circundados por polígonos com valores igualmente baixos) (BUENO e D´ANTONO, 2012). Para Logan, Zhang e Xu (2010), a vantagem dessa ferramenta é construir mapas que não são apenas descritivos, mas que apresentem uma base estatística por meio do qual se pode assegurar a existência de um cluster, contornando assim os problemas relacionados à escala e à falácia ecológica.

7. Populações rurais em São Paulo: algumas evidências empíricas

Na observação da distribuição espacial da primeira variável selecionada (razão de sexo), o Mapa 6a indica grande desequilíbrio na distribuição por sexo da população rural. Embora esse fenômeno seja observado em quase todo o território estadual, alguns municípios localizados sobretudo na porção oeste do Estado registraram uma RS exageradamente desequilibrada, com mais de 1.000 homens por mulher. O artigo de Camarano e Abramovay (1997) aponta algumas hipóteses do porquê a população rural brasileira ser predominantemente masculina. Segundo esses autores, tal característica é resultado dos diferenciais por sexo da emigração rural/urbana, processo no qual a maior escolaridade das mulheres pode favorecer a inserção desse grupo no mercado de trabalho urbano.

No entanto, essa hipótese parece não ser suficiente para explicar uma RS exageradamente desequilibrada (como observado em alguns municípios do Oeste Paulista). Nesses casos, o trabalho de Cescon (2012) oferece explicações mais robustas. Para essa autora, a existência de penitenciárias no rural de pequenos municípios dessa região repercute não apenas em um inchaço artificial da população dessas cidades, como também a conformação de uma pirâmide etária de contornos bastante específicos, em decorrência da participação do grupo de homens jovens adultos.

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O Mapa 6b foi construído a partir da aplicação da técnica de correlação espacial Índice Local de Moran sobre o mapa anterior. Nesse procedimento, não se considerou nenhum raio de distância, bem como seguimos o padrão sugerido pelo ArcGis (versão 10) (inverse distance, euclidean distance, no estandardization). Observa-se a identificação de pequenos clusters de municípios com alta RS no oeste e centro-oeste do Estado.

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Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010.

Mapa 6bÍndice Local de Moran

Razão de sexo da população rural nos municípios paulistas 2010

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010.

Mapa 6aRazão de sexo da população rural nos municípios paulistas

2010

Já os mapas sobre razão de dependência da população rural (Mapas 7a e 7b) mostram clusters de municípios com baixa RD no oeste e centro-oeste do Estado (fenômeno provavelmente relacionado à presença de penitenciárias). A identificação de clusters com alta RD no extremo sudoeste paulista pode remeter, por sua vez, à alta fecundidade dessa região (Tabela 3).

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Mapa 7aRazão de dependência da população rural nos municípios

paulistas - 2010

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010.

Mapa 7bÍndice Local de Moran

Razão de dependência da população rural nos municípios paulistas 2010

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010.

1980 1991 2002 20093,4 2,3 1,9 1,73,4 2,3 2,0 1,85,5 3,2 2,4 2,03,4 2,3 1,9 1,83,8 2,5 1,9 1,74,0 2,7 2,0 1,73,3 2,3 1,7 1,63,3 2,3 1,8 1,63,5 2,3 1,7 1,63,2 2,3 1,7 1,53,3 2,1 1,5 1,63,5 2,2 1,7 1,63,6 2,3 1,7 1,63,2 2,3 1,6 1,53,4 2,3 1,6 1,63,3 2,4 1,9 1,7

Fonte: Para os dados de 1980, 1991 e 2001: SEADE, 2003.

Para os dados de 2009: SEADE, 2011.

RA AraçatubaRA Presidente PrudenteRA Marília

Regiões Adminitrativas

RA Ribeirão PretoRA Bauru

RA CentralRA BarretosRA Franca

Tabela 3Taxa de Fecundidade Total

Regiões Administrativas do Estado de São Paulo1980-2009

Estado de São PauloRegião Metropolitana de São PauloRA Registro

Taxa de Fecundidade Total (TFT)

RA SantosRA São José dos CamposRA SorocabaRA Campinas

RA São José do Rio Preto

Por fim, a distribuição espacial da variável índice de envelhecimento nos revela uma das características mais marcantes da população rural do Oeste Paulista: o envelhecimento. Acreditamos que essa especificidade esteja relacionada tanto à baixa fecundidade da região (Tabela 3), como ao caráter tardio de sua ocupação capitalista. Devido ao fato desse processo ser posterior aos aos anos 1940, muitas famílias trazidas pela fronteira agrícola ainda sobrevivem no rural desse território.

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Mapa 8aÍndice de envelhecimento da população rural nos municípios

paulistas - 2010

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010.

8. Considerações finais: uma agenda de pesquisa

Os argumentos acima expostos permitem melhor explorar a relação entre as especificidades partilhadas por cada região do Estado de São Paulo e as características de sua população rural. Nessa discussão, a dimensão espacial desponta-se como um elemento fundamental não apenas na desconstrução de concepções engessadas de rural e urbano, como também um recurso teórico-metodológico capaz de apreender a heterogeneidade do rural paulista.

Muitas são as questões a serem perseguidas. Aprofundar o estudo da relação entre os processos históricos que estruturam as diferentes regiões paulistas e as particularidades de suas populações rurais pode, por exemplo, servir de sustentação a uma tipologia do rural de São Paulo, por meio do qual seja possível pensar que dinâmicas demográficas distintas relacionam-se a dinâmicas econômicas e migratórias específicas e, portanto, a uma lógica de reprodução também particular.

9. Referências bibliográficas

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Mapa 8bÍndice Local de Moran

Índice de envelhecimento da população rural nos municípios paulistas - 2010

Fonte: Fundação IBGE. Censo Demográfico 2010.

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