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PROGRESSO NA VIDA ESPIRITUAL

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PROGRESSO NA VIDA ESPIRITUAL

POR

FREDERICK WILLIAM FÁBER

TRADUÇÃO SEGUNDO O ORIGINAL INGLÊS

DE

MARIANA NABUCO

SEGUNDA EDIÇÃO REVISTA

OCCURRAMOS OMNES IN UNITA-TEM FIDEI, ET AGNITIONIS FILII DEI, IN VIRUM PERFECTUM IN MENSURAM JETATIS PLENI-TUDINIS CHRISTI. VERITATEM FACIENTES IN CHARITATE, CRESCAMUS IN ILLO PER OMNIA, QUI EST CAPUT, CHRISTUS.

AD EPHESIOS.

PETRÓPOLISEDITORA VOZES LTDA.

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•II

I M P R I M A T U R POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR. BISPO DE NITERÓI, D. JOSÉ PEREIRA ALVES. PETRÓPOLIS, 8 DE AGOSTO DE 1939. FREI HELIODORO MULLER, O F M

AMEU BEM-AVENTURADO PRÍNCIPE E PADROEIRO,

SÃO RAFAELUM DOS SETE QUE ESTÃO SEMPRE DIANTE DE DEUS,

GLORIOSO, BENIGNO, BELO, A FIGURA DA SUA PROVIDÊNCIA, MÉDICO, GUIA, E ALEGRIA DAS ALMAS.

COMPANHEIRO DOS MORTAIS PEREGRINOSE ANJO DAS SUAS VICISSITUDES, PELO QUAL SÃO

CONFERIDOS AOS HOMENS ERRANTES O DESVELO DO PAI,O DOM DE SARAR DO FILHO E O JÚBILO DO ESPIRITO

SANTO, COM O PODER EFICAZ DE UM ESPIRITO ANGÉLICO E O AMOR COMPASSIVO E TOCANTE DE UM

CORAÇÃO HUMANO E AFÁVEL.

O ORATÓRIO, LONDRES, FESTA DE S. RAFAEL,

MDCCCLIV ;

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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EPISTOLA PRELIMINARao

REV. PADRE W. A. HUTCHINSON, do Oratório de Londres

Meu caro Padre Antônio.Num passeio à beira-mar em Lancing, há quatro

anos, expus algumas das razões pelas quais nada publicaria sobre a vida espiritual antes de deter-minada época.

Esta já passou, e aqui está o meu livro. Pouco tenho a dizer em matéria de prefácio, e este pouco será em forma de carta, que ficará como uma recordação de mútua afeição, o que a ambos nos dará prazer.

Lembrar-nos-á os nove anos que passámos juntos e que aprouve a Deus se assemelhassem a uma longa vida, tais as múltiplas provações e curiosas vicissitudes.

Dois são os motivos que se podem ter em vista ao escrever um livro e que devem influir profundamente sobre o estilo. O primeiro é a impressão que terá o leitor, à medida que lê. O segundo é apresentar à sua memória coisas que deverá reter, bem como o modo mais fácil de recordá-las. 1 A presente obra visa este último fim e por conseguinte será tão breve quanto o permitir a clareza e tão conciso quanto o admitir um assunto tão vasto e tão fácil de ser mal interpretado.

Não ouso presumir que não encontre muitos contraditores, tratando-se de obra tão grande, on-

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8 EPISTOLA PRELIMINAR

de cada frase, e, às vezes, cada parte da frase, é um ditame sobre assuntos em que todo católico piedoso já tem opinião mais ou menos formada.

Mas tenho encontrado sempre tanta indulgên-cia e generosidade por parte do público, que não posso crer que me venha a ser agora de todo negada, tanto mais que no livro não há, como se verificará, uma só palavra de crítica desfavorável aos homens ou às coisas. Só disso me ufano. Quanto ao resto, nada fiz senão tratar de harmonizar a antiga espiritualidade da Igreja com a moderna, inclinando-me talvez um tanto pela primeira, apre-

sentando-a aos católicos da Inglaterra numa forma inglesa, traduzindo-a em pensamentos e sentimen-tos, assim como em linguagem, indígenas.

Muito do material deste livro observou fielmente o preceito de Horácio de Nonum prematur in annum e o resto levou nove anos para amadurecer. Não obstante, é fácil errar na teologia espiritual e ex-traviar-se à sombra das proposições condenadas. Não é, por conseguinte, ligar importância exage-rada a uma coisa insignificante, dizer que retrato de antemão, sem reservas e do modo mais am-plo, qualquer pensamento ou expressão

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que não esteja de acordo, não só com as decisões da Santa Sé, como também com os escritores aprovados das nossas Ordens religiosas e das escolas de Teologia. Possa Deus estar com esta minha obra quando ela exprimir, sem exagero e com sinceridade, o espírito de sua Igreja.

Creia-me sempre, caro Padre Antônio, seu afetu

oso amigoFred. W. Fáber

O Oratório, Londres, Festa de são Hugo 1854.

PREFÁCIO A TERCEIRA EDIÇÃO INGLESA

Tive ocasião, nos cinco anos decorridos desde a primeira publicação deste

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livro, de examinar de modo prático as doutrinas que encerra.

Continuei o estudo da teologia ascética com toda diligência e constância. Esforcei-me para que esse acréscimo de experiência e de estudo redundasse em proveito da presente edição, e, com este fim em mira, submeti todo o trabalho a uma revisão cabal e minuciosa.

Moderei certas proposições e revigorei outras,

mais tímidas, por ter uma confiança sempre crescente na sua veracidade. Ampliei certas passa-gens, para evitar equívocos. Umas, por obscuras, foram esclarecidas ao serem expressas de outro modo. Mas a maior parte das modificações são de caráter puramente literário. Do pouco que acres-centei, só um trecho é de considerável extensão.

Arundel, Festa de são Hugo, 1859.

10 PREFÁCIO

Quin etiam juniores, quamquam theologicis uteris imbuti, talem debent reverentiam senioribus iis, quibus vita cum scientia concordat, ut vix propter aliquas novas suasiones quantumc

umque apparen-tes pertinax unquam feratur cito contra determi-nationes eorundem assertio. Virtus quippe, qualem habebant genitam ex multis experientiis longe cer-tius arte

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judicat et operatur.

Per paucam instructionem intellectus, in scien-tiis prsesertim divinis, causantur nonnunquam erro-res, in eis, qui se totos devotioni tradiderunt, dum voluerunt plus sap ere, quam sibi satis erat.

Gerson

Consultius nihil fieri a nobis potest quam ut nostras semper opiniones et voluntates, linguas pennasque aptemus ei disciplina?, quas in universali viget Ecclesia eo aevo, quo nos summi Providentia numinis collocavit.

Thomassinus

Noli eos imitari, qui nullum legendi ordinem servant; sed quod forte oeeurrerit, quodque casu repererint, legere gaudent: quibus nihil sapit, nisi quod novum est, et inauditum. Consulta enim, et vetera

omnia, quantum libet utilia, fastidiunt. Tanta instabilitas proeul a te sit; ipsa enim non promovet, sed dispergit spiritum; et periculose la- • borat, qui hoc morbo vitiatus est.

Dacrianus

CAPITULO I

Dos

verdadeiros sinais de progresso na Vida Espiritual

A vida espiritual é toda de contradições; isto, em outras palavras, quer dizer que a natureza humana é uma natureza decaída. Uma das maiores contradições, e talvez das mais difíceis de

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manejar, é a seguinte: na espiritualidade é im-portantíssimo termos um profundo conhecimento de nós mesmos e, ao mesmo tempo, pensarmos muito pouco em nossa pessoa, o que não é muito fácil de conciliar. Menciono esta dificuldade, de início, porquanto, no correr deste tratado, teremos de olhar muito para nós mesmos, e, consequentemente, correremos risco de pensar também muito em nós; e disto poderia advir maior mal, do que, daquilo, bem.

Nenhum conhecimento nos pode ser mais util que saber a situação em que

estamos perante Deus. Tudo depende disso. E' para nós a ciência das ciên-cias, mais do que a ciência do bem e do mal que tentou tão violentamente Adão e Eva. Se estamos bem com Deus, tudo está bem conosco, ainda que as mais negras adversidades nos cerquem. Se não estamos bem com ele, nada está bem conosco, esteja embora aos nossos pés o que o mundo possue de melhor e de mais brilhante. E' natural que de-sejemos saber se progredimos na vida espiritual, nada havendo de mal, nem sequer de imperfeito

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neste desejo, conquanto não seja demasiado. Ser-nos-ia imensa consolação termos razões para supor que

adiantamos. Se, pelo contrário, tivermos motivos para crer que haja algo de errado, pelo menos nos será

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uma segurança e uma garantia ver què não continuamos nas trevas numa matéria que nos toca mais de perto que qualquer outra. O amor gosta de saber se é aceito e retribuido e, sendo Deus o seu objeto, se não é rejeitado como me-rece ser. O temor deseja esse mesmo conhecimento, por causa dos interesses eternos que estão em jogo.

Não podemos, no entanto, por mais que o dese-jemos, ter completo conhecimento do nosso pro-gresso na vida espiritual, e isto tanto pelas razões que pertencem a Deus, como pelas nossas. Quanto a Deus, ele gosta de ocultar os seus desígnios. Quanto a nós, o amor próprio

exagera o pouco que fazemos. Nem sabemos, com certeza, se esta-mos em estado de graça, ou, como diz a Escritura, se merecemos amor ou ódio. Asilamos no coração uma quantidade de pecados secretos, e como nos admoesta o inspirado Escritor, não devemos estar sem receio, mesmo quanto ao pecado perdoado.

Há meios errôneos de adquirir este conhecimento, que o coração impaciente e ansioso procura. Todo desejo que não ,for rigorosamente discipli- • nado e firmemente subjugado, torna-se, com o tempo, exagerado e desregrado e então

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sabe en-contrar, com astúcia fatal, os meios mais funestos de satisfazer-se a si próprio. Um desses meios er-rôneos é importunar os diretores para saber qual a opinião que têm a nosso respeito. Isto lhes repugna, porque não querem parecer que têm dons sobrenaturais, como é o discernimento dos espíritos, e porque sabem que esse conhecimento raras vezes é para o nosso bem.

E, quando esse artifício resulta sem êxito, pro-curamos nós mesmos sinais arbitrários e artificiais, quais crianças que fincam paus na areia para marcar o fluxo e refluxo da maré. Erramos

na esco-lha, como era de esperar, e nem tínhamos direito de escolher. Erramos, mas teimamos, como é humano, e tanto mais erramos, mais teimamos.

Assim, o resultado final é a ilusão. Ainda quando não procuramos conhecer o nosso estado in-terior por um desses meios falsos, fazemos o que é igualmente incorreto, afligindo-nos constantemente sobre o assunto, o que nos expõe a «perdermos bênçãos e graças a quasi toda hora do dia.

Em verdade, com o nosso progresso na graça dá-se o mesmo do que com a hora da nossa morte, por não ser de modo algum para nosso bem termos conhecim

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ento claro e exato de um ou de outro.

Já é bem difícil conservarmo-nos humildes, mesmo quando os defeitos se manifestam claros e visíveis, e o pouco bem que há em nós seja quasi imperceptível. Que seria então se estivéssemos de fato crescendo em graça e dando passos largos no amor de Deus? De certo, quanto menos soubermos deste progresso, tanto mais fácil será conservar-mos a humildade. De mais, a ausência desse co-nhecimento torna-nos mais dóceis e obedientes, tanto às inspirações do Espírito Santo, como aos conselhos dos diretores espirituais, pois, assim como a ignorância dos seus males torna os doentes submissos para com o médico, assim

também sucede na vida espiritual em relação à ignorância a respeito do nosso progresso. E quanto é necessária/a

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DOS VERDADEIROS SINAIS DE PROGRESSO 15

esse progresso a dupla obediência às inspirações e à direção!

Essa incerteza, em si, é um perpétuo estímulo de maior generosidade para com Deus. O grande inconveniente, pois, duma excessiva introspecção é que os nossos olhos exageram o que há em nós de bom.

Quem conserva o olhar sempre fito no coração, tem uma exquisita e exagerada noçào do que faz por Deus. E é justamente a desproporção entre a grandeza do que Deus fez por nós, e do espírito de amor paternal com que o faz, e a insignificância do que nós fazemos por Deus e o espírito de mesquinhez com que o fazemos, que nos leva a desejar com ânsia amá-lo mais e trabalhar com maior abnegação por ele. Daí concluo que não seria em nosso proveito saber certa e exatamente quão adiantados estamos no caminho da perfeição.

Um certo conhecimento do nosso estado é, todavia, possível, desejável e mesmo necessário, enquanto for desejado com moderação e procurado com reta intenção. Carecemos de consolo em tão difícil e duvidosa batalha, e não estamos ainda su-ficientemente desapegados para não encontrar con-solação especial no conhecimento claro das operações de graça em nossas almas. Não podemos ser muito dados à oração, sem termos algum conhecimento do proceder de Deus para conosco; e, na verdade, se não soubermos quais as graças que Deus nos dá, não lhes poderemos corresponder. Assim, certa soma de conhecimentos é-nos absolutamente necessária para continuarmos a luta dos cristãos, e os meios lícitos de adquiri-los são a oração, o exame de conciencia e as admoestações espontâneas do diretor espiritual.

Sobre o conhecimento do nosso próprio estado espiritual, basta repetir o que já foi dito. E' assunto árduo e arriscado. O menor conhecimento que nos possa satisfazer é o bastante, porque é muito difícil procurá-lo com retidão e usá-lo com moderação. Não podemos, porém, dispensá-lo de todo, ainda que sua importância varie segundo a condição espiritual do indivíduo.

E' importante, pois, termos uma noção clara no topante à condição da vida espiritual em que atual-mente nos encontramos. Quem se converte, quem torna a Deus, e começa vida nova, faz penitência dos pecados e abjura as falsas máximas que até então observara; sente-se outro para com Deus e Jesus Cristo; entrega-se a certas práticas de mortificação; obriga-se a certas observâncias religiosas; põe-se sob a obediência de um diretor espiritual. Então sente os primeiros fervores, é ajudado pela prontidão sobrenatural em tudo o que se refere ao serviço de Deus, pela doçura sensível na oração, pela alegria na recepção dos sacramentos, por um gosto novo pela penitência e pela humildade, por uma facilidade para a meditação, e às vezes pela cessação total ou parcial de tentações. Esses primeiros fervores podem durar semanas, ou meses, ou um ano, ou mesmo dois, mas depois sua obra está feita. Correspondemos mais ou menos fielmente. Tais fervores têm seus característicos próprios, suas peculiaridades, seus sintomas, suas dificuldades. Têm um feitio particular, e

necessitam de uma direção especial, que não conviria de outra forma. Agora já passaram e estão fora do nosso alcance. Encontrá-los-emos de novo no dia do juízo, e não antes.

Mas onde nos deixaram eles ? No começo de uma fase da vida espiritual, numa época muito penosa e crítica. O mero desaparecimento do fervor, que não foi senão um favor temporário, deixa-nos submersos num desagradável sentimento de tibieza. Os característicos desse estado atual levam-nos a crer que estamos mais abandonados a nós mesmos do que outrora. A graça parece que nos ajuda menos. O natural volta, quando o fervor que o dominava nos deixa, e vibra com vivacidade espantosa. Sentimos que o nosso apoio agora está no brio e na honestidade dos propósitos e da vontade; sentimo-nos menos protegidos pelos vários recursos da vida sobrenatural.

As orações tornam-se mais áridas. O terreno que cavamos é mais duro e pedregoso. O trabalho perde o encanto à medida que se torna mais penoso. A perfeição parece-nos menos fácil, e a penitência, insuportável. E' chegado, então, o momento da co-ragem e da prova do nosso valor real. Começamos a viajar nas regiões centrais da vida espiritual, que são, na maior parte, regiões de deserto. E' aqui que tantos voltam atrás, sendo rejeitados por Deus como santos malogrados e vocações inutilizadas. A alma a quem se dirige este livro já chegou a tal ponto, e caminha a custo, queimada pelo sol e vento, com lama até aos tornozelos, desesperada pela escassez das nascentes d'água, queixosa por falta de uma sombra quieta e fresca, e inclinada a parar e desistir da obra por julgá-la impossível.

Pelo amor de Deus, não vos entregueis ao desânimo, senão tudo está perdido. Mas direis: se soubesse pelo menos que estou avançando; se pudesse realmente crer que estou fazendo algum progresso, forçaria meus membros cansados a prosseguir! Dois valem mais que um, diz a Escritura; pois então vamos trabalhar juntos durante algum tempo, falando dos nossos obstáculos e dos meios que temos para superá-los. Não somos san-tos, bem o sabeis. Não aspiramos talvez à altura dos santos, e, portanto, não devemos tomar liberdades de santos. As nossas lições devem ser sóbrias, seguras e simples. Em todo o caso, não devemos nem voltar atrás, nem parar em meio caminho.

Estamos progredindo? Infelizmente, no caminho celeste não há nem poço nem palmeira pelo qual possamos medir as distâncias; só há areia e horizonte. Coragem! Vou indicar-vos cinco sinais de progresso. Se tiverdes um, está bem; se dois, melhor; se tres, melhor ainda; se quatro, ótimo; se todos os cinco, alegrai-vos sumamente.1. Estamos nós descontentes com o nosso estado atual, qualquer que seja, e anelamos algo de melhor e de mais elevado? Então temos razão para ser agradecidos a Deus, porque esse descontentamento é um dos seus melhores dons, e sinal evidente de que realmente estamos progredindo na vida espiritual. Mas devemos lembrar-nos que esse descontentamento deve ser de natureza a aumentar-nos a humildade, e não a causar inquietação de espírito ou desassossego nos exercícios espirituais. Deve consistir num desejo, um tanto impaciente, de adiantar na santidade,

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acompanhado de profunda gratidão pelas graças passadas e grande confiança nas futuras, e de um sentimento de viva indignação pelo número muito maior de graças recebidas do que correspondidas.2. Talvez pareça estranho, mas é sinal de progresso estarmos sempre a tentar novos esforços. O grande santo Antônio fazia a perfeição consistir nisto. \Para pessoas, porém, que confundem novos esforços na vida devota com o incessante levantar e: recair dos pecadores habituais, parece, por igno-Eaber, O progresso — 2 rância, motivo de desânimo. Não devemos confundir esses esforços contínuos e sempre novos com a inconstância que tantas vezes leva à dissipação e nos retém no caminho do céu. Esses esforços visam coisa mais alta e, portanto, mais árdua, enquanto a inconstância está cansada do jugo e procura conforto e variedade. Nem tão pouco consis-tem esses esforços em mudar de livros espirituais, de penitências ou métodos de oração, muito menos de diretores. Consistem principalmente em duas coisas: primeiro, em renovar a intenção de querer a maior glória de Deus; e, segundo, em reanimar o fervor.

3. E' também sinal de progresso na vida espiritual o termos em vista algo de determinado, como seja envidar esforços para adquirir certa virtude, emendar certo defeito ou praticar certa penitência. Tudo isto é prova de diligência e também indício do vigor da graça em nós. Se não atacarmos um ponto particular da linha do inimi» go, dificilmente será uma batalha. Se atirarmos sem alvo, só resultará barulho e fumaça. Não é provável que progr#d/mos, se caminharmos a esmo, sem ter um fim claramente escolhido e sem em-pregar os devidos esforços e atividade para alcançá-lo, depois de o ter concienciosamente escolhido.

4. Mas é ainda maior sinal de progresso termos na alma a firme convicção de que Deus quer algo de nós em particular. Estamos certas vezes cientes de que o Espírito Santo nos está atraindo em uma direção de preferência a outra; de que ele deseja a remoção de certo defeito ou quer que nos encarreguemos de alguma obra pia.

Os escritores espirituais chamam a isto "atração". Para alguns será uma atração perseverante que dura toda a vida. Para outros muda constantemente. Para muitos é tão obscura que só a percebem de vez em quando; para outros, enfim, parece não haver chamado especial (1). Quando essa atração se alia a um ativo conhecimento próprio e a uma constante vigilância na oração interior, é um grande dom de Deus pelas imensas facilidades que proporciona para levar a alma à perfeição; assemelha-se quasi a uma revelação especial. Sentir, pois, com sóbria reverência, essa atração do Espírito Santo é sinal de progresso. Todavia convém lembrar que ninguém deve inquietar-se pela ausência de tal sentimento, que não é nem universal nem indispensável.

5. Aventuro-me também a dizer que certo desejo geral, e cada vez mais crescente, de adiantar na perfeição, não deixa de ter certo valor, como sinal de progresso, e isso, apesar do que tenho dito da importância de visar determinado objetivo. Acho que não estimamos bastante esse desejo geral da perfeição. Naturalmente não nos devemos deter nele, nem nos contentar unicamente com êle. Só nos é dado para prosseguirmos.

Quando, porém, consideramos o quanto ainda se apegam ao mundo a maioria dos bons cristãos e quão espantosa é a sua cegueira para com os interesses de Jesus e quão inacessíveis são a princípios sobrenaturais, devemos confessar que esse desejo de santidade vem de Deus, que é um grande dom, e que muita coisa, de consequência superior, está nele compreendida. Deus seja louvado por toda alma que no mundo tem a fortuna de possuí-lo.

1) O Madre de Blonay notou que aqueles a quem Deus destina a-passar grande parte da vida como su-periores de comunidades, não sentem pela maior parte uma atração particular, pois o que o Espírito Santo deseja formar nessas almas é um espírito universal.

20 CAPITULO I

E' quasi inconsistente com a tibieza, o que não é, em si, pequena recomendação; e embora possamos subir e ir além desse ■mero desejo, ainda assim ele continua a ser uma condição indispensável para atingir o que lhe fica acima.

Não devemos, entretanto, ignorar os perigos inerentes. Todo desejo sobrenatural gozado e não correspondido praticamente deixa-nos em p#ior estado do que nos encontrou. Para ficarmos seguros, devemos proceder sem demora, transformando o desejo em ato: oração, penitência ou ação zelosa; nunca, porém, precipitadamente ou sem tomarmos conselho.

Aí temos, pois, cinco sinais mais ou menos prováveis de progresso e nenhum está tão acima da inteligência que não esteja ao alcance do mais fraco dentre nós. Não quero dizer, todavia, que a existência desses sinais implique que tudo esteja certo na nossa vida espiritual; mas mostra que estamos vivos, adiantando no caminho da graça. Possuir qualquer desses sinais é possuir algo de inefável, algo de mais precioso do que tudo que nos possa dar a terra de melhor e mais elevado. Repito: se temos um desses sinais, está bem; se dois, melhor; se

tres, melhor ainda; se quatro, ótimo; se todos os cinco, alegremo-nos sumamente.

Ora veja! Já caminhámos um pouco. Penetrámos mais adiante no deserto, e, se não menos cansados, pelo menos um pouco mais animados.

CAPITULO n

Da presunção e do desânimo

Do capítulo precedente pode-se inferir que eu fiz no pensamento uma espécie de mapa da vida espiritual. Dividí-a em tres regiões de extensão mui desigual e de interesse mui diverso. Primeiro, temos a região dos principiantes, fase tão maravilhosa, que ninguém pode abranger na mente todos os encantos que contém,

14 CAPITULO I

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DOS VERDADEIROS SINAIS DE PROGRESSO 15

senão depois de tê-la deixado e poder olhar para trás. Em seguida, dilata-se a vasta extensão do deserto cheio de tentações, lutas e cansaços — lugar de trabalho e de sofrimento, com anjos, bons e maus, a voar por todos os lados. Os caminhos são incertos e escorregadios, e Jesus com sua Cruz encontra-nos em cada esquina. Essa região é dez ou doze vezes mais extensa que a primeira. Temos, depois, a região das montanhas belas, arborizadas, banhadas d'á-gua, porém pedregosas, selvagens, e sujeitas a tempestades horríveis e a esses súbitos escurecimentos da natureza brilhante que caracterizam os distritos montanhosos. E' a terra da alta espiritualidade, das corajosas crucifixões próprias, das místicas, das alturas do desapego sobrehumano, da abjeção, cuja atmosfera rarefaciente só as almas de escol podem respirar.

Uni-me a uma alma que, saindo da região dos principiantes, acaba de entrar nas grandes regiões do deserto, cujas longas planícies de areia estéril ligam os verdes campos dos principiantes às montanhas arborizadas das almas longamente provadas e bem mortificadas. Deus chama alguns a si nos primeiros fervores, outros, só depois de amadurecidos na graça e chegados ao cume da montanha. Mas a maior parte morre no deserto, nesse ou naquele ponto da peregrinação. Naturalmente há só uma boa hora para cada qual morrer, e é a hora exata em que Deus manda que a morte nos leve.

Como, porém, a grande maioria dos homens devotos morre quando ainda está no deserto central, é desse deserto que quero falar: o deserto da paciência longa e perseverante nas práticas humilhantes da sólida virtude.

As pessoas que aspiram à perfeição, embora em grau mínimo, constituem a porção escolhida da criação de Deus, e são-lhe tão caras como a menina dos olhos. Tudo, portanto, que se lhes refere é de suma importância. Por isso carecera de certos sinais pelo3 quais possam avaliar, aproximadamente, o progresso que estão fazendo na vida espiritual. Muitas vezes, porém, eles tomam como sinal de progresso coisas que, em si, nada provam, e assim caem em ilusões que as levam a desvios fatigantes, para tornarem novamente ao caminho, a grande distância do lugar onde se desviaram. Esses falsos sinais formam o assunto do presente capítulo. Con-. siderá-los é de máxima importância, tanto mais que nos ensinam diversos fatos sobre a vida espiritual que muito nos interessam. Duas tentações opostas cercam a alma nessa fase da viagem. Ora é atacada por uma, ora por outra, conforme as disposições do gênio e a variedade do caráter. Estas tentações são o desânimo e a presunção, e a nossa principal ocupação nesse período consiste em acau-telar-nos contra ambos.

O desânimo é a tendência para desistirmos de toda tentativa na vida devota, tanto pelas dificuldades que a cercam, como pelas nossas já numerosas falhas em praticá-la. Falta-nos coragem, e, em parte por mau humor, em parte por desconfiar da nossa habilidade em perseverar, tornamo-nos primeiro queixosos de Deus e aborrecidos com ele, para depois relaxarmos nos esforços em relação à mortificação e a tudo que fazemos para agradar-lhe. E' como o pecado de desespero, ainda que na realidade não seja pecado algum. E' uma espécie de sombra de desespero que há de induzir-nos a cometer inúmeros pecados veniais , desde o momento em que lhe

cedemos. Prova que contávamos demais com a nossa própria força e tínhamos, de nós mesmos, uma opinião por demais alta e injustificável. Fôssemos verdadeiramente humildes, e ficaríamos admirados de não ter procedido peior, em vez de ficarmos desapontados de não ter procedido melhor. Muitas almas são chamadas à perfeição e falham, unicamente pelo mal imenso que lhes causa o desânimo.

As pessoas que almejam a espiritualidade são, entretanto, especialmente sujeitas ao desânimo, por causa da grande sensibilidade que têm. Sua atenção firma-se, como nunca até então se firmara, em dois pontos: pequenas regras e obrigações, e motivos interiores, duas coisas que as tornam excessivamente sensíveis. A conciencia, sob a ação do Espírito Santo, torna-se tão fina e delicada que sente o choque de leves enfermidades,, que antigamente não tinha em conta de tais. E não somente a percepção do pecado se aviva, como também a sensibilidade da dor que o pecado inflige é mais subtil.A obra difícil e o trabalho penoso em que estão empenhadas aumenta-lhes a sensibilidade, sobretudo porque ainda estão longe de receber auxílio visível dos que a cercam e que, pelo contrário, são taxadas de entusiastas e indiscretas, de singulares e afetadas, mesmo por pessoas boas, mas que têm a incalculável má-sorte de serem boas a seu modo e não ao modo de Deus. Além disso, a piedade nova nunca é criteriosa. E como havia de ser, se unicamente a experiência pode dar-lhe critério? O mundo queixa-se dos erros dos principiantes na piedade, não percebendo que erram tão somente porque ainda não estão tão desapegados do mundo e anti-mundanos quanto, praza a Deus, serão mais tarde. Um desses erros é exagerar as próprias faltas; e isso leva-nos logo ao desânimo. De mais, aspiram a elevados modelos — Jesus e os santos; e quando já fizeram tudo quanto puderam, o que para eles já é muito, continuam tão abaixo do que almejavam que ficam desapontados. Pois, haverá algo de mais penoso para o espírito e o caráter" do que invariavelmente perder no jogo? Poderá, porém, esperar outra coisa quem resolveu assemelhar-se ao Crucificado?

Mas o resultado desse desânimo é tornar-nos lânguidos e tristes, e nada nos poderia acontecer de peior porque impossibilita qualquer heroísmo. Se, num exercício de luta, quem estiver subjugando o adversário, de repente se entrega à moleza, perde a partida, pois a vitória dependia do jogo dos músculos e da firmeza do gesto. Um exército vitorioso pode derrotar um vencido, muito superior em número, porque a alegria da vitória constitue grande força moral. Assim, a languidez e a tristeza, sobretudo no começo da jornada, sãonos fatais. Nestas duas coisas é que aparece o veneno do desânimo.

Quanto à presunção, creio que é muito menos comum que o desânimo. Só um tolo pode ser presunçoso em religião. Acontece, todavia, que mais tolos somos quando menos o esperamos. Diz santa Teresa que a humildade é o primeiro requisito para os que desejam levar uma vida regularmente boa, mas que a coragem é o primeiro requisito para os que aspiram a qualquer grau de perfeição. Ora, a presunção não se afasta muito da

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DOS VERDADEIROS SINAIS DE PROGRESSO 15

coragem; e daí se segue que devemos defender-nos dela. Podemos cair na presunção por diversos modos.

Mencionarei alguns. Diz o provérbio que o primeiro golpe é a metade da batalha. Acho que não é exato em matéria espiritual; e a razão por que assim penso é que há tantas pessoas chamadas à devoção e à vida interior, que, não obstante, caem e desistem. A culpa não estava no primeiro golpe. Foi forte, amoroso e humilde. A culpa veio mais tarde. Elas ou se cansaram da mortificação, ou cairam numa superstição comum a respeito da graça, e, quando se viram enganadas, desgostaram-se. Essa superstição consiste em imaginar que a graça deve agir como por encanto, quasi sem o auxílio da nossa vontade. Por exemplo, tal pessoa não se levanta de manhã, à hora certa. Alega que não pode, o que é um absurdo, pois nenhum poder físico a retém na cama. A verdade é que não se levanta porque não quer, e porque a virtude ou a obediência não lhe merecem um esforço. Alega ainda que, ao deitar, resolveu levantar-se cedo e pediu às almas do purgatório que a ajudassem. / Chega a manhã; o ar está frio, a meditaçãò~-e pouco interessante, o sono tão agradável.. . Nenhuma alma do purgatório vem arrancá-la da ca

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ma, correr as cortinas, acender o fogo. . . O mais, portanto, não é de sua conta. Fez a sua parte, e deixou-a acabada na véspera à noite; mas a graça não agiu. Que fazer então? E, como este, mil e um casos. . .

Inúmeras pessoas, que poderiam ser quasi santas, permanecem quasi pecadoras por causa dessa singular superstição a respeito da graça. Ne3se3 casos não precisamos da graça, mas da vontade. As graças recebidas excedem de muito as graças correspondidas. Deus nunca a deixa faltar do seu lado. A nós é que faltam persistência varonil e perseverança.

Mas voltemos ao assunto. O primeiro golpe não é a metade da batalha na vida devota, embora julgamos que seja. Tornamo-nos impacientes ante a extrema e misteriosa lentidão dos movimentos de Deus, e acreditamos que a obra começada vale a obra acabada; e sabendo o muito que fizeram os santos, quando, após longas austeridades, consumaram a união com Deus, tanto quanto na terra é possível, ousamos imitá-los ao pé da letra, sem discernir-lhes o espírito, ou então tomamos o vigor da graça pela fortaleza da própria vontade, voltando assim contra Deus o excesso da força sobrenatural que ele, na sua compaixão, nos dera. A experiência ainda não nos mostrou que cada vitória na vida espiritual é ganha a custo de muitas derrotas. Mais tarde descobriremos que isso constitue grande fonte de humildade. Além de que, há um prazer especial, um sentimento animador de força que acompanham por muito tempo, e de modo sensível, a cooperação com a graça. Trazemo-los conosco nos primeiros fervores, e não passam de todo com eles. Confundimos esses sentimentos com os hábitos adquiridos na prática da sólida virtude, ou consideramos complacentemente as nossas boas

obras e forma-se então uma neblina, através da qual as vemos alteradas, ou ainda amigos indiscretos louvam-nos e notam quão piedosos estamos ulti-mamente e, julgando fazer-nos uma gentileza, des-fazem a obra de Deus em nossas almas.

Tudo isso nos leva à presunção e a presunção conduz-nos a excessos indiscretos, que por sua vez geram confiança em nós mesmos; e a confiança em nossas próprias forças produz uma inevitável reação contra toda a vida interior. Nem nos devemos esquecer de notar (ainda que isto pertença mais propriamente ao tratado sobre os Princípios da Vida Espiritual) que, nas primeiras fases do percurso, e especialmente nos últimos dias dos primeiros fervores, há algumas coisas que muito se assemelham ao que lemos sobre santos já adiantados. O fato é que estamos apenas nos estabelecendo no estado normal. Até então Deus fez muito mais do que tencionava fazer em seguida. Nossos primeiros passos são às vezes quasi tão sobrenaturais quanto, talvez, venham a ser os últimos. Não podemos esperar que o longo trajeto entre os dois também o seja. Devemos separar-nos agora de muita doçura sensível, de muita manifestação secreta de Deus e de fervorosas aspirações que, possivelmente, nos tenham levado a pensar que em breve seríamos santos. Ora, essa semelhança entre os primeiros tempos e certos estados mais adiantados inspira-nos às vezes uma secreta presunção. Não temos a menor idéa de como há de pesar sobre nós, doravante, a mera pressão do tempo, nem quão longo é realmente o caminho, embora as montanhas pareçam estar mui próximas. Sem uma obrigação adicional, sem uma nova tentação, — digo mais — com menos obrigações e menos tentações,

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o continuar simplesmente a contrariar as inclinações pessoais, (o que está compreendido no serviço de Deus), é-nos uma opressão mais fatigante e desanimadora do que jamais poderíamos ter previsto. A perseverança é a maior das provas, a mais pesada das cargas, a mais esmagadora das cruzes.

Esse duplo perigo do desânimo e da presunção leva-nos, em relação ao progresso espiritual, a cair em dois erros opostos. Por isso é de importância acautelarmo-nos contra certos sintomas que o desânimo toma como provas de falta de progresso, e a presunção aceita como provas de grande progresso, quando, na realidade, consideradas em si, não provem nem uma nem outra coisa. Examinarei agora cinco desses sinais incertos do progresso, e considerarei cada qual sob o duplo aspe-to da presunção e do desânimo.

1. Depois de vigiar-nos durante algum tempo, percebemos se conseguimos vencer, ou não, o nosso defeito dominante. Então a presunção se apodera de nós. Convém refletir. Pode não ser prova real do progresso, pois é possível que as nossas tentações estejam, momentaneamente, mais fracas por qualquer motivo. O demônio pode, na sua subtileza, prever que nos havemos de examinar sobre esse ponto, e talvez queira aproveitar-se do nosso exame, para incutir-nos falsa confiança, o que lhe favorece sempre a campanha, ou talvez retire suas forças e deixe-nos em paz temporária. Ou, então, nossos defeitos estão mudando, devido a alguma alteração na vida exterior, seja pelo peso dos anos, seja por qualquer outra causa; o certo é que os defeitos mudam, e que essas mudanças dão lugar a alguns dos mais notáveis fenômenos da vida espiritual. Ou, também, a sensibilidade e a delicadeza de conciência podem estar um tanto turvas, devido a alguma pequena infidelidade à graça, e por conseguinte estamos menos concientes dos defeitos. Haverá quem não tenha experimentado semelhante castigo? Não há, portanto, fundamento para a presunção, pelo simples fato de notarmos menor número de reincidências em algum defeito habitual. Tão pouco será causa de desânimo o termos ultimamente caído com mais frequência. Devemos continuar a observar-nos por muito tempo antes de poder, com segurança, medir os nossos progressos. Talvez, por diversas razões, tenhamos agora mais conciência das quedas do que outrora; ou, então, Deus pode permiti-las afim de manter-nos na humildade, ou ocultar nossos progressos em outras direções. Pode ser também que o nosso grande inimigo invista fortemente contra nós, nesse ponto particular. Talvez estejamos de fato sofrendo um assalto, e não somente atravessando terras árduas. Não temos, pois, bastante conhecimento de nós mesmos para desanimarmos com este primeiro sinal.

2. Somos sujeitos à presunção ou ao desânimo, conforme tivermos ou não a devoção sensível nos nossos exercícios espirituais. A presunção deve lembrar-se, entretanto, que esse sentimento suave resulta muitas vezes de causas físicas, sejam da boa saúde, do bom tempo ou do temperamento feliz; uma

hora de oração entre os céus azues e o ar inebriante do Mediterrâneo é trabalho mais fácil do que uma hora de oração entre as neblinas de Londres. Embora a devoção seja uma operação da graça, pode também ser prova de enfermidade e de infância espiritual. E' o imã com que Deus, na sua condescendência, nos atrai, quando ainda não temos uma virtude bastante sólida para distingui-lo entre os seus dons; para servi-lo por sua causa e não por suas dádivas. E' um ímã que de-vemos agarrar com ardor, pois produz frutos sólidos, contanto que seja dom de Deus, e não resultado do nosso progresso. Ao mesmo tempo, não seria razoável desanimarmo-nos pela ausência dessa devoção sensível. Se é dom, não é virtude; Deus a dá a quem quer, quando quer, e na medida do seu desejo. De mais a mais, a própria privação é às vezes um favor, e tem por fim elevar a alma a um estado mais alto e - aumentar-lhe o amor e os méritos. Mesmo sendo castigo, pode ser favor. Muitas pessoas entregam-se à tristeza, porque estão certas que tal e tal sintoma de sua vida espiritual é castigo divino. Ah! quando um homem devoto fica de mau humor, é o mais desarrazoado de todos os descontentes. Não vejo nada de desanimador em ser punido por Deus. Pelo contrário, quando ele pune, não nos esquece. Se nos esquecesse, então, sim, seria terrível. Além de que o seu castigo é castigo de pai; a dureza dos golpes e o número dos açoites são, na verdade, apenas sinais da afeição que nos tem. Nunca desejemos que Deus adie os seus castigos. E' um desejo que ele poderia facilmente satisfazer, e que havíamos de pagar caro no fim. Deus interessa-se por nós, e, quando nos castiga, suas intenções são sempre cheias de misericórdia. Enquanto uma mão maneja a vara, a outra contém graças especiais, que nos serão dadas quando a natureza estiver bastante magua-da e mortificada.

3. Entre as desnecessárias preocupações figura a de reparar se a oração mental e a meditação se vão tornando mais fáceis. A meditação em si é de ordinário tão cheia de dificuldades, que a menor coisa que pareça facilitá-la nos desperta logo sentimentos de presunção. Devemos, porém, lembrar-nos de que o hábito de oração não é a mesma coisa que a graça da oração; e a meditação é um método de oração em que o raciocínio desempenha papel tão saliente que é muito fácil formar-se-lhe o hábito, sem que ela nos penetre, ou nos afete a vida interior. Exemplos disso deparam-se-nos continuamente. Há pessoas que nunca abandonam a meditação diária, sem por isso parecerem melhores, levarem vida mais mortificada ou vencerem a paixão dominante, governarem a língua ou se tornarem mais recolhidas. Não nego que o hábito da oração seja coisa excelente, mas não é o dom da oração, e somos tentados a exagerar-lhe a importância, confundindo-o com o dom. Pode também acontecer que em certas ocasiões os assuntos de meditação sejam mais fáceis, por serem mais con-formes ao nosso gênio, ou se inspirarem no ciclo ütúrgico. Para uns será o Natal, para outros a Qua-resma ou Corpus Christi. Alguns têm mais facilidade

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em meditar sobre a Paixão do que sobre a santa Infância; outros encontram descanso e devoção nas narrativas do Evangelho e nas Parábolas, mas permanecem insensíveis em se tratando dos Mistérios de nosso Senhor, ou então a saúde está melhor, o sono mais restaurador, ou as circunstâncias exteriores são mais felizes ou a emoção, oriunda de uma grande festa da Igreja, próxima ou passada, nos anima e ajuda. Tudo devia servir para pôr-nos ao abrigo dâ presunção, só porque, durante algum tempo, a meditação correu mais suave. Do mesmo modo, não há razão para desanimarmos quando a meditação, ao contrário, em vez de se tornar mais fácil, parece tornar-se impossível. A facilidade na oração mental exige longo trabalho, e resulta antes da mortificação que do hábito; e o progresso na mortificação, conquanto deva ser constante e generoso, deve também ser gradual e cauteloso, para não cairmos em certos excessos. Lembremo-nos que, em vista de nossa desgraçada fraqueza, é preferível fazer menos do que mais. Além de que, como terei ocasião de mos-trar em seguida, as meditações áridas são muitas vezes as mais proveitosas, e é justamente a aridez que cria a dificuldade. De mais, para que tudo encarar pelo peior lado? Não há pecado venial algum em sentir dificuldade na oração. Lembrando-nos do passado, resta-nos, pelo menos, a consolação de ver que a graça de Deus nos impede de ofendê-lo. Sentir imensa alegria com a mera ausência do pecado não indica inferioridade espiritual. Há algo de melhor em reserva para nós, mas praza a Deus que nunca percamos a simplicidade dessa satisfação! Não admito o direito de ficarmos desanimados em relação aos nossos pecados, mas tenho certeza que aquilo que não chega a ser pe-cado nunca nos deve desanimar.

4. Muitas vezes somos levados a filosofar sobre os fenômenos das nossas tentações, e isto, quer para nos desvanecermos, quer para desanimarmos, com o que imaginamos ver nessa região. Embora os céus pareçam serenos e desnublados, o orgulho não se justifica.

As tentações podem, em certas épocas, diminuir, como disse há pouco. Podem também perder os seus atrativos, por alguma alteração nas circunstâncias exteriores, ou a nossa inteligência pode estar entregue a alguma ocupação interessante, que a prenda completamente, distraindo-a das tentações, sem haver nisso nada de meritório ou sobrenatural. A's vezes o mundo nos ajuda, às vezes nos tolhe, com suas múltiplas distrações, que, se impedem muitos pecados, prejudicam o recolhimento. E' o que torna a solidão tão perigosa, exceto à virtude já provada. Imaginemos uma verdadeira tempestade de tentações em torno de nós; o desânimo, nesse caso, não seria menos desarrazoado do que a presunção no outro. A própria veemência dessas tentações revela a cólera do demônio que é por demais sensato para se encolerizar sem motivo. Quando a Bíblia fala dessa cólera, acrescenta que é por ser pouco o seu tempo. Nós o provocamos pelo modo com que nos apegamos a Deus, ou pelos sinais especiais de amor com que Deus

nos distinguiu, e que Satanaz, talvez, veja mais claramente do que nós. Se as tentações nos amedrontam, sobretudo pela sua obstinação e persistência, como se estivessem resolvidas a não nos deixar enquanto não nos fizerem cair, devemos em verdade defender-nos, mas sempre com gratidão e alegria. O continuar da tentação é prova de que, pelo menos até agora, não consentimos nela. O cão continua a latir, diz são Francisco de Sales, porque não consegue entrar. Demais — e Satanaz talvez o previra em sua sagacidade natural — esses acessos de novas e desusadas tentações são frequentes vezes presagios de uma temporada de graças especiais. Devemos, portanto, como Jacó, batalhar até ao amanhecer.

õ. Em certas épocas, os efeitos dos sacramentos se fazem sentir com maior ou menor vivacidade do que em outras. Há momentos em que parece que os sacramentos vão quasi dissipar o véu da fé, pois de modo tão sensível vemos, ouvimos, provamos, tocamos e manejamos a graça. Dela nos com-penetramos. Isto aplica-se sobretudo à confissão e à comunhão. Mas nem por isso temos direito à pre-sunção. A graça dos sacramentos não depende do nosso mérito; e se o seu efeito é sensível, essa sen-sibilidade pode vir de causas físicas ou morais. OuEaber, O progresso — 3

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Deus, talvez, vendo a nossa excessiva fraqueza, nos dá uma graça desusada, e torna-a sensível ao ponto de estimular a parte inferior da nossa alma de modo real. Se os sacramentos, contudo, se tornam insí-pidos, não devemos desanimar, como se fosse um mal. Não significa que não estejamos recebendo, em medida abundante, a graça sólida e real dos sa-cramentos. Os santos passaram por provas seme-

lhantes, mesmo depois de serem santos. A fé pura é o maior de todos os exercícios espirituais, em-bora esta consideração já nos leve muito perto das montanhas.

Alegareis, talvez, que este capítulo não satisfaz, porque é todo de negativas. Não adiantastes, porém, ainda bastante para ver que a paz interior é aquilo de que mais careceis? E, para obtê-la, não há meio tão eficaz quanto o sábio e dextro manejo destas duas

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tentações: a presunção e o desânimo. Aliás, se é importante saber quais são os sinais de progresso, não é menos importante sa-ber o que não devemos tomar como sinais de adian-tamento, sobretudo quando aparentam sê-lo.

CAPITULO III

De como aproveitar os sinais de progresso

Devo agora concluir que a alma do meu viajante tem alguns ou todos os sinais

de progresso enu-merados no primeiro capítulo. ^*íão é, porém, bas-tante contemplá-los. E' preciso esforçar-se por aproveitá-los. Mas como? A esta pergunta respon-de este capítulo. Uma palavra, porém, de aviso geral antes de principiar. Devemos, nesse período inicial da vida devota, guardar-nos cuidadosamente de empreendimentos superiores às nossas forças, e não voar alto demais, não prometer a Deus grandes austeridades, não nos sobrecar

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regar com práticas numerosas. Embora não sejamos medrosos nem cobardes, devemos ser moderados e discre-tos. Ser brando para consigo mesmo não é pro-priamente ser indulgente. Os mesmos castigos que um homem suportaria com facilidade, matariam ou mutilariam uma criança.

Na vida espiritual costuma haver épocas em que recebemos auxílios, ou meios particulares, da graça. A primeira época tem seus perigos: a presun-ção e o

desânimo; mas tem também dois auxílios ou meios particulares: o recolhimento e a fideli-dade; trata-se, presentemente, de habituar-nos a estas duas coisas. Enquanto os primeiros fervores ardiam em nossos corações, quasi não lhes sentía-mos a necessidade nem compreendíamos a impor-tância desse recolhimento, dessa fidelidade. Vieram por si. A graça produziu-os espontaneamente; e a generosidade de um amor novo supriu, em

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grande parte, a disciplina custosa e árida. Éramos reco-lhidos sem o sentirmos e fiéis sem o sabermos. Mas esses dias já passaram. Muitos livros já foram escritos sobre o recolhimento, cujos parágra-fos excederam de muito as minhas palavras. O re-colhimento é, em suma, a dupla atenção que pres-tamos, primeiro a Deus, depois a nós mesmos. Sem veemência nem violência, não, porém, sem algum esforço doloroso, o recolhimento deve ser o mais

contínuo possível. A sua necessidade é tão grande que nada, em toda a vida espiritual, o amor exce-tuado, é mais necessário. Sem ele não podemos ad-quirir o hábito de andar constantemente na pre-sença de Deus, nem navegar com segurança atra-vés das múltiplas ocasiões de pecado venial que nos cercam o dia todo.

As inspirações do Espírito Santo passam desper-cebidas e desprezadas. As tentações surpreendem-nos e abatem-

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nos; e o tempo passado na oração apresenta maior distração, porque o tempo fora da oração não é empregado no recolhimento. O próprio ato de aplicarmos a atenção à oração faz pouco mais do que nos desocupar o espírito dos nossos devere3 dando mais lugar às distrações do que quando a mão, a cabeça e o coração se entregavam às tarefas da vida diária.

O hábito do recolhimento se adquire gradualmente. Não há nenhum caminho privilegiado para

atingi-lo. Devemos praticar o silêncio-—seja esta uma das nossas mortificações — quando o pudermos fazer, sem singularidade ou ostentação. E como, em geral, todos nós falamos mais nas conversas do que querem os outros, não deve ser difícil morti-ficar-nos neste ponto. Deveríamos também evitar ciosamente qualquer ansiedade em receber notícias, em saber o que se passa no grande mundo que nos cerca. Até

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sentirmos a presença habitual de Deus e podermos reverter tudo facilmente a ele, é de admirar a prontidão com que os outros assuntos nos prendem e ocupam a atenção; e é justamente isto que não lhes devíamos permitir. Não são poucos aqueles a quem a leitura dos jornais têm afastado da perfeição.

A visita diária ao Santíssimo Sacramento é outro meio de adquirir o recolhimento. Picamos sob a in-fluência da visita muito

tempo depoÍ3 de tê-la feito. Faz silêncio em nosso coração e envolve-nos numa atmosfera que afasta o espírito inquieto do mundo. A prática de conservar na lembrança, como ramalhete espiritual, alguma máxima ou resolução da meditação matutina, que nos sirva de matéria para orações jaculatórias durante o dia, é também um grande auxílio para o recolhimento. A mortifi-cação corporal o é ainda mais, sobretudo a guarda

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dos sentidos, se a pudermos praticar sem dar na vista. O maior auxílio de todos é, porém, agirmos refletidamente. A ânsia, a sofreguidão, a ir-reflexão, a precipitação, são fatais ao recolhimento. Façamos tudo com sossego, e em breve seremos recolhidos e, ao mesmo tempo, mortificados. A na-tureza gosta de ter muito que fazer e de correr de uma coisa para outra. A graça é o oposto disto.

Não conheço imagem mais feliz do recolhimento que a

descrição da graça que Fénelon mandou a uma pessoa, prestes a entrar para o convento. "Deus vos quer sábia, não da vossa própria sa-piência, mas da sua. Ele vos tornará sábia, não suscitando muitas reflexões, mas, pelo contrário, destruindo todas as reflexões inquietas da vissa .' falsa sapiência. Quando deixardes de agir por vi-vacidade natural, sereis sábia, mas sem a vossa própria sapiência. Os movimentos da graça são

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simples, ingênuos, infantis. A natureza é impetuosa, pensa e fala muito. A graça pensa e fala pouco, porque é simples, tranquila e recolhida interiormente. Aco-moda-se a caracteres diferentes. Não tem nem for-ma nem consistência própria, pois não está compro-metida com nada; toma todas as formas das pessoas que deseja edificar. Adapta-se, humilha-se, é flexível. Não fala com os outros segundo a plenitude da sua alma,

mas segundo as necessidades alheias. Deixa-se censurar e corrigir. Sobretudo guarda silêncio, e nunca diz aos outros aquilo que eles não podem ouvir. A natureza, ao contrário, deixa-se evaporar ao calor do zelo irrefletido" (1).

A recompensa particular, que traz consigo o re-colhimento, mostra quanto esta graça é apropriada à primeira época da vida espiritual. As dificuldades da oração são superadas mais facilmente pelo recolhimento, enquant

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o algumas das suas perigo-sas ilusões são evitadas. A prece parece até ter mais poder sobre Deus quando é oferecida por um coração recolhido, e as respostas vêm mais rápidas e mais abundantes. A doçura e a devoção sensível tornam à alma, com a paz, em que o recolhi-mento a mergulha. A liberdade de espírito, prove-niente do desapego de todas as coisas mundanas, consequência do recolhimento, faz-nos voar e não andar, pelo

caminho da perfeição.

Sem o recolhimento, essa liberdade de espírito torna-se simples abuso e dissipação, e a nossa vida espiritual seria uma imitação presunçosa dos privi-légios que os santos conquistaram com anos de he-

1) Cartas.

róico constrangimento e de amor desinteressado. Quantos caem nessa cilada, donde não são arran-cados senão para irem ao Egito gemer na escravi-dão! O recolhimento é, em si, grande cativeiro

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, ao qual não estamos dispostos a nos submeter, e do qual, porém, só nos livramos para encontrar peior e mais dura escravidão. A vaidade e a mo-leza são igualmente inimigos declarados do reco-lhimento. A vaidade está sempre a retratar-se do modo mais lisonjeiro possivel; e a moleza se abor-rece com suas contínuas exortações à reforma e à mortificação, que mais se tornam penosas quanto mais são adiadas.

Numa palavra, nesta

fase da peregrinação, parece que a graça que temos não basta para resistir-mos às coisas exteriores, ainda que sejam neces-sária provação. Começam por ocupar-nos, possuir-nos, afligir-nos, e mal nos enchem o espírito, já nos seduzem o coração e nos incitam a mil afeições humanas, que, por mais' espirituais que se apresentem, não passam de verdadeira escravidão. Assim subjugados o espírito e o coração,

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só falta às coi-sas exteriores o terceiro e último processo: cor-romper-nos pela dissipação, pela sensualidade e pelas máximas do mundo. Podemos, pois, estar certos de que sem o recolhimento não faremos progresso algum.

A fidelidade é o outro grande auxílio nessa época da vida espiritual. Embora não estejamos su-jeitos a uma regra de vida, as obrigações e devo-ções de um dia muito se assemelham às do outro. Praticamente, é como se prometê

ssemos a Deus certas coisas e determinado número de deveres re-ligiosos, a tal ponto que a conciência nos censura quando os interrompemos sem causa. E assim esses deveres tornam-se como que uma condição da nossa perseverança. Adquirem uma espécie de santidade, são os canais por onde habitualmente Deus nos enche as almas com sua graça. O tentador vê tudo isso, e avalia essa perseverança ao seu justo va-lor. Empreg

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a, pois, toda a força para no-la arran-car e procura tornar-nos inquietos e irregulares. Faz da nos3a fidelidade um fardo que nos oprime, ou no-la representa como perigosa formalidade. Lembra-nos, também, que não lhe estamos presos nem pela obediência, nem pelo voto, ou faz com que leiamos algum conselho destinado a pessoas escrupulosas e erroneamente no-lo apliquemos, ou ainda nos faz imaginar que tanta regularidade é prejudicial à nossa

saúde. Qualquer pretexto lhe serve, contanto que nos leve à infidelidade. Sua solicitude em nos tornar infiéis prova a suma im-portância da fidelidade.

Chegado o tempo em que, segundo as leis da graça, os primeiros fervores nos deixam, ficamos mais entregues a nós mesmos. E' uma circunstância crítica, que sobrevem forçosamente mais cedo ou mais tarde. Então faz-se mais necessário que nunca um jugo qualque

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r, para aprendermos aquilo que os escritores ascéticos chamam o cativeiro do espírito. Isto é de grande valor, pois torna reais e conserva todas as nossas conquistas e aquisições espirituais.

De mais a mais, precisamos de jovialidade para enfrentar o grande deserto que se estende diante de nós, e nada nos infunde, com mais eficácia, a santa alegria do que a fidelidade à graça e às práticas de piedade. O sentimento de tristeza

que acompanha o relaxamento, frequente ou habitual, leva-nos a procurar consolação nas criaturas e a voltar-nos de novo para o mundo, afim de ali achar o esquecimento e fugir da perseguição misericordiosa da graça, que nos relembra os nossos deveres. Quando a formação de hábitos virtuosos é in-terrompida pela infidelidade, nossa posição se en-fraquece e prepara-nos dificuldades para o futuro; essa intermissão, ao mesmo tempo, faz-nos perder

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parte do terreno já ganho. Em resumo, a fideli-dade é a matéria prima da perseverança. Conven-cer-nos disto é verificar que a sua importância não pode ser exagerada.

Serão estes, por enquanto, os nossos dois anjos da guarda: o recolhimento ou uma constante e tranquila atenção a Deus e aos movimentos do nosso próprio coração e a fidelidade, tanto às inspi-rações da graça, como às práticas diárias que o conselho, a obediência, ou a própria

escolha nos fizeram contrair gradualmente.

Tendo isto em vista, respondo diretamente à minha pergunta: de como nos aproveitar dos sinais de progresso que percebemos em nós.

E respondendo, farei cinco considerações.1.

Façamos, desde já, alguma coisa mais para Deus do que fazemos atualmente. E, vendo o que fazemos agora, vejamos também em que consiste e até que ponto exige de nós algum esforço.

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Não podemos aguentar mais sem desfalecermos sob o peso? Podemos acrescentar algo sem muito sacri-fício? Digo isto, porque tenho certeza de que tal pressentimento indica o rumo certo a seguir no mo-mento, aquele que redundará, no fim, em maior he-roísmo. E a discrição é o maior dos heroísmos. Vejamos como a Igreja canoniza um santo e com-preenderemos como esta idéa a preocupa e per-segue.

Qualquer coisa, porém, que juntemos aos nossos deveres religiosos, por mais insignificante que seja, merece cuidadosa perseverança. Não me refiro a uma novena ou a uma oração rezada durante um mês, mas, sim, a alguma coisa sólida. Não digamos que, por ora, nada podemos em-preender. Sejamos cautelosos, mas sejamos gene-rosos.

2. Dispomos infalivelmente, todavia, de um meio: é pôr em tudo que fazemos um espírito

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mais in-terior. Assim como há pessoas que, não sendo mer-cenárias, se entristecem no entanto ao ver desper-dício na vida doméstica, assim também podemos entristecer-nos ao vermos no mundo espiritual tanto desperdício de boas palavras e obras, pela simples falta do espírito interior, da intenção sobre-natural. Os homens estão a. plantar o dia todo boas sementes em rochedos. Ai de mim que seja assim! Pois parece tão fácil ter em mira a

maior glória de Deus em cada ação, e unir interiormente nossa vontade à sua, em tudo o que planejamos, fazemos ou sofremos. A diferença entre uma ação que tem, e outra que não tem essa intenção interior, é por assim dizer infinita, e numerosos se-rão os efeitos desta prática para as nossas almas no caminho da santidade. Os resultados da oração e da mortificação não podem ser comparados aos de um espírito

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interior. De certo, precisam tempo para amadurecer. Não se manifestam num dia. Nada é menos revolucionário que a vida interior. As mu-danças são profundas, mas lentas e impercetíveis. Não nos julguemos santos porque praticamos esse espírito durante um mês. Mas podemos ter certeza de que, se perseverarmos, os resultados serão grandiosos.

3. Outro meio de desenvolver os sinais de pro-gresso que percebemos em

nós, é pedir a Deus maior desejo de perfeição. Repito o que já disse, não damos a este desejo seu justo valor, porque então havíamos de utilizar-nos dele, pois sempre procuramos o que precisamos. E', em verdade, pe-dindo a Deus que nos livre da vaidade humana e familiarizando-nos com modelos e idéas que não são do mundo, que destruiremos a enraizada e se-creta influência das suas máximas deletéri

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as sobre os nossos corações. Esta aspiração à perfeição comunica-nos uma noção muito mais exata e reve-rente da majestade de Deus, da doçura da graça e da incomparável preeminência de todas as coisas espirituais. E' verdade que raramente rea-lizamos as nossas aspirações, pois, como sempre, o espírito é pronto, mas a carne é fraca. O pouco que conseguimos tem, todavia, certa relação com o nosso

desejo, e sobretudo com a veemência desse desejo. Há fortes razões para alimentarmos o mais possível essa aspiração sobrenatural. O tratado de Rodriguez sobre o valor das coisas espirituais é, ao meu ver, a parte mais excelente da sua obra preciosa.

4. E' também de importância não descansarmos em nada, senão no serviço de Deus. Quando digo descansar, entendo estarmos à vontade

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, repousando no que fazemos, esquecidos de que é um sim-ples meio (se não erramos a ponto de considerá-lo um fim), satisfeitos com o que somos, sem procurar caminhar para diante, nem levar em conta que fe-rimos uma batalha, ou subimos uma ladeira. Nada pode desculpar a negligência em relação aos deveres de estado de acordo com,a vontade de Deus. Tudo é ilusão quando estes não são cumprid

os com amor. São como que sacramentos especiais para cada um de nós. São nosso principal, e muitas vezes único meio de santificação. Enquanto, porém, os preenchemos com a diligência tranquila que a presença de Deus inspira, não devemos perder de vista que são meios, e não fins, subordinados à grande obra que se realiza em nossas almas, a que devem servir. Nem todas as obras exteriores, nem o heroismo

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incessante e universal de um são Vi-cente de Paulo, pode suprir a falta de atenção para com a nossa própria alma, como seria o des-cansar no trabalho exterior. Daí se segue que deve-mos desconfiar do grande prazer que nos causam os êxitos, mesmo nas obras cristãs de misericórdia e caridade. E' sempre agradável fazer o bem, mas este deve ser vigiado, moderado e reprimido, ou nos prejudicará antes de darmos pela

coisa. O pensamento da eternidade facilita-nos isso. Abate o orgulho, que inspira as obras exterio-res, e tira o brilho e o colorido dos nossos êxitos. E é bom que seja assim, pois tal brilhantismo e tal colorido não passam do reflexo de nós mesmos e da nossa própria atividade.

5. Há também práticas de humildade, próprias para essa fase da vida devota, que não podemos passar em silêncio. Não devemos desejar esquecer os

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nossos pecados, entregando-nos exclusivamente à contemplação da imensidade do amor de Deus. Por enquanto é cedo. De fato, no sentido que lhe queremos' dar, esse tempo nunca chegará aquém túmulo para nós. A idéa de que Deus nos visita a miúdo, a nós de preferência a tantos outros, e nos inunda de suas graças de escol, deveria encher-nos continuamente de reconhecimento e de pasmo. A idéa de que, sendo o

que somos, Deus te-nha sido para nós o que foi, deveria ser-nos uma provação para a fé. O' bem-aventurada incredulidade! O' alma feliz, que luta contra essa modesta falta de fé! Não nos deve inquietar a altura que, talvez, alcançaremos na vida espiritual. E' assunto sobre o qual nunca deveríamos dar largas à imagi-nação. Seja qual for a graça que Deus nos reserva, as que ele já nos deu excedem em muito aquelas a que correspo

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ndemos. Deixemo-nos viver nesse pen-samento, refugiando-nos nele, qual solitário em seu eremitério. Podemos desejar quanto quisermos, con-tanto que não calculemos nem ponderemos.

A humildade deve imprimir seu caráter aos nos-sos próprios esforços, em busca da virtude, para que não sejam nem inquietos nem excessivos. A virtude é, em si, „ meio, e não fim, pois a virtude não é Deus, nem união com Deus.

Não estranhemos esta admoestação. São Francisco de Sales a tinha sempre nos lábios. Somos tão ruins, que po-deríamos tornar o nosso próprio ardor em alcançar a virtude, um impedimento ao amor de Deus. Colocar-nos quietamente entre as nossas culpas e misérias e sentir que ali é o nosso lugar, não é pouca coisa.

Jó, quando se sentou no monturo, ofereceu aos olhos de Deus um espetáculo agradável, porque

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ex-primiu os sentimentos e a humildade da criatura em presença e sob a mão do Criador.

Procuremos a virtude energicamente, rnas sem impaciência. Não percamos tempo voltando atrás para medir o caminho percorrido na viagem. Não sejamos exigentes para conosco, pois o resultado infalível seria, primeiro a precipitação, depois o mau humor, mais tarde, o esquecimento da nossa própria maldade, e, finalmente, a

dúvida sobre a vontade de Deus. Adiantemo-nos lentamente.

Repetirei este conselho cem vezes, porque não há dificuldade ou perigo na vida espiritual, contra os quais não seja de eficácia salutar. Por fim, não convém de modo algum à nossa humilde condição o desejar favores sobrenaturais, como vozes miste-riosas na oração, visões e coisas semelhantes. Quem deseja tais coisas pode a qualquer momento tornar-

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se vítima de horríveis ilusões e,. mesmo que Deus lhe concedesse tais dons, seriam acompanhados de grandes perigos para almas ainda pouco experientes e não inteiramente mortificadas. Ha-víamos provavelmente de empregar esses dons para nossa própria ruina. Não é, porém, tentação rara nessa crise da vida espiritual e, se santa Teresa achou bom pedir a Deus que a conduzisse pelo caminho comum,

quão necessário deve ser-nos tal direção! Não aconselharia, no entanto, a ninguém que rezasse nesse sentido, com receio de que isso só servisse para encher-lhe a cabeça de conceitos perigosos. Não há fraqueza, nem loucura que deva jamais nos surpreender em se tratando duma questão de amor próprio. Podemos, destes cinco modos, corresponder às graças que Deus nos deu, e culti-var essas

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belas e risonhas promessas de progresso na santidade, cujos sinais em nossas almas ele nos deu a conhecer. Não abandonarei, entretanto, o assunto do progresso, sem apresentar um trecho que Orlandini nos cita dos papeis do jesuíta Pedro Fáber, companheiro de santo Inácio. E' erro comum, diz Orlandini, dos que aspiram à perfeição, presta-rem mais atenção às quedas diárias do que à con-quista da

virtude e do progresso na vida espiritual. Disto queixava-se Fáber amiúdo, dizendo que os homens pareciam ter mais prazer em estudar a arte de errar e de cair do que a de adquirir a beleza da virtude. Tratava a isto de "fraude", na. vida espiritual.

Com efeito, se bem que seja virtude evitar o vício, o contínuo contemplar e deplorar os peca-dos é, no entanto, um hábito fatal, que impede à alma de empreender coisas melhores e mais

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eleva-das, atrasando a santa impetuosidade que acome-teria grandes obras e galgaria rapidamente as alturas

da virtude, onde encontraríamos remédio mais seguro contra os vícios do que essa interminável introspecção.

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A teoria pouco vale, sem a prática; mas, sem uma boa teoria, a prática, às mais das vezes, não tem valor; não é fecunda, nem duradoura. Esta verdade, que se aplica a quasi tudo, aplica-se so-bremodo à vida espiritual. Ora, em geral, Deus é para conosco o que

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somos para com ele: Com o inocente, serás inocente, e com o perverso, serás pervertido. Depois de termos observado em nós certos sinais de progresso, e nos precavido contra certos sintomas enganadores, e estudado o que po-demos fazer para desenvolver as promessas que trazemos em nós, convém ter a compreensão nítida do espírito com que nos devemos entregar a Deus, comprometendo-nos a servi-lo. Uma idéa clara já é poderoso auxílio, e a lógica não é de somenos im-portância no edifício da persever

ança. Esforcémonos, portanto, para compreender cabalmente o que empreendemos e o que prometemos, bem como a espécie de vida que devemos seguir e o que Deus tem o direito de esperar de nós depois da nossa oblação espontânea e voluntária.

Pretendo mostrar, neste capitulo, que não podemos ser perfeitos sem a liberdade de espírito, e que não há verdadeira ou segura liberdade de es-pírito que não seja consequência necessária do es-pírito em que

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servimos a Deus. Daí se deduz que o único meio reto de servirmos a Deus é o espírito de sacrifício e de generosidade.

Depois de assimilar perfeitamente este capítulo, e pô-lo em prática, teremos ultrapassado de muito o ponto de partida. Quem não começa tendo uma noção exata da distância a percorrer, não vai longe.

Começarei por explicar o espírito em que a maior parte dos homens serve a Deus.

Há muitas dificuldades na vida. Uns têm mais, outros menos;

porém ninguém pode livrar-se da maior de todas, que é ter de tratar com Deus. Ter de tratar com Deus é necessidade tão tremenda quão indubitável e inevitável. Confrontemos sua veracidade com nossa falsidade, sua força com nossa fraqueza, sua lei com nossa desobediência. Enumeremos todas as suas perfeições conhecidas, lembrando-nos que nele nada é grande, nem pe-queno, porque tudo é imenso e perfeito. Analise-mos sua infinita santidade e meditemos

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separadamente sobre todos os seus elementos constitutivos, a espantosa exatidão, a pureza de brilho insuportável, i a inefável sensibilidade, as terríveis exigências. Do nosso lado vemos, dia e noite, uma maravilhosa fertilidade de pensamentos, palavras, ações, omissões e intervenções; do seu lado, Deus toma nota de tudo, exigindo a intenção invariavelmente pura e a conta rigorosa; vemos também a severidade do castigo, a eternidade da sentença, e como tudo isso é

infalível, inevitável.

Não poderíamos ver sua majestade no céu, sem ficarmos aniquilados, tal sua radiante pmeza. Os anjos, embora fortes, tremem e abalam-se; nossa Senhora inclina-se profundamente; e o próprio Sagrado Coração de nosso Senhor inunda-se de reve-rente temor.Fáber, O progresso — 4t

No longo curso das Sagradas Escrituras brilham, como luzes, os horríveis castigos que Deus infligiu aos pecados veniais. Moisés e Davi, o homem de Deus que foi

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morto pelo leão, Oza, que estendeu a mão para sustentar a Arca abalada, são exemplos e esmagadoras revelações da santidade de Deus, e o impressionante é que a falta de sinceri-dade de coração para com Deus é o que parece, irritá-lo nessas culpas.

Examinemos a essa luz a nossa vida passada: não temos motivo para temer? Ou vejamos a nossa conduta presente: dá-nos o direito de viver sem te-mor? Quão terrível é para nós pensar que Deus, neste momento, sabe o

que será de nós para toda a eternidade, as penas que teremos de sofrer, ou a felicidade que havemos de gozar. A simples idéa de que tudo já está resolvido basta para gelar-nos o sangue nas veias, ainda que estejamos, por en-quanto, livres. Certamente não se pode conceber nada mais terrível do que ter de tratar com Deus.

Que resulta daí? Indubitavelmente, nada menos que quatro verdades simples.1. Que o

serviço de Deus

é não somente

o ne-

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gócio mais

importante que temos,

mas é o nosso único

negócio. E'

verdade tão

óbvia, que

basta afirmá-la.

Prová-la seria

desperdício de

tempo e de

palavras. Mas, ai

de mim! mesmo

as pessoas

espirituais

precisam que se

lhes lembre

esta verdade

elementar.

Procedamos a rápido

exame. Estamos

nós inteirame

nte convenci

dos desta grande

verdade? Tem a nossa

vida passada

dado provas

disso ? E' a nossa

vida presente pautada

neste princípio? Estamos fazendo

algum esforço,

para que assim

seja ao menos

no futuro? Qual o

resultado quando compara

mos nossa

prontidão e

diligência nos

negócios temporais, com a preferên

cia que devemosdar ao serviço de Deus sobre todas as coisas? Estamos atentos a procurar-lhe a maior glória, ou a nossa união mais íntima com ele? E' claro que, de início, nenhum objeto ou empreendimento nos seja tão empolgante, tão excelente quanto o serviço de Deus?

2.

Que o espírito em que servimos a Deus

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deveser sem reserva alguma. Preciso prová-lo? Quesignifica fazer reserva? Pode haver reserva paracom Deus? Pode sua soberania ter limites, ou oamor que lhe temos jamais atingir a medida dosuficiente? Não temos, todavia, atualmente reser-vas com ele? Não haverá realmente algum cantoem nosso coração, no qual não reine como Senhorabsoluto? Damos-lhe liberdade para pedir o quedeseja? Tratamos de dar-lhe tudo o que pede? Nãolhe impomos alguma restrição, ou

condição implí-cita, para que peça até tal ponto e não além? Po-demos dizer que a nossa vida exterior depende in-teira e incondicionalmente dele? E, finalmente, queo reino das nossas intenções interiores repousa,tranquilamente, sob o seu cetro incontestável?

3.

Que a nossa paixão dominante deve ser o hor-ror ao pecado, mesmo ao pecado venial e às in-dignas imperfeições. Ora, já sabemos o que signi-fica este sentimento? Quando lemos

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algo a respeitoem livros espirituais, não nos parece falso exagero?Temos pedido a Deus com fervor que nos dê ódiocrescente ao pecado? Não há outros e muitos ma-les, que nos afligem mais vivamente? Sentimo-nosatraídos a Getsêmani, e à visão misteriosa do Mes-tre, esmagado, como as uvas num lagar de vinho,sob o horror que lhe inspiram os pecados do mun-do? Até sentirmos algo desse horror ao pecado,os princípios sobrenaturais dificilmente tomarão

posse da nossa inteligência.

4. Que devemos evitar, como se sacrilégio fora, qualquer negligência nas nossas relações com Deus. De certo, o terror da sua majestade, bem como a imensidade do seu amor, deveriam fazer da citada máxima um dos nossos axiomas fundamentais. Há, na negligência, um desprezo pessoal que a torna por demais horrível para aliar-se à idéa de Deus. E', de fato, maior ateísmo prático do que muito pecado grave, a que somos levados, traiçoeiramente, pela veemência das

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paixões culpadas. Em que pé, porém, estamos quanto à meditação, à oração vocal, à missa, à confissão, à comunhão? E se não praticamos bem esses deveres estritamente espiri-tuais, que será dos deveres de estado, com os quais temos de operar a nossa salvação, e que só podem ser santificados por extrema pureza de intenção?

Daí se segue que a única coisa de real impor-tância para nós é saber se servimos, ou não, a Deus. Havemos de salvar-nos, ou não? A gravi-

dade e a seriedade da vida prendem-se a esta dú-vida esmagadora. Nada devemos ter tanto a peito quanto isso. Nada, senão isso. Quão mortos a nós mesmos nos deveria tornar a sombra dessa universal e vitalícia pergunta! Em que pé estamos, no entanto? Um pequenino mal, uma injustiça, uma palavra injuriosa, uma ofensa ao nosso amor próprio, à nossa vaidade pessoal, perturba-nos mais, com efeito, e interessa-nos mais vivamente, do que o risco de perder-

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nos ou salvar-nos. E aspiramos à vida devota! E imaginamos servir a Deus!

E' claro, sem falar de coisas elevadas ou de de-voções fervorosas que, simplesmente, para sustentar e pôr em prática, no serviço de Deus, estas quatro verdades evidentes, devemos servi-lo num es-pírito de generosidade e de sacrifício. O espírito de generosidade pode ser considerado sob dois aspetos diferentes: tal como existe em nosso coração, e como influe em nossa conduta. Encaremo-lo, nes-te momento, sob o seu

primeiro aspeto, porque a vitória que alcançará sobre nossas ações exterio-res é trabalho que requer tempo e combate. Não só nos custará muito consegui-la como também nunca os seus triunfos serão tão completos quanto a nosso ver seria possível. O que eu quero gra-vár-vos no espírito é a imensa vantagem que há na generosidade, mesmo como simples teoria. Sem sabermos claramente o que é ser generoso para com Deus, e sem estarmos firmemente resolvidos a sê-lo, não é provável

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que apareça em nossa conduta externa nenhum grau de generosidade, por menor que seja. O que queremos, na nossa atual posição, é não ter, pelo menos de modo conciente, reserva alguma com Deus; não fixar limites, nem ao nosso amor, nem à nossa abnegação, não fitar os olhos em algum ponto imaginário de perfeição futura, dizendo que, uma vez lá, nos daremos por sa-tisfeitos; não pensar, ao ler ou ouvir falar de certas fases e estados da vida espiritual, de certas práticas de corajosa mortifica

ção, que nunca havemos de experimentá-las, nem tão pouco aspirar a semelhante perfeição. Vejo que só vos apresento o lado negativo da questão. Não digo que deveis determinar positivamente, em dado momento, fazer isso ou sofrer aquilo. Não o desejaria. Digo qué~~\ não deveis excluir, como impossível ou impraticável, grau algum de perfeição. Não deveis ter a menor reserva. O futuro de modo algum vos per-tence. Segui a graça atual, depois a graça seguinte, e assim

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por diante, até que Deus vos arraste tão perto de si que a só idéa disso vos havia de ame-drontar agora. Abandonai-vos à graça e segui-lhe o rumo. Mas, enquanto não compreenderdes quãorazoável isto é e, de antemão, vos resolverdes fir-memente a fazê-lo, podeis ter certeza de que nunca o conseguireis. Entendo ser esta uma boa teoria de generosidade. Se não conhecerdes a teoria agora, não podereis pô-la em prática no futuro.

Ainda que o bom senso desta teoria seja inegável,

a natureza corrupta há de muitas vezes advogar com eloquência o contrário. Por conseguinte, ela não deve ser o simples instinto do coração amoroso ou a resolução da vontade. Deveis torná-la numa convicção intelectual, e convencer-vos dela; senão, sobrevindo a tentação, haveis de tremer, indecisos, dos pés à cabeça, e acabareis por desfa-lecer. E' bom, portanto, tomar isso como assunto frequente de meditação. Convém acostumar-vos a consider

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ar o Evangelho sob o seu verdadeiro ponto de vista e saber que a nossa religião é toda de so-frimento, de mortificação, de sacrifício, de amor consumidor, de zelo que se esquece a si mesmo, e de união que se crucifica. Numa palavra, é a reli-gião da Cruz e do Crucificado. Compenetrai-vos bem desta verdade, que tanto repugna à natureza, de que a abnegação lhe constitue a essência, e que a abnegação deve ser diária, não somente para que possamos ser perfeitos, mas ainda

para que possa-mos ser discípulos de nosso amado Senhor.

Em verdade, Jesus é nosso modelo, de quem disse o Espírito Santo pela boca do Apóstolo, que ele não se comprazia em si mesmo. Fixai os olhos nesse divino modelo, familiarizai-vos com os mistérios da sua sagrada humanidade, até que o seu espírito passe para vós. Aprendei-lhe o segredo da infân-cia, dos dezoito anos de vida oculta, dos tres anos do ministério, da semana da Paixão, dos quarenta dias que passou na terra depois

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da Ressurreição. Pensa ele uma só vez em si? Não é cada minúcia um sacrifício ? Não é tudo generosidade sem reserva pela glória do Pai e pelas almas a perecer? Es-.sa ausência de reserva é o grande característico da Incarnação. Olhai para a Paixão. Tomai-lhe a divindade como o primeiro ponto de meditação. Como a empregou? Impediu que o consolasse; não permitiu que o fortalecesse para poder sofrer ainda mais, além dos limites ordinários da resistên-cia humana; dava, ao

contrário, aos carrascos a força física e o vigor para atormentá-lo, e seu con-curso emprestava peso e violência ao açoite abra-sador. Vêde-lhe depois a alma. Nela previu, durante toda a vida, a sagrada Paixão, tanto que foi um temor e um sofrimento de trinta e tres anos. Getsêmani foi a crucifixão da sua alma, como a do Calvário foi a do seu corpo; e durante toda a paixão, a sua alma foi traspassada por tristezas e hu-milhações nunca excedidas ou igualadas, em con-

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tinuidade, variedade e agudez. Depois, contemplai-lhe o sagrado corpo. Nenhum membro foi poupado — cabeça, mãos, pés, olhos, boca, costas, coração — todos têm sua tortura especial, todos contri-buem, com a agonia que lhes é própria, ao grande sacrifício da Redenção. Seu sangue, derramado com abundância ao pé das oliveiras de Getsêmani e so-bre a calçada de Jerusalém, molha as correias tran-çadas e os açoites agudos durante todo o Caminho da Cruz,

até ao Calvário; é vertido as torrentes no santo madeiro da Cruz, até que o Coração vazio já não tenha mais uma gota a dar. Agora comparai tudo isso com a nossa mesquinha reserva, com nossa falta de generosidade. Para com Deus, que escassas orações, que exames pouco cuidadosos, que confissões indiferentes, que comunhões frias, que respeito humano, que pecados graves! Para com o próximo, que egoísmo nas orações, que falta de caridade nas palavras,

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que espírito de crítica nos pensamentos! Para conosco, que indulgência culpável, que vaidade, que regalo para o corpo, que orgulho na imaginação, que adoração da von-tade!

A grande lição do Crucifixo é a entrega de todo o coração a Deus, é o abandono alegre, são os generosos sacrifícios. Talvez nos venha uma idea mais clara a respeito desta teoria, se a en-cararmos sob outro ponto de vista. Podemos imaginar um homem — um santo não poderia

ser — isento de todo pecado atual, observando à risca todos os mandamentos, porém sem generosidade para com Deus. E', naturalmente, uma impossibilidade teológica; mas, enfim, podemos imaginá-lo. Esse homem sem pecado poderia, sem transgredir nenhum mandamento, ser às vezes indiferente para com Deus, negar-lhe todo serviço heróico e deixar de praticar os conselhos que não obrigam. Poderia, às vezes, ser levado a regatear com Deus e

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julgar que fizera tanto quanto a discrição lho permitia. Poderia, às vezes, entregar-se ao sentimento de que essa vida obediente é penosa pelo sacrifício constante a que obriga. Nos intervalos poderia até ter momentos de tibieza, em matéria que não fosse pecado. Poderia contemplar Jesus sem nenhum brilho de entusiasmo e seus atos de amor poderiam, até certo ponto, ser frouxos. Tudo isto é possível e imaginariamente compatível com inteira falta de pecado. Qual é,

porém, a disposição desse monstro sem pecado, senão o retrato do demônio ou algo de muito semelhante? E por que motivo, senão pela ausência completa de generosidade para com Deus? E' justamente isso que lhe imprime um caráter, não somente pouco cristão, mas até anti-cristão.

Em verdade, já houve uma criatura pura, isenta de toda sombra de pecado; e no entanto, se assim podemos dizer, a falta de pecado não lhe é a mais alta prerrogativa, mesmo

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independente da ma-ternidade divina. Lançai um olhar sobre os sessenta e très anos que ela passou sobre a terra e vereis o que significa ser generoso para com Deus, e não ter a mínima reserva com ele. O seu primeiro ato de amor e de uso da razão, desde o momento da sua imaculada conceição, foi o total e alegre aban-dono de si mesma a Deus, jamais retratado, nem por um instante, durante todos aqueles anos. Ao fazer, portanto, voto de virgindade, como a mais perfeita oferta à infinita santidad

e de Deus, ela sacrificou aparentemente o objeto mais caro a todos os corações das jovens filhas d'Israël: a espe-rança de ser Mãe do Messias. Mais tarde, anuindo, em obediência aos que tinham direito de exigir-lhe o consentimento, a desposar a são José, que inteiro abandono de si aí também! Mesmo o seu fiat na Incarnação e sua aceitação da dignidade de Mãe de Deus foram atos de generosidade, não somente pelos inegualaveis sofrimentos presos a tão glo-

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rioso título, como também pela violência que foi obrigada a fazer à sua profunda humildade. A apresentação de Jesus no Templo, e a aceitação das profecias de Simeão, foram igualmente exem-plos de abnegação e de generosidade para com Deus. No meio de todas as provações da sagrada Infância, ela não pediu um milagre, para aliviar-lhe os cuidados. Na casa santa de Nazaré, sua vida outra coisa não foi senão uma perpétua oblação de Jesus e de si mesma a Deus. Sua pobreza foi perfeita;

não procurou consolações espirituais, contentando-se com o silêncio quasi contínuo de seu divino Filho, quando desejava ardentemente ouvi-lo falar. Separou-se sem egoísmo, quando ele partiu para o seu ministério de tres anos, inter-rompendo as relações mútuas e dificultando a con-vivência com ele. Consentiu na paixão e cooperou com ele em todos os atos. Passou quinze anos de resignada desolação na terra, depois de ter-se ele elevado aos céus, e, qual imã,

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quasi atraído seu Coração imaculado. Deu-o ao Pai eterno na Ascen-são, e sem murmúrio tomou João em troca de Jesus.

Quão admirável deve ter sido o seu desapego, para desprender-se assim da presença do seu que-ridíssimo Senhor, e nada possuindo, nem mesmo Jesus, que não abandonasse generosamente à vontade de Deus! Tal o espírito em que, segundo os nossos meios e a nossa condição, devemos, mediante o auxílio de sua graça, servir a Deus todo pode-roso; e entre as múltiplas razões

alegadas noto uma, por se referir às reflexões que ora fazemos.

Já ouvimos falar muito a respeito da liberdade de espírito e já lemos que sem ela jamais chegare-mos à perfeição. Todos concordam em fazer grandes elogios à liberdade de espírito e ao dese-jo de adquiri-la, mas poucos têm uma noção clara do que eles mesmos entendem por liberdade de espírito. A maior parte das pessoas julgam que estão gozando dessa liberdade, quando, na reali-dade, estão tomando liberdad

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es com Deus e com os deveres religiosos, de tal maneira, que o castigo rigoroso é inevitável. A liberdade de espírito não consiste, pois, em livrar-se de uma regra de vida e em não ter certas obrigações em horas fixas; nem em mudar constantemente de devoções, de li-vros de piedade, ou coisa semelhante; em não se acusar quando houve descuido em algum exercício; em desprezar o que seria justo escrúpulo para outras pessoas boas; em agir de improviso e não atender às minúcias

dos atos, sob o pretexto de que Deus vê o coração; em dirigir palavras fervo-rosas a Deus e cortejar-lhe as carícias cheias de misericórdia, e não procurar mortificar-se e dominar as paixões. Tudo isto é negligência, é imperti-nência, não é espírito de liberdade cristã. Quantos não há, todavia, que, por desagradar a Deus ligeira e inconcientemente no juízo que dele fazem, e po-rem-se muito à vontade no seu serviço, imaginam estar gozando do sopro, do espaço e

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do ar da liberdade vivificante, quando, pelo contrário, estão a perverter os princípios de reverência e religiosi-dade das suas próprias inteligências, e bebendo o pecado venial como animais sedentos bebem água.

Se, porém, nem sempre é fácil conhecer a liber-dade de espírito e distingui-la da rudeza, da irre-verência, ou duma indiscreta confiança em si, a di-ficuldade diminue ao refletirmos que, na maior parte dos casos, é possível saber pelo menos o que não é liberdade de

espírito. Pois ninguém pode, de modo algum, possuir a verdadeira liberdade de es-pírito, se não está servindo a Deus com espírito de generosidade. Ora, é fácil saber se assim fa-zemos ou não, e se nos esforçamos por praticá-la. Ante a resposta negativa, podemos ter infalível certeza de que aquilo que em nós se parece com liber-dade de espírito é, na realidade, coisa mui diversa e provavelmente algo de mui indesejável. E'-nos, portanto, um auxílio saber

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que sem generosidade não há liberdade (1). Uma corresponde à outra, embora, por provações interiores, em dadas cir-

1) Não falo da liberdade no sentido teológico ou me-tafísico, mas da liberdade de espírito, um caraterístico da piedade cristã.

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«o CAPITULO rv

cunstâncias, possa haver generosidade sem liber-dade.

O espírito de Jesus é um espírito de liberdade. Pela Sagrada Escritura passou a ser provérbio cristão que onde se acha o espírito de Deus, ali se acha a liberdade. No princípio, o espírito de liberdade destruiu a escravidão do temor e da sombria su-perstição, que havia reinado entre os pagãos; venceu a estreiteza de espírito, o ceticismo e as

paixões grosseiras dos gregos e romanos, incrédu-los; opôs-se à escravidão do ceremonial e dos pre-ceitos positivos, preparados pelos judeus para a vinda de nosso Senhor. O espírito de Jesus respira liberdade, porque é uma lei de amor; não porque é amor somente, mas porque é lei, e lei de amor. E' de liberdade, graças à munificente superabundância do grande sacrifício, e, sobre todas as outras razões,

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porque Jesus é Deus.

Daí deduzimos naturalmente que igual liberdade deve penetrar nas nossas mais íntimas relações com nosso Senhor, e imprimir caráter em cada fase da vida espiritual e tal, em verdade, é o caso. A liberdade cristã consiste na isenção do pecado, que nos degrada a natureza e destrói o respeito que nos devemos a nós mesmos, constituindo uma fonte de desgraça, a mais opressiva das tiranias, e, sobretu

do, uma ofensa a um Deus infinitamente bom. Consiste na isenção das penas do pecado, tais como a cólera de Deus, o inferno, e uma morte má. Mas é também isenção de mundanismo, isto é, de um coração apegado ao mundo, de uma inteli-gência cheia do mundo, de vistas baixas, e dessa série de decepções que sobrevêm a todo homem que põe sua consolação no mundo. E' isenção da escravidão para com os outros homens, porque faz da

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perseguição um meio de merecer, da calúnia, uma doce semelhança a Jesus, começando então a obra, que só acabará com o último suspiro, da nossa libertação do respeito humano. Acima de tudo, porém, a liberdade de espírito é isenção de nós mesmos; pois como há de abaixar-se o liberto de Cristo a ser o escravo de si? Estar isento da mesquinhez do amor-próprio, da lembrança contínua da nossa própria vergonha, é ser livre de fato.

Nem há outra Uberdade que mereça tal nome.

Numa palavra, liberdade de espírito não consiste de modo algum em maior desembaraço para com Deus, em menor cuidado no desempenho dos deveres espirituais, mas nesta única coisa: no des-apego das criaturas. Liberdade e desapego consti-tuem uma só e mesma coisa. E' livre quem é desape-gado, e só ele. Mas é claro que ninguém pode ser desapegado, se não for generos

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o, pois à generosidade consiste em desapegar-se sempre, com dor e custo, das criaturas, por amor do Criador!

Oh! se nos fosse dado a todos gozar dessa li-berdade celestial! Não há nada a que a glória de uma alma livre se possa comparar, a não ser à adorável magnificência do próprio Deus. A alma desapegada habita nas alturas, e respira o ar do céu. A criação estende-se-lhe bem embaixo, qual ponto no espaço. Anjos e santos formam-lhe a corte, a

pureza é-lhe a atmosfera. Jesus é-lhe irmão, companheiro, imagem. Sua vontade é feita sempre, pois é sempre a vontade de Deus, de sorte que, nisso, é tão onipotente quanto ele. Sua sabedoria é sobrenatural, incompreensível às inteligências hu-manas. Sua paz é eterna, profunda, fora do alcance dos inimigos. A alegria de sua vida está toda na inefável alegria de Deus, e em nada senão nisto. Quão admirável é a dignidade dos que

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foram remidos pelo precioso sangue de Jesus, e tão docemente

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62 CAPITULO IV

justificados pela sua vitoriosa Ressurreição! Os céus não são tão altos, quanto a liberdade desses eleitos, nem o mar tão profundo, nem as planícies da terra tão vastas. A pobreza não pode manchá-la, a dor não pode entristecê-la, a morte não pode acabá-la. Bendito, tres vezes bendito seja Deus, pela liberdade com que Cristo nos libertou, brada o coração transbordando de amor de Deus.

CAPÍTULO V

Dos empecilhos

Nosso percurso parece, agora, estar claramente traçado, e já recebemos instruções sobre o espírito em que devemos servir a Deus. Se já estamos fora da enseada, por que não progredimos? Outros, ao nosso

lado, estão em plena viagem, mas nenhuma brisa impele as nossas velas. Seja porque ainda estamos sob a influência da costa, seja por qualquer outro senão, o certo é que não recebemos a brisa. Tal a queixa habitual de muitas almas nesse período. Alguma coisa as retém, e não percebem logo de que se trata. Cabe-nos agora descobrir esses secretos obstáculos e saber como os devemos enfrentar.

Nosso primeiro cuidado deve ser examinar os sintomas que nos indicam os pontos fracos. Falta-nos, talvez, força para resistirmos às tentações, para continuarmos com as penitências, e cumprirmos fielmente com os deveres de piedade. Ou sentimos pouca elasticidade ante as surpresas que nos sobrevêm, as mudanças, as provações de gênio, as obrigações exteriores, e no modo de conciliá-las com as devoções e a vida interior. Demais, temos con-ciencia de certa falta de luz interior. Os exames de conciencia tornam-se nublados e turvos. Envolve-nos uma tendência para o escrúpulo e para minucias e aparentemente perdemos de vista a idéa

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DOS EMPECILHOS

de Deus que tínhamos, e que, embora mui imperfeita, era uma verdadeira iluminação. Há uma espécie de indecisão quanto ao combate espiritual, • sentimos a necessidade de mais força de vontade, de mais vigor. Acresce, a tudo isso, uma espécie de sonolenta preguiça que se estende sobre nós, « nos oprime o sonho.

Há, visivelmente, algo de errado. Que será? Aqui temos tres falhas a justificar: poder, elasticidade, luz interior. Provêm de várias causas. Resultam, em parte da atenção a nós mesmos, que fomos quasi forçados a prestar-nos, e das nossas impressões interiores nessas primeiras fases da vida espiritual. A introspecção é sempre perigosa, embora necessária, e consequentemente nunca deve ser praticada sem o antídoto que a acompanha. O conhecimento próprio é uma graça, uma necessidade • uma benção, mas não impede que seja também um perigo. O perigo é levar-nos à falta de veracidade, à sensibilidade, à afetação e ao mais repugnante dos vícios na vida espiritual, o sentimentalismo. Talvez também não tenhamos exercido suficientemente a fé, o que explicaria as tres falhas ou necessidades de que tratamos. Levou-nos o sentimento, a doçura, ou o impulso, em vez de guiar-nos a fé. Daí tomarmos por Deus o que não são senão dons de Deus; daí o termos acostumado nossos olhos a uma luz artificial tão forte, que já não enxergamos no suave crepúsculo da vida cristã. Ou talvez o mal esteja na falta de solicitude em seguirmos o espírito da Igreja, descuidando-nos de certas devoções, ou estimando-as superficialmente, tais como confrarias, escapulários, indulgências e coisas semelhantes. Ou não consideramos os objetos da fé, ocupando-nos exclusiva e ansiosamente com o aperfeiçoamento próprio; e a devoção nunca se pode descuidar da doutrina, sem pagar caro no fim. Não há nada com que Satanaz possa tolher melhor os nossos movimentos do que pela de-voção não teológica. Ou então o erro pode ter surgido porque nos descuidamos das obras exteriores de misericórdia e edificação ou porque não fomos tão cuidadosos quanto deveríamos ter sido na convivência com o próximo.

Concluo que os nossos obstáculos secretos se baseiam em cinco erros: tres na vida interior, de que nos ocuparemos neste capítulo, e dois na exterior, de que trataremos nos capítulos seguintes.

1. E' bem possível que o empecilho seja a falta de devoção a nossa Senhora. Sem esta devoção a vida interior é impossível, porque não é conforme à vontade de Deus. E esta reside sobretudo em nossa Senhora. Ela é a solidez da devoção, e não nos lembramos bastante disto. Os principiantes estão com frequência

tão ocupados com a parte metafísica da vida espiritual, que não dão a esta devoção a necessária importância. Mencionarei aqui alguns pontos que eles não parecem ter a peito. A devoção à Mãe de nosso Senhor não é um ornamento do sistema católico, uma beleza su-pérflua, nem mesmo um auxílio, dentre os muitos que podemos ou não empregar, mas é parte integral do cristianismo, e, sem ela, nossa religião não é, estritamente falando, cristã. Seria uma religião diferente da que Deus revelou. Nossa Senhora é uma lei distinta de Deus, um meio especial de graça, cuja importância ressalta do ódio instintivo que lhe tem a heresia. Maria é o pescoço do corpo místico unindo portanto todos os membros à Cabeça, e sendo o canal e o instrumento que dispensa todas as graças. A devoção a nossa Senhora é a verdadeira imitação de Jesus, porque, FaDer, O progresso — 6

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DOS EMPECILHOS

após a glória do Pai, foi a devoção mais ligada e mais cara ao sagrado Coração. E' de uma solidez a toda prova, porque está perpetuamente ocupada com o ódio do pecado e a aquisição de virtudes substanciais. Descuidar-nos dela é desprezar a Deus, pois ela é sua lei; é ferir a Jesus em sua Mãe. Deus mesmo a colocou na Igreja, como um poder distinto, e, portanto, o seu culto é eficaz, é fonte de milagres, é parte da nossa religião, que de modo algum podemos pôr de lado. A espiritualidade é necessariamente ortodoxa. Isto é evidente. Ora, a doutrina não seria ortodoxa, se preterisse o ofício e as prerrogativas da Mãe de Deus. Assim também a espiritualidade não é ortodoxa, em se desviando ou separando duma devoção tão generosa quão justa. Com efeito, um erro de doutrina é duplamente perigoso quando se relaciona com a vida espiritual. Envenena a tudo, e não há prejuízo que não se possa prever para a infortunada alma que lhe é sujeita. Se, então, tendes os sintomas que indicam algo de errado, algo que vos retarda, verificai primeiro se vossa devoção a nossa Senhora é o que devia ser, em qualidade e grau, em fé e confiança, em amor e lealdade. A perfeição está sob a sua proteção particular, porque é uma das especiais prerrogativas de que goza como rainha dos santos.

2. Talvez a devoção à sagrada Humanidade de Jesus e âos seus mistérios seja defeituosa. E' bem possível, e não é tão raro quanto deveria ser. Quem pode, porém, duvidar dessa devoção, que, embora nem sempre nos deixe nas mais altas regiões da contemplação, é todavia indispensável nas fases iniciais da vida espiritual? Deve impregnar todas as camadas da vida cristã. E ser cristão significa isso e não outra coisa. Cristo é o caminho do cristão, a verdade do cristão, a vida do cristão. Levar vida santa é ser esposa do Verbo incarnado, e, portanto, o amor do Verbo incarnado é o próprio coração da santidade. O amor da sagrada Humanidade é de tres espécies: uma representa os afetos interiores para com nosso Senhor; outra, as provas de sinceridade e solidez desses afetos, e outra ainda, as operações que Jesus, ele mesmo, suscita nas almas bem dispostas. São, respetivamente, amor afetivo, efetivo e passivo.

O amor afetivo de nosso Senhor consiste num desejo intenso de sua glória, numa alegre complacência no triunfo dos seus interesses e num afetuoso e nobre pesar à vista do pecado. Leva-nos a derramar a alma em confidência junto dele, a queixar-nos da nossa frieza e imperfeições, a expor-Ihe nossas penas, cansaços, desgostos, -e provações, abandonando-lhe tudo numa indiferença tranquila e infantil.

O amor efetivo faz-nos ver a imagem viva de Jesus, representando em nossa própria vida os estados, mistérios e virtudes da sua. Trazemos exteriormente essa imagem pela contínua mortificação, diminuindo e apertando o conforto corporal, regulando os sentidos, derrubando as exigências extravagantes do mundo e da sociedade, pela ciosa moderação dos afetos e dos prazeres inocentes, e pela perpétua repressão de toda

vaidade e arrogância. Nossa vida interior é conforme à de Jesus pela liberdade de espírito que significa o desapego das criaturas e a conformidade à sua vontade. Nossas ações exteriores trazem a estampa divina quando procedemos como se fôssemos membros seus, quando fazemos todas as ações em seu nome e segundo as suas inspirações.Não devemos, de modo geral, contar com o amor passivo, nessa fase da vida espiritual; se trato dele aquí, é mais para aprendermos a anelar pelo dia em que venha a ser nosso. E' sempre animador o pensamento de quão perto de Jesus somos capazes de chegar, mesmo antes de morrer, se assim aprouver a Deus. Sua primeira operação nesse estado sobrenatural é ferir-nos a alma de amor, para que percamos o gosto de tudo que não for ele ou dele. E' como se nos fosse dada uma nova natureza, tão pouco em harmonia com o mundo desgraçado que nos cerca, que desfalecemos e definhamos, como se estivéssemos fora do nosso ele-mento. Então Deus aprofunda e embebe-nos os pen-samentos, afetos, palavras e obras com o seu amor, até ficarmos incapazes de fazer outra coisa senão o procurar, qual Esposa dos Cânticos. Todo amor, exceto o seu, é rejeitado; toda idéa, exceto a sua, apaga-se-nos na imaginação; tudo, enfim, que não está em relação com ele, cai-nos da lembrança, como se nunca fora, a tal ponto que ele possue a nossa alma inteiramente e não somos nós que vivemos, mas ele é que vive em nós. Então abrasa-nos com o fogo do seu irresistivel amor e faz-nos dar largas aos feitos de heróica caridade e união sobrenatural com ele. Ao mesmo tempo, aviva-nos o sentimento da nossa própria vileza, do nosso nada, de tal maneira que estamos sempre a deplorar a insignificância do nosso serviço e a falta de energia dos nossos corações. Por úl-timo, Deus lança-nos num estado de sofrimento purificador; ajusta-nos aos ombros a cruz perene e nós, então, só procuramos sofrer mais, só evitamos sofrer menos. Assim, despe-nos de nós mesmos e torna-nos inteiramente seus. Tudo isso, porém, ainda está muito longe. Fitai os olhos atentamente no alto; não sei, porém, se conseguireis sequer ver os topes das montanhas onde tudo isso se encontra. Coragem! Já é alguma coisa saber que existem tais alturas.

Inconcebíveis são as vantagens que tiramos desses exercícios de amor ao Verbo incarnado. O coração desapega-se das criaturas; o amor próprio queima-se e extingue-se; as imperfeições desaparecem; a alma enche-se do espírito de Jesus e-dá passos de gigante nas veredas da perfeição. Se a brisa não nos impele as velas, verifiquemos se nosso amor para com a adorável Pessoa e a sagrada Humanidade de nosso Senhor é o que deveria ser, o que ele espera e pede de nós; se, ao menos, cultivamos visivelmente esse amor e se nos esforçamos diariamente por dilatá-lo.

3. A terceira deficiência, e talvez a mais comum, é a falta de sentimento filial pára com Deus. Quisera ser, ao mesmo tempo, claro e firme neste ponto, porque dele muito depende. Se a idéa que fazemos de Deus não é,

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DOS EMPECILHOS

invariável e habitualmente, a de um Pai, as próprias fontes de piedade se hão de corromper em nós. Incorremos na desgraça de que fala o profeta: nossa doçura será amarga e nosso amargor será doce.

Nossa posição em relação a Deus é a de criaturas. Aprofundemos bem o sentido destas palavras. Nós lhe pertencemos em absoluto. Não temos direitos senão os que ele, em sua compaixão, deseja assegurar-nos pela sua aliança. Nossa vida está à mercê da Providência, e a Providência não é um mero curso de acontecimentos exteriores, mas a expressão da vontade das tres Pessoas divinas.

O destino que nos aguarda na outra vida já lhe é conhecido; e, do nosso lado, sabemos que carecemos de mais graças do que ele é obrigado a dar-nos, embora saibamos também, com infalível certeza, que ele no-las dará se nos achar dispostos a corresponder às graças que já temos. Mas esta consideração não pode diminuir a ansiedade que, naturalmente, nos causa tal incerteza. Nem a consideração dos atributos de Deus, a oniciência, onipotência, imensidade e inefável santidade, é capaz de diminuir esse sentimento de receio. Não obstante, a convicção de que a têmpera do culto, o espírito de adoração, o instinto religioso consis-tem apenas em nos sentirmos, em falarmos, em agirmos sempre para com Deus como criaturas — isto é, como entes que não têm existência independente, que foram chamados do nada por ele — esta convicção, digo, não deve de forma alguma submergir-nos nas sombras da melancolia ou produzir inquietação. Quanto mais seriamente a alma receber estas verdades, quanto mais sem reservas reconhecermos a soberania de Deus, tanto mais tranquilizadores, sobrenaturalmente tranquilizadores, serão os efeitos.

Isto, contudo, não aparece logo, mas só quando o espírito se habituou ao pensamento religioso e dele se compenetrou. Somos tentados de ver a Deus sob outra luz que não a de Pai, pela nossa fraqueza e pela sua sobrepujante imensidade e onipotência. A nossa vida espiritual, todavia, depende inteiramente do ponto de vista sob o qual encaramos a Deus. Se vemos nele somente o Mestre e Senhor, então servi-lo é nossa obrigação, e consequentemente as idéas de recompensa e de castigo penetrarão em tudo quanto fizermos. Se o consideramos unicamente como Rei, os indubitáveis direitos de seu despotismo inquestionável nos oprimirão, e não ousaremos ter no coração sentimentos mais ternos que a idéa abstrata de respeitosa lealdade. Se é para nós, tão somente, um Juiz, os trovões da sua vingança nos ensurdecerão, a misericórdia terrível das suas acusações nos emudece-rão, e o esplendor da sua intolerável santidade nos cegará. Se o considerarmos exclusivamente sob qualquer dessas luzes, ou sob todas elas, é claro que o modo pelo qual o encaramos cunhará o serviço que lhe prestamos. A dureza, a frieza, o temor desordenado e o sentimento de incapacidade para sustentar os nossos direitos, nos tornarão necessariamente cobardes e mesquinhos, servis e mercenários, querelosos, e tão desrespeitosos quanto ousarmos ser.

Mesmo vendo nele nosso Criador podemos errar, pois é possível considerar um Criador como um Ente independente, com existência própria e eterna, que, como primeira causa, para o próprio prazer, tirou as criaturas do nada, e cuida tão pouco delas quanto não lhes é devedor. A mim parece, porém, que ser Criador subentende ser Pai. A mera vontade da criação é de certo um ato estupendo de ternura paternal. Assim, Deus não somente é nosso Pai e Criador, mas é nosso Pai, porque é nosso Criador. A criatura racional, para ser criatura, precisa também ser filho. Trazemos conos-co, do nada primitivo, o laço filial. A criação pertence mais à bondade do Criador do que ao seu poder ou sabedoria. Se eu nada mais soubesse sobre Deus senão que ele é o meu Criador, sentiria que é também meu Pai. Qui plasmasti me, miserere <mei. Tu que me formaste, tem piedade de mim, foi a oração de toda a vida da penitente do deserto. Havia uma espécie de direito, neste apelo, que a tornou preciosa à humanidade e timidez da eremita.

Não há, contudo, verdade mais certa que esta: Deus é nosso Pai, e tudo quanto há de terno e de suave em toda paternidade terrena é uma ínfima sombra da doçura sem limites e do afeto de sua paternidade celeste. A beleza e a consolação de tal idéa excedem quaisquer palavras. Destrói a impressão de isolamento neste mundo, dando nova côr ao castigo e à aflição e tira consolação da própria sensação de fraqueza. Habilita-nos a confiar a Deus problemas que não fomos capazes de resolver, e une-nos pelo sentimento de parentesco íntimo a todo3 os nossos co-irmãos. Penetra em todas as nossas ações espirituais e delas torna-se o pensamento motor. Na penitência recordamo-la; nos sa-cramentos, provamo-la; na conquista da perfeição, nela nos apoiamos; nas tentações, alimentamo-nos dela; nos sofrimentos, gozamo-la. Deus é nosso Pai nos acontecimentos diários da vida, protegen-do-nos contra mil males que nos poderiam advir, respondendo às orações, abençoando os entes queridos, e, sobretudo, tendo muita paciência premeditada e incansável, que atinge um grau que nos parece, a nós mesmos, incrível.

E' nosso Pai, não só nominalmente, mas realmente. O laço, como disse, vem da criação. O Criador tem um amor sensível, maravilhoso e misterioso pelas suas criaturas, amor com o qual nenhuma afeição terrena se pode comparar, quer em indulgência quer em ternura. Além de que, aprouve ao seu divino prazer confundir nossos interesses com os seus. E ele de tal modo nos criou à sua semelhança e imagem, que lhe podemos refletir mesmo a majestade divina. Mas é nosso Pai também, por aliança, e como ele sempre cumpre as suas promessas, essa nova paternidade vale tanto quanto a outra. Mas acima de todos os laços da natureza,. da graça e da glória, em virtude dos quais nos ehama seus filhos, ele é nosso Pai de um modo que nunca nos será dado conhecer plenamente, isto é, porquanto é Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.

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DOS EMPECILHOS

Desse sentimento filial para com nosso Pai celeste, resulta o sossego da conciencia em relação aos pecados passados. Confiamos-lhe amorosamente a mesma decisão terrível do nosso destino eterno. Gozamos da liberdade de espírito até nas ações indiferentes, junto a um intenso desejo de servi-lo, que o amor filial nos inspira. Gozamos, também, de um suave esquecimento próprio, da doçura na oração, da paciência nas dúvidas, da calma nas dificuldades, da alegria nas provações e, na desolação, duma resignação que não se queixa. Adoramo-lo por amor a ele, por ser nosso Pai muito querido. Doce pensamento este, que enche as almas,' qual tríplice raio de sol, dando-nos mais confiança em Deus, mais liberdade com Deus, mais generosidade para com Deus!

Demorei-me neste ponto, porque é de suma im-portância compenetrarmo-nos do verdadeiro espírito do Evangelho. Se tantas pessoas erram a respeito, é porque não se lembram a toda hora do dia que nosso Senhor é Deus, e confundem a idéa de Pai com a de Deus, deixando que prepondere o elemento mais duro. O espírito do Evangelho é um espírito de ternura, e estas tres falhas que examinei: a devoção a nossa Senhora, a devoção à sagrada Humanidade, e os sentimentos filiais para com Deus são ao mesmo tempo efeitos e causas da falta de ternura. E' este o grande empecilho oculto. Com cavalheiresco desejo de perfeição, aversão ao mundo, e gosto pelas coisas elevadas, contastes progredir, e estais desapontado. Já vos pedi que vos examinásseis, para verificar se a devoção para com nossa Senhora, para com a sagrada Humanidade de nosso Senhor, e para com a sempre bem-aventurada Paternidade de Deus nada deixa a de-sejar. Agora deixai-me explicar a misericórdia de outro modo. A ausência dessas tres devoções significa falta de ternura, embora signifique mais ainda. Mas a ausência de ternura na religião basta com frequência para impedir todo progresso na santidade, e esta afirmação merece ser comentada. E' possivel que alguém seja religioso até certo ponto, isto é, que tema a Deus, odeie o pecado, seja concienciosíssimo e deseje honestamente salvar sua alma. E' ótimo. Mas ninguém pode alegar que os santos foram dessa categoria. Havia neles tal doçura, brandura, delicadeza, suavidade, ouso mesmo dizer, tal poesia, que lhes imprimia um caráter muito diferente à devoção. Foram imagens vivas de Jesus. Eis o que nós também, na medida de nossas forças, devemos procurar adquirir, se desejamos crescer em santidade.

Ternura não significa impressionabilidade, sensibi-lidade, ou facilidade para chorar, o que pode igual-mente indicar cobardia, preguiça, falta de vontade resoluta e de energia. A verdadeira ternura começa de diversos modos e os sinais de progresso são o arrependimento dos pecados, que não pensa nos castigos, e aquilo de que já falei, isto é, certa suscetibilidade a respeito dos interesses de Jesus. E' a docilidade infantil para com os superiores e diretores espirituais; é a mortificação, despida da impressão de que seja um jugo; é a observância dos conselhos, e não

só dos preceitos; é, enfim, um desejo fraco, incipiente, por enquanto quasi imperceptível de humilhações. A' medida que a ternura se apodera das almas, todos os característicos da santidade reunem-se-lhe e agrupam-se-lhe em redor. O amor é, pois, melhor salvaguarda do pecado que o temor, e a ternura torna-nos a conversão a Deus mais completa por torná-la mais fácil. Tem sobretudo o dom de atrair a Jesus, de quem é o espírito e que não quer ser vencido na sua própria doçura. Sem esta ternura não há progresso, e, enquanto facilita o dever, aperfeiçoan-do-lhe o cumprimento, insinua-nos instintos essencialmente cristãos, como sejam o amor do sofrimento, a paciência nas provações, a sede de hu-milhações, e coisas semelhantes. Além disso, trans-forma o pesar, causado pelo pecado, numa contrição mais preciosa para a alma penitente do que qualquer outro dom. Considerai os fenômenos da Incarnação. Quais foram? Desamparo, sofrimentos que não eram nem necessários nem obrigatórios, sacrifícios, abatimentos, derrotas contínuas, absoluta falta de asserção de direitos, indiferença quanto ao êxito, e uma Paixão que arranca lágrimas. Qual a nossa resposta a tudo isso, senão o sentimento que resume a palavra ternura?

A Sagrada Infância ensina-nos a ternura, a Paixão ensina-nos ternura, o Santíssimo Sacramento, também ternura, o Sagrado Coração, sempre ternura. Mas contemplai a vida quotidiana de Jesus entre os homens e compreendereis melhor ainda o que é essa ternura. Há, primeiro, ternura no porte exterior de nosso Senhor — a narrativa do domingo de Ramos serve-nos de exemplo. Também o seu modo com os discípulos, os aflitos, os que sofriam, os que se lhe lançavam no caminho. Ele não apagou a torcida fumegante, nem quebrou a vara rachada. Isso dá-nos uma imagem completa dele. Havia ternura nos olhos, como quando fitou o mancebo rico e o amou. E são Pedro não se con-verteu por seu olhar? Sua conversa era impregna-

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76 CAPITULO V

da de ternura. A tonalidade de suas parábolas, a ausência de terror nos sermões, o abismo de per-dão que nos abrem seus ensinos, tudo é prova disso. Nem é menos terno ao responder às perguntas do que ao ser acusado de possesso e esbofeteado. As mesmas repreensões que fazia eram embebi-das da ternura, como vemos na mulher apanhada em adultério, em Tiago e João, no Samaritano e Judas. Seu zelo não foi menos terno ao

censurar os irmãos que queriam atrair o fogo celeste sobre os aldeões samaritanos, do que quando, levado por indignação divina, purificou o templo e expulsou os vendilhões.

Ora, se nosso Senhor é o nosso modelo, se seu espírito é o nosso, é claro que a ternura cristã deve causar profunda impressão em nossa vida espiri-tual: deve imprimir-lhe tom e caráter. Sem a ternura, jamais teremos aquele espírito de generosidade

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com que devemos servir a Deus, de que falá-mas há pouco. E' tão necessária à vida interior e às relações com Deus, quanto à vida exterior e às re-lações com o próximo. Há um dom do Espírito Santo, a piedade, cujo ofício especial é conferir esta ternura. .

Se, pois, os obstáculos secretos em que se ba-seiam as vossas queixas se referem à vida interior, se provêm de defeitos de sentimentos e de exercí-cios de devoção, cultivai estas tres devoçõe

s: a nossa Senhora, à sagrada Humanidade de Jesus e à Paternidade de Deus. Grandes serão os resulta-dos. Emendai-vos nestes tres pontos e as velas não balançarão mais, preguiçosamente, contra o mastro.

CAPITULO VI

i Da conduta exterior ,

Insinuei, no capítulo precedente, que certos obstá-culos surgem só porque nos descuidamos da conduta exterior, e não nos esforçamos em aplicar ao trato com o

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próximo os princípios da vida espiritual. Seria útil nunca nos esquecermos do quanto isto é impor-tante. E' sobretudo no início da vida devota que devemos de modo especial trazê-lo escrupulosamente presente ao espírito. O principiante é sempre tentado a menosprezar a conduta exterior. Aprendeu há pouco, pela primeira vez, a importância da intenção reta, do recolhimento habitual, enfim, da superioridade da vida interior. A moderação custa à naturez

a humana e a novidade raro deixa campo livre pa-ra o que é antigo e conhecido. Daí, embora nin-guém ouse dizê-lo, o principiante, cheio da idéa verdadeira, mas para ele nova, da superioridade da vida interior sobre a exterior, julga a esta sem valor, ou a considera simples ten-tação. A estima de uma gera, infelizmente, o desprezo da outra. Quem começa a entregar-se à religião, é levado a desprezar pessoas e coisas. Entre as tentações dos

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principiantes é o desprezo a mais comum. Ser homem de uma só idéa é coisa fácil, e reveste uma aparência de ca-valheirismo, que facilita ainda mais a ilusão. Quando um principiante prega uma cruzada contra o quer que seja, podemos sempre desconfiar de al-

CAPITULO VI

guma ilusão. O espírito reformador é oposto ao es-pírito ascético. Uma cruzada contra nós mesmos pode ser boa, mas ainda assim é preferível esperar até que saibamos dominar-nos.

Atacar os erros de outrem é fazer obra do demônio. A obra de Deus está em atacar os nossos.

Quão diferente é a sabedoria de santo Inácio! Quisera ele que, ao fazer o exame particular de con-ciência, escolhêssemos, como objeto primeiro de san-ta perseguição, não a culpa que mais nos aborrece, ou nos parece de maior importância, mas a que maior irritação ou escândalo causa ao próximo. Tal deve ser o nosso modelo.

Vejamos agora

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como os principiantes, (pois posso quasi dizer que somos ainda principiantes na espi-ritualidade, embora já demos os primeiros passos) ofendem muitas vezes as pessoas que os cercam e dão má fama à devoção. Quisera, ao falar destes erros e das pessoas que lhes estão sujeitas, não ser severo como é o mundo, pois sei quantas dificuldades as cercam, e quanta indulgência têm o direito de reclamar; sei quão nobre é trabalharem elas

para Deus com todo o coração e toda a alma. Não a seus nobres princípios, mas à levedura do mundo a que pertenciam, é que devemos atribuir o que há de errôneo e de ofensivo no seu procedimento.

Ofendem pela indiscrição, porque não observam as conveniências de tempo, lugar, idade, pessoas e circunstâncias; pela incoerência, porque sua con-duta parece contraditória aos que ignoram a guerra interna que sustentam; pela suscetibilidade, que o mais

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severo crítico perdoaria, se lhes pudesse ver a dor interior, o cansaço de espírito ante a luta e a tentação; pela singularidade, porque não é fácil adotar de pronto uma nova série de princí-pios e saber aplicá-los correta e graciosamente às

DA CONDUT

A EXTERI

OR

exigências duma multidão de deveres que se chocam; e isso em verdade não é culpa sua e menos um escândalo dado que aceito como tal — porque as máxima

s do Evangelho são de todo incompatíveis com as do mundo.

Devemos, portanto, convencer-nos de quão impor-tante é, ao progresso espiritual e à santidade inte-rior, zelar muito as relações com o próximo, de modo a sermos para ele o odor da santidade de Cristo. A razão pela qual muitos falham no caminho da perfeição está na negligência sobre este ponto; procuram uma causa interna do seu fra-casso, quando a verdadeira razão

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está na conduta exterior.

Em toda questão espiritual há um lado bom e um lado mau. Assim há um mau sistema de pro-curar edificar o próximo. Nunca devemos edificá-lo com sacrifício de quaisquer princípios; não nos compete, por exemplo, mostrar que estamos isentos de fanatismos, que somos independentes de formas e ceremoniais, ou que temos o nosso modo de pen-sar sobre a observância de certos preceitos po-sitivos. Quero dizer

que não devemos fazer o mal, mesmo com o fim de conseguir o bem. Não é pe-quena tentação, especialmente em momentos de ex-cessiva discrição, mostrar aos outros, com o sa-crifício de algum princípio severo, que a nossa santa religião não é tão dura nem tão cruel quanto parece aos partidários do mundo. A tentativa, po-rém, é sempre tão inútil quanto digna de censura.

Nada devemos fazer com o só fim de edificar o próximo

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, isto é, não devemos empreender aquilo que não faríamos de outra maneira e no qual o motivo de edificar é

supremo, senão único. A edi-ficação nunca deve ser o nosso primeiro pensamento. A regra evangélica é deixar a luz brilhar per-

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ante os homens, de modo que possam ver nossas boas obras e glorificar o nosso Pai que está nc céu. Devemos cuidar muito de não desedificar, mas seria perigosíssimo cuidar muito de edificar. São duas coisas diferentíssimas, ainda que se confundam facilmente; e não poucas vezes encontramos almas a quem o amor próprio corroeu e corrompeu de tal

forma, que o restabelecimento perfeito equivale a um milagre, e, se procurarmos a causa do mal, encontrá-la-emos numa falsa teoria sobre a obrigação de edificar. Olhai para Deus, amai a sua glória, detestai-vos a vós mesmos, sede simples, e brilhareis, sem vos preocupardes e mesmo sem o saberdes, com esplendor cristão, onde fordes e no que fizerdes.

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Não devemos fazer alusões inoportunas à reli-gião, nem irritar o próximo com uma solenidade fora de propósito. A aspiração interior ou a eleva-ção momentânea da alma a Deus produzirá com frequência mais efeitos nos outros que o testemu-nho público que nossos princípios não exigem, e que só poderia ofender. Há um silêncio que edifi-ca sem irritar, mas confesso que a sua prática não é nada fácil. Praticamo-lo provavelmente com tanto maior êxito quanto menos refletimos, agindo sob a inspiração de um coração unido a

Deus. Muita gente desgosta-se das coisas sagradas que lhe são impostas inoportunamente, e, assim, uma inopor-tunidade bem intencionada pode tornar-se numa fonte de pecado.

Mas, se uma teoria errônea de edificação não somente nos leva muitas vezes a pisar em falso na conduta exterior, além de nos prejudicar e às ve-zes arruinar completamente a alma, que diremos duma teoria errônea a respeito da correção fraternal? E' o mais difícil dos deveres e a mais obscura das obrigações, e uma teoria errônea nesse ponto causa

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muito escândalo ao próximo e não raras vezes nos infunde uma idéa exagerada da nossa própria importância. Devemos lembrar-nos de que são poucos os que, em virtude da posição ou do adian-tamento, são, de qualquer modo, chamados a corrigir os irmãos; ainda menos são competentes para fazê-lo com doçura, e não há ninguém cuja santi-dade não seja rudemente provada pelo fiel cumpri-mento desse dever. Ao contrário, quem assumiu com leviandade, e por conta própria, tão delicada responsabilidade, peca não somente por desobediência, falta

de respeito, arrogância, azedume, presun-ção e exagero, mas é causa do pecado de outrem, fazendo das coisas de Deus um escândalo e um obstáculo. Antes, portanto, de empreendermos a correção fraternal, verifiquemos se temos vocação para isso, consultando a opinião alheia, tanto quanto a nossa. Quando tivermos certeza de tal vocação, recorramos à oração e à deliberação, antes de proceder à correção. Podemos acrescentar que a correção do próximo, com o fim de edificar uma terceira pessoa, é prática que

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raramente evita con-sequências desagradáveis e só não nos prejudica a humildade, porque prova que não a temos de todo. Nessa fase da vida espiritual só podemos, a respeito do dever de correção fraterna, reconhecer que, de fato, existe. Mais tarde, Deus no-la con-fiará e saberemos empregá-la bem. Se, por aca30, semelhante dever nos fosse imposto agora, não de-veríamos empreendê-lo sem tremer e refletir, contando com o auxílio de Deus para tudo o mais.

Guardar-nos-emos, portanto, de edificar o próximo por tais

meios. Vejamos agora qual o verda-deiro modo de edificá-lo. Podemos fazê-lo, quer pela mortificação de Jesus, quer pela doçura de Fáber, O progresso — 6Jesus. Primeiro, pela mortificação de Jesus, isto é, guardando silêncio sob injustas repreensões; abs-tendo-nos de juizos levianos e perentorios; não fazendo valer nossos direitos de maneira pedante e desagradável, servindo aos outros com desinteresse, sem nos queixarmos das dificuldades e do transtor-no que isso nos causa, e sem exagerarmos, 'teimosa e tolamente

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, os pontos onde todos têm direito à liberdade. Tais os modos pelos quais devemos praticar a mortificação de Jesus no trato com o pró-ximo. Além da edificação dada, conseguiremos, por essas práticas, um grau de perfeição interior acima de toda previsão, porque não há quasi nenhuma inclinação corruta, orgulho secreto, ou dobra de amor próprio, que não atinjam e purifiquem.Devemos, entretant

o, também edificar

pela do-çura de

Jesus. Uma

resposta branda

afugenta a cólera,

diz a Escritura. Palavras

boas e meigas, como as de nosso Senhor,

são em si um

apostolado. Ao

contrário, palavras

irônicas e mordazes, embora nos caiba

muitas vezes o

direito de empregá-

las, ajudam

continuamente o demônio

na sua obra,

prejudicam a alma

do próximo,

abrem feridas

que não deixam de ser sérias. Nossas

maneiras devem

ser cheias de unção,

e assim servirão

para atrair os outros, e fazê-los amar o espírito que nos anima a

nós. A frieza, a falta de

interesse, certo ar

inex-plicável

de superiorid

ade, ou mesmo

uma afe-tada

condescendência, são, não

raro, encontrad

os em pessoas

piedosas. Não

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dominaram ainda o

espírito que as

dirige ao ponto de

empregá-lo gra-

ciosamente, ou não apreciam

a delicadeza e a ge-neralidad

e de ternura

que lhe é próprio.

Não têm, pois,

presente ao

espírito uma

imagem fiel de Je-

sus, e dificilmente podem refleti-lo

na conduta exterior. O nosso próprio aspeto

deve estar

sujeitoà graça. Quanto mais procurarmos gravar a imagem de Jesus em nossos corações, tanto mais a sua doçura transparecerá, sem o sabermos, em nos-sas feições. A não ser em tempos de grande dor física,

e mesmo isto nem sempre é impedimento, a paz interior e a harmonia da alma se refletem visi-velmente no semblante. Notemos que no Evangelho de são Marcos, escrito sob o ditado de são Pedro, há frequentes alusões à expressão e aos gestos de nosso Senhor; enquanto a história do moço que não teve a coragem de renunciar ao dinheiro, e a própria conversão de são Pedro, mostram o que po-dia a doçura do olhar de nosso Salvador. Prati-camos também esta doçura, quando louvamos o bem que descobrimos nos

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outros, mesmo quando se alia ao que é menos bom. Quem louva livremente, porém sem extravagância, sempre influe na conversa, e pode empregar essa influência na causa de Deus. Um espírito crítico, pelo contrário, diverte pela vivacidade ou assusta pela malícia, porém não suaviza, não atrai, não persuade, não go-verna. Devemos exercer também essa doçura cristã, interpretando favoravelmente ações duvidosas, sem assumirmos, todavia, atitude forçada ou pouco natural, e sobretudo sem desculparmos

pecados positivos. Fora disto, há vasto campo de ação para tão amável prática e nunca a exerceremos sem fazer obra de missionário pela glória de Deus, ainda que inconcientemente. Guardemo-nos, também, de certos olhares, de certas maneiras e sobretudo de certo silêncio, que fazem sentir aos outros que in-teriormente os censuramos. Nada é mais irritante. Quando o pecado torna o santo silencioso, há nesse silêncio uma triste doçura, que revela aflição pelo pecador, e o esforço que faz para amá-lo, apesar do pecado. O nosso

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silêncio crítico, tão contrárioà doçura de Jesus, irrita o próximo e põe-no na defensiva. Assim arrojam a pouca graça que ainda possuíam, endurecendo os corações contra qualquer graça possível. Sendo este silêncio severo a mais clara das correções fraternais, ninguém pode exercê-lo sem verificar, pelos métodos que já indiquei, se tem ou não o direito de corrigir o irmão. Ainda assim é este o meio mais arriscado de cumprir com uma obrigação em si tão perigosa.

Faz também parte da doçura de Jesus não permitir que a nossa piedade, ou devoção,

incomode aos outros. Quando santa Joana Francisca se pôs sob a direção de são Francisco de Sales, os empre-gados disseram que o seu antigo diretor a fazia re-zar uma ou duas vezes por dia, o que a todos in-comodava, mas que o novo diretor a levava a orar o dia inteiro, o que a ninguém molestava. Um pouco de prudência bastaria, de certo, para que nossas comunhões e orações não perturbassem a vida de família, nem exigissem dos outros a menor abnegação. Ninguém deve ter má vontade para com essas coisas, mas nós nada lhes

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devemos impor.

Assim é que o trato com o próximo deve, a um tempo, santificar-nos a nós e edificá-lo a ele, pelo duplo exercício da mortificação e da doçura de Jesus. Mas já nos deve ter ocorrido que, nessa fase da carreira, o trato com os outros depende princi-palmente do governo da língua. Não sei o que nos deve surpreender mais: se a importância inespe-rada que a Sagrada Escritura assina ao dever de governar a língua, ou se a inteira indiferença em que este dever é tido pelas almas piedosas. Só quem toma uma concordância e procura na Bíblia as inúmeras

passagens que se referem ao assunto, dos Provérbios e Eclesiástico até são Tiago, terá idéa da soma total de ensinos contidos sob este título, e do espaço que ocupam naquele único volume. Ainda menos percebemos toda força que nos vem da inspiração. E' incompativel com a brevidade, que me proponho, o entrar em minúcias. Basta su-gerir a cada alma esta única pergunta: Se a aten-ção escrupulosa que cada qual presta ao governo da língua está em proporção com a tremenda verdade revelada por são Tiago quando disse: Se eu não puser um

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freio à língua, toda a minha religião é vã? A resposta dificilmente deixará de ser tão assustadora quão humilhante.

Mas como governar a língua? A simples enume-ração dos males sugere implicitamente os remédios. Atendei a uma hora de conversa em qualquer reunião cristã. O assunto volve quasi unicamente em torno das ações e dos caracteres alheios! E a razão é provavelmente a seguinte: o trono do juizo de nosso Senhor como que já está erguido na terra; não está, porém, ocupado, pois o aguarda. Nós, entretanto, com incivilidade e sem

convite, estamos sempre a subir os degraus, a sentar-nos no trono divino, antecipando e imitando a sentença que dará a respeito dos nossos irmãos. Encarada sob este prisma, vemos quão perniciosa é nossa conduta. Esta idéa nos ajudará, de certo, a purificar a con-versa de toda discussão desnecessária sobre motivos e ações alheias. As mais das vezes, porém, é só depois de ter longamente percorrido o caminho da devoção, e nos ter prejudicado irreparavelmente, que começamos a dedicar ao governo da língua um pouco

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do cuidado que merece e que está im-periosamente a exigir.

O primeiro efeito da espiritualidade é de avivar-nos o lado crítico. Temos novas medidas para me-dir, nova luz para tudo ver, e munidos desses meios de observação, prejudicámos o juizo que fazemos do próximo. Tomai a isto como assunto de exame particular e vos surpreenderá ver quão numerosas são as quedas. Com efeito, é difícil exagerar a fa-cilidade, a multidão ou os efeitos dos pecados a que nos levam tais conversas sobre a vida alheia, mesmo quando temos a melhor e a mais

benévola das intenções. Ao terminar o exame, nossas reso-luções neste ponto devem ser muito precisas e cada queda deve ser expiada, calma, mas firmemente, por algum castigo voluntário.

Seria impossível indicar todos os meios para, nessa fase da vida espiritual, fazer voltar a atenção das pessoas piedosas à conduta exterior. Como já disse, a introspecção é perigosa, como também não deixa de sê-lo a indispensável atenção que nos devemos prestar. Acresce que um principiante não pode, de modo algum, fosse embora

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desejável, ocupar-se unicamente com a vida interior, a não ser por atração excepcional do Espírito Santo. Tal tentativa acarretaria morbidez, desequilíbrio e infelici-dade. Na maioria dos casos, seria, pois, muito bom se, nas primeiras fases da vida espiritual, todos tivessem uma obra religiosa externa a executar que, enquanto os ocupasse na causa de Deus, os afastasse dessa introspecção, que, sendo excessiva, poderia resultar em alguma enfermidade espiritual ou mesmo em alguma indisposição física.

E\ por exemplo, dado a todos tirar

maior vantagem das lidas mundanas do que tiraram até ago-ra. Basta a intenção sobrenatural. Podem associar-se às confrarias, contanto que não se deixem sobrecarregar de orações vocais. Quasi todos po-dem dar esmolas, mas para que estas, além de servirem às necessidades temporais do próximo, sirvam também às suas próprias necessidades espirituais, devem dar até sentir que estão dando, até que a esmola os toque, até à privação, isto é, até o sofrer. Sem isto, onde está o sacrifício? Muitos podem, também, dar tempo, talento e

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cuidados às obras de misericórdia que os padres, ou outras pessoas, instituem em redor. O tempo e os seus cuidados valem tanto quanto o dinheiro para quem recebe caridade e valem dez vezes mais, como benções espirituais, para quem as dá. Não vos apres-seis, agindo sem conselho; deixai-vos guiar, na procura de alguma boa obra, de acordo com o espírito, meios e inclinações, que vos são próprios, e dedicar contínuo interesse à obra escolhida.

Quem começa a carreira espiritual como se fosse ser eremita, comete erro evidente. Confunde a vida interior com a

vida solitária. Terá que lutar no caminho trivial do mundo, e lidar com os seus interesses absorventes. E' preciso, portanto, tendo isto em mente, fazer concessões e arranjos, e encaixá-los nos projetos que fizer. E' verdade que no momento da conversão, bem como no estado de contemplação, só vemos a Deus e a alma. Esta uni-dade de visão é uma dádiva bem-aventurada, mas no tempo e no lugar próprios. E' um dos muitos começos que tanto se assemelham aos fins. Não deve, porém, constituir nosso estado habitual ou normal.

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Mas quantos caem neste erro! Começam a levar vida devota. Resolvem pertencer inteiramente a Deus, projetam um plano ou sistema que lhes sirva para a vida espiritual futura. Prescrevem-se regulamentos para a oração mental e o exame de conciência, para a confissão e a comunhão, para as devoções particulares e as mortificações. Tudo é traçado com a maior exatidão, o regulamento, aceito; os planos, aprovados. Nenhuma menção, en-tretanto, se faz a respeito do trato com os outros, dos deveres para com eles, e da misericórdia que

lhes devem! E' como se isso não existisse, ou fosse de muito fácil acomodação e tão óbvio, que não me-recesse sequer um pensamento prévio. E' certa-mente um erro, cujas consequências se farão sentir larga e profundamente na carreira futura. O que se presta muito ao mosteiro dos Camaldulenses, dificilmente conviria aos centros comerciais.

Aventurar-me-ia mesmo a recomendar alguma prática que desse à inteligência uma direção exterior decisiva nessa fase da vida espiritual. Pedir à3 pessoas que se desapeguem tão

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prontamente de si mesmas e se abismem em Deus, como objeto de fé e de amor, seria não só impraticável, por ser prematuro, como as levaria provavelmente a uma falta de domínio sobre ei e daí à decepção. Recomendaria, pois, como devoção predileta, o orar pela conversão dos pecadores, com oblações, repa-rações, comunhões e práticas semelhantes, tudo visando o mesmo fim. Deus está sempre a trabalhar com infatigável energia em certo campo da Igreja, e lá nos espera, pronto, e com rara profusão de graças, até cooperarmos com ele pela

nossa intercessão. A devoção à conversão dos peca-dores, quando e onde Deus a deseja, está impre-gnada do pensamento divino, e adapta-se às idéas fundamentais sobre as quais organizamos a vida interior. Assim mesmo, encarado sob um ponto de vista egoísta, sua conveniência ressalta nesse período da vida espiritual.

Quem não se sente, todavia, atraído de modo algum por essa devoção, não deve desanimar, como se faltasse algo de indispensável à vida espi-ritual. Esse zelo é tão desejável que algumas almas

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foram levadas a tristes exageros a respeito.Mas lembro-me que Da Ponte no Guia Espiritualdiz que, embora esse zelo seja sempre encontrado nos mais altos estados da vida espiritual, há muita gente boa que tem uma lembrança tão viva dos próprios pecados e que se preocupam tanto com a vigilância tímida que exercem sobre a própria alma, que não sentem o menor zelo pela alma do próximo. Ricardo de São Victor, na Preparação à Contemplação, afirma que não é raro haver po-bres de espírito que se alegram na esperança, que ardem na caridade,

que se distinguem em obras de santificação, mas que são tépidos e quasi lân-guidos (valde tepidse ac desides) em se tratando de zelo pelas almas. Esta doutrina há de fornecer-nos uma arma contra o desânimo, e servirá, para alguns, de precaução contra juizos temerários. Tanto Ricardo de São Victor como Da Ponte pertencem à escola dos escritores espirituais que não exage-ram.

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DA PAIXÃO DOMINANTE 91

CAPÍTULO VII

Da paixão dominante

Chegamos agora ao último dos cinco obstáculos secretos acusados de embargar-nos o caminho e de impedir-nos o progresso sob as benéficas inspirações do Espírito Santo. Dir-se-ia que este empe-cilho pertence tanto à vida interior quanto à exterior, embora o combate principal seja nesta última. Todos os conhecedores dos antigos livros es-pirituais lembram-se do lugar de destaque que sempre a rémora neles ocupou. Era um peixinho misterioso e maligno que, agarrando-se a um enorme navio, a navegar de velas desfraldadas, o faria parar imediatamente. Nosso conhecimento das leis de mecânica e de história natural é infelizmente fatal à lenda da rémora. Pudesse também surgir qualquer coisa que destruísse

a paixão dominante, da qual este peixinho oculto e quasi onipotente é a figura! Mas, ai de nós! podemos com segurança ris-car a rémora do catálogo dos peixes, mas a paixão dominante permanece objeto da atenção constante e da vigilância fatigante dos que desejam crescer em santidade.

Parece exagero dizer que todo homem neste mundo tem, com certeza, uma paixão dominante, e os mais conceituados escritores a tanto não afirmaram. O incontestável é que quasi todos têm semelhante paixão, e o fato de lhes ser desconhecida não prova o contrário, pois é próprio de sua natureza esconder-se. Enquanto permanece na alma, dominante e inatacável, exerce poderosa influência. Motiva ações aparentemente contraditórias, empresta tom e cor à vida toda, e causa, pelo menos, dois terços dos nossos pecados. As demais pai-xões vêem-se obrigadas a

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reconhecer-lhe o império; e, como a dominação, e não o mero pecado, é o fim que se propõe, nos ajudará até a combater as outras, e assim estende a sua tirania, e se favorece a si mesma. Outras paixões nos cegam em relação a nossos pecados, mas a paixão dominante com isto não se contenta; chega ao ponto de emprestar aos vícios a aparência de virtudes, levando-nos diretamente à impenitência final. E' isto o que lhe imprime o caráter terrível. Acontece às almas o mesmo que ao navio à mercê da correnteza mais forte que o vento. Vai de rochedo em rochedo e, não podendo ancorar, perde-se inevitavelmente. Dá-se algo de peior ainda com a alma, que dispõe de menos meios de salvação, pois nada há na vida espiritual que se pareça com um ancoradouro.

Ora, dado isto, poucos assuntos podem interessar mais a alma fervorosa que este, da paixão domi-nante, pois nenhum

obstáculo ao progresso é, mais comum ou mais secreto, e, portanto, nenhum mais perigoso. Mas devemos compreender, desde já, que seria falso afirmar que não pode haver progresso na vida espiritual enquanto a paixão dominante não for vencida. A própria perfeição alcançará dificilmente completa vitória nesse campo, mesmo após anos de valorosa perseverança. Não pode, todavia, haver progresso, enquanto não lhe for feita guerra ativa. Esta guerra é, por conseguinte, um dever que não sofre adiamento.

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DA PADCAO DOMINANTE 104

Descobrir a paixão dominante é um dos negócios mai3 importantes da vida, negócio tão difícil quão importante, pelo segredo que invariavelmente envolve essa astuciosa paixão. Existem, todavia, dois métodos, e qualquer deles, empregado com sinceridade durante certo tempo, nos levará provavelmente ao fim almejado.

A prática diária do exame de conciência nos fornecerá, sem demora, inúmeras observações. Não devemos, porém, tirar nenhuma conclusão prática sem o tempo e a vigilância que nos permitirão pô-la a prova em circunstâncias diversas, quiçá em tentações opostas. Perceberemos, por fim, que há em nós uma paixão que nos é mais conforme ao temperamento natural que as outras, e que, tomada em si, vale mais que qualquer, como expressão do nosso caráter. Verificaremos que um dos seus característicos é a repugnância que temos em combatê-la. Quando outros no-la apontarem, responderemos provavelmente que, embora reconheçamos em nós muitos defeitos, deste não nos podemos acusar. Demais, essa paixão tem um poder extraordinário de excitar num instante as outras paixões, e aparecer de súbito em quasi todos os nossos pensamentos e planos; é o que faz o amor próprio com, pelo menos, a metade do gênero humano. Causa-nos mais viva impressão do que qualquer outra na vida interior, dando, ao mesmo tempo, origem à maior parte de desordens que nos deshonram a conduta exterior. A maioria das nossas quedas, e quasi todas as graves, devem ser-lhe atribuídas. Expõe-nos habitualmente aos maiores perigos e a repetidas ocasiões de pecar, tendo, pois, consequências mais duradouras e mais penosas do que as outras paixões, por peiores e mais funestas que sejam. Carecemos de tempo para fazer tais descobertas. Podemos, todavia, ter certeza de que qualquer paixão em que notamos estes sinais, todos ou em grande parte, é a nossa paixão dominante, um germe de morte espiritual que trazemos na alma.

Há outro método de descobri-la, que se parece necessariamente com o primeiro, e que fixa a atenção nos mesmos sintomas. E', porém, mais fácil, porque não exige vigilância tão geral, nem tão incessante. Talvez mesmo, por ser mais fácil, não ofereça o mesmo resultado e seja mais moroso. Alguns autores de teologia ascética recomendam o primeiro e alguns o segundo. Este segundo método consiste em notar uma desusada alegria ou tristeza que aparece na alma, sem razão evidente, e em descobrir de onde emana essa emoção. Mesmo se existir causa aparente, a alegria ou tristeza pode ser tão desproporcionada que nos leve a suspeitar que nela haja uma razão adicional e oculta. Reside provavelmente em alguma satisfação, ou desgosto, da paixão dominante e só quem pouco se observa, deixou de notar essas vicissitudes de alegria e de tristeza sem motivo justificado. Qualquer que seja, porém, o resultado do exame neste ponto, podemos ter certeza de que tais fenômenos nunca deixam de exercer grande influência em nossa vida espiritual.

Além disso, confessamo-nos com maior ou menor regularidade, e há certos pecados veniais, certas imperfeições, que formam sempre matéria de acusação e se repetem continuamente. Chega a ser motivo de aborrecimento ver que as confissões volvem em torno

de tres ou quatro defeitos. Ora, quando soubermos exatamente o que são esses tres ou quatro defeitos, a diligência nos levará a examiná-las, afim de ver as raizes de que provêm, e as circunstâncias que as desenvolvem. Verificaremos, então, que nascem quasi sempre de uma só raiz, cuja descoberta nos revelará a paixão dominante. Uma falta, que é a fonte abundante e permanente dos pecados veniais, dificilmente deixará de ser a paixão dominante.

Há também uma espécie de melancolia, diferente da tristeza de que já falei. Há tempos em que tudo parece dever acabar. A severidade cansa-nos. A oração pesa-nos intoleravelmente. Tornamo-nos indiferentes às tentações, e até o medo habitual de pecar cessa de tal forma que a queda parece pos-sivel a todo momento. A idéa de Deus não nos desperta como outrora. O cuidado das almas e o zelo da Igreja tornam-se sentimentos longínquos; esquecemo-los, nem podemos imaginá-los, assim como não podemos, no inverno, vestir a paisagem de verduras e folhagens, e vê-la, tal qual é no verão, de modo a satisfazer-nos. Ansiamos pelos olhares do mundo e pelo bulício das vaidades mundanas, como se nos pudessem aliviar, enquanto o coração se apega a qualquer consolação, alheia às coisas espirituais. A ordem de idéas apagou-se com-pletamente, o hábito de piedade desapareceu, pelo menos aparentemente, como se nunca fora. Sobre-vém-nos intenso cansaço, acompanhado de náusea pela espiritualidade, que nos torna mal humorados para com Deus, em vez de inspirar-nos o temor de ofendê-lo. E' difícil exagerar a miséria de semelhantes acessos de melancolia. Seria possível exagerar-lhes os perigos? Segue-se-lhes, não tanto a tristeza, cujo efeito seria mais ou menos brando, mas a irascibilidade, que, longe de atrair a graça, é uma preparação próxima para toda espécie de pecado venial. Se o mal não for além, devemo-lo exclusivamente à misericórdia de Deus. Por mais fracos que nos sintamos, por mais incapazes da tarefa, devemos no entanto tentar uma espécie de exame de eonciência*e procurar a causa de tão triste opressão. Não há um sinal sequer que in-dique a subtração divina da piedade sensível. Não se parece com o que os teólogos místicos chamam a purificação passiva de espírito. Talvez seja uma operação diabólica, porém as mais das vezes é so-mente humana. Se lhe descobrirmos o motivo, des-cobriremos também, provavelmente, a paixão domi-nante. O mal é por demais radical para vir de outra raiz. As pessoas de caráter suave e efeminado, sensíveis' e sentimentais, que prezam os confortos físicos, que não praticam nenhuma mortificação regular, que só pensam no comer, beber e dormir, são sobretudo sujeitas às visitas desse pesadelo em pleno dia. Noutras palavras, é sintoma, embora não infalível, de que a nossa paixão dominante é a sensualidade. Tanto pela generalidade, como pelos artifícios com que procura disfarçar-se e parecer outra, é quasi rival do amor próprio. Em muita gente o gosto aparente da religião, as opiniões cômodas a respeito da teologia moral, a familiaridade com Deus, a doce intimidade com nossa Senhora, as aspirações de amor desinteressado, o desprezo do mero e árido preceito e dos casos de conciência, a facilidade em apropriar-se dos ditos santos, tudo vem (ainda que estejam longe

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DA PADCAO DOMINANTE 105

de supô-lo) dos requintes luxuosos do conforto mo-derno, e da paixão secreta e dominante da sensua-lidade !

Este segundo método de descobrir a paixão do-minante não consiste, pois, em estar continuamente a examinar a nossa conduta, mas em ficar na es-pectativa, notando alguns dos pontos salientes, bem como tudo o que se relaciona com o desenvolvimento manifesto da inclinação dominante. Por mais recôndita que seja sua presença e sua influência, há certas circunstâncias, quasi diárias, em que essa serpente, mau grado seu artifício, revela suas operações. Alia-se a todos os nossos pecados, pouco importa contra que virtude ou mandamento. E' a feição comum a todos eles. O amor próprio num, a sensualidade noutro, a vaidade nesse, a ambição naquele, ou, ainda, o mais indomável dos monstros, a simples indolência. Assim também resistimos com frequência às tentações, sem que haja motivo sobrenatural, sem mesmo pedirmos o auxílio da graça; ou, com mais exatidão, as más su-gestões do demônio, que, em certas disposições do momento, seriam tentações, em outras não revestem esse caráter mortal. Não nos fazem mal, por conse-guinte, e • caem quais flechas sobre o escudo. Esse escudo é muitas vezes a paixão dominante. Distrai-nos dos prazeres que nos são oferecidos, ou afasta-os, porque se opõem a algum plano mais profundo. E porque estamos preocupados, não notamos essas tentações, de modo que, em rigor, não são tentações.

Há pessoas de tal forma persuadidas de que tudo quanto lhes diz respeito está certo, que estão dispostas a defender-se a todo propósito, o que, de fato, fazem. São pouco numerosas, porque, embora a cegueira do amor próprio seja universal, raras vezes é completa. Existem, todavia, tais espécimes, e merecem estudo, pois neles há muita coisa que, se não os beneficia a eles, serve de aviso capital a outrem. A quem está satisfeito, o que direi não se aplica. Mas os que sabem que a sua conduta nem sempre é digna de defesa, hão de verificar que, em certos pontos, eles também se defendem invariavelmente, e são de uma sensibilidade mórbida. Esta sensibilidade revela a paixão dominante, e oferece um meio quasi infalível de descobri-la. Tomai tal circunstância, tal conversa, tal ímpeto, seja o que for, e vede como vos defendeis a todo transe, quer por surpresa, quer de propósito deliberado, e podeis ter certeza de que se trata da paixão dominante. Será, porém, ainda necessário observar os sintomas, porque um mesmo sintoma tanto se aplica ao amor próprio, à vaidade, à sensualidade como à indolência.

Enquanto nos entregamos a essas investigações t^o importantes, devemos lembrar-nos igualmente de consultar o nosso diretor. Somos muito cegos naquilo que nos toca, embora sejam meros interesses externos. Somo-lo ainda mais no que toca à própria correção. E, quando soubermos que o característico particular da paixão dominante é fazer passar o vício por virtude, teremos ainda maior razão para desconfiar do nosso próprio juizo nessa matéria. E' por isto que o diretor descobre frequentemente a paixão dominante antes do penitente. Mas, em todo o caso, devemos consultá-lo. Ele nos deve ajudar nas pesquisas, aprovar a descoberta, e guiar-nos na guerra que faremos dora-vante ao inimigo doméstico.

Não pertence ao fim, ou à concisão deste tratado, desenvolver os motivos que nos devem obrigar a uma atenção escrupulosa, quasi timorata, a respeito da paixão dominante. Meu objeto, como sabeis, é descrever os sintomas e sugerir os meios. Devo, porém, acrescentar que poucos são os que não têm paixão dominante. Para os que a têm, o negócio mais importante e mais urgente é descobri-la. Por falta de semelhante pesquisa, Saul arruinou-se e Salomão caiu. A vocação perdida de Judas foi obra da paixão dominante e, notai-o bem, co-Faber, O progresso — 7

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existiu ao lado das imensas graças que ele recebia em virtude de sua verdadeira vocação para o mais alto dos serviços apostólicos, pois a realidade da sua vocação é considerada por alguns teólogos artigo de fé, por causa das palavras de nosso Senhor: Eu vos elegi. O castigo de não ver a terra prometida, sob o qual Moisés acabou os seus dias, foi obra da paixão dominante, que conseguira vencer quasi totalmente, pois sendo por natureza o mais arrebatado dos homens, tornou-se, pela graça, digno de ser chamado pelo Espírito Santo o mais meigo dos homens. Outros campos da vida espiritual podem apresentar aspeto mais atraente que este; alguns parecem animar-nos a prosseguir caminho com maior rapidez ou imprimir logo ao nosso caráter cunho mais sobrenatural. Nenhum, todavia, pode competir com a urgência e a importância da obrigação que temos de vencer a paixão dominante. E' mister parar aí, pois não podemos deixar uma fortaleza desocupada na retaguarda. Deus não estaria conosco além desse ponto. As torrentes da sua graça não mais se derramariam sobre nós. A natureza e o temperamento nos ajudariam a avançar, não a graça. Conosco, ou sem nós, ele se colocará em frente à cidadela e esperará por nós, até percebermos o nosso erro e voltarmos a sitiá-la. Mas, se não chegarmos, entre-gar-nos-á aos nossos desejos, segundo a terrível linguagem da Escritura, e "abandonará o campo". Então, continuando a vagar com a nossa própria força pelos caminhos que escolhemos, havemos de desfalecer e morrer pela estrada. Os que passarão em seguida, ao ver-nos, exclamarão: "Vede, outro santo que falhou a seu destino; outro instrumento partido, outra vocação frustrada!"

A aridez deste dever não nos deve repelir, nem as dificuldades nos desanimar. Consideremo-las atentamente, sem, porém, que o coração se abata. A maior dificuldade está em descobrir essa paixão dominante. Para o homem corajoso, a descoberta equivale à metade da batalha; e já estudamos os métodos para alcançar este conhecimento nos casos comuns. A cegueira causada por semelhante paixão, tanto em relação a si, como em relação aos outros pecados, é um trabalho exterior tão poderoso, que vale pela conquista da própria fortaleza, e a indignação virtuosa, que simula contra as demais paixões, não é senão o pó que levanta e nos lança aos olhos, enquanto avançamos no ataque. A traição do próprio coração, disposto a reconhecer qualquer paixão como a dominante, de preferência à que de fato é, torna-o num inimigo doméstico que cumpre vigiar severamente, com receio de que nos possa trair no calor do combate. Já vi, entretanto, muita gente, com um pouco de esforço viril, vencer os obstáculos para descobrir a paixão dominante e conseguir seu fim sem um revés, sem uma ferida. Mas ainda resta examinar outra dificuldade, que já foi fatal a muitas almas e continua a sê-lo, cada dia, a outras tantas.

E' a cobardia e a pusilanimidade que nos levam a crer que nunca venceremos, em verdade, a paixão dominante. Nos primeiros tempos, tratamos de nos persuadir de que há muita falsidade, muito exagero naquilo que se refere a este assunto, e que não tem a importância que lhe é atribuida. Mas notai que não insisto sobre o êxito da luta, mas tão somente sobre a importância de guerrear o defeito real. Não digo que, por fim, não devemos procurar o êxito, nem lhe nego a imensa vantagem, porém dou valor à luta, não à vitória. Mais tar

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DA PAIXÃO DOMINANTE

de, uma série de defeitos e um revés completo no tocante ao progresso espiritual levam as almas a verificar que não houve exagero; sentem, então, pelo contrário, que as dificuldades do trabalho não foram apreciadas no seu justo valor. Tendem então a desanimar de tudo, a abandonar a obra como inútil. As contínuas derrotas desanimaram-nas a ponto de torná-las pusilânimes, como crianças amedrontadas. Cada derrota é uma perda de força moral, que leva a nova derrota. Os próprios meios que nos são aconselhados parecem-nos terríveis ; não temos a coragem de nos servirmos deles, de empregá-los com a necessária e inabalável firmeza. Então, havemos de abandonar por completo a vida espiritual e renunciar à perfeição? Não? Logo, devemos pôr mãos à obra e agir. Adiá-la é torná-la a cada hora menos provável. O que agora é difícil, pode, dentro em pouco, tornar-se impossível.

Os meios a adotar são, de certo, dolorosos. Nem poderíamos esperar que o não fossem, em se tratando de expulsar semelhante inimigo. Cortar, queimar e velar, só isso pode fazer-nos algum bem. O principal meio é reprimir instantaneamente os ímpetos daquilo que já descobrimos ser a nossa paixão dominante. Não devemos esperar que se desenvolvam ou nos deleitem, transformando-se em franca tentação. E' cortar o mal pela raiz, e a todo momento. Não deve haver repouso, nem descanso possível. Em segundo lugar, devemos cuidadosamente prever e evitar-lhe as ocasiões, traçando regras, dividindo o tempo e talhando a nossa vida diária nesse sentido, tanto quanto no-lo permitirem os deveres de estado. Em terceiro lugar, a nossa fidelidade neste ponto deve ser perseverante e contínua. Uma interrupção destrói tudo, e obriga-nos quasi a recomeçar a obra. Em quarto lugar, Convém, como já disse, depois de cada culpa deliberada, impor-nos uma penitência que seja de natureza a fazer sentir e a amedrontar-nos. Deve ferir-nos vivamente, embora de passagem.

Reconheço que, se nada disso é animador, nada é insuperável a quem ama a Deus. Devemos acau-telar-nos contra a ilusão a que Satanaz tentará induzir-nos, querendo convencer-nos de que tais cuidados em relação à paixão dominante só convêm aos santos e pertencem a uma fase mais elevada da vida espiritual. E' um dos axiomas prediletos do demônio e quem é criterioso desconfiará sempre dessas máximas. Está tão longe da verdade, neste caso, que seria muito mais acertado dizer que, enquanto não obtivermos triunfo mais ou menos completo sobre a paixão dominante, não poderemos atingir as regiões mais elevadas da vida espiritual. E' trabalho indispensável que deve ser feito, e feito já. A oração é atraente, e a liberdade de espírito, convidativa. Há na austeridade uma nobreza que seduz, ainda mesmo quando assusta. O amor das humilhações atrai o coração entusiasta, e, quando primeiro saboreamos a calúnia, tornamo-nos sequiosos dela, assim como um ligeiro sabor amargo nos abre o apetite, mas, sendo demasiado, nos dá mal estar. Não nos deixemos, pois, levar nem à direita, nem à esquerda, pois onde encontramos a paixão dominante aí está nossa tarefa, nossa vocação; pois aí, e não em outro lugar, se encontra atualmente a graça que nos é dada. Nem as visões, nem os êxtases, nem os milagres,

nem as mortificações, nem as luzes brilhantes da contemplação, conseguirão fazer-nos adiantar um passo, se não estivermos lutando numa luta tenaz e contínua, contra a paixão dominante.

CAPÍTULO VIII

Do estado normal

Tudo neste mundo parece ter um começo e um fim particular e entre os dois extremos, estende-se o estado normal. Ora, é sempre esse estado normal que imprime a qualquer coisa o seu verdadeiro caráter, porque lhe revela a natureza e a idéa dominante. Os fenômenos da vida espiritual são de gênero diferente, porque, à primeira vista, a vida espiritual não parece ter estado normal, a menos que. assim se qualifique um progresso nunca plenamente satisfeito, porque fica aquém das mais legítimas espectativas, embora atinja o nivel máximo.

Empregamos a maior parte do tempo e da atenção em meros preliminares. Os -meios a observar, as vigilâncias a exercer, as reparações, os mandamentos, as proibições e os avisos, enchem quasi totalmente os livros espirituais, que se dedicam a estudar o mapa, de preferência a iniciar-nos na viagem. E, não raras vezes, o último capítulo apenas nos abre o caminho. Nunca julgamos, entretanto, ter chegado a um estado que se possa chamar normal ou habitual. O que não segue regra alguma não pode dar regras; como seria, pois, normal? A natureza decaída não pode dirigir-se a Deus por um sulco ou plano inclinado, nem podem os ho-mens seguir linhas matemáticas quando ferem uma batalha ou atravessam um país impedido.

As experiências dos próprios santos não nos ofe-recem senão longa série de constantes vicissitudes, alternações de luz e sombra, que desorientam todo raciocínio pela variedade, incoerência e perplexidade que revestem. Mesmo vista sob o aspeto de um panorama que se desenrola gradualmente, a vida espiritual não tem unidade aparente, conjunto ou desfecho dramático. Considerada como viagem, é a subida duma montanha, cujos caminhos «são, à semelhança de toda região montanhosa, tortos, si-nuosos e aparentemente caprichosos. Não temos nem sequer esperança de alcançar uma planície donde possamos escolher o caminho e gozar do terreno plano.

Apesar de tudo isto, a vida espiritual tem uma espécie de estado normal, cujo conhecimento nos será de grande auxílio. Consiste na contínua sucessão de tres fases, que reinam alternadamente, salvo quando uma ou outra, ou mesmo as tres, partilham entre si o trono e exercem influência coletiva. São: a luta, a fadiga e o repouso; e cada qual exige um satélite para esclarecê-la na penumbra das suas revoluções. A luta requer a paciência. A fadiga deve prover-se contra o respeito humano. O repouso precisa apoiar-se na

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mortificação, pois só assim descansa sem receio. Tenciono, neste capítulo, fazer a descrição destas tres variantes do nosso estado normal e nos tres capítulos subsequentes estudar os satélites: a paciência, o respeito humano, a mortificação.

1. Primeiro, a luta. A idéa, em teoria, não oferece dificuldades, embora, na prática, não seja'de fácil observância. Se a tradição da Igreja universal está em harmonia com todos os pontos que se referem à vida espiritual, neste, então, é positiva, isto é, que a vida espiritual é sempre luta, con-

tenda, combate, batalha, guerra, enfim, qualquer pa-lavra, à escolha. Ninguém, em pleno uso de razão, pode por em dúvida esta afirmação. Provam-na o simples raciocínio, a autoridade, a experiência. Ve-jamos, porém, em que posição lamentável nos coloca a prática deste axioma universalmente admitido. A qualquer momento podemos perguntar a nós mesmos: Assemelha-se a minha vida religiosa a uma luta? Tenho de fato esta impressão? Contra o que luto eu? Vejo o meu inimigo? Sinto o peso da sua oposição? Não sendo minha vida uma luta sensível, pode então ser espiritual? Não terei eu caido numa das ilusões comuns de devoção fácil ou da indulgência efeminada? Se não luto, estou vencido, e dificilmente poderia batalhar sem o saber. Tais perguntas são muito sérias e aptas a nos inspirar receio se, em qualquer ocasião, não tiverem resposta satisfatória. Um bom susto, de vez em quando, é coisa excelente na vida espiritual! Neste século, todavia, parece que somos todos inválidos na santidade, porque a direção espiritual procura manter profundo silêncio em torno do nosso leito de doença, como se necessário fosse a todo custo não nos despertar. Ao nosso lado está um narcótico homeopático para adormecer cada escrúpulo devoto que se levanta, como se tais escrúpulos não indicassem muitas vezes a volta das forças, como a susceptibilidade num doente. Será a simples convalescença dos pecados mortais o modelo de santidade deste século, pelo menos para as almas infortunadas que vivem no mundo?

Oh! Quão fácil é amar esta imensa cidade de Londres, quando vemos que Deus nela nos atirou, como sendo a sua vinha! Tem uma aparência tão independente, uma perversidade tão real e tão pro-funda, uma magnificência tão desanimadora, uma sabedoria herética tão orgulhosa! Mas tem também o seu lado bom. Que escol numeroso que nunca curvou o joelho diante de Baal! Quantas almas procurando a luz, quantos corações tocados pela graça, quanta santidade oculta, quantas vidas sobrenaturais, quanto sacrifício, quanta lealdade, quanta misericórdia, quanta doçura, enfim quanta grandeza! São Vicente Ferrer pregou nas suas ruas, e o padre de la Colombière nas suas estalas. Não esmaguemos o que nela há de bom, só porque procura elevar-se, mas ajudemos a todos a serem santos. Nem todos os que pedem auxílio, na verdade, o desejam quando verificam que é penoso. Mas alguns são sinceros. Desapegai dez almas do amor das criaturas, levando-as à união com Deus, e que será desta imensa cidade? Quem pode dizer? E' um monstro que não é de todo deasagra-davel. Embora bem intencionada, muitas vezes é cruel, assim como as pessoas de boa vontade são inevitavelmente cruéis. Está, porém, frequentemente tão desamparada que merece tanta compaixão quanto cólera e maldição. Pobre Babilônia!

pudesse ela receber uma benção do seu Deus desco-nhecido e penetrasse a graça até ao seu Areópago!

Mas em que consiste a luta? Em cinco pontos principais e, se o tempo permitisse, poderíamos escrever um capítulo sobre cada qual.

1. Temos a luta propriamente dita. Não sou exi-gente, porque, na apreciação de alguns, a vida cristã é uma luta contínua, e esta doutrina, se procurarmos pô-la em prática, não deixará de ser desanimadora. Eu a denomino um esforço, onde os verdadeiros combates não passam de incidentes. 2. Temos diversas tarefas a executar, como sejam: levantar as tendas, limpar armas, reunir combustível, cozinhar rações, fazer reconhecimentos. 3. Temos também marchas forçadas a realizar. Se eu vos perguntasse: "Por que não lutai3 ?" e me respondêsseis: ".Não luto, mas estou com os pés feridos", dar-me-ia por satisfeito e não tornaria a importunar-vos. Chego a não ter objeção a um ou outro bivaque, pois tudo está compreendido no sentido largo e generoso dado à palavra guerra. 4. Devemos ter um inimigo definido. Não digo que devemos sempre reconhecer o inimigo ao avistá-lo. Um vício pode apresentar-se e espionar sob a capa de uma virtude extinta. Mas convém ter o inimigo em vista, e saber como proceder a respeito. Invadir o mundo e então procurar o inimigo em redor não é o que eu entendo por combate espiritual. 5. Devemos ainda fazer esforço sensivel, e quasi contínuo, seja qual for o dever militar que nos cabe. Se a diferença entre o campo de batalha e o lugar de repouso não se fizer sentir, é que não estamos à altura de nossa vocação. Tais os cinco pontos que constituem as nossas lutas.

Mas, quais são esses inimigos contra os quais temos de lutar? São sete, e o estudo de cada um poderia encher um pequeno tratado. Temos, porém, que os resumir em poucas palavras. Em primeiro lugar, é preciso lutar contra ò pecado, não somente quando as tentações nos oprimem com vivacidade, mas lutar continuamente contra os hábitos que nos deixaram os pecados antigos, envolvendo-nos tão de perto e de modo tão horrível; lutar contra a fraqueza que é consequência das derrotas passadas. E a razão pela qual os homens são tantas vezes levados por surpresa a pecar gravemente, não está sempre na veemência da tentação e na falta de vigilância que lhe prestam no momento; está, ao contrário, no descuido em relação à fraqueza moral generalizada que o pecado passado, e mesmo perdoado, deixou após si.

Em segundo lugar, é preciso lutar contra as tentações e lutar com indomável coragem. Não de-vemos considerá-las como inimigas, cujas linhas é preciso atravessar para tornar o campo livre em nossa frente, mas como inimigas cujo número irá crescendo ao avançarmos. As mais fracas serão as primeiras, pelo menos se excetuarmos as que trataram de

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impedir que nos entregássemos a Deus. Em seguida, virão as mais fortes. A violência das tentações parece proporcionada ao adiantamento na graça. O melhor está reservado para o fim, e um dia combateremos contra os pretorianos, a guarda de corpo do' demônio, e será provavelmente quando estivermos estirados, lívidos, no leito de morte. Convém lembrarmo-nos disso nas tentações, senão daremos demasiado valor às vitórias, enquanto os poucos resultados nos desanimarão. Nenhuma vitória alcançada pode comparar-se às que ainda estão por ganhar. Uma vitória, porém, é sempre vitória.

O terceiro inimigo está nas provações que, à seme-lhança das tentações, crescem à medida que adian-tamos. Caminhamos numa terra mais árdua. Vemos o mal onde dantes não o víamos e assim temos mais escolhos a evitar que antigamente. Visamos coisas maiores e galgamos montes mais elevados. Tudo isto tem o seu lado animador, mas a dificuldade se mede pela grandeza e altura. Assim, pois, há na santidade uma quantidade de provações e aflições que lhe são próprias e que não se encontram na liberdade, nos modos fáceis e na linguagem falaz do mundo. As provações interiores, que lhe são peculiares, bastariam para ocupar um grande santo durante toda a vida. Scaramelli escreveu a este respeito um tratado completo. As provações interiores não estão repartidas de igual modo entre os homens. Uns as têm mais, outros menos. E' necessário, entretanto, lembrarmo-nos de que ainda não defrontamos o nosso peior inimigo. Não cantemos vitória, quando, apenas, iniciámos a batalha.

Em quarto lugar, temos que lutar contra as mo-dificações em nossos próprios defeitos. Há algo de confortável num hábito, depois de vencido o esforço para adquiri-lo. Já estamos afeitos a certa maneira de agir e custa-nos abandoná-la. O aperfeiçoamento dos instrumentos só serve, no princípio, para embaraçar os velhos operários. Davi sentiu-se tão pouco a vontade na armadura de Saul, que voltou às vestes pastoris e à arma primitiva. Assim também conosco. Adotamos, em relação à nossa pessoa, certo modo de proceder, sentimos certo ódio a nós mesmos, e tratamo-nos com certa severidade. Foi custoso a princípio, mas já nos habituamos e agora tudo vai mais ou menos bem. Depois, quer pela idade, quer pelas circunstâncias exteriores ou, ainda, devido a alguma crise interna, os nossos erros se transformam e somos forçados a adotar novo método de guerra. Além de que, essas alterações são muitas vezes imperceptíveis quando em formação. Não temos conciência do que se passa; e como, por vezes, o nosso caráter está sujeito a modificações contrárias, talvez continuemos a descurar daquilo que deveríamos observar e observamos o que poderíamos pôr de lado com. segurança. De mais a mais, podemos favorecer uma paixão nova, pensando mortificar a antiga. Isto não deixa de causar certa perplexidade, que nos aborrece e distrai na luta, embora não ofereça outro inconveniente. Preparemo-nos.

O nosso quinto inimigo está nas imperfeições importunas. A guerra que lhe movemos não é nem perigosa nem enobrecedora, mas sim fatigante, de-vastadora e incômoda. Certas enfermidades parecem, por vezes, dotadas de vitaüdade sobrenatural, que os nossos esforços mais sérios e mais perseverantes não conseguem debelar. As negligências habituais na recitação do ofício ou do terço, as ligeiras imortificações às refeições, o emprego de certas expressões, bem como outras coisas relativas à compostura exterior e ao recollúmento, são exemplos de tais enfermidades. Vexa-nos o sermos escravos de tão pequeninas coisas, que são, por conseguinte, provações tanto para a fé como para o gênio. Mas Deus permite-nos às vezes errar o alvo quando investimos contra elas. Ele assim procede para subtrair a nossa devoção aos olhos do próximo, que poderia murchá-la pelo louvor, ou para que, à semelhança do Apóstolo, tenhamos um espinho na carne que nos conserve na humildade e nos faça desprezar-nos a nós mesmos. A graça muitas vezes se preserva à sombra de uma imperfeição, porque muita imperfeição não é tão culpável ou indigna à vista de Deus, como é óbvia e humilhante. Em todo o caso, a luta penosa contra as imperfeições não acabará nem no momento da Extrema-Unção. Só terminará com o último suspiro, quando descansarmos realmente no regaço indulgente do Pai celestial.

O sexto inimigo é a subtração da luz divina e do auxílio sensível, quer nos sobrevenha como prova purificadora, quer como castigo devido à nossa infidelidade. Assemelha-se à luta de Jacó, quando batalhou contra Deus; ou antes é, de uma vez, luta contra Deus, contra nós mesmos e contra o mau espírito. Pois apenas Deus nos retira a assistência sensível, e logo o demônio nos ataca com redobrada violência, enquanto nós mesmos cedemos ao amor próprio ferido e ao desânimo. Dá-se conosco o mesmo que se deu com os Israelitas no Egito. A caminhada é árdua, mas falta-nos a coragem de outrora. Pelo menos assim nos parece. Deus está, todavia, conosco quando menos o suspeitamos. Mas é difícil persuadir-nos disto pela fé pura e simples, quando a sensibilidade e o sentimento provam o contrário. Devemos à misericórdia divina não ser essa luta perpétua. Vem e vai. Se pudéssemos considerá-la de antemão como uma visita significativa do amor misterioso, havíamos de suportá-la com mais doçura e mais coragem do que até agora. Em geral, os esforços por demais violentos cansam-nos e caímos desamparados numa espécie de desespero petulante. Zangar-se com Deus é mais comum na vida espiritual do que supomos. E' uma disposição que arremessa por terra muitas orações que se haviam elevado e corrompe muita mortificação corajosa. Felizes os que lutam contra Deus sem juntarem queixas às orações e com recolhida reverência, decididos a vencê-lo com o auxílio de sua graça.

Isto me leva ao sétimo inimigo contra o qual temos que lutar. E' a excessiva familiaridade, principalmente em tres pontos: na oração, nos sacramentos e nas tentações.

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Já disse, de início, que é terrível tratar cóm Deus. Amar a Deus é empresa audaciosa e árdua, mas a divina misericórdia fez um preceito daquilo que em si é inefável privilégio. E' difícil, porém, amar com ardor e ternura e, ao mesmo tempo, com reverência. E resulta daí que, para muitos, a familiaridade se prende ao amor e o contamina. A familiaridade na oração consiste em meditar sem preparação, em empregar certas palavras insuficientemente medidas, em adotar atitudes cômodas, em usar epítetos irrefletidos, em levantar queixas impertinentes, e em pedir levianamente aquilo que os santos pediram. Isso não passa de intolerável familiaridade para com a grande majestade de Deus. E vai sempre peiorando. O hábito traz a negligência, e a negligência torna-nos profanadores. A familiaridade com os sacramentos consiste em con-fessarmo-nos após rápido exame, seguido de um simples ato de contrição, em omitir as ações de graça, e não nos preocupar com a penitência, como se fôssemos pessoas privilegiadas e tivéssemos o direito de tomar liberdade com o

precioso sangue de Jesus. Com a santíssima Eucaristia, consiste em comungarmos frequentemente sem licença, ou com licença forçada; sem a menor preparação, com ações de graça negligentes (como se toda a vida fosse preparação e ação de graça ade-quadas) ; em aparentar liberdade de espírito, por meio de uma atitude livre e fácil para com o adorável Sacramento. A familiaridade com as tentações consiste em perdermos o horror que tínhamos ao seu caráter corruto, em repeli-las frouxa e lentamente, em amortecer o ódio que lhes temos, em não as receiar, certos de que tal virtude está tão firme, que não nos é possível cair. Tais familiaridades estendem-se sobre nós, qual sono que se aproxima insidiosamente. Sentimos aumentar a repugnância em afastá-las e sacudi-las de nós. O pensamento do inferno e do purgatório, por mais salutar que seja, far-nos-á menos bem que a meditação dos adoráveis atributos de Deus. Se a nossa carne fosse sempre traspassada pelas flechas do santo temor, quão angélica se tornaria nossa vida!

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2. Tal a luta, e tais os sete inimigos principais contra os quais combatemos. A segunda fase do estado normal é, ao meu ver, a fadiga. Consiste em algo mais do que uma sensação agradável de cansaço. Com efeito, se na fadiga há por vezes certo prazer, em geral é uma dor penosa e opressiva. A fadiga de que falo nasce da luta que acabo de descrever. Consiste, primeiro, no desfalecimento, que resulta da mera continuação do combate; em segundo lugar, num desgosto, numa aversão por todas as coisas sagradas; em terceiro lugar, na suscetibilidade que provém não somente de frequentes derrotas, mas também da natureza fatigante da guerra; em quarto lugar, no desânimo, sobretudo quando a graça já não nos sustenta tão sensivelmente; e em quinto lugar, no sentimento de impossibilidade de perseverar, que não significa desespero, porque não deixamos de esforçar-nos, embora nos mova a simples força da vontade ajudada pela graça e não a energia e a esperança do coração. Esta fadiga manifesta-se durante ou depois da batalha. E como, sob a influência opressiva desse cansaço, podemos, ao mesmo tempo, ofender a Deus e prejudicar os nossos próprios interesses, importa obter a seu respeito uma idéa justa, investigando-lhe as causas.

As causas são em número de sete, e cada qual é acompanhada pelas provações, perigos e tentações que lhes são próprias. A primeira causa é a oposição constante à natureza, que a vida espiritual subentende. Não me refiro aqui tanto à mortificação voluntária, ainda que seja preciso também levá-la em conta; mas tudo o que fazemos na vida espiritual contraria a vontade e as propensões da nossa natureza corruta. Não há prazer ao qual ousemos dar ilimitado consentimento. Não há gozo espiritual que não cause

maior ou menor sofrimento à mísera natureza humana. Há muita alegria na oração e, no entanto, para a natureza, a mortificação é ainda menos penosa que a oração. Os gostos, os desejos, as inclinações, os instintos, o que procuramos e o que evitamos, tudo é obstáculo maior ou menor ao esforço que fazemos em prol da santificação. Quando a natureza nos oferece algum auxílio, desconfiamos dela e das suas intenções, e quando empregamos o socorro que nos fornece, tratamo-la com dureza e sem cortesia. Sua própria atividade, que forma tantos caracteres, parece-nos quasi um inimigo a arrastar-nos para longe da pre-sença tranquila de Deus e levar-nos a indiscrições sem fim. A vigilância dos sentidos, mesmo dentro dos limites do estrito dever, é uma escravidão que a natureza mal pode suportar. Numa palavra, à proporção que a graça se apossa de nós, perdemos a simpatia pela nossa própria natureza, e, de certo modo, pela criação exterior em geral. Isto se torna patente nos santos e nas pessoas extáticas. As mo-léstias, os sofrimentos, os estados valetudinários de tais pessoas, aparentemente contrários à natureza, são o simples resultado do caráter místico e sobrenatural de sua vida. Ensinam os teólogos místicos que tanto o sistema nutritivo como o nervoso ficam desconcertados quando, a graça se apodera por completo da alma, mormente naqueles que levam vida contemplativa e interior. Mas tudo isso já se fez sentir de leve ao encetarmos de modo resoluto a vida espiritual, e produziu necessariamente o cansaço. O simples ato de remar perpetuamente contra a corrente cansa-nos e torna-nos rígi-■ dos. Não somente não pode haver paz com a natureza, mas também, excetuando-se os momentos de êxtases, não haverá armistício; e, na opinião Fáber, O progresso — 8

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dos santos, a natureza parece vingar-se terrivel-mente de seus êxtases, uma vez passados estes.

Outra causa de fadiga é a incerteza que tantas vezes se segue à tentação, para saber se consen-timos ou não. Andar com os olhos vendados, ou procurar o caminho nas trevas, é em si fatigante. A claridade diminue a fadiga. Mas na dúvida se ofendemos ou não a Deus, se tal ou tal ação foi contrária aos votos ou às resoluções, perdemos a elasticidade. Se levamos, de fato, vantagem, nenhu-ma sensação de vitória nos sustenta; se fomos ven-cidos, mais fácil seria enfrentarmos com valentia o desastre, se não houvesse dúvida a respeito. Mas assim como a caminhada de uma légua, com o rosto exposto ao sol, ou os olhos batidos pela poeira, cansa-nos mais do que outras dez em boas con-dições, assim também a incerteza em que nos deixa a tentação, quando se retira, cansa-nos e ener-va-nos.

A terceira causa da fadiga está na monotonia da luta, diariamente renovada. A repetição cansa sem-pre. E a angústia do encarceramento, por mais con-fortável e espaçosa que seja a prisão, é devida em grande parte à monotonia da vida quotidiana. O sol, no entanto, brilha através da janela, a brisa matutina cicia e os passarinhos cantam nos campos; mas, ao despertar, não nos lembramos do lugar onde estamos e do que nos espera. Logo, porém, ao verificar a presença de mais um dia de monótono cativeiro, a alma abate-se, abandonada e cansada, mesmo após longas horas de sono restaurador. Tal se dá também na vida espiritual. Será sempre um combate? Nunca nos havemos de livrar dessa pressão? Nunca diminuirá a violência? Não será o esforço mitigado? E, quando nos vemos obrigados a responder simplesmente: Não, então essa velhíssima contenda, renovada a cada hora, torna-se quasi insuportável. Tomemos qualquer imperfeição habitual — por exemplo, a falta de governo da língua, ou o indigno prazer do comer ou do beber — e verificaremos quanto cansaço e desgosto nos cabe suportar antes de, conseguirmos uma impressão sensível de triunfo contra a força do mau hábito.

A quarta causa da fadiga é o muito tempo que exige um pequeno progresso. Falta-nos o êxito, que nos impede de sentir a fadiga; o estímulo, que nos faz adiantar e fornece à natureza novo ânimo, habi-litando-a assacar dos fundos secretos da própria constituição as forças que, de outro modo, só a luta mortal nos teria trazido. A derrota, pelo contrário, predispõe-nos à lassidão. Além de que, a marcha vagarosa cansa mais do que a ligeira. A bordo, os homens caminham apressadamente, ao percorrerem um pequeno convés; ir passo a passo é tedioso e cansativo. Estes fatos singelos são imagens dos sentimentos espirituais. Nosso pouco progresso priva-nos do estímulo natural. E' preciso que o espírito esteja saturado de princípios sobrenaturais, para lembrar-nos sempre que o mau pensamento repelido, o mau humor castigado com firmeza, a mísera inveja bem reprimida, um bom Deo gratias no infortúnio, tudo signifique realmente centenas de léguas de progresso, e nos 3eja mais precioso que a posse do

mundo inteiro, porque é coisa agradável a Deus e que só ele nos proporcionou fazer. Infelizmente, nós nos compenetramos em geral com mais facilidade dos princípios sobrenaturais quando menos sentimos a fadiga, razão pela qual o pouco progresso se nos torna tão custoso. A calmaria do mar é fatigante, embora não exija esforço físioo algum da nossa parte. Su-8» bir o Monte Parnasso, enfrentando a ventania e sob uma chuva torrencial, cansa menos do que ficar preguiçosamente o dia todo no golfo de Corinto, em presença de tamanha beleza que nos deleita o espírito e os olhos durante semanas inteiras.

A vigilância universal exigida pela vida espiritual é a quinta causa da fadiga. E' preciso não somente estar sempre na alerta, mas vigiar grande extensão de terras. Tudo o mais na vida espiritual pode ser concentrado, exceto a vigilância. que mais próximo lhe fica é o exame particular de conciencia, uma das práticas mais úteis e eficazes. O exame, em verdade, não é uma concentração da vigilância, mas fixa-nos a atenção com energia num defeito, enquanto nos ajuda a permanecer de sobreaviso, tornando-nos os olhos prontos para notar qualquer movimento, e os ouvidos atilados para distinguir o menor som. Ninguém nega que o exame particular seja fatigante, e feliz daquele que lhe for fiel, sem uma falta, ainda que por um mês. Se a vigilância é, em si, fatigante, que será quando a exercermos de modo geral e constante? Tal, porém, a que o mundo, a carne e o demônio exigem de nós. A liberdade de espírito é uma graça. Dispensa muita coisa. Mas ai daquele que por ela se julga dispensado de ser vigilante.

A sexta causa da fadiga está no simples efeito de duração, que é diferente da terceira causa. A duração não é, propriamente, a mesma coisa que a monotonia. Uum trabalho leve cansa se for prolongado demasiadamente; e, entretanto, o trabalho da vida espiritual não tem fim, e exerce pressão contínua. E* verdade que essa fadiga é mais fácil de tolerar que outras, porque há algo de consolador no pensamento de que perseveramos até então. Constitue, não obstante, uma das dificuldades da perseverança, porque, além de sentirmos o cansaço presente, o futuro apresenta-se-nos com idêntico aspeto. Só vemos trabalho em nossa frente — muito ou pouco, conforme aprouver a Deus, porém sempre trabalho e isso enquanto durar a vida. Não há aposentadoria ou meio soldo na vida espiritual.

Em sétimo lugar, a fadiga é causada pela própria fadiga. Cansa-nos estar cansados, e isto produz uma espécie de torpor, perigosíssimo à alma. Tor-namo-nos indiferentes a tudo, ficamos insensíveis ao sentimento da nossa própria indignidade, ao horror do pecado e ao glorioso desejo de possuir a Deus e unir-nos a ele. Assemelhamo-nos a um instrumento musical que estivesse partido. Não emitimos 3om quando nos tocam. Há, nesse estado, certa analogia com o coração desguarnecido de que falou nosso Salvador, no qual poderiam facilmente penetrar sete demônios, peiores que o primeiro que foi expulso. O único remédio para esta espécie de cansaço é um acréscimo de ocupação. Devemos carregar ainda mais o espírito já tão sobrecarregado. O emprego de

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semelhante remédio pressupõe espírito de fé. Só a própria neve pode curar os membros gelados do viajante do Antártico. E' cura cruel, mas específica. Assim também acontece com o cansaço produzido pela fadiga. Se não o carregamos mais, até ao ponto de irritá-lo, de zangá-lo, até mesmo de torná-lo rebelde, em pouco tempo estaremos na iminência de abandonar inteiramente o serviço de Deus.

Tais as sete espécies de fadigas, e tenho medo do que escrevi. Receio desanimar-vos. Ai de mim! não é real benefício lançar falsa luz cor de rosa nas partes árduas e fragosas da paisagem espiritual. Não se118 CAPITULO VIII

deve representar como sendo fácil o que Deus em parte fez dificílimo. Mas lembremo-nos de que este é só um lado do quadro, e o lado escuro. Demorei-me neste ponto, porque aqui pertence; descrevi-lhe o seu peior aspeto, porque supus que, durante todo esse tempo, Deus vos subtraia regularmente toda devoção sensível, toda consolação interior. Mas raras vezes, ou nunca, será assim, e certamente só acontecerá às almas a quem Deus primeiro deu imensos dons de coragem, de fortaleza, de paciência a toda prova, ou então uma atração particular para se dirigirem pela simples fé. Quando chegarmos ao capítulo sobre a indolência espiritual, mos-trar-vos-ei como deveis evitar os perigos a que esta fadiga vos expõe. Neste Ínterim só direi que as alegrias espirituais da santidade mais que lhe compensam a fadiga, acrescentando que não deveis precipitar-vos em procurar refúgio e consolo nas criaturas quando as coisas de Deus vos parecem momentaneamente pesadas e sem interesse. Terríveis seriam as consequências de tal passo. Eu diria irremediáveis, se não tivesse visto exemplos que provam o contrário. Espero que não haja nada de irremediável na vida espiritual. O caso dos religiosos tíbios foi citado como não tendo cura; já as tem havido no entanto. E que mal seria incurável, se este não o for?

3. A terceira fase do estado normal é o repouso, que, aparentemente, é o oposto da fadiga. Não imaginemos, porém, que este repouso deva ser ces-sação da luta, ou isenção da fadiga, pois seria contrário à idéa da vida espiritual. O repouso de que falo é um repouso mais real, mais sublime, inteiramente de outro gênero. São cinco os seus característicos. Em primeiro lugar, é sobrenatural, e não fruto da natureza fatigada. Não seria repouso se viesse de outra fonte se não a do céu, e, provindo de algum coração humano, só poderia ser do Sagrado Coração de Deus, feito Homem. Em segundo lugar, dura pouco tempo. Vem e vai, qual visita de um anjo. Mas, em terceiro lugar, por mais rápida que seja a visita, os efeitos são duradouros. Refresca-nos e anima-nos de tal modo que nenhuma consolação tei*rena o pode imitar, e muito menos igualar. E' o alimento que, fortificando-nos, nos permite caminhar até à montanha de Deus. Em quarto lugar, é muito tranquilo, não produzindo excitação alguma. Não interrompe nenhuma devoção existente, nenhum exercício espiritual. Não é força que nos perturbe a vocação, nem impulso que nos domine a discrição.

Por último, une-nos a Deus: e que será essa união senão uma participação da sua eterna tranquilidade, um antegozo do descanso sem fim no regaço paterno?

Procurando desenvolver as variedades deste re-pouso tão desejado e tão belo, devo advertir-vos de que não deveis desanimar se o faço consistir naquilo que, atualmente, parece muito acima do vosso alcance, embora começastes a encaminhar-vos para tais alturas. Talvez estejais ainda muito no começo, mas já começastes a subir, e haveis de encontrar o dom do repouso, que aumentará à medida que subirdes, mas que desde já é o dom substancial do nosso compassivo Pai celestial.

Este repouso divino consiste, primeiro, no desapego das criaturas. Enquanto crescemos na santidade, o afeto pelas criaturas se vai enfraquecendo e o que sobra se volta para Deus. Não quero dizer que ser santo é ser insensível. Vede são Francisco de Sales estendido no chão do quarto onde a mãe acaba de falecer, soluçando como se o seu coração se fosse partir. Os anjos fortes contemplam-no, sem censurá-lo, porque sua dor é mais uma santidade humana que uma fraqueza humana. Disse ele que, durante toda essa tempestade de dor, sua vontade não esteve, nem um instante sequer, afastada da vontade de Deus. Tudo o que há de irregular, de terreno, de demasiado, nos afetos, desaparece. Temos conciencia de um declínio de todo sentimento violento em nossos corações, e, em seu lugar, surge o repouso, porque os intensos sentimentos terrestres são uma verdadeira tirania.

Em segundo lugar, não visamos mais nenhum fim humano; e, portanto, não há nada em redor que nos inquiete. A que êxito aspiramos? Será a riqueza? a ambição? a execução de algum projeto? Tais coisas não pertencem à espiritualidade, que não as conhece senão porque as queimou outrora. Destruiu-as e passou aléni. As mesmas obras de misericórdia não são fins em si, fins em que possamos descansar. São meras alpondras que colocamos para a glória de Deus e para que seus anjos passem pela terra, abençoando-lhe a miséria. O repouso pode existir no próprio esforço em busca dum fim sobrenatural, ou o mesmo esforço pode tornar-se mais suave que o mais delicioso repouso. Ao contrário, não pode haver repouso para quem se propõe um fim humano, por mais inocente que seja.

Em terceiro lugar, a santidade traz-nos o repouso, livrando-nos da ambição espiritual em qualquer de suas variadas formas. Como já disse, andar demasiado ao encalço da virtude é, em si, vício, e o desejo febril de livrar-nos prontamente de toda imperfeição é ilusão do amor próprio. Desejar favores sobrenaturais é quasi um pecado, pedir sinais sobrenaturais é, por sua vez, indiscrição. A graça atual não somente é o campo do nosso labor, é também o abrigo do nosso repouso. Confiemos em Deus e sejamos infantis com ele, mesmo no que se refere ao progresso espiritual. Façamos um leito de nossa baixeza e um travesseiro de nossas imperfeições e descansemos na humildade, e nada poderá manchar-nos. A ambição e a ganância não são menos repulsivas por se basearem em motivos espirituais. Do

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momento em que Deus nos alimenta com a sua própria mão, não convém mostrar avidez. Quando a ambição espiritual for mortificada, não pela indiferença, mas pela paciên-cia? pela oração e pela doce esperança, então achareis o repouso.

Uma das consequências destas disposições é a boa vontade para morrer; e isto, em si, é uma quarta fonte de repouso. Nada nos retém. Por que havemos de tardar? Ousaremos, como são Martinho, pedir para viver e trabalhar, se formos necessários ao povo de Deus? Somos tolos ao ponto de sonhar que temos uma missão, a nos reter na terra, como Maria depois da Ascensão ou são João Evangelista até ver passar o primeiro século? Quando vamos viajar, e estamos nos aprontando, agitamo-nos com os preparativos, as últimas ordens, as despedidas. Mas, uma vez tudo terminado, enquanto não chega a hora, sentamo-nos para descansar. O lar não parece mais lar, porque va-mos partir, e os nossos afetos estão empacotados, como as obras, méritos e pecados perdoados de um moribundo. Se nos vier outro sentimento que não o do repouso, será uma quasi impaciência. Mas, em pessoa espiritual, a impaciência para morrer não seria pequena mortificação. A boa vontade para morrer, sem impaciência, é, portanto, o repouso. O animal satisfeito, que se estende à sombra da árvore, em pleno campo, ao meio dia, não sente no descanso maior gozo que a alma imortal que se desapegou corajosamente das coisas mortais.

A natureza prefere descansar nos fins e não nos meios. Isto abre-nos uma quinta fonte de repouso, pois tudo, por transitório que seja, torna-se um fim quando se refere a Deus. E', de fato, fim, e num sentido que não se aplica às coisas meramente terrestres, pois participa do fim de todos os fins e do último repouso de todas as coisas, que é Deus mesmo. Encontraremos, por conseguinte, repouso no próprio combate e na própria fadiga, pois ambos são formados por inúmeros degraus, e cada qual é em si lugar de repouso e fim. Não sente cada um de nós, certas vezes, infelizmente raras, invadir-lhe alegria, porque não tem nem desejo nem vontade própria? Nada nos falta, porque Deus está em'toda a parte. Procuramos a Deus, e encontramo-lo, nada mais temos, pois, a procurar, nada mais a desejar. Males possiveis apresentam-se-nos à imaginação, só para que possamos verificar a alegria que nos causa a nossa perfeita indiferença em relação a eles.

Gozamos do repouso completo. A terra não possue fibra alguma do nosso coração. Já desenraizado dela, cada coisa no mundo é para nós um fim. Podemos descansar em qualquer lugar, por toda a parte encontramos um leito, pois referimos tudo a Deus. Desejaríamos que esse repouso durasse às vezes um pouco mais, porém Deus sabe o que faz. E o próprio desejo romperia a delícia daquele repouso celestial.

A humildade fornece-nos a sexta fonte de repouso. E de dois modos. Primeiro, torna-nos contentes, satisfeitos com as nossas enfermidades, embora não com nós mesmos. Praza a Deus que sempre seja assim! Tornamo-nos tranquilos, desapegados, infantis e calmos, e o próprio som destas palavras indica repouso. Segundo, a humildade conserva-nos submissos, comprimindo-nos sob o sentimento do nosso nada, e alegra-nos também, derramando em redor a luz pura da graça e fazendo-nos sentir quão inteiramente tudo devemos a Deus. Quem jamais viu um homem humilde com coração inquieto? Nunca, a não ser quando alguma tempestade de dor, ou alguma perda, o assolou. A humildade é o repouso, repouso doce e seguro, que não deixa após si nem censuras nem apreensões, e que está ao alcance do último dentre nós.

Há uma sétima fonte de repouso, da qual é difícil falar, porque não podemos exprimi-la pdr palavras. São apenas sinais, que dão uma idéa a respeito. E' o repouso que provém do simples pensamento de Deus, ou, antes, que é, em si, o simples pensamento de Deus. Certas vezes, os climas amenos oferecem-nos um cenário que, pela sua magnificência, cativa-nos de tal forma a inteligência, o coração e os sentidos, que caimo3 numa espécie de êxtase ao contemplá-lo, saciando-nos, sem compreendê-lo e descansando-nos no mero gozo da vista. Assim podemos sentar-nos à sombra de uma árvore nos cumes do monte Etna, nos maravilhosos declives das montanhas de Taormina e contemplar a paisagem. Toda a magia da mata e da água, dos rochedos e das montanhas, do céu deslumbrante e do ar transparente, aliada ao grande espírito da antiguidade, planando sobre a bela natureza, aí se encontram e não podem ser analisados nem explicados. Enredemo-nos na beleza que nos domina; e o gozo deste meio pensamento nos entretém durante horas. E' esta uma pobre imagem do repouso

que se encontra no pensamento glorioso de Deus, que cobre com a sua sombra qualquer outro pen-samento. E' um repouso que satisfaz por si mesmo, não só porque Deus é todo poderoso, santo e sa-pientíssimo", o- Deus paternal que se entrega a nós, mas simples e meramente porque é o nosso Deus. Palavras não o saberiam explicar melhor. Deus às vezes no-lo concede, e sentimo-lo. Visto através duma atmosfera mais viva que a da Sicília, mais límpida que a fonte de Aretusa, a luta e o combate parecem-nos belos e deleitáveis. Mas, seja qual for a medida em que Deus nos visite com essa luz, verdade é que o estado normal da nossa vida espiritual consta da luta e da fadiga, entrecortadas pelo dia de repouso do povo de Deus; repouso na

languidez do amor aqui na terra, e, no outro mundo, repouso mais completo no regaço eterno de Deus.

CAPITULO IX

Da paciência

As tres disposições que formam o estado normal da vida espiritual — a luta, a fadiga e o repouso — estão rodeadas de certa escuridão e dificuldade característica, e, por conseguinte, exigem certas virtudes para esclarecê-las. A luta carece na-

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turalmente da paciência; a fadiga só está livre de perigo quando a sinceridade da nossa intenção nos preserva do respeito humano; e o repouso, enfim, precisa de corajosa mortificação. Neste capítulo falaremos portanto, da paciência.

Não é verdade que, em geral, não damos na vida espiritual o devido valor a esta virtude? Reconhe-cemos de boa vontade a importância da oração, do exame de conciencia, da mortificação e da leitura espiritual, como meios de santificação, julgan-do-os parte necessária dos exercícios ascéticos de cada dia; mas receio que não damos à prática da paciência o lugar que lhe compete. Dirijo-me de modo particular às pessoas que vivem no mundo, e cuja santidade tem, por conseguinte, um caráter mais concentrado que a dos religiosos, porque as circunstâncias exteriores as concentram forçosa-mente e não lhes fornecem ocasião para as belas expansões que se manifestam na vida conventual, a cada hora, com graciosa liberdade. Disse que a santidade da pessoa piedosa no mundo é de caráter mais encoberto que a do religioso, e, à primeira vista, parece que dou vantagem à secular.Praza a Deus que assim não seja! Se as circunstân-cias exteriores tornam a santidade do mundo mais encoberta, formando-lhe assim um espírito interior, o religioso goza do inestimável privilégio da obediência que exerce na alma pressão contínua e sobrenatural, adestrando-o no mais delicado espírito interior, e cuja falta nada pode compensar. Essa obediência é muito diversa da obediência que o secular deve ao diretor. Mas dou muita importância ao fato (atestado tanto pela experiência como pelas vidas dos santos) de que a santidade do leigo é mais oculta. Com efeito, já foi moda escreverem-se livros espirituais num estilo de hipérbole e de exagero, inteiramente oposto à calma discrição e sóbria moderação tão necessárias na exposição de tais assuntos, e cujo fim era atribuir toda santidade ao claustro e considerar o resto do mundo como um abismo de reprovação. Independente de ser uma doutrina falsa, o exagero é absurdo em todos os sentidos, e leva infalivelmente a baixar o nivel da perfeição monástica, assim como nos tempos de Tronson os padres mundanos queriam descansar todo o peso da perfeição sacerdotal sobre os religiosos, para poderem viver mais à vontade e gozar de maior liberdade.

Não há talvez, na vida espiritual, nenhum ponto que seja tratado com mais injustiça que este. Se, porém, consultarmos os escritores antigos, sobretudo os tres grandes ascetas jesuitas, Platus, Alvarez de Paz e Da Ponte, veremos que não há parte na teologia espiritual onde os princípios estejam traçados com maior clareza. A perfeição monástica é muito superior a qualquer perfeição a que se possa aspirar no mundo. Se fôssemos, todavia, dizer a uma freira que certas práticas de perfeição, observadas por seculares, só se prestam aos conventos, diminuiríamos logo a importância da idéa que ela faz de suas próprias obrigações: e de admirar seria se a natureza, triunfando da graça, não a. levasse a nivelar sua vida à dos seculares piedosos que vivem na sociedade. Se formos, pois, descrever a perfeição

a que pode chegar o padre secular como sendo o tipo da perfeição do religioso, prejudicaremos tanto ao religioso quanto ao secular, transformando e reduzindo os respetivos modelos. O religioso reconhece na imagem do perfeito secular a imagem do perfeito frade e o secular não se reconhece de todo nela. Tronson observa, com sagacidade, que isto é ainda mais perigoso, porque, se, na opinião de muitos escritores espirituais, é sinal de relaxamento nas ordens religiosas o descrer da perfeição no mundo e no clero secular, por causa das consequências óbvias que resultam para a própria ordem em admitir semelhante doutrina, também, por outro lado, o clero secular, "longe de testemunhar essa estima pela própria vocação, é muitas vezes o primeiro a combatê-la. Se não me acreditais, fazei a experiência. Tomai uma máxima eclesiástica que tenda a estabelecer-vos na perfeição (Tronson se dirige aos padres seculares), quer se refira ao desapego do mundo ou à fuga das vaidades mundanas, quer à condenação das máximas do século, coisas a que os eclesiásticos estão obrigados de modo particular, e vereis que os próprios eclesiásticos serão os primeiros a protestar, e assim os que deveriam defender tais verdades, e que se comprometeram em virtude de seu estado a mantê-las com máximo vigor, são os que as atacam com maior calor e veemência. Vede aonde chegamos!" (1).

1) Entre ti ens, tomo II, p. 11.Não estou confundindo o caso dos padres secula-

res com o dos leigos em geral; mas, como a questão que trata da sua perfeição assemelha-se à que ora consideramos e é em si de esmagadora importância, abusarei da paciência do leitor, fazendo ligeira digressão a respeito. Alvarez de Paz (2), Da Ponte (3) e Platus (4) emitiram os mesmos princípios de Tronson. Diz este que a Igreja se compõe de tres ordens: leigos, religiosos e clérigos. Este último estado, diz ele, "tem todas as desvantagens dos outros dois, sem ter as mesmas vantagens. Os clérigos, com efeito, têm, pela excelência do seu ministério, pela divindade dos sacramentos que administram e pelo governo das almas, igual ou maior obrigação que os religiosos de atingir à perfeição. Não têm, porém, os auxílios dos religiosos nem recebem graças mais ricas". Estes escritores foram todos jesuítas, com exceção de Tronson. Citarei ainda outro, porque a teologia espiritual foi uma das muitas matérias em que se distinguiram os jesuítas e os seus esciütores são geralmente os mais claros e os mais definidos, unindo a ciência à unção. E' o padre Surin (5). Falando a respeito da condição do padre secular, diz: "O seu estado requer toda a pureza de vida dos religiosos e dos solitários; e o sacerdote estaria muitíssimo iludido se, para desculpar-se do pouco cuidado que toma para galgar à mais alta

2) De Vita Spirituali, I. II. Pars v. de Statu Clericali.3) De Perfectione Ecclesiasticorum, sendo o primeiro dos sete tratados do quarto volume De Perfectione.

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4) De Bono Status Religiosi, lib. I cap. XXXVII. Com-paratio status religiosi cum ordine clericorum simpli-cium. Vede também Walter Hílton, Cartuxo inglês, Tratado a um Homem Devoto do Estado Secular, ensinan-do-lhe a levar vida espiritual no mundo. Londres, 16591

5) Lettres Spirituelles, Let. XIV.santidade (la plus haute sainteté), dissesse que determinado ponto da perfeição, tal como o recolhi-mento, a oração, a mortificação, ou o zelo pela glória de Deus, convém a um cartuxo, um capuchinho ou um jesuíta, mas que ele, no entanto, não aspira tão alto".

Na verdade, estes grandes ascetas jesuítas em nada se afastaram da tradição dos mais antigos doutores. Não se adiantaram sobre o grande luminar da Igreja, santo Tomaz, o anjo das escolas, que, por sua vez, declara ensinar a tradição de Ambrósio, de Crisóstomo e dos padres ainda mais primitivos. Ele, que defendeu o estado religioso e a perfeição inerente, diz no seu admirável tratado sobre a Perfeição: "Se, portanto, um religioso não for

sacerdote, como acontece com os irmãos leigos, é manifesto que o sacerdote, pela preeminência da ordem, o excede em dignidade. Pois, em virtude das santas ordens, o homem se eleva ao mais digno dos ministérios, a servir a Cristo no Sacramento do Altar. E isto requer maior santidade interior que o estado religioso, pois, como disse Dionísio (6), a ordem monástica deveria acompanhar as ordens sacras, e, imitando-as, elevarse às coisas divinas. Em igualdade, pois, de condições, o sacerdote, quando comete uma falta contra a santidade, peca mais gravemente que um religioso não ordenado, embora o religioso leigo seja obrigado a observancias regulares e que o clérigo não o seja" (7).

6) In cap. VI. Eccles. Hierarch.7) Ad quod (o sacerdocio, o diaconato e o subdiaco-

nato) requiritur major sanctitas interior quam requiratetiam religionis status. Quia, sicut Dionysius dicit, Mo-nasticus ordo debet sequi sacerdotales ordines, et adeorum imitationem ad divina ascenderé. (Secunda Se-

Faber, O progresso — 9Mas

voltemos à questão original. Demorei-me nesse ponto, porque, se não tivermos uma idéa clara a respeito dos princípios fundamentais da perfeidentro e fora do estado religioso, quasi toda afirmação é suscetível uma interpretação errônea toca de perto ao assunto da paciência. O que quero dizer é que, apesar da obediência, da vida de comunidade, da observância exata da regra primitiva, da fidelidade ao espírito original do fundador e, sobretudo, da

prática da pobreza evangélica, colocarem a perfeição dos religiosos muito acima do alcance dos seculares em espécie, não pode ha-ver, entre eles, qualquer comparação em grau. Uma pessoa pode atingir um grau de perfeição superior à outra, porém numa espécie inferior. Os teólogos julgam provável que alguns santos na terra ama-ram mais a Deus do que certos anjos no céu. Isto explica a minha idéa; pois ninguém -pode negar que o anjo esteja num plano muito superior ao santo. Assim, também, o

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secular pode atingir um mais alto grau de perfeição no seu gênero, que tal religioso no claustro atingiu no que lhe era próprio, e tendo o leigo correspondido com maior fidelidade à graça, será mais agradável a Deus. Negar isto seria simples confusão de princípios. Os que discutem a respeito, empregam provavelmente palavras com dois sentidos. A coisa em si é evidente. Haverá quem preferisse ser religioso medíocre a ser secular muito santo? (8).

cundse. Quaest. CLXXXIV. Art. VIII, no qual mostra que um religioso é mais perfeito do que um arquidiácono).

8) Pode-se dizer que sto. Tomaz esgotou o assunto dos estados relativos da perfeição, nas últimas sete perguntas da Secunda Secunda?. Os livros espirituais são escritos principalmente pelos religiosos e para o seu uso. Daí resulta que a doutrina de sto. Tomaz sobre a perfeição do clero secular é tantas vezes, não digo represen-

Demais, a obediência é para o religioso (não em si, mas nas funções que exerce) o que a paciência é para os seculares. Independente da sua virtude diretamente sobrenatural, a obediência santifica o religioso por meio de quatro razões principais: porque vem de fora, porque ele não tem poder contra as suas exigências, porque exige que esteja pronto a qualquer momento, e, enfim, porque lhe pede sempre o sacrifício da própria vontade e dos gostos. Ora, a paciência, na sua esfera, desempenha para com os seculares, os mesmos fins. As circunstâncias que exigem o seu exercício vêm de fora; não temos poder sobre elas; podem surpreender-nos a qualquer momento; implicam sempre o sacrifício ou a mortificação da vontade e dos gostos. Não digo que a

paciência seja igual à obediência claustral, mas é a obediência dos seculares e lhes é necessária à perfeição. A obediência é para a perfeição superior e diferente dos frades e das freiras, o que é a paciência para a perfeição indubitavelmente mais baixa, porém genuína, dos seculares.

Resta dizer umas palavras sobre os quatro modos de exercer a paciência: Paciência com os ou-

tada de modo falso, mas simplesmente omitida, o que é grave erro, pois, além de prejudicar os melhores interesses do clero, causa também dano aos religiosos porque abaixa o nivel de perfeição monástica. Um religioso que é sacerdote é obrigado a dupla perfeição; porém os livros, escritos sem muita atenção, às vezes confundem o que pertence à perfeição sacerdotal com as obrigações do estado monástico. A prática da pobreza evangélica está numa altura inatingível aos seculares, sem falar da santificação que provém do voto de obediência. A superioridade do estado religioso sobre o secular é incomensurável; mas, repito, a diferença é de espécie e não de grau.tros, paciência conosco, paciência com o diretor, paciência com Deus. Talvez devido, quer à nossa própria maldade, quer à dos outros, toda a huma-nidade, próxima ou afastada, aparentada ou estranha, nos provará sempre a paciência, de um modo ou de outro modo. Se for provada pelos nossos superiores, a tendência natural seria a revolta imediata, e se nos mantemos subordinados e nos sujeitamos devemo-lo tanto ao respeito humano, ao receio das consequências que poderiam advir para os nossos próprios interesses, como à graça real da paciência. Mesmo quando obedecemos, tiramos a frescura da obediência por certo mau humor, por uma palavra de protesto, um olhar desanimado, ou pela queixa feita aos outros, ou pela tristeza geral que transparece em nosso modo de proceder e inquieta os superiores, nibstrando-lhes até que ponto exercem a autoridade quando nos obrigam a fazer aquilo de que não gostamos. Este sinal de má vontade destrói o poder santificador de metade da nossa vida. Se a paciência for provada pelos nossos inferiores, fazemo-los às vezes sentir, e com arrogância, a sua inferioridade, opri-mindo-os com uma repreensão, lançando-lhes um olhar severo ou penalizando-os com certa frieza. Se as provações provêm dos nossos iguais, frequentemente os ofendemos pela rispidez, pela aspereza, pela falta de afabilidade e de respeito mútuo. Quando partilhamos de qualquer trabalho ou convivemos constantemente com outros, nossa paciência é muitas vezes posta a prova. Encontramos pessoas estúpidas, suscetíveis ou importunas, e não vemos em cada encontro um dom de Deus, que observa o nosso proceder, e nos pagará com a mesma moeda. Quasi todas as circunstâncias da vida provam-nos a paciência num certo modo, momento, lugar ou grau, e não exagero dizendo que, principalmente nas fases iniciais da vida espiritual, tal exercício é mais salutar que o jejum ou a disciplina. Quando pudermos praticá-lo por amor à doçura de Jesus, não estaremos longe da santidade interior. Múltiplas bênçãos resultam desta prática para a vida espiritual. O

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espírito de defender sempre os nossos direitos é fatal à perfeição.

E' o posto daquela caridade da qual o Apóstolo disse que "não se procura a si mesma". Ora, este espírito é admiravelmente mortificado pelo exercício da paciência, que inclue também a prática contínua da presença de Deus, pois podemos ser chamados a qualquer momento a dar prova quasi heróica de bom gênio. E' o caminho mais curto para destruir o egoísmo, pois nada mais nos fica pertencendo. Tudo o que parece pertencer-nos de modo mais íntimo e ser nossa propriedade particular, tempo, lar, repouso, tudo fica invadido pelas provações constantes da paeiêTíéIãTA>.vida de família está repleta de tais oportunidades e a santidade do casamento as tem em abundância. Acrescentemos também, por não ser de pouca valia, que, entre todos os exercícios espirituais, é esse o mais livre de ilusão, apesar de ter o subtil e desanimador Guilloré enchido tres capítulos a respeito.

Na verdade, certos conselhos são necessários em se tratando do exercício da paciência para com o próximo. Esta prática requer longa aprendizagem, de sorte que já é, em si, um exercício de paciência. Ser impaciente, pela simples razão de não ter paciência, não é exemplo raro entre pessoas espirituais. O progresso na aquisição desta virtude não se percebe facilmente, porque a verdadeira abnegação própria subentende frequentes inquietações e agitações interiores. Devemos, portanto, animar-nos e continuar os esforços numa matéria em que cada esforço equivale a um progresso. Há também certos momentos em que devemos cuidar muito para não nos tornarmos irasciveis nem impacientes. Depois de longa oração, de grande devoção na meditação, de uma comunhão mais fervorosa que de costume, ou mesmo depois de qualquer esforço espiritual, sentimo-nos grandemente inclinados a impacientar-nos, devido, em parte, a uma lei da constituição física e, em parte, ao desejo do demônio de reparar as perdas que acabamos de lhe infligir. Contentemo-nos, portanto, no princípio, com a paciência material, ainda sujeita a irritar-se. Não nos aflijamos, nem desanimemos com isto, pois algo de melhor há de resultar em breve. E' bom, na confissão, acusarmo-nos das menores faltas contra a paciência e fazermos, a respeito, frequentes atos de contrição durante o dia, dirigindo repetidos olhares cheios de amor ao nosso Crucifixo, emblema tocante da paciência de Deus. Estranho é que, apesar de.ser Deus impassível, há um quê de particularmente divino na virtude da paciência. Se é possível dizer que uma graça, além da caridade, faz a beleza da santidade, podemos dizê-lo da paciência.

Se a paciência para com o próximo não é fácil, mais difícil ainda é a paciência para com nós mesmos! De fato, há tanta negligência neste ramo de virtude, que o mérito parece estar no contrário, como se a impaciência para conosco fosse mortificação heroica ou meritória. Há vasta diferença entre o ódio que nos devemos votar e esta impaciência. Quanto mais do primeiro e menos da segunda, melhor. Uma vez

superada a dificuldade da paciência para com nós mesmos, o caminho da perfeição se estenderá claro e desimpedido em nossa frente.

Mas que significa impaciência para com nós mes-mos? E', nas tentações, irritar-nos e iludir-nos a respeito da sua verdadeira natureza e do seu valor real. E', no pecado atual, vexar-nos antes pela hu-milhação causada à vaidade que pelo pesar da ofensa feita a Deus. E', na falta de domínio sobre nós mesmos, surpreender-nos, e irritar-nos por causa da nossa sujeição e hábitos indignos. E' desanimar porque sentimos violentos ímpetos de ira ou acessos de tristeza, ainda que não haja, como é possível, pecado em nenhum dos dois casos. E' desgostar-nos com a falta de devoção sensível, como se isso dependesse de nós, e como se a paciência não fosse o verdadeiro meio de merecer a devoção e a consolação espiritual. E' inquietar-nos porque verificamos que os remédios aplicados aos nossos defeitos não agiram como era de esperar, esquecendo-nos de que precisam de tempo e de que muitas vezes lhes opomos obstáculos secretos. A estes sintomas podemos acrescentar uma espécie de disposição para queixar-nos da falta de progresso espiritual, como se nos devêssemos tornar santos num mês.

Estes sintomas perigosos da impaciência para como nós mesmos provêm de uma ou outrai causa que passarei a enumerar; e nelas devemos procurá-los, afim de matá-los no ninho, antes que possam voar. São, de fato, as aves de rapina da vida espiritual. A primeira causa é o amor próprio, incapaz de tolerar a decepção de não se ver, em tempos de provação, belo, nobre e digno de ser admirado. A segunda é a falta de humildade, que nos impede de avaliar a nossa miséria ou compreender os efeitos deploráveis dos pecados passados. A terceira é a falta de uma noção exata das dificuldades enormes que cercam a vida espiritual e, por conseguinte, da necessidade do divórcio absoluto do mundo, da abjuração formal de suas máximas, antes de podermos entregar-nos efetivamente a Deus. A quarta é uma teimosa aversão em nos deixar guiar pela luz da fé, que nos fatiga. A natureza, o amor próprio, tudo, enfim, exceto a fé, quer ver, saber, raciocinar, ter certeza e segurança de que o êxito é infalivel.

A paciência para com nós mesmos é incalculável benção, é o caminho mais curto para a perfeição e o meio mais rápido de adquirir o espírito interior, a não ser as operações súbitas de Deus. Torna-nos indulgentes e suaves para com os outros. Afasta a tendência para a censura, porque está sempre a lembrar-nos as nossas próprias imperfeições. Aviva o sen&mento de inteira dependência de Deus e da graça, e produz a um tempo serenidade de espírito e igualdade de ânimo, porque não é somente esforço tranquilo e contínuo. E', por conseguinte, fonte constante da mais genuína humildade. Numa palavra, por meio desta virtude atuamos sobre nós mesmos exteriormente, por assim dizer, como se não se tratasse de nós, mas do nosso mestre, ou do nosso anjo da guarda. Obtidos estes resultados tanto na vida exterior como na interior, que resta a fazer para a perfeição?

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Há vários modos de cultivar essa paciência que nos diz respeito: a meditação frequente sobre o nosso nada é de grande utilidade; e sobretudo a lembrança de qualquer baixeza, fraude ou vileza da vida passada, cuja reconsideração não ofereça perigo pelo desgosto intrínseco e vergonha profunda que as minúcias do caso despertam em nós. Ao ouvir falar de algum grande crime, lembremo-nos de que, não fosse a graça, poderíamos tê-lo perpetrado nós mesmos, ou talvez peior ainda. Cuidemos, também, na confissão e na preparação anterior, em não confundir vexame com verdadeira contrição; e continuemos depois da comunhão a pedir a paciência de modo especial. Devemos tentar (é muito difícil, mas o tempo consegue vencer as dificuldades) alegrar-nos em todas as ocasiões que nos mostram a necessidade que temos da graça, bem como a possibilidade de pecar mui gravemente que nos acompanha sempre. Não nos apressemos em esquecer os pecados passados, não forcemos o caminho até à luz do sol. Se Deus nos dá a respeito do pecado um sentimento desalentador, devemos prezá-lo e prosseguir sob a pesada carga. Bendito seja qualquer peso por mais esmagador, que Deus, com a própria mão, se dignou colocar-nos aos ombros. Numa palavra, esta paciência é uma quasi condição do progresso espiritual, e santa Catarina de Gênova é a sua padroeira.

Da paciência para conosco, passemos à paciência para com o nosso diretor. A paciência para com os superiores é da essência da obediência religiosa e um diretor assemelha-se a um superior, sem a insígnia respeitável da autoridade. Mas a obediência que lhe devemos é, e deve ser, limitada; e podemos em qualquer ocasião transferi-la a outro, sem pecado, senão sem indiscrição.

O primeiro dever é sujeitar o nosso juizo ao do diretor, e de muitos modos e em muitas circunstân-cias. Ele divergirá frequentes vezes da opinião que formamos a nosso próprio respeito, e dará pouco valor àquilo que prezamos e julgamos coisa rara. Quando nos atiramos para a frente, retém-nos, ou então estimula-nos a progredir quando queremos repousar um pouco e ad^rrirar a vista que se nos depara após galgarmo^certa altura. Persiste, às vezes, em dizer que tal coisa que temos em alta conta não passa de ilusão, ou não concordará conosco a respeito da nossa paixão dominante. Altera-nos a linha de conduta e julgamos que se está a enganar seriamente. Enquanto lhe contamos minuciosamente alguma suposta inspiração, parece estar frio e distraído, como se desejasse ver-nos partir. A inteligência encontrará certamente em tudo isto numerosas ocasiões de praticar a paciência.

A sujeição da vontade não é menor provação. O diretor opõe-se aos nossos desejos, sem dar outra razão senão a da sua vontade, de sorte que muitas vezes nos arrependemos de tê-lo consultado. Recusa-nos austeridades e comunhões extraordinárias e nega-se a conferenciar conosco todas as vezes que o desejaríamos ou pelo tempo que o nosso amor próprio, pela importância que julgamos ter na Igreja, acha razoável; ou, então, não nos deixa ler os livros de que gostamos e resolve com enfadonha demora as

questões que lhe expomos. Quando a vontade suportou tudo isto com paciência, estará longe de transformar-se em docilidade cristã ?

Devemos também ter paciência quando notamos que ele nos quer mortificar. Não dói tanto porque é mais direto. Mortifica-nos quando nos absolve sem dizer uma só palavra, quando contávamos com longa conferência e desejávamos dizer muita coisa, embora deixando parecer que dele provinha a iniciativa. Mortifica-nos quando nos manda comungar sem absolvição, ou ridiculariza de outra forma os nossos escrúpulos, ou fala asperamente e com manifesto exagero, ou nos guarda sob cyjugo de monótonas mortificações, que há muito deixaram de ser custosas e nos fatigam até se /tornarem novãmente mortificações, e de espécie melhor e mais eficaz.. E' mais difícil, porém, termos paciência com ele,

quando estamos em dúvida, desconfiando que nos queira mortificar e ao mesmo tempo pensando que talvez seja preguiça ou indiferença da sua parte. Isto se dá quando ele parece, quasi de caso pensado, não se interessar por nós e tratar-nos como importunos, ou quando nos contradiz, nos interrompe ou finge não nos compreender. Outras vezes diz que se esqueceu inteiramente do nosso caso e pede-nos para repeti-lo, sem parecer no entanto empregar o menor esforço em ouvir-nos. Outras vezes se contradiz, dando contra-ordens ou conselhos diversos toda semana. Depois insinua que deveríamos deixá-lo e procurar outra direção, e, ao recusarmos, resignar-se com ar lânguido e indiferente.

Mas talvez ele nos ponha a paciência a provas ainda maiores. Pode errar e com frequência erra visivelmente. A impaciência, a descortesia e a irri-tabilidade são sempre defeitos, haja ou não cir-cunstância atenuante. Pode, às vezes, praticar atos de verdadeira incivilidade, e outras vezes pode estar destituído da graça para suportar as nbssas fraquezas ou simpatizar com as nossas dores. Há momentos em que se lhe torna um dever procurar interessar-se por nós e recusa-se. Ou então im-põe-nos bruscamente o castigo fatal de abandonar-nos à nossa própria direção, quando nos surpreendeu a dirigir-nos a nós mesmos, porque achámos que ele estava negligente e esquecido, e no entanto ele rezava por nós e oferecia a Missa em nossa intenção. Se erra, e erra certamente, devemos, porém, ter paciência com ele. Fosse a direção coisa toda sobrenatural, e a paciência seria mais fácil, porque seria mais digna. Mas, com a grande maioria dos penitentes e dos diretores, a direção ér deve ser, e nunca devemos pretender que não seja, um conjunto de elementos quasi tão naturais quão sobrenaturais.

Resta-nos falar da paciência para com Deus. A só idéa parece estranha; que não desperte, no entanto, em nós, pensamentos de familiaridade ou ir-reverência. E' questão mui séria, que precisa ser debatida com o mais profundo respeito, pela infinita majestade e inefável condescendência daquele de quem, em toda humildade, nos aventuramos a falar. Já disse, e repito, que é terrível ter de tratar com o Deus todo poderoso. Seus favores são nossos

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temores. Que este pensamento desperte em nós o mais intenso e confiante amor filial. Pudéssemos sempre falar com reverência daquele a quem só tememos ou amamos, mas a quem adoramos como o nosso Deus!

Deus digna-se, de vários modos, pôr-nos a paciência a prova, a nós, que somos apenas pó e cinza. Alguns se referem sobretudo à vida espiritual ou lhe pertencem exclusivamente. Os caminhos da sua providência e justiça, e os segredos dos seus desígnios não nos dizem respeito no momento; neles a majestade é adorável e a glória impenetrável. A lentidão é o característico do Criador, em relação às criaturas. Onde estaríamos há muito, se não fosse essa lentidão? Esquecemo-nos disto quando esta nos torna impacientes. Deus é lento, e nós velozes e precipitados. A razão é que nós só existimos passageiramente e Deus existe eternamente. Assim a graça, em geral, opera lentamente; a mortificação é demorada qual/nivelamento de uma montanha; a oração se assemelha ao crescimento de um carvalho secular. Deus trabalha pouco a pouco, e alcança os fins suave e firmemente, porém com tal lentidão que nos prova a fé, pelo mistério que a tudo envolve. Devemos prender-nos a este tributo divino à medida que crescemos em santidade. Deve ser, a um tempo, o objeto do nosso culto e o nosso modelo. Há algo de imponente na extrema lentidão de Deus. Deixai que nos proteja a alma, sem inquietá-la.

Ele prova-nos também pelo mistério e pela impe-netrável obscuridade em que envolve quasi todos os processos sobrenaturais, tanto nos sacramentos como fora deles. Segundo a Bíblia, ele é o Deus que se oculta. "Se pudéssemos ao menos vê-lo, dizemos nós, havíamos de segui-lo com alegria. Se tivéssemos certeza de que fosse ele!" Não podemos vê-lo, porém, e as mais das vezes Deus não se poderia mostrar, embora o quisesse. Digo que a sua misericórdia não o permitiria, porque tal vista nos havia de fulminar. As trevas nos convêm quando a luz nos cega. Percorrendo os exercícios, as provações, as tentações e as vicissitudes da vida espiritual, parece que seria imensa vantagem ver a Deus; é pura ilusão, e tudo está melhor assim. O enigma faz parte da nossa vida. Sejamos pacientes. Às vezes ele condescende em parecer mutável e inconstante e permite que seu símbolo seja a lua fugindo entre as nuvens noturnas. Indica-nos um caminho e abandona-nos quando as estradas se bifurcam. Mostra-nos o semblante e logo o oculta. Vemo-lo de relance e desaparece antes de lhe podermos memorizar a expressão. Ou então a luz agradou-nos de tal forma que deixámos de ver os ob-jetos escuros que lhe cabe iluminar. Por que este entrelaçamento perpétuo de luzes e trevas? As vezes Deus nos intriga a respeito de sua vontade. Fala-nos por meias palavras. Envia-nos o que tomamos por um guia, quando na realidade não o é.Finge, como nosso Senhor naquela noite tempestuosa fingiu querer passar ao largo do barco. Deixa-nos crer que se contradiz, ele, a Verdade eterna, a simplicidade imutável! Parece querer prender-nos no laço, conseguindo que nos confiemos nele, e depois nos repreende, afasta-se como se o tivéssemos

abandonado; ou então muda de tática, e joga-nos na prisão e escraviza-nos, desprezando a nossa generosidade, e considerando o que temos de melhor a lhe oferecer como um insulto, e de fato o seria, não fosse a sua admirável compaixão. Ora é pai indulgente, ora amigo amoroso, ora mestre paciente, ora áspero crítico; às vezes é bondoso soberano e outras vezes déspota exigente; agora um quasi suplicante perante os corações humanos; depois o mais vingativo dos perseguidores. Olhai para nós de qualquer modo, adorável Salvador! Jamais veremos em vós senão um Deus infinitamente bom, que, na cólera, se lembra da misericórdia e que é Pai tão imutável, quanto é eternamente Deus!

Os seus castigos, também, nos provam a paciência. Não somente porque nunca são, em verdade, leves, pois não nos castiga em vão, mas porque são imprevistos e nos parecem inconsistentes com as noções que temos a respeito, e os achamos des-proporcionados a tão leves faltas. Com efeito, Deus acariciou-nos quando pecamos gravemente, e, se nos perdoou quando desejávamos ardentemente que nos castigasse, por que então, por tão insignificante infidelidade ou defeito quasi natural, nos açoitar duramente tanto tempo, lenta, pesada e regular-mente? Esquece-se ele de que soios criaturas feitas de barro, e, que, se se não tomar cuidado, há de quebrar-nos? Qualquer castigo! que nos pareça em desacordo com a sua habitual moderação, prova-nos a paciência e é penosíssimo. E não ficamos menos perplexos no tocante às respostas às nossas orações. Se não responder, nossa fé se enfraquece. Se responde, fá-lo de tal modo que a resposta seja como ele mesmo, lenta, obscura, uma espécie de enigma. Por vezes a resposta parece estar impregnada de cólera, e ser ao pé da letra, de modo estranho num Pai. Por fim, abandona-nos. Em todo o caso aqui não há nada que nos deva surpreender, se não nos dissessem que esta é precisamente a hora de uma graça especial e sustentadora. Coisa estranha! Assemelha-se a uma montanha que se desmorona sobre nossos corações. E chegou a arrancar um grito do Coração silencioso de nosso Senhor crucificado.

Dir-vos-ei: Sede pacientes para com Deus? Direi mais: Adorai-o como o adorastes até agora; pois não é ele sempre o nosso Deus? Ora, falhamos de vários modos a este exercício sublime da paciência. Primeiro, pela petulância na oração, pelas queixas ousadas, como se Deus nos tivesse prejudicado, ou como se tais queixas lhe agradassem e que competisse a cada qual falar-lhe, como outrora Jó, quando derramou os sentimentos que lhe iam no coração em palavras ásperas, pelas quais Deus reconhecia misteriosamente que se justificara. Ou então a impaciência transparecerá num zelo indiscreto e exagerado em busca da virtude, na avi-dez pelas graças e na vaidade maguada pelas imper-feições veniais. Tornamo-nos caprichosos e incon-stantes. Abandonamos a oração, pela demora da resposta. Cansamo-nos dos sacramentos pela mo-notonia. Mudamos os exercícios espirituais porque não operam milagres. Abandonamos os remédios,

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porque a saúde não voltou imediatamente. Toda in- fidelidade é impaciência para com Deus. Assim■

corrompemos as nossas mortificações. Empreendidas impulsivamente, praticadas sem sobriedade, a elas renunciamos, porque nos tornamos tíbios e não gostamos de sofrer. Também quando a idéa de alguma boa obra se nos insinua no espírito, lançamos ao céu uma aspiração, que é antes a expressão da própria vontade que a do puro zelo, e pômo-nos à obra sem demora, sem oração, sem conselho, sem deliberação. Não é de estranhar que a deixemos pelo meio. Pois não está o mundo que nos cerca cheio dessas loucuras do impulso, da impaciência, da arrogância que nós mesmos suscitamos, ante o espanto mudo dos anjos compadecidos? Conferimo-nos vocações, para depois mudá-las. Atribuimo-nos missões, tiranizamo-nos, multiplicando as responsabilidades, e enviamo-nos em embaixadas aos confins da terra. Dificilmente podemos consolar ou aliviar qualquer aflição, sem que haja certa dose de impaciência. Pedimos diariamente a Deus que não nos induza em tentação, e todos os dias nos expomos às ocasiões perigosas, que atingimos quasi sem fôlego, deixando Deus muito aquém, pois não apressará os seus passos.

E quais são os remédios? E' mister estudar a Deus. Devemos saciar-nos do seu espírito, amá-lo ardentemente, imensamente, até à morte. Mas de-vemos também temê-lo, com temor inexprimível, hu-milde, perpétuo. O temor deve pulsar no nosso sangue e tremer nos nossos membros, e, muitas vezes, arrebatar-nos e lançar-nos ao chão. Oh! como havemos de amar a Deus quando soubermos temê-lo assim! Tempo grandioso! és dom do Espírito Santo! Esperemos por Deus longa e carinhosamente, no vento e na chuva, nos trovões e nos relâmpagos, no frio e na obscuridade. Esperemos e ele há de vir. Nunca vem aos que não sabem esperar,porque não segue o mesmo caminho. Quando che-gar, ide com ele, mas ide de vagar, ficai um poucopara trás; quando ele acelerar o passo, certificai-vos bem antes de acelerar também o vosso; masquando o retardar, retardai logo o vosso. E' neces-sário, porém, caminhar não somente devagar, masem silêncio, em profundo silêncio, porque ele éDeus. ,i

Fáber, O progresso — 10

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nhã e do receio do ridículo, e outra multidão de pecados de ação, provenientes do desejo de agradar. No correr dos tempos — esse correr não é lento — estabelece-se em nós e torna-se distração habitual na oração e na meditação, enquanto o exame de conciência, o mais real dos exercícios espirituais, parece quasi fornecer alimento à voracidade do respeito humano.

E' tão miserável quanto mau. Mais fácil seria tolerar o jugo da austeridade cartuxa. Nenhuma escravidão é mais degradante e mais infeliz. Que miséria, envergonharmo-nos dos nossos deveres e dos nossos princípios! Que miséria ter cada ação um defeito e uma mancha! Que miséria perdermos, como é inevitável, aquilo que constitue o objeto dos nossos sacrifícios, o respeito dos outros! E, enfim, miséria das misérias, chegamos a perder o respeito que nos devemos a nós mesmos! A religião, que deveria ser nossa paz, torna-se nosso tormento. Os mesmos sacramentos deixam certa sensação de vácuo, de imperfeição, como se não os empregássemos bem, como de fato acontece; as comunicações com o nosso diretor, que deveriam equivaler a um salutar remédio, são envenenadas por este espírito. Cabe-nos sondar as raizes do mal e estudar as várias fases desta moléstia das almas piedosas. Sentir desejo insaciável de agradar, e es-forçar-se nesse sentido, construir castelos no ar e imaginar atos heróicos, comprazer-se nos louvores recebidos e abandonar-se ao desânimo ante qualquer censura, tais são as manifestações desse horrível flagelo que é o respeito humano.

Não é tanto, contudo, determinada culpa, como um mundo de culpas. E' a morte de toda religião. O

respeito humano só nos inspirará bastante horror quando admitirmos que não há exagero algum nestas palavras. Examinemos, portanto, o lugar que ocupa na grande luta entre o bem e o mal. Primeiro, investiguemos a sua origem; é problema difícil, pela pouca confiança que temos uns nos outros. A tarefa especial dos cristãos é implantar o mundo invisível. Têm noções diversas do bem e do mal das que têm os partidários do mundo. Vivem misturados inextricavelmente com os filhos do século, como homens que empregam a mesma língua com sentido diferente; e a confusão e o erro aparente crescem dia a dia. O mundo, enquanto proprietário ou arrendatário das terras, torna-se cada vez mais irritado e disposto, apesar de sustentar teorias arrogantes de tolerância, a perseguir os que assim perturbam de propósito a tranquilidade pública. Os homens sentem que a razão está com as pessoas religiosas e por isso recusam-se a examinar francamente o caso e a submeter-se. E, porque o sentem, sabem que não são irresponsáveis. Não obstante, irritam-se com o juizo de Deus, com a sua incessante intervenção, com o modo calmo com que profere as sentenças, tomando o tempo preciso para executá-las. Assim, não podendo passar sem o poder judicial, suprimem as tres pessoas divinas, transformando Deus numa função, oú causa, num fluido panteista ou força mecânica, e transferem o poder judicial para a humanidade em peso. E assim se explica, em nossa mente, o respeito humano. Os homens, em todas as gerações, agitam-se sob o poder judicial de Deus. Parece que foi devido a esta má vontade que ele, num ímpeto inexplicável de compaixão, confiou os seus últimos direitos judiciais a nosso Senhor feito Homem, para ser o nosso juiz em virtude da sagrada

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Humanidade. Vista sob o prisma humano, a usurpação desses direitos, feita pelos homens, parece ter sido coroada de êxito. Produziu certo conforto social, um código de moral sofrível, e em geral tudo quanto parece dar certo valor momentâneo à vida. Dá lugar a certa dose de infelicidade individual, pois sua polícia é rude e áspera, e os processos do seu tribunal são impiedosos e da severa escola draconiana. Mas os ho-mens acham compensação nesses inconvenientes, porque lhes está entregue, sem restrição, o vasto domínio do pensamento. Sob a administração de Deus, os pensamentos valiam por atos e como tais eram julgados e condenados, fornecendo copioso material para os tribunais, e foi devido a eles que a jurisdição divina pesou tão fortemente sobre a alma. Agora reina plena liberdade. A calúnia, a detração, o juizo temerário, a crítica rancorosa, nos tornariam desassossegados, se se refletissem em atos exteriores; mas podemos, no entanto, cometer interiormente todas as baixezas que quisermos, e passarmos pelos tribunais humanos com o olhar altivo e a cabeça erguida.

Não é de estranhar se, ao tomar lugar entre os poderes do mundo, o respeito humano causasse es-pecial desolação na alma religiosa e nela se tornasse mal mais funesto e desgraça maior do que em qualquer outra, pois não passa de falsificação da religião. Que significa piedade, senão a presença sensível de Deus, e a religião, senão o culto que lhe prestamos? Na religião, a presença de Deus é o ambiente em que vivemos. Os sacramentos, a oração, a mortificação e os demais exercícios da vida espiritual são outros tantos instrumentos, que não só tornam real aquela presença, como a introduzem substancialmente no corpo e na alma. E a alma carece dessa presença para poder respirar. Produz uma certa espécie de caráter, um tipo próprio, fácil de reconhecer, um caráter sobrenatural que, segundo o modo pelo qual for encarada, inspira aos outros temor ou amor, ódio ou desprezo. Para o puro de espírito é a suprema felicidade na terra, pois infunde-lhe um certo instinto maravilhoso e irrefletido pelo outro mundo, como sendo a faculdade que tem a fé de ver o Ser invisível, sem definir bem o que vê. Ora, não é o respeito humano, a seu modo, uma simples cópia ou caricatura de tudo isto? Não exerce no mundo a mesma função que a presença de Deus exerce na alma esclarecida? E', de fato, um paganismo mental.

O perigo do respeito humano está sobremodo nessa semelhança com uma religião falsa. Em vez de assustar-nos pela iniquidade, força o pecado a ocultar-se, embora os mais caros interesses dos homens nada lucrem com isto, e muito ao contrário alguns pecados mortais da peior espécie prosperem melhor sob a sua capa. Confunde os limites da opinião pública com a sua própria, e pretende aliar-se à prudência e à discrição. E' um estratagema que requer cautela, pois a opinião pública é, dentro de justos limites, um poder legítimo; e quem, por ser devoto, afirmasse que não se deve respeitá-la nem deixar-se governar por ela, estaria abrindo caminho para o triunfo da ilusão. Nada pode ser mais contrário à moderação da Igreja. Grande é a diferença entre fazer aquilo que os nossos concidadãos esperam de nós com justificada razão e a crítica que

possam exercer sobre as nossas ações, e fazê-las antes em vista dessa crítica do que segundo a vontade de Deus. Devemos ser muito indiferentes à crítica, mas somos obrigados a respeitar-lhe a espectativa em relação a nós. Demais, o respeito humano abafa o caráter sobrenatural das ações, boas em si. Destrói o nervo da intenção, mas, ao contrário do nervo ferido do corpo que morre, não nos adverte de nada. E' cjual verme na noz: rói a amêndoa da intenção, e deixa a fruta na árvore, bela e frondosa. A religião é tão intrinsecamente questão de intenção que isto equivale a destrui-la de todo. Como o respeito humano substitue sempre um motivo bom por outro essencialmente falso, destrói fatalmente a espiritualidade. Assim, pois, é um dos instrumentos mais poderosos, postos pela natureza corruta nas mãos do demônio, para a destruição das almas. Poderá haver aos olhos de Deus coisa mais detestável e mais odiosa? Uma caricatura é tanto mais odiosa quão belo e digno é o objeto que representa. E, como já vimos, o respeito humano é a caricatura da presença de Deus e do seu poder judicial.

Antes de se voltarem sinceramente a Deus, muitos ignoravam até que ponto eram escravos deste vício. Enquanto despertavam a senti-lo, verificaram de que modo se lhes impregnou no sangue, até fazer parte de sua vida e identificar-se com eles. E' algo de inexplicável, de indomável, de vital. Sua origem é um mistério sobre o qual só podemos aventurar uma teoria. Ninguém pode dizer como, quando, ou por que surgiu; assemelha-se a uma exaltação da humanidade corruta, a uma peste espalhada em silêncio, sem sintomas exteriores. Não houve classe social que não dominasse, nem recanto da vida particular que não invadisse, nem cela conventual em que não penetrasse, viciando-lhe o ar pela influência venenosa. E' rival do que os teólogos chamam a multipresença de Satanaz.. A sua força é tão grande, que triunfa dos mandamentos de Deus, dos preceitos da Igreja, e vence até a vontade do homem, conquista dificílima à própria graça e à penitência. Parece desenvolver-se com a civilização e com a dilatação dos meios de locomoção e de publicidade. Na sociedade moderna é sistematizada, é aceita como um poder no qual todos apoiam os seus direitos, enquanto castigam os que recusam submeter-se. Para nós, Deus é um ex-rei, legítimo, talvez, mas deposto. Por muito fa-vor constituir-lhe-emos uma casa em seu próprio reino, onde possa abrigar-se. De fato, se o espírito1 maligno não auxiliou o respeito humano de modo' sobrenatural, pelo menos consagrou todas as suas energias em propagá-lo e assegurar-lhe o êxito. Nunca foi tão príncipe como quando se abaixou a ser o missionário do respeito humano.

Examinai a vossa alma, e vede até que ponto; este poder vos subjugou. Haverá, em todo o vosso ser, algum recanto onde possais descansar tranquilo e respirar um ar puro? Haverá exercício assaz espiritual, ocupação bastante sagrada, ou dever sobremodo solene, sobre o qual a influência cativante do respeito humano não se faça sentir? Tendes algum santuário em cujo interior nunca penetrou? Quantas vezes, depois de aparentemente vencido, não surgiu revigorado pela derrota, como se fora pelo sono restaurador? Não vos acompanha qual sombra, qual mancha perpétua no

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doce brilhar do sol? Há muito tempo, no entanto, que voltastes a Deus e vos tornastes espirituais! Desdé então quantas quaresmas e meses de Maria! quantos sacramentos recebidos, quantas indulgências ganhas! E, apesar de tudo, o respeito humano continua ativo, forte, infatigável, ubíquo! Haverá questão que vos toque mais perto ao coração do qué a dos remédios próprios a este mal?

A Igreja fornece-nos duas espécies de remédios: no seu sistema geral e na sua relação com as almas individualmente. Ela começa pronunciando com desassombro uma sentença de excomunhão contra o mundo. Não lhe tolera os juízos em matéria de religião, e proclama-lhe a amizade nada menos que uma declaração de guerra a Deus. Dá a seus filhos noções sobre o bem e o mal diferentes das do mundo, e uma regra de conduta diametralmente oposta. Seus preceitos positivos, suas profissões de fé exteriores e obrigatórias, são outros tantos protestos contra o respeito humano, e os santos que ela canoniza são justamente aqueles que se mostraram heróis no desprezo que votaram a esse mal. O mundo sente e avalia a significação destas coisas e manifesta a sua ira, patenteando uma inveja digna de um usurpador conciente.

Quanto mais eficazes ainda são os remédios que a Igreja ministra às almas, individualmente, no confessionário e na direção espiritual! O mundo teme o poder secreto daquele tribunal benigno e poderoso, que nada deixa transparecer! A Igreja começa opondo ao flagelo do respeito humano universal a prática da presença de Deus. Ensina-nos a agir pausadamente e unir todas as ações a Deus por meio da pura intenção. Manda-nos tomar tal culpa por objeto de exame particular de conciencia, pedir com ardor a nossa cura, ser sinceros e francos no que se refere às quedas e acusá-las na confissão. Aconselha-nos, em se tratando de coisas indiferentes, a linha de conduta mais oposta ao respeito humano, fosse tão somente para mortifi-car-nos. Aí está muitas vezes a razão das mortificações, que, embora pareçam absurdas e infantis, são impostas nas casas religiosas. O respeito humano não passa do culto velado de nós mesmos, que transferimos ao mundo, porque temos ciência da nossa insignificância. Tudo aquilo que tende a destruir esse culto próprio, como sejam certas mortificações, é um golpe certeiro no respeito humano. Os santos sentiam verdadeiro prazer em expulsar os demônios por meios pueris; por eles, também procuremos expulsar de nós esse mesmo demônio. Quando a alma se entrega a uma devoção tímida e infantil, sob o olhar do Deus eterno, que sempre vela, então o respeito humano não tarda em morrer. Desaparecerá quais folhas do outono, que a chuva decompõe para enriquecerem o solo na primavera vindoura.

O importante, porém, é compreender bem a nossa posição no mundo, a relação em que estamos para com ele. Este conhecimento constitue perfeita fortaleza contra o respeito humano, uma das principais causas da nossa falta de êxito na busca da perfeição. Tentemos, pois, averiguar em que pé estão as pessoas piedosas para com o mundo e o mundo para com elas.

Quem se entrega a Deus, compromete-se, delibe-radamente, a levar vida sobrenatural. Ora, que significa vida sobrenatural? Significa renúncia completa à vida presente, pois os dois mundos não nos podem pertencer ao mesmo tempo. Renunciar por completo! ouço-vos repetir. Sim, por completo! Nem pode ser de outro modo. Demais, seremos mil vezes mais felizes e mais alegres ainda nesta vida, embora a felicidade, a alegria nos venham da outra vida. E' preciso que esta vida desapareça, e por completo, e não é possível suavizar estas palavras. A vida sobrenatural significa que não devemos fazer do pecado o limite da nossa liberdade, mas sim nos fixar o círculo mais estreito dos conselhos evangélicos. Significa mortificação, e a morti-ficação é o castigo voluntário que nos infligimos a nós mesmos, como sendo uma sentença pronunciada e executada antes do dia da cólera de Deus.E' pôr outros interesses, outras afeições, outros prazeres no lugar dos do mundo. Então, todas as nossas ações se baseiam no sentimento da nossa fraqueza, e nós nos apoiamos inteiramente nos auxílios sobrenaturais e na assistência sacramental, dependendo unicamente deles. Tornamo-nos, até certo ponto, insociáveis, pelo silêncio, pela solidão, pela penitência, pela excentricidade aparente, ou pela vocação. Numa palavra, entramos de propósito deliberado para membros de uma minoria, sabendo o sofrimento que isto nos acarreta.

Ora, dada esta significação à vida espiritual, qual será o ponto de vista do mundo, qual a sua atitude para conosco? O mundo acredita, talvez inconcientemente, na sua infalibilidade. Começará surpreendendo-se, para depois se irritar contra os que ousam guiar-se por princípios contrários aos seus, e cuja conduta equivale a negar-lhe a supremacia e contradizer-lhe o estreito código de prudência e discrição. Nosso procedimento é, portanto, uma censura ao mundo, como se Deus o tivesse proscrito, como, de fato, fez. As modas, as sei-tas, os projetos, as lutas, as tiranias, e as arrogâncias do século não passam de puerilidade orgulhosa e solene. Embora não tomemos conhecimento do mundo, este não nos pode, entretanto, desconhecer. Constituímos um fato, invadimos-lhe os domínios, opomo-nos às suas hipóteses. Desprezamo-lo, e o desprezo é a política dos dois extremos: dos fracos e dos fortes. No nosso caso, é a união de ambos: da fraqueza natural e da força sobrenatural.

Que espécie de tratamento podemos, então, esperar do mundo? Haverá fases diversas, com alternativas próprias, conforme as circunstâncias. Mas, em geral, devemos contar com o seguinte:.se conseguirmos levar a cabo o que empreendemos por Deus, se tivermos influência, se operarmos conversões, se adquirirmos certa fama, ou se o nosso exemplo for uma censura para os outros, devemos contar com o ódio. Os homens nos temerão também, quando acharem que trabalhamos por Deus, em segredo, sem conseguir saber de que forma. Chamarão a isto jesuitismo, palavra boa e santa para os sábios e os sinceros! Desconfiarão do nosso modo de proceder, e, aliás, seria difícil que assim não fosse, porque, na conduta sobrenatural, a falta de proporção entre os meios e os fins é sempre um problema que irrita e des-

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DA PAIXÃO DOMINANTE

concerta o espírito mundano. Censurar-nos-ão, porque a censura é coisa fácil e também porque nos desviamos daquilo que habitualmente constitue o objeto dos seus louvores. Além de que, nada arriscam ao condenar-nos, mesmo porque, do nosso lado, pessoas, tidas por nós como moderadas, negam-nos toda solidariedade e desaprovam nossa indiscrição em desafiar o mundo e romper com aqueles que não devem ser nossos amigos, porque, diz o Espírito Santo, tal amizade equivale à inimizade para com Deus. Não nos compreenderão, porque mesmo os que estariam

dispostos a tomar um ponto de vista favorável, não podem ver o que vemos. Não compreendem os nossos princípios e muitas vezes imaginam que têm provas ló-gicas da incoerência da nossa parte. Além do mais, não podemos sequer prestar boa conta do nosso procedimento. Embora nos esforcemos em contrário, surgirá maior ou menor desavença até com pessoas do mesmo sangue. As vocações, as devoções, as penitências tendem infelizmente, sem culpa nossa, a perturbar a paz da famíüa. Os pais :São lentos em ceder os filhos a Deus, muito em-

bora já tenham atingido à idade de madura discrição. Quando um filho casa, tem plena liberdade, pois assim ordena o mundo; mas, se receber ordens ou entrar para o convento, não a terá, porque se trata da vontade da Igreja. E esses pais são bons e religiosos a seu modo; por que não seremos nós como eles ? Não vemos as coisas sob o ponto de vista em que eles as vêem nem eles as vêem sob o nosso.

Ora, a isso nos expomos mais ou menos quando abraçamos com sinceridade a vida espiritual. Sa-bíamos o que estávamos a fazer. Daquela hora em diante, separamo-nos do mundo, com intenção de fugir sempre dele, qual peste, ou enfrentá-lo qual inimigo. O respeito humano deve ser-nos agora uma impossibilidade, uma incoerência, ou um pecado. Que nos importa o respeito do mundo, se nos obrigamos a desprezá-lo eternamente ? Evadimo-nos das suas mãos e das nossas próprias, para entregarmo-nos nas de Deus, e sentimos essas mãos — ó felicidade! — fecharem-se sobre nós, suave mas fortemente e apertar-nos com segurança.

CAPITULO XIí

Da mortificação, nossa verdadeira perseverança

A mortificação é deveras amor por Jesus, amor que reveste esta forma em parte para imitá-lo, e em parte exprimir a própria veemência e garantir, em virtude do instinto de conservação pessoal, a sua perseverança. Não pode haver amor real ou duradouro sem certa dose de mortificação, que é necessária para evitar o pecado e observar os mandamentos. Nem tão pouco haverá perseverança sólida na vida espiritual. O repouso, que faz parte do estado normal da espiritualidade, não está livre de perigo sem a mortificação, porque a natureza tende a procurá-lo por meios naturais, quando deixa de encontrá-lo pelos sobrenaturais. A mortificação pode ser interior ou exterior, porém a superioridade e a excelência da primeira são incontestáveis. Mas, se existe a respeito uma doutrina, segura é a seguinte: é imposivel haver mortificação interior sem mortificação exterior, e esta deve preceder aquela. Numa palavra, a mortificação corporal é indispensável à espiritualidade.

Na opinião de algumas pessoas, a mortificação corporal é menos necessária nos tempos modernos do que outrora, e por conseguinte as recomendações feitas neste sentido devem ser aceitas com muita reserva. Se isto significa que a santidade de hoje requer menor grau de mortificação exterior

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124 CAPITULO XI

.que nos tempos passados da Igreja, nada é mais inexato, é quasi uma proposição condenada. Se, porém, significa que o crescido número de moléstias e a generalidade dos males nervosos, e outras causas ainda, sugerem uma alteração discreta no gênero de mortificação, podemos aceitar semelhante proposição, mas com certa desconfiança e escrupulosas restrições. Os indultos quaresmais da Igreja podem servir-nos de exemplo.

Mas esta falsa doutrina calou tão profundamente em muitos espíritos, que se faz mister combatê-la antes de

prosseguirmos. O grau de mortificação e a idéa que a inspira são os mesmos, em todas as épocas da Igreja,

pois a penitência é um sinal imperecível da Igreja. Fazer penitência, porque o reino do céu está próximo, é

a tarefa especial da alma justificada. Para obter a graça, para conservá-la e multiplicá-la, precisamos a

cada passo da penitência. Quando dizemos que a santi-dade é um dos caracteres da Igreja Católica, frisamos a necessidade da mortificação; uma supõe outra; aquela

inclue a esta. O exercício heróico da penitência deve ser provado perante a Igreja, antes que ela proceda à

canonização de um santo. As recentes beatificações de Paulo da Cruz e de Mariana de Jesus, mostram até que

ponto a Igreja se conserva inflexível neste ponto. A vida de Mariana é uma série, não interrompida, das mais es-

pantosas austeridades, que nos fazem estremecer pelas crueldades engenhosas que patenteiam. A vida

de santa Rosa de Lima, ao lado desta outra virgem americana, apresenta-se suave, confortável e fácil. E'

como se Paulo da Cruz fosse suscitado para despertar o século décimo oitavo do estado de letargia, e renovar aos olhos do mundo as austeridades de são Bento, de são Bruno, de são ROmualdo ou de são Pedro Damião. Ele ressuscitou o antigo espírito severo dos mosteiros,

desprezando todos os usos e mitigações modernas, e os seus filhos seguem há cem anos, com fervor

inalterado, as pisadas do pai espiritual. A existência, e o primitivo vigor dos austeros Passionistas é uma das

maiores consolações da Igreja nestes dias de costumes efeminados.

Lembremo-nos, também, que é erro óbvio, de acordo com os ensinamentos da sagrada Escritura, julgar, como fazem alguns irrefletidamente, que a prática da mortificação é um conselho de perfeição e obra de supererrogação.

Seria, de fato, se fosse exagerado, ou se revestisse certas formas. Mas a mortificação em si, dentro de determinadas condições e em dadas circunstâncias, é de preceito. E' necessária à salvação. Isto não se aplica tão somente às penas que nos impomos voluntariamente e que por vezes são de obrigação para vencermos veementes tentações, nem tão pouco às várias mortificações indispensáveis para evitar o pecado. A Igreja impõe a todos os seus filhos, sob pena de pecado mortal, determinados jejuns e abstinências, independente das tentações ou das circunstâncias individuais. Isto representa a idéa intrínseca da penitência e mostra como é necessária enquanto função da Igreja, que foi instituída para salvar as almas. Há pessoas que dizem não praticar a mortificação, abandonando-a aos que aspirem à santidade. Podem provar, ao ser interrogadas, que sua doutrina é sã e que sua intenção não foi de errar, como implicam tais palavras tomadas ao pé da letra; mas podemos ter certeza de que o emprego de linguagem tão fácil prova quão enraizada está no seu espírito uma idéa falsa a respeito da mortificação. Fáber, O progresso — 11

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DA MORTIFICAÇÃO

Com efeito, o luxo moderno e os costumes efemi-nados, alegados muitas vezes em favor da diminuição da mortificação, podem também servir para defender o ponto de vista oposto. Sendo ofício especial da Igreja dar testemunho contra o mundo, deve esse testemunho consistir em atacar os vícios reinantes da sociedade, e por conseguinte cabe-lhe opor-se, nos dias de hoje, à moleza, ao culto do conforto e às extravagâncias do luxo. Creio que se algum dia a infeliz Inglaterra vier a converter-se — conversão esperada sem sinais aparentes — será por uma ou mais ordens religiosas, que darão, a um povo degradado e cheio de vícios, a visão da pobreza evangélica na sua mais austera perfeição. O país que abandonou o Cristo deve acolher-se primeiro a João Batista, e ser atraído ao Jordão pela simplicidade do vigor sobrenatural e da antiga aus-teridade. Restam, sem dúvida, ainda, alguns recursos que muito podem concorrer para tal conversão: a inteligência, a erudição, a eloquência, as belezas da caridade católica, a doce influência de uma literatura purificada, a pregação simples e apostólica. Mas a grande obra da conversão (se entrar nos desígnios de Deus realizá-la) parece-me que deve ser um triunfo reservado unicamente à pobreza evangélica. Não a pobreza, nos aparatos grotescos da prática medieval, outrora permitidos, mas que hoje haviam de repelir os homens e incitar-lhes o desprezo, por causa de certos acessórios independentes da sua essência e atualmente intempestivos; mas a bela pobreza dos apóstolos e dos primeiros tempos da Igreja, com o vestuário comum e com o semblante e as mãos, brilhantes e imaculadas, da austeridade evangélica (1).

Se cabe à Igreja testemunhar sempre contra os vícios reinantes do mundo, cabe também a cada alma, se não

testemunhar, pelo menos defender-se contra eles. E como se defender do culto do conforto físico, a não ser privando-se deles? Se o mundo é inconstante, também é constante. O mundo, a carne e o demônio são realmente os mesmos em todos os tempos, e assim também a mortificação corporal presta iguais serviços. Quer consideremos a alma nas lutas da conversão, sob a influência da luz divina que a invade, quer a contemplemos nos diversos graus de união mais ou menos perfeita com Deus, verificaremos que as mortificações corporais têm um lugar a preencher, uma ação a desenvolver, e são de todo indispensáveis. Examinemos, no entanto, de relance, as várias objeções apresentadas contra esta teoria. A primeira é que a saúde do mundo está alterada, que a duração da vida é igual ou mesmo mais longa, mas que o estado normal da saúde é mais fraco, e que, se as doenças inflamatórias são menos frequentes, em compensação os males nervosos prevalecem, e que a Igreja, relaxando a disciplina nesse ponto, reconheceu a exatidão dos fatos. Concordo que seja verdade; e não duvido que se possam tirar daí conclusões importantes. Mas mantenho o que disse quando afirmei que se refere mais ao gênero de mortificação do que ao grau. A conduta da Igreja, mitigando o jejum, é tão sábia

quanto a de Leão XII, que, com a prudência prática e habitual da Santa Sé, submeteu a investigações médicas a possibilidade de manter a antiga observância quaresmal. De mais, as razões de saúde, conquanto mereçam atenção, devem todavia ser recebidas com desconfiança, pois um partido onde a natureza e o amor próprio servem como voluntários inspira receio. Por gran-

1) S. Mateus, 6, 16.

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des que sejam, na vida espiritual, as consequências de um estado de saúde enfraquecida, não justifica a dispensa plena e geral das austeridades corporais. Lembremo-nos também dos nossos antepassados, que pouco se incomodavam com os nervos e não bebiam chá, ao ouvir a palavra do padre Baker, o intérprete da antiga tradição mística, quando dizia que uma saúde robusta dificulta o acesso às fases mais elevadas da vida espiritual.A segunda objeção — apresentada por vezes em favor

dos padres e dos religiosos — é que hoje em dia o trabalho árduo substitue a penitência antiga. O

pequeno número de sacerdotes e a multidão de almas trouxeram certamente aos eclesiásticos desta geração tarefa esmagadora. Isto é um fato, estensivo também às ordens religiosas que se dedicam ao apostolado. Mas, também, a medida da austeridade corporal que deles é exigida é muito diferente da que é esperada

dos contemplativos e dos solitários. Não digo, portanto, que, em parte, tal objeção não seja razoável, mas digo que não tem toda a força que os homens lhe

querem atribuir. Se certas penitências são incompatíveis com o trabalho árduo, todavia a

tendência desordenada para as coisas exteriores, que resulta desse trabalho, é tão perigosa à alma que se

tornam necessários outros gêneros de penitência para corrigir essa força perturbadora. Todos os grandes mis-

sionários, Segneri e Pinamonte, Leonardo de Porto Maurício e Paulo da Cruz, trouxeram sobre si in-

strumentos de penitência. As penas desta vida, como disse da Ponte, constituem indubitavelmente

excelente penitência, quando suportadas com espírito interior, e têm muito maior valor que cem penas que

nos impusermos a nós mesmos. Quem, contudo, sustenta que, porque suporta aquela, fica

dispensado desta, está em desharmonia com toda a corrente dos ensinos espirituais aprovados pela Igreja, e a sua falta de perseverança na vida espiritual virá mostrar, tanto a ele quanto aos outros, toda a extensão de sua ilusão. Sem penitência corporal, o zelo no trabalho apostólico antes serve para endurecer o coração que para o santificar.

A terceira objeção é a seguinte: saber contentar-se com as provações enviadas por Deus, que não são nem poucas nem leves. Se nos fosse dito que o sofrimento jovial e o acolhimento gracioso desses males é de valor infinitamente superior ao ferrão da disciplina ou à agudeza do cilício, seria lição real e importantíssima, indispensável a muitos corações ardentes, estreantes na espiritualidade. A mocidade, forte e bem disposta, cheia de fervor e nadando na doçura espiritual, considera um quasi gozo físico atormentar a carne e perseguir a saúde exuberante. O mérito não é grande por haver pouca dificuldade e ainda menos discrição. Um só golpe das mãos de Deus vale sempre mais que uma multidão dos nossos. Mas os que formulam objeções caem num falso exa-gero, que consta de muitos livros espirituais. Porque a primeira penitência é mais importante que a segunda, concluem que esta última não tem importância alguma. Unicamente porque as mortificações enviadas por Deus e aceitas como tais são mais eficazes e menos ilusórias do que aquelas que nos infligimos a nós mesmos, não se segue que estas últimas não sejam um elemento não só importante, mas até indispensável, na vida espiritual. Podemos responder-lhes com brevidade: De fato, a melhor de todas as penitências é receber, com espírito de compunção

interior, as mortificações que Deus, na sua sábia, amorosa e paternal

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127 CAPÍTULO XI

Providência, nos envia; mas, sem o hábito generoso das penitências voluntárias, dificilmente havemos de adquirir esse espírito interior de penitência e portanto não havemos de tirar o devido proveito das provações involuntárias que Deus nos envia.

Além destas objeções, há outra que existe em estado latente em muitos espíritos e que merece atenção. Os hábitos da vida presente e o nosso modo de pensar dão lugar a uma sensível falta de simpatia para com a contemplação. Esta não apresenta resultados que possamos encarar com prazer ou ostentar jubilosos. Tudo quanto é impalpável parece inútil e a falta de êxito gera a desilusão. Os princípios sobrenaturais estão desvalorizados em nossos dias. Ora, é fácil ver como essa falta de simpatia pára com a contemplação conduz a um falso juizo sobre a austeridade. São duas coisas ligadas entre si, e ambas penetram profundamente na região das operações sobrenaturais. Ter uma ou outra em pouca conta é estar em des-harmonia com o espírito da Igreja, é prejudicar a nossa própria alma, seja qual for a sua vocação, restringindo-lhe o horizonte sobrenatural.

E* justo concluir destas considerações que nada nos dispensa, nos tempos modernos, da obrigação ou do conselho da mortificação corporal. Há muita coisa, pelo contrário, nos hábitos de hoje que reforça esta obrigação e firma este conselho, e todas as modificações sugeridas pelas circunstâncias atuais da vida moderna se referem somente ao gênero da mortificação e de modo algum ao grau.

Resta falar sobre a utilidade da mortificação. São em número de dez, e todas merecem séria con-sideração. A primeira utilidade é domar o corpo, afim de submeter as paixões revoltas ao poder da graça e ao plano superior da vontade. A metade, pelo menos, dos obstáculos na vida espiritual provêm do corpo e do apoio traiçoeiro que os sentidos emprestam às mais vis paixões. Estas devem ser, não direi inteiramente abafadas, mas eficazmente desarmadas para podermos progredir. Nunca encontraremos a força de vontade ou a seriedade de espírito em quem não se esforça deveras por subjugar o corpo. E a razão pela qual os homens são, por vezes, mais religiosos sob a influência da dor, é que, não praticando eles a mortificação corporal, esta lhes aflige e castiga a car-ne, desempenhando no momento as funções da mor-tificação. A dor atua na alma tanto pelo corpo quanto pelo espírito.

A segunda utilidade é dilatar-nos o horizonte es-piritual. A sensibilidade da conciência é um dos maiores dons que Deus nos dá, afim de manter-nos na vida espiritual. As coisas de Deus, diz o Apóstolo, só podem ser discernidas pelo espírito. O processo da graça purificadora depende da nossa clarividência em distinguir o mal e a imperfeição. Do discernimento do pecado mortal chegamos ao do pecado venial, do pecado venial às imperfeições, das imperfeições a meios menos perfeitos de fazer coisas perfeitas, e daí, enfim, a uma percepção delicada das infidelidades quasi invisíveis, que afligem o Espírito Santo em nós. Se a mortificação corporal não é o único meio de obter essa sensibilidade de conciência, é pelo menos um dos principais, tanto pelo seu método intrínseco de

operação, quanto pelo seu poder para alcançar de Deus este dom.

Isto me leva à terceira utilidade das mortificações de toda espécie; a de auxiliar-nos a obter crédito perante Deus. O sofrimento torna-se facilmente força em se tratando das coisas divinas. Deus mostrou todo o valor que lhe dá, pois remiu o mundo pelo sofrimento, e porque o sofrimento deu aos mártires a palma e aos confessores as coroas. O dom dos milagres segue de perto a austeridade. Quando nos queixamos de que não temos poder algum junto a Deus, de que as nossas orações ficam sem resposta, de que os nossos esforços para desarraigar algum pecado habitual não são coroados de êxito, de que cedemos às tentações, às surpresas do gênio ou da loquacidade, podemos atribuir tudo isto à nossa vida imortificada. E' aí que a mortificação nos paga plenamente as penas que nos infligiu. Com efeito, não somente é de imensa vantagem ter poder junto a Deus, mas a relação evidente que existe entre a mortificação e o poder torna-nos aptos não somente a crer nas coisas sobrenaturais como a manejá-las e pesá-las. Demais, talvez isto dê lugar a alguma tentação. Se quisermos, por conseguinte, ter poder junto a Deus, tanto pelo nosso próprio progresso espiritual como pelo interesse que nos inspira e sua glória, o triunfo da fé e a salvação das almas, devemos praticar a mortificação, habitual e firmemente.

A quarta utilidade é avivar-nos o amor. Pertence à natureza do amor encontrar, na evidência do seu próprio vigor, o alimento que o fortifica, e nada nos atesta com tamanha segurança o nosso amor a Deus, como as austeridades voluntárias que nos infligimos e que, a um tempo, o manifestam e o aumentam. A dor, aliás, em si, abre o coração às emoções do amor, suavizando-o e tornando-o infantil. E quando o objeto que amamos e contemplamos é, como Jesus, um objeto de dor e de sofrimento, o amor nos impele, com maior ou menor veemência, a imitá-lo. Queixamo-nos de que o nosso amor a nosso Senhor se está enfraquecendo? Mortifiquemo-nos em alguma coisa, sem demora, e das cinzas fumegantes levantar-se-á brilhante labareda. O amor, como a força, nasce da mortificação.

A quinta utilidade é desapegar-nos das vaidades do mundo e inundar-nos de santa alegria. Nada, em si, contraria tanto às vaidades do mundo como a mortificação, que destrói tudo quanto elas mais prezam e amam. Rompe todo afeto demasiado, que porventura nos inspiram as criaturas, e impede que nos prendamos por novos laços, pois a experiência nos revelou tantas dificuldades no exercício de mortificação, que receamos estender os limites da região sobre a qual somos obrigados a praticá-la. Cada novo afeto não passa de uma horda de selvagens, que devemos reprimir penosamente. A alegria espiritual é qual fluxo da maré, a penetrar por onde pode. Nossos corações, à medida, pois, que se desapegam das amizades terrenas, isto é, das afeições que não constituem para nós dever, se tornarão capazes de gozar da doçura de Deus. E' porque as pessoas mortificadas, quando discretas, são sempre alegres. O coração se alivia, ao ser-lhe retirado o fardo do corpo.

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128 CAPÍTULO XI

Só a mortificação nos pode desapegar das vaidades do mundo. A dor pode, às vezes, ser tão profunda e tão sombria, que somos levados a nos aproximar respeitosamente da pessoa que sofre, como se estivéssemos num santuário; e, no entanto, nem por isso a vítima se desapega das vaidades mundanas. Este fim bendito pertence exclusivamente à mortificação.

A sexta utilidade é impedir-nos de cometer erro grave, abandonando cedo demais a Via Purgativa. Talvez seja este o principal perigo de toda a vida espiritual. Muitos se apressam tanto no começo, que ficam sem respiração e abandonam por completo a carreira; ou, então, se não a abandonam, não podem deixar antes do tempo determinado as práticas pelo caminho, conforme desejavam. Assemelham-se aos insensatos que correm loucamente a fugir da própria sombra. Não é possivel. A natureza quer sair do noviciado. A meditação aspira a tornar-se oração afetiva. O jugo das pequenas coisas ânsia pela liberdade de espírito. A carne maguada pede descanso. A mortificação interior roga que lhe deixem o vago estado primitivo, preferindo conservar-se indefinida. A comunhão semanal tende presunçosamente a tornar-se diária, e a alma, ligeiramente fatigada de vigiar-se a si mesma, quer agora converter o mundo. Se há fase difícil de atravessar na vida espiritual, é esta. Nos recifes, quantos destroços de náufragos! Nas praias, quantos cadáveres, trazidos pelas ondas, de santos malogrados, heróis vencidos e vocações frustradas! Nenhum mal haveria em demorarmo-nos por largo tempo nas regiões inferiores da vida espiritual. Pelo contrário, quem se eleva com demasiada rapidez expõe-se a muitos perigos. Um mal, que foi mortificado, parece à primeira vista morto; mas finge apenas, como os escaravelhos. Se conseguir enganar-nos, se passarmos adiante, arrepender-nos-emos amargamente. A história é sempre a mesma: examinai bem os alicerces, cavai-os profundamente, construi com largueza, para que a construção seja magnífica e principesca. A mortificação, mais que tudo, nos será poderoso auxílio para alcançarmos tais resultados. Suas dificuldades patenteiam nossa fraqueza. Ora pela falta de dextreza, ora pela covardia, contentamo-nos em ficar nas regiões baixas, enquanto as faltas diárias nos fazem ver o que sucederia se estivéssemos nas alturas vertiginosas. Quanto tempo durará a Via Purgativa? Quem pode dizer? Depende do fervor, mas em todo o caso devemos contar com anos e não com meses.

A sétima utilidade está na relação que tem com a oração. Quantas queixas não ouvimos diariamente das dificuldades da oração mental! Quão poucos, no entanto, procuram o dom da oração pelo único meio possivel: a mortificação! Se não nos mortificamos, por que nos queixamos? No terceiro tratado do Guia Espiritual, da Ponte relata minuciosamente uma visão que se deu, diz ele, com uma pessoa do seu conhecimento. Deus revelou-lhe o estado de uma alma tíbia e preguiçosa, dada à oração sem mortificação. Ela viu, no meio de uma larga planície, um alicerce profundo e firme, branco como o marfim,

a cujo lado passeava um jovem, de resplandescente beleza. Este chamou-a e disse-lhe: Eu sou filho de um rei poderoso e deitei este alicerce afim de construir um palácio onde pudesses morar e receber-me quando vier visitar-te, o que farei frequentemenete, com a condição de teres um quarto pronto para me receber e de abrires logo que eu bater. Mais tarde, porém, virei morar sempre contigo, e te alegrarás de ter-me por hóspede constante. Podes julgar do edifício pela grandeza dos alicerces. Entrementes, farei a construção e tu deves trazer-me todo o material. A dama ficou muito admirada e aflita, achando impossível trazer ela mesma todo o material necessário. O jovem, porém, disse-lhe: Não temas; poderás fazê-lo facilmente. Traze já alguma coisa e eu te ajudarei. Então ela procurou em redor a ver o que havia, mas logo parou e fitou os olhos no jovem, cuja beleza a encantava e deleitava, sem procurar agradar-lhe. Mas logo teve medo quando viu que ele a observava. A desobediência, não obstante, não

a fez corar e, enquanto continuava ociosa, viu os alicerces cobrirem-se gradualmente com a palha e o pó trazidos pelo vento. Por vezes tais furacões de pó se levantavam que os escondiam por completo, ou chuvas torrenciais cobriam tudo com a lama, que se estendia gradualmente, e favorecia uma vegetação fértil e má. Em breve, nada restava dos alicerces, e por fim novo furacão encobriu também o jovem, e tudo desapareceu sob um montão de imundícies. A dama muito se afligiu, vendo-se só, tanto mais que foi logo cercada por detestáveis montes de cal, areia e pedra. Lastimou sua tibieza e ociosidade, mas, julgando que o jovem ainda estava escondido em alguma cavidade dos alicerces, chamou em alta voz: Senhor, eis que venho! Trago comigo o material; por favor chegai-vos à construção; arrependo-me profundamente de tanta lentidão e indolência! Enquanto se mantinha nessas disposições, a visão foi-lhe explicada pelo seguinte modo: Os alicerces significavam a fé e os hábitos das outras virtudes que Jesus Cristo infunde na alma, no batismo, desejando construir nela um belo edifício de alta perfeição, com a condição da alma cooperar com ele, trazendo o material necessário, isto é, a observância dos preceitos divinos e dos conselhos, o que poderá fazer com o auxílio de nosso Senhor. Mas a alma tantas vezes se deleita ao meditar nos mistérios de Cristo, que se torna tíbia e ociosa, não se esforçando por obedecer e, por essa falta de atenção e indolência, os pecados veniais obscurecem aos poucos os hábitos das virtudes, e os olhos da alma tornam-se tão turvos que não podem mais ver nosso Senhor. Para castigar essa apatia, ele permite, às vezes, que a alma caia em pecado mortal, que tudo mancha e tudo destrói. Em seguida, devido à miseri-

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córdia de Deus, a alma arrepende-se e encontra as pedras da contrição, a cal da confissão e as areias da satisfação, e em alta voz implora a Jesus que lhe perdoe os pecados e comece novamente á construção.

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129 CAPÍTULO XI

A oitava utilidade da mortificação é dar à nossa santidade profundeza e força, a exemplo dos exer-cícios de ginástica, que desenvolvem os músculos e os robustecem. Isto confirma o que foi dito há pouco, a respeito de não abandonar cedo demais a Via Purgativa. Segundo narra Teodoreto, Simeão Estilita, quando primeiro começou a sustentar-se sobre a coluna, ouviu no sono uma voz a dizer-lhe: Levanta-te, cava a terra. Pareceu-lhe ter cavado algum tempo e depois cessado, quando a voz lhe repetiu: cava mais fundo! Quatro vezes cavou, quatro vezes descansou, e quatro vezes a voz insistiu: cava mais fundo! Depois acrescentou: Agora, constrói tranquilamente. De certo não pode haver dúvida quanto ao ato de cavar ser o trabalho humilhante da mortificação. Existe uma piedade mesquinha e pobre, uma sentimentalidade religiosa, que não se eleva acima da beleza da devoção ou de um ceremonial comovente, devoção boa para dias de sol, não para tempestades; e o erro na construção desse edifício fraco é caduco está na falta de mortificação na base.

A nona utilidade da mortificação diz respeito às austeridades corporais. Sem mortificação exterior, em vão procuraremos atingir a graça mais alta da mortificação interior. E' a maior das ilusões julgar que seja possível mortificar o juizo e a vontade, sem mortificar também o corpo. Se a mortificação interior é mais excelente, a exterior é mais eficaz. E' mais difícil, porque precede aquela, sendo preciso exercê-la num período em que ainda te

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mos pouco domínio sobre nós mesmos, e também porque é mais sensível. E' mais difícil, porque as vitórias são, quando muito, obscuras, enquanto as derrotas são claras e desanimadoras. E' mais difícil, porque não temos o auxílio do hábito. Quando as penitências corporais são raras, cada qual apresenta todas as dificuldades do esforço inicial e, quando são frequentes, caem sobre chagas ainda abertas. As vitórias da mortificação interior, ao contrário, aparentam certa dignidade e as derrotas encobrem sua desgraça numa quantidade de circunstâncias atenuantes. Lembremo-nos de que, durante toda a nossa vida espiritual, o corpo é nosso companheiro e pouquíssimos santos privilegiados conseguiram vencê-lo de todo. Demais, devemos salvar o corpo, bem como a alma, e não é exato que na devoção as coisas exteriores sejam simples meio de conseguir as interiores. Além desse caráter instrumental, elas possuem uma importância e um significado que lhes são próprios. Houve sempre duas classes de heresias em relação à teologia espiritual; e não sei de nenhuma heresia que não nascesse do desacordo entre o interior e o exterior, ou da importância dada a um em detrimento do outro. Tremo ao ouvir falar tanto em mortificação interior, pois me parece uma confissão de vida folgada. Por outro lado, quando alguém exagera a importância das austeridades corporais, ou não as pratica de todo, ou descansa nelas cheio de complacência, e tais pessoas são, portanto, faquires e não cristãos e não levam vida espiritual digna do nome. Castelvetere, no Diretto-rio Místico, dedica um capítulo a saber se é melhor errar por menos mortificação corporal ou por mais. E resolve a questão, opinando a favor de menos, baseado na autoridade antiga de Cassiano e na moderna de são Francisco de Sales. Diz ele também que o diretor nunca deve tomar a iniciativa de recomendar, nem mesmo de sugerir, uma austeridade corporal, a não ser a vigilância dos sentidos, indispensável ao exercício da virtude. Segala, na Via Segura, dá-nos igual conselho. Creio que, por se descuidarem desta doutrina, muitos princi-piantes desistiram da busca da perfeição e eu quisera chamar a atenção aqui para o que acaba de ser dito.

A mortificação é, em décimo e último lugar, ótima escola, onde se adquire a régia virtude da discrição. Quem é verdadeiramente mortificado cogitaria tanto em ficar surdo à voz da justa moderação, como em atender aos impulsos da fraqueza. A discrição é o hábito de dar exatamente no alvo, e isso exige precisão no olhar e firmeza na mão, E' sobretudo na mortificação que se exerce e se prova a discrição; manifesta-se na obediência, na humildade, na falta de confiança em si, na perseverança e no desapego das próprias penitências. Foi a prova imposta pelos bispos a Simeão Estilita. Enviaram um mensageiro, ordenando-lhe que descesse da coluna. Se hesitasse, saberiam, por aí, que a sua extraordinária vocação não provinha de Deus. Mas, apena3 dada a ordem,

começou logo Simeão a executá-la. Na docilidade que mostrara, os bispos reconheceram a vontade de Deus e mandaram que permanecesse onde estava.

O modo de praticar a mortificação pertence antes à direção particular das almas. Cada qual carece de uma lei especial. No entanto, na opinião unânime dos escritores ascéticos, se os prazeres, as paixões e as penas formam os tres grandes campos da mortificação, deve reinar entre eles certa ordem. Mortifiquemo-nos, primeiro, nos prazeres, em seguida nas paixões, reservando as penas para o fim. Não entendem por isso que haja tres classes distintas e sucessivas de penitência, nem que devemos praticar uma até esgotar a outra, assim como os que dividem a oração mental em doze ou quinze estados diferentes não entendem, por isto, que devemos sair dum para entrar noutro, como se fossem outras tantas celas separadas. Visam unicamente observar certa ordem no conjunto, de modo a permitir que, em dados momentos, tal objeto tenha preferência sobre outro.

As mortificações dividem-se em exteriores e in-teriores. As exteriores subdividem-se em cinco classes principais. A primeira classe abrange as penitências aflitivas, como o jejum, a disciplina, o cilício, as pontas de ferro, o frio e as vigílias. Destas, as vigílias e o frio podem ser funestas à saúde, e não raras vezes o são. Em geral, há dois pontos a observar a respeito dessas penitências: primeiro, não as adotar por livre vontade, sem ouvir conselho, sem se guiar pela obediência; e, segundo, considerar a perseverança como de muito maior importância que a quantidade ou a qualidade. Uma das enfermidades que mais custam a des-aparecer nas pessoas que se tornaram espirituais é o prazer imortificado no comer e no beber. Há nisso algo de muito humilhante e devemos dar especial atenção a este ponto, não deixando de praticar alguma mortificação em cada refeição, evitando comer fora de horas. Já é, em si, uma mortificação ler o que foi dito com muito acerto por Brillat-Savarin, e citado por Descuret, na Médecine des Passions. Quatro classes de homens, diz ele, são dadas à gula: os financeiros, os médicos, os literatos e os devotos; os financeiros, por ostentacão; os médicos, por sedução; os literatos, por distração, e os devotos, por compensação!

A segunda classe de mortificações exteriores compreende a vigilância dos sentidos, afim de reprimir a dissipação e a curiosidade, e aqui convém evitar a singularidade e a afetação. Consiste a terceira classe em sofrer com paciência as doenças e os sofrimentos, e sobretudo em aceitar a morte com espírito de penitência. As obras empreendidas pelo bem do próximo ou por abnegação própria, o auxílio prestado aos pobres ou à propaganda da fé, formam a quarta classe. Na quinta está tudo quanto há de penoso nas tarefas ordinárias e nas vicissitudes diárias da vida: a obrigação de trabalhar, as dificuldades da pobreza, as

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DA MORTIFICAÇÃO

intempéries do clima e coisas semelhantes. Tudo se torna meritório, se for aceito com o espírito interior de penitência e em união com os sofrimentos de nosso Senhor nos seus trinta e tres anos de vida mortal.

Agora, sob o título de mortificação interior, ponho em primeiro lugar a mortificação do próprio juízo ou razionale, como o chamou são Felipe de Neri. Pode a vida espiritual oferecer tarefa mais difícil? Se me perguntardes como será realizada, responderei: As palavras são fáceis; a prática, difícil. Desconfiai da vossa opinião e habituai-vos a renunciar a ela em questões duvidosas. Do que souberdes, falai modestamente, e depois guardai silêncio. Procurai nunca divergir dos vossos superio- 1 res naturais e imediatos e em sua presença desisti do vosso parecer. Com os iguais, tratai de concordar naquilo que não tem importância e, sobretudo, não procureis fazer prevalecer a vossa opinião. Julgai favoravelmente todas as coisas, e sede hábil em saber interpretá-las num bom sentido. Fáber, O progresso — 12Não condeneis nada em geral e nem em particular, e entregai tudo ao juizo de Deus. Obrigados a falar pela razão ou pela virtude, fazei-o com tanta doçura e modéstia, que pareçais desprezar a vossa própria idéa de preferência a dar-lhe valor.

As mortificações da vontade vêm em seguida. A loquacidade de outrem enche abundantemente a terceira classe. As aflições espirituais constituem a quarta. A quinta compõe-se das terríveis tentações que Deus permite, afim de nos provar de modo particular. Cada qual tem os seus sintomas e necessita de um método de tratamento individual de que não nos ocuparemos agora. Resta pouco a fazer na obra da santificação, quando a vontade está conformada com a vontade de Deus e se submete humilde e mansamente aos desejos dos outros em sacrifício dos seus. Da mortificação que nos causa a crítica, poucos podem esperar livrar-se, sobretudo se procuram fazer bem ao próximo e se aspiram a alta santidade. Foi uma bebida amarga no cálice de nosso Salvador, e pareceu ao Salmista tão angustiosa que pediu a Deus que o livrasse dela, escondendo-o sob suas asas. As desolações espirituais, tão difíceis de tolerar, imprimem às nossas relações com Deus caráter de coragem e de humildade. As tentações excepcionais, persistentes, purificam a alma, como o crisol, de todo o resíduo terrestre.

Se a mortificação oferece dificuldades, oferece também perigos. Muita mortificação se faz preceder da vanglória, a tocar a trombeta em sua frente. A outras, acompanha. A algumas, fornece mesmo toda a vida, toda a animação, toda a perseverança. E' como se este espírito maligno recebesse do seu mestre ordem de permanecer alerta: "Cada vez que a alma estiver prestes a praticar alguma mortifcação, esteja perto!" O remédio é praticar todas as mortificações por obediência. Então torna-se difícil à vanglória, à

ostentação, à singularidade, à afetação, à obstinação, à indiscrição, os seis principais perigos da mortificação, de se agarrarem às penitências, para lhe corroerem a amêndoa preciosa da vida interior. Devemos igualmente precaver-nos contra uma idéa supersticiosa que por vezes acompanha nossas austeridades e que diz respeito ao valor do sofrimento. Muita mortificação permanece mortificação uma vez passado o sofrimento, e o seu valor intrínseco não depende da quantidade de dor física e de desconforto corporal, mas da veemência da intenção sobrenatural. Mortificar é dar morte a alguma coisa, e por conse-guinte a paixão já morta está mais mortificada que a moribunda, embora esta última seja suscetível de dor, enquanto aquela está completamente insensível. E' curioso ver quanta gente se deixa levar, inconcientemente, por essa noção supersticiosa dada ao valor do sofrimento em si. Não quero dizer que este não tenha valor; não é, porém, a pedra preciosa, é o metal que a encaixa. Foi este erro que gerou fora da Igreja, e por vezes também em certos católicos, a ilusão de que a perfeição consiste em contrariar sempre os gostos. De acordo com esta teoria, os nossos afetos e paixões nunca chegarão a amar as coisas de Deus, ou a harmonizar-se com a graça. Há quem tenha escrúpulos a respeito da caridade com o próximo, pelo prazer sensível que lhe proporciona ou da visita aos pobres, ou, enfim, em seguir qualquer inclinação particular na devoção. Há certos diretores que impõem esta falsa regra às almas que dirigem, e isto é quasi sempre tão absurdo quanto indiscreto. O misticismo ortodoxo só poderia admi-

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DA MORTIFICAÇÃO 181tir semelhante máxima no caso de uma vocação clara e particular, vocação tão rara quanto o chamado de santa Teresa e de santo André Avelino, que fizeram voto de praticar sempre o que fosse mais perfeito. A Igreja, no entanto, hesitou perante esses votos quando chamada a canonizar os santos, e recusou-se a prosseguir antes de ter prova evi-dente de se tratar de uma operação especial do Espírito Santo. Ninguém jamais se tornou santo, nem sequer se aproximou da santidade, porque deixou de cultivar a doçura de caráter ou as virtudes naturais devido ao escrúpulo do prazer que lhes causava. O jansenismo pôs nessa subtileza todo o segredo da perfeição. Semelhante idéa do ascetismo, além de odiosa, é totalmente contrária aos princípios católicos.

Às dificuldades e aos perigos da mortificação acrescentemos uma palavra sobre as ilusões. A matéria é vasta. Guilloré, que tratou longamente, e com sua severidade habitual, do assunto, resume-o, descrevendo as quatro classes de pessoas que são sobretudo sujeitas a elas. A primeira classe dos iludidos abrange os que sempre levaram vida inocente, e julgam poder se dispensar, com facilidade, da prática das austeridades; e como nada os leva a seguir esse caminho, não tentam atrair os outros. Não compreendem a razão pela qual hão de maltratar um corpo tão pouco rebelde, ou infligir-lhe sofrimentos tão constantes, quando raras vezes os importuna. A segunda classe compõe-se dos que, apesar de não terem levado vida inocente, são, não obstante, devido ao seu temperamento brando, pouco

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CAPÍTULO XI

propensos às austeridades. Custam a crer que uma coisa tão acima de sua cobardia, como seja a perseguição de si mesmo, possa ser necessária e indispensável. Concordam quanto à utilidade, não quanto à necessidade; pois nesse caso onde estariam eles? Suas teorias sobre a perfei-ção, ou as suas aspirações sentimentais para alcançá-la, se dissiparão qual fumaça. A terceira classe dos iludidos é formada por aqueles que ofenderam gravemente a Deus, e julgam portanto que não devem pôr termo às austeridades. Desse modo ultrapassam os limites da sã razão, de um lado, e as aspirações da graça, do outro. A

quarta classe compreende os homens de zelo ardente e de temperamento entusiasta, que encontram paz na guerra, repouso na luta, e que

satisfazem a natureza, castigando o corpo. Quando o sangue se derrama, ou o rosto empalidece, iludem-se miseravel-mente, vendo nisso uma verdadeira mortificação, quando foi a simples satisfação de uma paixão humana e natural.

CAPITULO XII

Do espírito humano

Como vimos, as tres disposições normais da vida espiritual exigem a prática da paciência e da mortificação, bem como a falta do respeito humano, afim de poderem cumprir com as funções que lhes competem e

evitar os perigos que as cercam. Mas existem também tres maus espíritos, que de modo especial perseguem estas tres fases. Não

1) Igual doutrina é sustentado com vigor pelo padre de Condren, geral dos Oratorianos na França. (Vida

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digo que cada qual tenha o seu, e que os outros dois não a façam também sofrer. Em resumo, porém, a luta está mais exposta aos ataques daquilo que podemos chamar o espírito humano; a fadiga é ameaçada pela indolência; e o repouso nos leva ao des-cuido da oração e ao estado de espírito oposto à oração. Consideremos agora esses tres pontos: o espírito humano, a indolência espiritual e a oração.

O reino das trevas, o poder e a astúcia de Sata-naz, a multidão de ministros que lhe são subordinados, as guerras incessantes, francas ou ocultas, contra os servos de Deus, tudo nos deve constituir, quando possível, matéria para graves meditações, e ser objeto dos mais legítimos receios e de uma vigilância impregnada de oração. Seria conve-

niente, todavia, que os homens encarassem essas operações de Satanaz dentro dos justos limites da sã teologia. Não é raro, porém, que eles pareçam tocar ao maniqueismo, ou pelo menos dão deDeus todo poderoso uma idéa muitíssimo diferente da que ensinam as Escrituras. Esquecemo-nos de que o demônio é apenas um dos tres inimigos contra os quais, no dia do batismo, prometemos lutar, e assim lhe atribuímos todos os fenômenos que perten-cem antes ao mundo e à carne. A mesma vai-dade secreta que nos incute a idéa supersticiosa de que a graça é um talismã, que deve agir sem co-operação da nossa vontade, dá também lugar a teorias errôneas sobre a ação do demônio. A vergonha que acompanha as quedas diminue sensivelmente se acreditarmos que, de fato,

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CAPÍTULO XI

lutámos, e fomos vencidos, por um perigosíssimo mau anjo, em vez de ver que pela covardia, moleza ou amor próprio, cedemos às sugestões da nossa própria e ir-resoluta vontade. Em virtude desta terrível doutrina sobre o poder do demônio, muitas almas se entregarão à inércia em presença de certas tentações. Fossem lógicas e em breve veriam que a doutrina da necessidade do pecado é uma blasfêmia. O seu ponto de vista, afinal, resume-se nisto: o homem é um instrumento orgânico e racional, entregue ao poder do demônio; Deus tenta estabelecer o seu domínio pela fé, pela graça, pelos sacramentos, e o homem pouco tem a ver com o combate que se trava entre os dois poderes espirituais, senão consentir em servir como campo de batalha. Este modo de

expor o caso faz-nos estremecer. Mas segui, através da grande região das tentações e dos escrúpulos, a alma embebida desta falsa idéa, e vereis os erros que comete e as desgraças que encontra, até não mais necessitar do demônio para tentá-la, pois, segundo a expressão de são Bernardo, será ela mes-ma um demônio (1).

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DO ESPIRITO HUMANO

Tendo chegado a este ponto, é mister lembrar aos meus leitores o que a teologia lhes ensina sobre o existência de um espírito humano, espírito do homem decaído, que exerce influência muito material sobre toda a vida espiritual. Podemos resumir brevemente o que se costuma ensinar a respeito. Estamos em contato com tres espíritos diferentes: o divino, o diabólico e o humano. Este último é em si um espírito distinto e definido, composto das inclinações da natureza decaída, e com liberdade de aliar-se a qualquer um dos outros. Assim, o mal que causa à vida espiritual é principalmente de caráter negativo. Leva-nos a agir por motivos e meios puramente naturais, independentes, da graça. Seu sinal característico é que, embora livre de todo impulso satânico, procura sempre paz, conforto, sossego e liberdade, cuidando amplamente dos interesses do corpo. Numa palavra, é para os bons o que o espírito do mundo e o demônio são para os maus, e atua

incessantemente sobre eles, ainda mesmo quando são invulneráveis às tentações graves. Corrompe-lhes as ações, sem viciá-las de todo.

Merecem especial estudo 03 vários modos pelos quais o espírito humano se desenvolve na vida es-piritual. Frequentemente nos leva' a desejar com ardor as visitas do Espírito Santo. E' por isso que devemos desconfiar das resoluções tomadas em momentos de fervor ou de exaltação. As palavras de Deus produzem na alma o efeito prometido. Ainda que a voz divina tenha apenas emitido um som, uma palavra, a. obra está feita e sobre ela pode-se levantar um edifício de longos anos de duração. Terríveis, porém, são as consequências quando tomamos a mera efervescência do espírito humano pelo fogo da inspiração divina! Em virtude de um simples impulso natural, comprometemo-nos a seguir determinada linha de conduta; damos um passo sério na vida; chegamos a

prender-nos por votos de que não poderemos facilmente dispensar-nos; colocamo-nos numa posição onde, para evitar o pecado, precisaremos de auxílios extraordinários da graça. E o que sonhávamos ser uma estimulação de Deus para dar-nos tais graças, nada foi senão o palpitar do coração, o latejar do sangue. Numerosas e grandes são as empresas do espírito humano, e igualmente numerosas e grandes as ruínas que deixam.

Mas não é somente no começo da carreira que a ação do espírito humano se faz sentir. Revestindo a forma de amor próprio, introduz-se em obras já adiantadas, destruindo-lhes ou abatendo-lhes a força. Insinua-se nas intenções sinceras e boas, desviando-as do fim nobre, natural que tinham em mira. E ao descobrirmos que alguma coisa está errada, o mesmo espírito humano torna-nos ansiosos e inquietos para corrigir o mal, renovando-nos o fervor a seu modo. Visando este fim, empreendemos austeridades inspiradas num impulso puramente físico ou num ímpeto de vingança pessoal. Outra operação do espírito humano, que faz obra do demónio, sem que este se dê o incómodo de intervir, é a tendência de falar de nós mesmos, do nosso estado espiritual, de comunicar aos outros o que sentimos e o que experimentamos.

Mas o espírito humano não somente nos impele a fazer o bem, como nos facilita até certo ponto exe-cutá-lo. Eliú achou que o Espírito Santo o movia a censurar a Jó e o espírito humano deu às suas repreensões uma sagacidade e eloquência pouco co-muns. Segundo o cardial Bona, quando a alma está inundada de viva luz, não deve apressar-se em concluir que seja obra da graça (2). Talvez, como ele mesmo acrescenta, seja fruto da vivacidade natural do temperamento ou do mero hábito de meditar nas verdades da religião, e há vasta diferença entre o hábito e a graça da meditação, e o dom da meditação. Pode também resultar da simples especulação da inteligência a respeito das coisas naturais e divinas. E' por esta razão que, no meio de tais luzes, a nossa vontade permanece muitas vezes inerte e fria, destituída de toda unção do Espírito Santo. Julgamos a árvore pelos frutos e não pelos ramos e pelas flores; assim também julguemos essas luzes interiores pelas boas obras que produzem. Se as examinarmos de perto, se nos deparará frequentemente nelas algum ponto negro, isto é, qualquer coisa contrária à prudência ou estranha aos princípios da perfeição cristã. Havendo em nós um arrojo de leviandade, podemos tomá-lo como marca distintiva do espírito humano. Segundo Ricardo de São Victor, quando sentirmos uma inclinação um tanto fácil e leviana para fazer alguma boa obra, devemos temer que tal ímpeto seja mais da carne que do espírito, sobretudo se vier acompanhado de algo que lisonjeie a natureza. Assim também convém desconfiar da alegria que nos atrai ^ara qualquer coisa, quando aliada ao ardor ou à impaciência. O Espírito Santo é moderado, paciente, tranquilo, e os impulsos que . suscita lhe são conformes.

pelo padre Amelote, p. XIV). Naturalmente nem este nem tão pouco o outro lado da questão deve ser exa-gerado. A doutrina da personalidade e da influência do> demônio é necessária, de modo especial hoje em dia, para enfrentar o saduceismo da época. Mesmo Bayle, no seu Dictionnaire (Art. Plotinus) diz aos cristãos: "Provai aos vossos adversários a existência dos maus espíritos e em breve serão forçados a conceder-vos todos os dogmas. "Mais prouvez-leur l'existence des mauvais esprits, et vous les verrez bientôt de vous accorder tous vos dogmes". A blasfêmia de Voltaire, no assunto, é por demais conhecida para ser repetida aqui. Frederico Schlegel falou bem quando disse que a história nada era senão "uma luta incessante das nações e dos indivíduos contra os poderes invisíveis". O padre de Ravignan, falando a respeito dos demônios, no décimo nono século, observou com exatidão e com energia: "A sua obra prima foi fazerem-se negar por este século". "Leur chef d'oeuvre, Messieurs, c'est de s'être faits nier par ce siècle".

2) O critério do cardial Bona, pelo qual distingue o espírito humano do diabólico, atraiu a atenção de M. de Mirville na sua primeira Memória sobre a Pneuma-tologia, e ele prometeu estudá-lo longamente e em re-lação à teologia católica na seguinte. "Nous étudierons aussi la véritable nature de cet ennemi domestique appelé la chair, ennemi que le cardinal Bona ne craint pas de ranger dans la classe des Esprits. Nous tâcherons tout à la fois de bien définir le vrai rôle de ces agents psychologiques et physiologiques dans les phénomènes magnétiques, et de voir s'ils peuvent jamais y remplacer l'assistance d'un Esprit Etranger". Prem. Mem. p. 81, troisième édition.

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DO ESPIRITO HUMANO

Outro indício do espírito humano está no aborre-cimento e na aversão que nos causam as nossas cul-pas, o que mais adiante havemos de considerar atentamente. Abatem-nos também os defeitos das nossas boas obras, ou o mau êxito dos nossos mais sinceros esforços. Quiséramos tudo bem feito e bem acabado, e, para alguns temperamentos, a falta de remate e de perfeição nas obras é maior provação que o pecado atual. Apegamo-nos obstinadamente a certas práticas de devoção, porque imaginamos que nos fizeram bem, e isto se parece com a perseverança sobrenatural, quando na verdade não passa de obstinação do espírito humano. Se a nossa vida interior é por vezes inundada de grande variedade de bons pensamentos e de projeto» cheios de zelo, é em geral devido ao espírito humano. O Espírito Santo inunda-nos lenta, silenciosa e simplesmente, qual rio que alaga suavemente as terras baixas. Cada coisa a seu tempo, e todas em ordem, tais são os principais característicos das operações divinas. A desigualdade e inconstância de ânimo é outra disposição humana, sendo erro tomá-la por divina. O mesmo direi da ilusão que nos leva a imaginar que, pelo respeito que devemos a nós mesmos, convém seguir tal ou tal modo de proceder. Não digo que semelhante motivo seja sempre pecado, mas que tal procedimento é puramente humano, com todas as probabilidades de vir do espírito humano, e que, por conseguinte, não devemos desanimar se as bênçãos do céu não o acompanham, e não lhe for dado gozar dos direitos e das imunidades da paciência evangélica. Nada é deixado tão completamente pela Providência aos seus próprios esforços e nada é tão despojado de auxílios, como a prudência humana. E a razão está patente. E', até certo ponto, uma tentativa do homem de querer passar sem Deus, e caminhar a sós, seguindo "as veredas da própria sabedoria. E, no entanto, como o mundo admira essa prudência humana! A gravidade do olhar, a solenidade das maneiras, e a sobriedade de palavras, são-lhe as mais das vezes os apanágios. A verdadeira prudência não consiste em ostentar solenidade, em desconfiar da gente boa, nem está no olhar grave, na conduta decorosa ou na escassez de palavras, como se cada qualidade destas valesse uma moeda de pra,ta. Consiste em ter o olhar fito calmamente em Deus, em entregar-lhe todo o coração e em andar devagar com receio de deixá-lo atrás. A prudência humana gera o respeito humano. Contentar-nos-emos com tal ressultado? Não, porque não viemos a este mundo para descer à cova sem ter feito nem mal nem bem. Deus espera algo mais de nós do que simplesmente não o ofender, e a esterilidade é ofensa capital contra Deus e contra as almas. Para quantos cristãos, no entanto, não representa essa esterilidade inofensiva o sumo bem! "Estar sempre livre de perigo é ser sempre fraco". Se jamais o espírito da prudência evangélica falou claramente, foi ao formular esta máxima de ouro.

O espírito que nos leva a procurar recreações desnecessárias, o espírito das intenções mixtas, o espírito que nos incita a pedir dispensas, o espírito que nos convida a pequenas imortificações, a pretexto

de que não se tornarão habituais; o espírito que nos faz falar por alto e com falsa prudência do entusiasmo dos nossos primeiros fervores na religião, são todos desdobramentos do espírito humano. E os que se manifestam de preferência em nós são os que se adaptam mais facilmente ao temperamento natural e à índole de cada qual. E' este, pois, o lado que devemos vigiar com maior atenção e cuidado, porque é aí que este espírito ignóbil, como o chama Scaramelli, nos há de assaltar. ■

Mas o peior artifício do espírito humano é revestir-se da capa da virtude. Se temos uma aptidão natural para determinada virtude, confundimos "essa facilidade com a graça, e iludimo-nos. O peior, diz Scaramelli, é quando este mísero espírito se disfarça em alguma virtude e parecemos aos nossos olhos o que na realidade não somos. A natureza humana, observa Ricardo de São Victor, sentindo propensão natural para certas virtudes, encontra menos dificuldades em praticá-las do que a outras; e, igualmente, todo homem sente inaptidão e re-pugnância especiais em praticar esta ou aquela vir-tude. E, daí, certa prontidão em fazer o bem reveste muitas vezes o aspeto de devoção, quando de fato provém tão somente de uma inclinação natural. Baseado nesta doutrina o grande místico conclue que os pensamentos, palavras,' obras e afetos das pessoas imperfeitas procedem ordinariamente deste baixo princípio natural e devem, por conseguinte, ser atribuídos ao espírito humano. .

Scaramelli cita depois diversos casos que con-firmam esta doutrina. Muitos principiantes na vida espiritual, ou pessoas imperfeitas, passam o dia a correr de um lado para outro, ocupados em obras de misericórdia; são habilíssimos em conceber planos, que executam de todo o coração e parecem ser a imagem perfeita da caridade e do zelo. Se fosse possível, todavia, penetrar nesses corações, verificaríamos que essa ansiedade e prontidão em servir o próximo são operações da natureza e não da graça, provindo em grande parte, se não inteiramente, de um temperamento ardente e inquieto, que não poderia viver sem estar atarefado por mil ocupações. Por outro lado, uma pessoa quieta e tranquila, que não se ressente de uma ofensa e parece não conhecer a cólera, será tida por verdadeiro modelo de mansidão. Se, no entanto, examinarmos a fundo a sua aparente imperturbabilidade, veremos que não é a graça que lhe modera e reprime o caráter natural, mas que a causa dessa mansidão é uma disposição fria, pesada e fleugmática. Há também pessoas para quem a oração é uma fonte de doçura, que as leva a cair continuamente em prantos. Parece que, trazido por mãos angélicas, chove sobre elas o maná do céu. Mas colocai essas lágrimas na balança do santuário, e não tardará a transparecer a pouca parte que nelas teve a graça. São o resultado legítimo de uma natureza ar-dente, terna e afetiva, cuja imaginação se impressiona vivamente com qualquer objeto belo, ou digno de piedade. Outras são tão atentas à oração, que passam nela horas inteiras sem se distrair. A primeira vista parecem ter chegado a um recolhimento profundo e

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DO ESPIRITO HUMANO

habitual, quiçá a um alto1 grau de contemplação. Mas é engano. Essa atenção pode provir sem dúvida da luz celestial que fixa o espírito num objeto divino, mas pode também provir de uma imaginação forte, de um temperamento profundamente melancólico ou de certa concentração que fixa o espírito no objeto da meditação.

Mas cuidemos de nós mesmos. Há dias em que sentimos fervor extraordinário e grande consolação espiritual. Pensamos então estar cheios de Deus. Mas, ai de nós! como se ilude a nossa pobre alma. Essa consolação é simples obra da natureza. Alguma felicidade sobreveio-nos, alguma boa nova chegou-nos ao conhecimento, e o nosso coração dilatou-se e encheu-se de jovialidade e de prazer naturais, aos quais se juntou um quê de devoção, que nos imprime na alma certo tom de espiritualidade, e tomamos por fervor o que não passa de alegria natural, colorida por tal devoção. Não tardaremos em pôr isso a prova. Sobrevenha-nos algo de desagradável, e a consolação dissipa-se com a rapidez, do raio, o fervor modera-se num instante e o nosso espírito eleva-se a Deus com dificuldade. Ai de nós! quão fácil é confundir os impulsos de Deus com os da natureza e tomar o espírito humano pelo divino! Infelizes que somos! Havemos de corar no tribunal de Deus, ao verificar que os feitos, que tínhamos em conta das mais puras virtudes sobrenaturais, não passavam da espuma sem valor de ações naturais ou de um mixto de natureza e de graça, com dois terços daquela para um terço desta. Assim fala Isaías: Argentum tuum est in soo riam, vinum tuum mixtum est aqua (3). A devoção que nasce da jovialidade natural, da vivacidade da percepção, ou do simples hábito de meditação, explica como é possível que algumas almas tenham sentimentos tão profundos e ao mesmo tempo progridam tão pouco, e recaiam tantas vezes.O poder corrosivo do espírito humano manifesta-se no modo pelo qual permite que o nosso temperamento se

alie às nossas ações, estragando-as. Assim é que o zelo do homem colérico torna-se amargo, a pessoa

melancólica pratica a caridade sem doçura, e o temperamento jovial falta facilmente ao recolhimento

nas orações. Mas atendamos a Scaramelli comentando a Ricardo de São Victor, o mais persuasivo e doce dos

místicos (permita são Bernardo que assim o chame). Convém lembrar que o espírito humano se mistura às obras de pessoas mui piedosas, das que se habituam

a medir as ações nos conselhos da mais alta perfeição. Embora este espírito ignóbil não as possa corromper de todo, deprime-lhes, todavia, o nivel de perfeição.

Assim acontece que, na pessoa espiritual de temperamento colérico, o zelo não é despido de certo azedume e de certa perturbação natural. Tratando-se

de uma pessoa fleugmática, será negligente em corrigir-se. Sendo melancólica, sua caridade se

ressentirá da falta de benignidade, a dissipação lhe enfraquecerá as virtudes. Numa palavra, assim como

o licor conservado num odre lhe recebe o gosto, assim também as virtudes têm o sabor do temperamento

natural da alma que as agasalha, e a gente deve,

portanto, acautelar-se contra o espírito que lhe dorme no seio. 1

Em primeiro lugar, o espírito humano é um espírito mui maligno, pois, alegando servir a Deus, só procura os próprios interesses. Em segundo lugar, é um espírito mui subtil, impregnando, qual azeite, todos os nossos atos. Grandes mortificações são necessárias afim de combatê-lo com êxito e derrotá-lo. A este respeito, cita são Bernardo as palavras do sábio, que mais vale vencer-se a si próprio que tomar uma cidade. Com efeito, uma cidade pode ser tomada com o auxílio da natureza, enquanto que, sem o auxílio da graça, não é possível vencer-se a si mesmo. Reflitam todos, continua o nosso autor, que o maior inimigo das pessoas adiantadas na espiritualidade não é o demônio, nem o mundo, nem a carne, porque estes tres adversários já foram subjugados, ou estão sendo combatidos. O seu maior inimigo é o espírito humano, aliado ao amor próprio, que só pode ser vencido pela incessante mortificação da vontade.

Acrescentarei a esta, a autoridade do cardial Bona, parafraseando a passagem em que, ao falar do espírito humano, o compara ao demónio. Ninguém tem inimigo mais pernicioso que o seu próprio espírito, repleto que está de dissimulações, de artifícios, de astúcias. E' um espírito inconstante. Reveste formas diversas, é curioso, inquieto, inimigo do próprio repouso, amigo das novidades. E nada daquilo que a imaginação produz de disforme, ou de monstruoso, deixará de interessá-lo. E nada, por mais desgraçado, vão ou ridículo, que não seja capaz de abraçar. Ora aparece inteiramente submisso ao Espírito de Deus, ora escravo do espírito de Satanaz, nunca se demorando num ou noutro estado. Fecundo em artifícios, afeta formas variadas com surpreendente habilidade e maravilhosa subtilidade, afim de encobrir o que lhe seja agra-Faber, O progresso — 13davel ou util, pretextando a glória de Deus e a perfeição. Apesar de tão ilusórias aparências, está todavia muitíssimo longe de procurar a glória de Deus, ou de amar a perfeição, pois em tudo se procura e se preza excessivamente; digo mais, se adora; e, desviando dos verdadeiros fins as coisas as mais santas, refere-as a si por terrível sacrilégio. E' este o motivo que nos leva a desconfiar muito mais de nós mesmos e a precaver-nos contra nós mesmos do que contra Satanaz. Nenhum poder externo pode ferir-nos, se não lhe estendermos a mão, se não lhe fornecermos as armas ao começar o ataque e se não consentirmos interiormente nos seus desígnios e empresas. Na verdade, muitos inimigos nos impelem à ruina — o mundo, Satanaz e o próximo; mas ninguém nos impele com tanta violência ou de modo tão perigoso como nós mesmos.

No octogésimo quinto sermão sobre os Cantares, escreve são Bernardo o seguinte: Cada qual é o seu próprio inimigo. O homem incita-se ao mal e nele se precipita de tal forma que, se pudesse somente preservar-se do suicídio, nada teria a temer da vio-

3) I, 22.

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lência de outrem. Quem vos poderá fazer mal, diz são Pedro, se não tendes outro desejo senão o de fazer o bem? O consentimento é a única mão que vos pode ferir e matar. Se, quando o demônio vos tentar, ou o mundo vos convidar a pecar, recusardes, nenhuma desgraça vos sobrevirá. O demônio pode empurrar-vos, mas nunca vos derribar enquanto não consentirdes. Não é, pois, evidente que o homem é seu maior e mais perigoso inimigo?

Demoro-me em tão importante assunto, e, embora corra o risco de repetir-me, peço-vos examinar comigo os sinais pelos quais, segundo o cardial Bona, o espírito humano se revela — já vimos os que apontaram Scaramelli e Ricardo de São Victor.

Em primeiro lugar, diz o cardial, há pessoas que se sensibilizam de tal maneira com a lembrança dos seus pecados, com a meditação dos sofrimentos de Cristo, que derramam abundantes lágrimas e são invadidas repentinamente por sentimentos de profunda compunção. Tal disposição leva-as a se castigarem com rudes disciplinas e a macerarem a carne. Outras sentem tão viva impressão ao considerar as alegrias do céu, que caem logo em êxtase. Por especiosos que sejam tais efeitos, não provêm do Espírito de Deus, mas do amor próprio, da vivacidade e da aplicação com que a alma percebeu os seus fins, e da alteração natural causada por emoções súbitas e extraordinárias. Isso se tornará evidente, depois de passada a impetuosidade e o ardor dessa emoção, porque tais pessoas não somente recaem no estado de frieza e de aridez, mas tornam às paixões antigas e aos vícios anteriores. Ao contrário, os verdadeiros movimentos e impulsos do espírito de Deus são sempre aproveitados para converter as almas, produzindo resultados imediatos e grandiosos. Devemos, consequenteme-te, concluir que é muito difícil saber discernir os espíritos. Com efeito, ora atribuímos ao espírito de Deus, e ora ao do demônio, o que na realidade pertence às disposições e às impressões da natureza. Que todos, portanto, examinem cuidadosamente o coração e não se deixem iludir pelo próprio espírito, que são Gregório chama "um espírito de orgulho". Ora, ninguém pode examinar e discutir o que se passa em seu interior, se não repelir toda espécie de presunção, desconfiando de si e preparando em sua alma uma morada para Deus, pois, no dizer do santo Papa, ninguém pode tornar-se 18* a morada do espírito de Deus enquanto não se livrar do seu próprio espírito, pois o espírito de Deus só repousa nas almas humildes, nas conciencias tranquilas e nos corações que tremem ao ouvir-lhe as palavras.

Em segundo lugar, acontece às vezes que, ao empreendermos alguma obra, começamo-la realmen-te para Deus e para a sua glória. Mas, como a natu-reza tende sempre, secretamente, a procurar-se a si mesma, ao progredir a obra, esquecemo-nos in-sensivelmente, sem o perceber, do beneplácito divino, e, em vez de considerar sua glória e sua vontade, deixamo-nos ir em busca das nossas comodidades e satisfações pessoais. Vejamos os sinais reveladores.

Se Deus impede o êxito ou a terminação da obra, seja por moléstia, seja por algum acidente, afligimo-nos e perturbamo-nos; e tal a tristeza e inquietação que se apoderam de nós, que mal podemos aquiescer à vontade divina. Poucas pessoas conhecem a malícia da inclinação natural, tão subtil quão oculta, que nos leva a procurar-nos a nós mesmos. O só fato de nos ser o bem, em certo sentido, conforme aos desejos naturais, serve de pretexto para confiarmos em nós mesmos. Embora as intenções sejam aparentemente as mais puras e mais conformes à vontade de Deus, não raras vezes pro-curamo-nos a nós, pendendo para o que nos atrai, de preferência ao que é da maior glória de Deus.

Observa-se igual defeito no amor à mortificação, sobretudo quando é ardente em excesso. Muitos mortificam os sentidos, moderam os afetos, castigam o corpo e se abstêm dos prazeres, revestindo a tudo isto da capa da virtude e do zelo, quando na realidade só querem ser vistos dos homens, ou dar ao coração uma satisfação na qual o amor próprio se procura com toda a habilidade e com todo o sacrifício de que é capaz. Quem age somente sob os impulsos da graça deseja sempre ocultar-se. A natureza, ao contrário, procura invariavelmente ostentar-se. Nem os que gozam realmente de luzes sobrenaturais e divinas estão, no entanto, isentos de semelhante culpa, porque frequentemente voltam a cogitar em si, a descortinar continuamente o próprio "eu", quais paisagens vistas através da clareira do mato, justamente no momento em que deviam ocupar-se exclusivamente de Deus.

Em terceiro lugar, é certo que, sem a graça de Deus, não podemos rezar bem nem fazer condigna-mente boas obras. Mas é certo também que podemos fazer ações virtuosas por algum motivo humano, seja por amor próprio, seja por temor servil. Demais, temos tão poucas luzes internas que nos é difícil distinguir se nos guiam motivos divinos ou humanos. Na verdade, queremos elevar a Deus os corações e livrá-los dessas vira-voltas do amor próprio, tão fecundas em imperfeições; e, no entanto, tal desejo pode nascer de um interesse subtil e secreto que não percebemos, pois às vezes queremos despojar-nos do amor próprio por outra espécie de amor próprio. O mesmo orgulho pode levar-nos a desejar e amar a humildade. Não há dúvida de que as. nossas ações e disposições interio-res formam um círculo perpétuo, que se volta in-cessantemente de nós a nós, quasi imperceptivel-mente. O amor próprio deixa no coração uma raiz extremamente fina, subtil e impalpável, que nos é desconhecida. De sorte que pensamos muitas vezes que nos guiam razões divinas e motivos desin-teressados, quando de fato estamos longe de agir por tais razões e por semelhantes motivos. Temos um exemplo disto nos consoladores de Jó. O puro e verdadeiro amor de Deus, livre de toda consideração pessoal, é extremamente raro, porque é ex-cessivamente difícil. Se os homens pudessem ocultar-se aos olhos de Deus e do mundo, poucos, na verdade, fariam o bem, e ainda menos se absteriam de cometer o mal.

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Em quarto lugar, quem, depois de cair, se afüge, se inquieta e desespera do progresso espiritual, obedece a disposições que provêm unicamente do orgulho e da secreta confiança em si. Com efeito, a queda nunca surpreende a quem é verdadeiramente humilde, porque sabe que o homem é tão fraco que nada pode fazer sem a proteção de Deus. E assim implora o auxílio divino, detestando o pecado com o coração tranquilo, mas contrito, e levanta-se cheio de coragem, para recomeçar, diligente, a carreira com novo fervor.

Pertence também ao espírito humano apegar-se aos exercícios e às práticas de piedade, por melhores e mais santos, ao ponto de, se os superiores nos mandarem substitui-los por outros, nos entregamos a murmurações e a queixas, imaginando que nunca havemos de atingir a perfeição que nosso estado requer, como se não poder fazer sempre o que queremos fosse privar-nos dos meios necessários para atingirmos à perfeição. O pesar que sentimos em tais circunstâncias não é causado pelo fato de serem as coisas que fomos obrigados a abandonar mais próprias e mais eficazes à nossa perfeição, e sim pelo hábito de descansarmos nelas com apego vicioso, tendo em vista o nosso próprio interesse e satisfação, de preferência à glória de Deus. A natureza ama o belo, o perfeito, e procura nessas coisas tudo que lhe seja agradável e atraente. O resultado é detestar todo" defeito em suas empresas e desígnios, até mesmo nas obras mais espirituais, tanto mais que tais defeitos, como já disse, nos afligem e inquietam, sinal evidente de que o amor do bem e da perfeição, por mais especioso que fosse, não passou de um produto da natureza.

Em quinto lugar, o espírito humano incita as pessoas instruídas, e que ambicionam maior erudição, a adquirir a ciência das coisas divinas e sobrenaturais, em parte para lhes granjear a estima alheia, em parte para satisfazer a própria curiosidade. Essa avidez de exibir grande ciência, gera muito discurso raro, magnífico e subtil, cujo fruto é distrair os ouvidos sem salvar as almas. Essa mesma fonte produz os escritos dos filósofos, que discorrem sobre a virtude em estilo pomposo, sem vigor e sem vida, a encher a alma de distrações, a dissipá-lo por uma infinidade de especulações e de idéas, sem conseguir inflamá-la no amor de Deus. As obras emanadas da capacidade natural do espírito, e em cuja formação a graça não tomou parte, podem, sem dúvida, conter uma abundância de coisas boas, mas os frutos serão insignificantes. Assemelham-se ao bronze sonoro e ao címbalo retumbante de que fala o Apóstolo. Mas as palavras animadas peio espírito de Deus, sem ter nada de sublime ou de elevado, antes, pelo contrário, produzem frutos copiosos. Por outro lado, o espírito humano está sempre pronto a espalhar-se exterior-mente e a ufanar-se da multidão e da variedade de seus pensamentos delicados; e o resultado é afastar-se da unidade, que é tão útil quanto necessária. .

Em sexto lugar, a prudência humana, em tudo quanto se refere à virtude, é companheira inseparável do espírito humano. E' a razão pela qual tantas almas

se contentam com a mediocridade na vida espiritual, sem aspirar à perfeição. Medem a tudo por si mesmas e pela própria fraqueza, e não pelo poder e pela eficácia da graça de Deus. Temem o sofrimento e o desprezo, amam com ardor as riquezas, as honras e os confortos corporais, e a tais coisas referem todas as obras, palavras e pensamentos. Desejam gozar de si, como se fosse o seu último fim e, arvorando-se em ídolos, prestam-se o culto devido a Deus. Deixam a alma fascinar-se pelos encantos do mundo, vendendo-a, qual escrava, aos bens da vida presente.

A caridade não procura os próprios interesses, ao contrário do amor próprio cego, que não procura senão os seus. O poder exercido na alma por tão pernicioso amor é de tal forma maligno e penetrante, que se estende não somente às coisas temporais e terrenas, mas também abrange as celestiais, corrompendo, com o seu veneno, o amor da oração, o emprego dos sacramentos e o exercício das virtudes. Até nisso os homens procuram o louvor e a reputação de santidade, ou esperam, em segredo, obter de Deus certas luzes, favores e alegrias espirituais, que só servem para torná-los moles e vaidosos. E o veneno do amor próprio insinua-se até nas obras de penitência. Com efeito, quando, apÓ3 a queda, um sentimento de profundo arrependimento move o pecador a castigar cruelmente o corpo, não cogita na ofensa feita a Deus, mas na vergonha em que incorreu, ou no receio de perder a reputação entre os homens, ou, pelo menos, no desejo de inocentar-se aos seus próprios olhos. Mas, não havendo nada de sólido entre as coisas pere-cedoras desta vida, e reinando tamanha inconstância no amor que o homem tem a si mesmo, está incessantemente a mudar as afeições e os prazeres, sem saber o que deseja nem o que faz. Ora alenta-se temerariamente com a esperança, ora cai no desespero; outras vezes entrega-se à vã alegria ou submerge na mais profunda tristeza. Sua conduta não oferece moderação nem medida, e em vez de conservar-se num meio termo, vai sempre de um extremo ao outro. Assemelha-se ao navio que vagueia sobre as ondas, e que, por fim, é atirado com violência contra um rochedo e naufraga miseravelmente. Assim, pois, como nos ensinou nosso Salvador, quem ama a própria alma, a perderá. Ora, deve-se referir tudo quanto foi dito do espírito humano a esse amor próprio pernicioso, força motriz de todos os impulsos puramente naturais da alma.

E' evidente que Scaramelli e Bona ambos hauriram da mesma fonte: Ricardo de São Victor, intérprete da tradição espiritual do seu tempo, uma matéria em que, mais do que qualquer outra na vida espiritual, é mister ter idéas claras e firmes.

Indagareis talvez do modo pelo qual havemos de pôr a prova o espírito humano e, depois, retificá-lo. Responderei sumariamente que há dois modos de pô-lo a prova e de retificá-lo. Em primeiro lugar, devemos verificar se consentiremos ou não em renunciar, por obediência, aos nossos hábitos e práticas de piedade. Em segundo lugar, se tal virtude é acompanhada das virtudes análogas, como acontece quando provém do Espírito Santo, ou se é isolada e excepcional. O

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primeiro modo de retificar o espírito humano consiste em renovar a intenção que visa a glória de Deus, ainda quando somos obrigados a abster-nos de proceder conforme desejaríamos; e o segundo modo consiste em lutar para substituir pouco a pouco, pela

graça, todo e qualquer princípio que nos mova. Mas trataremos disto no próximo capítulo.

Lembremo-nos de que estar em estado de graça, e obedecer a um princípio da graça, são duas coi-

sas diferentes. Obedecer a um princípio da graça é fazer do beneplácito de Deus o único movei das nossas ações, excluindo todo motivo meramente na-tural; e o meio de atingir tão belo fim é procurar conhecer a Deus cada vez mais. Em semelhante em-preendimento não pode haver nem pressa nem ve-emência; nada de repentino, de revolucionário. A graça deve substituir ao destruir, encher o vazio ao criá-lo. Os aborígenes devem desaparecer em presença do branco; mas será desaparecimento e não extermínio, porque então as feras invadiriam as povoações. Alguns abandonam essa lenta vida espiritual porque se cansaram do jugo contínuo, outros porque se convenceram de que tal vida é impossível ao homem. Os santos e os seus imitadores, no entanto, viveram dessa vida e acharam-na ampla e confortável. Por que não seguiremos nós o mesmo caminho? O estado de graça procura a Deus e todas as outras coisas nele; o princípio da graça procura a Deus e só a ele. O estado de graça contenta-se com a mera ausência do pecado; o princípio da graça tende sempre a elevar-se à união divina. O estado de graça tem alternativas de calma e de tempestade; o princípio da graça, ao oscilar, será como a bússola fiel ao eixo. Nos primeiros tempos surgirão dificuldades, mas serão suavizadas por múltiplas consolações. O seu progresso assemelha-se ao raiar do dia. O seu fim será a eterna aurora. Por que são tão poucos os que seguem tal vida? Por que poucos têm Fé. "As vossas verdades, Senhor, estão rareando entre os filhos dos homens".

CAPITULO XIII

O espírito humano vencido

Se nos deixarmos guiar pela autoridade de são Bernardo, de Ricardo de São Victor, do cardial Bona, de Scaramelli, devemos crer que não é o demônio responsável pela maioria dos pecados que as pessoas piedosas cometem, e que a mesma tentação não pertence de modo tão exclusivo ao seu domínio quanto queremos crer. Esta doutrina, no entanto deve ser aceita com certas restrições e não convém ultrapassar os limites, aliás bastante largos, em que escritores autorizados a confinam. Aceita, não obstante, com restrições, verificaremos — se até agora a pusemos de lado — que é uma doutrina que nos acarretará muitos resultados práticos na vida espiritual. Dá-nos uma idéa muito diversa do combate. Lança novas luzes sobre os escrúpulos, faz-nos adotar novas táticas a respeito das tentações, e, sobretudo, facilita a prática da humildade e da falta de confiança

em si. Quando atribuímos tudo ao demônio, quando ele nos ocupa os pensamentos, quando lhe temos sempre o nome nos lábios, podemos ter certeza de que, por enquanto, estamos apenas no limiar da vida espiritual, e não temos, nem dela, nem de nós mesmos, senão um conhecimento superficial. Poucos pontos na espiritualidade foram mais prejudicados pelo exagero habitual dos homens do que este, que se refere à parte que cabe ao demônio nas nossas quedas e tentações. Ele pode, é verdade, com a maio-ria dos homens, exigir a parte do leão, e o seu trabalho junto às pessoas piedosas é tão constante quanto árduo, e assim não deixará de conceder ao seu aliado, o espírito humano, as infelizes e independentes prerrogativas que lhe são próprias.

Mas resta ainda dizer algo sobre o espírito humano. Neste capítulo desejo falar de uma das suas manifestações mais comuns, e em seguida dos meios a empregar para subjugá-lo. A manifestação a que me refiro é a suscetibilidade acerca da nossa reputação; é um mal cujas consequências são funestas à vida espiritual, embora muitas pessoas devotas lhe estejam sujeitas em um grau estranho e inesperado. E' uma lagarta, que se agarra ao espírito interior, tornando-se uma das mais prolíferas causas da tibieza. Este mundo talvez seja lugar de tristeza, mas a maior parte de infelicidade não provém da pressão da Providência divina, nem tão pouco do rugir do demônio, a percorrer o mundo em busca de quem devorar. E' o espírito humano que atua nas disputas, na indiferença, na arrogância, na rivalidade, na inveja, na contenda, nos * ciúmes, na discórdia, e é ainda quem exagera os leves desprezos e os males insignificantes. Ora, tudo isso ocasiona agudo sofrimento que provém da suscetibilidade a respeito da nossa reputação. O cuidado excessivo da reputação torna-se pecado habitual numa época de publicidade, em que a conservação da pureza do nome é dever cristão.

Mas passemos a considerar as consequências desta suscetibilidade. E' evidentemente incompatível com a paz interior, alma da vida espiritual.. Pois como haverá paz, se nos queremos responsabilizar por aquilo que, longe de estar em nosso poder, se subtrai à nossa influência? Essa suscetibilidade tende ainda a exagerar a idéa que fazemos da nossa importância, destruindo a humildade. Suscita a desconfiança e mata a simplicidade. E' fonte constante de irritação, e arruina a caridade. E' fecunda em destruições, e afasta-nos a atenção de Deus e das coisas eternas. E como é absurda! Ao conseguirmos satisfazer o nosso desejo, que resultará, nove vezes em dez, senão granjearmos maior estima do que merecemos, e parecermos aos olhos dos homens diferentes do que somos aos de Deus? E, no entanto, somos apenas o que somos perante Deus. Nada mais. E' por isto que, de todas as falsas satisfações, a conservação momentânea da reputação é, ao mesmo tempo, a

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mais vã, a mais acerba, a mais precária. O único pretexto plausível a justificar semelhante zelo seria o receio de perdermos os meios de servir a Deus. Agir com o fim de agradar-lhe seria linha de conduta mais segura e mais fecunda em resultados, do que confiar a nossa reputação à língua humana. E' o motivo pelo qual os santos, surdos a todas as outras calúnias, rompiam o silêncio em se tratando de uma acusa-I ção de heresia.

Em geral, tudo quanto tende a corrigir o espírito humano é eficaz também contra a suscetibilidade a respeito da reputação. Sendo, porém, mal a parte, tem também remédios especiais. Um é a prece, e podemos dizer o mesmo do exame particular, que nos facilita verificar quantas vezes cai-mos. Mas o principal remédio é fitar os olhos incessantemente no belo e poderoso exemplo que nosso Senhor nos dá. Como mestre de doutrina foi tido em conta de louco (1), e as perguntas de Caifás exprimem a opinião pública a seu respeito. Na moral foi chamado sedicioso, bêbado e glutão (2), Na

verdade que pregava foi acusado de herético, de samaritano (3), e publicamente de feiticeiro (4). Ao ser condenado à morte, não se defendeu. Quando estudamos a fundo as humilhações excessivas de Jesus, no tocante à sua reputação, as vidas dos santos não nos parecem extraordinárias. Mesmo a quem está longe da perfeição, Deus às vezes faz provar a doçura da calúnia, submergin-do-a da vista dos homens nas profundidades divinas da Paixão terrível, embora preciosa, de nosso Salvador. Agora vejamos os diferentes modos de combater o espírito humano. Aqui é importante discernir claramente a posição que ocupamos na vida espiritual, tanto mais que o espírito humano, inimigo de toda criatura que vem ao mundo, é sobretudo o flagelo do homem espiritual. Quem somos, portanto, e para onde vamos?

Muitos cristãos não parecem passar.além do ódio ao pecado mortal. Penso que não somos desse número. Outros procuram concienciosamente evitar o pecado venial. Mas nem isso nos satisfaz. Atrai-nos o amor, isto é, queremos amar a Deus e a perfeição, e não ter reservas para com nosso Criador. Quanto a sermos, ou não, santos, não cogita disso o nosso espírito, afastando semelhante idéa como mísera tentação. O que percebemos claramente é o propósito de não termos reservas para com Deus e de abandonar-lhe tudo o mais. Esta atração vai crescendo até não haver dúvida de que vem de Deus. Tempo houve em que o temor sensível de Deus se nos apagou quasi ou completamente da alma, ante a força do nosso amor, mas agora está a voltar, sem no entanto acarretar

inquietações. Raras vezes pensávamos no inferno e ainda hoje este pensamento dificilmente nos comoveria. Surpreendía-mo-nos por vezes a fazer atos de amor, quando tencionávamos fazer atos de

contrição. Os sacramentos nos atraíam curiosamente, como se fossem imãs, e custava-nos muito abandonar a oração para cuidarmos dos deveres quotidianos. Na verdade só agora compreendemos que os deveres de estado são um oitavo sacramento. Começamos afinal a dar pouquíssima importância aos juizos alheios e verificamos quão prudente é obedecer realmente ao diretor.

Embora haja nisso muita coisa natural, há também muita sobrenatural. Essas disposições equivaliam a uma vocação, e essa vocação era um dom comparável à criação ou ao batismo, sem diminuir a estes. Corresponder a essa graça era, claramente, o nosso principal dever: estávamos, porém, convencidos de que havia de ser muito custoso. Mas como o paraíso não foi feito para cobardes, resolvemos começar.

E como foram os primeiros passos? Um ardor sensível abrasava-nos continuamente os corações. Desejávamos fazer coisas grandes, grandiosas, por Deus, tão grandiosas que pareciam quasi uma loucura. Julgávamos que nunca havíamos de cansar dos exercícios espirituais. Estávamos impacientes em tornar-nos santos, e não dávamos à graça da perseverança o seu justo valor. A beleza de Jesus enchia-nos continuamente de admiração, e quiséra-mos ficar imóveis a contemplá-la, ao passo que as orações ordinárias e os deveres de estado nos des-gostavam e fatigavam. Dias ditosos! dias de energia! dias que já passaram, mas que ao passar deixaram frutos!

Fomos por vezes tentados a não lhes dar o devido valor, mas verificámos logo quão insensato fora estimar superficialmente qualquer dom de Deus, embora estes fossem simples precursores de outros. Sabíamos que se esses primeiros fervores representavam a nossa infância espiritual, faziam parte, no entanto, de algum desígnio de Deus. Sen-tíamos que eles queimavam, cortavam e purificavam todo o mal passado, preparavam o presente e semeavam para o futuro. Prevíamos que esses fervores não mais voltariam, que os santos tinham passado por eles, e que ofereceram abrigo contra o mundo no momento em que o calor do sol nos murcharia as almas, tornando-as estéreis. Não éra-mos, no entanto, cegos aos seus perigos. Percebíamos que seria perigoso prender-nos demais à devoção sensível. Correríamos perigo de arvorar-nos em censores do próximo e descuidar-nos dos deveres de estado. Ou então poderíamos confiar demais em nós mesmos e não depender bastante da graça, até fazer, sob a influência desse fervor, votos irrefletidos, escolher um estado de vida, ou nela determinar alguma alteração radical. Sabíamos também que algum dia se daria a reação, mas ignorávamos a forma que revestiria. Procurámos, portanto, um pouco, mas não tanto quanto possível, mortificar o amor próprio, conservar o ânimo depois das quedas, temer-nos a nós mesmos, ser francos com o diretor, não ler livros elevados nem tentar métodos de oração fora do comum, evitar a singularidade, não discutir religião, nem discorrer sobre a espiritualidade, e ter uma devoção particular ao silêncio de Jesus.

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2) Jo 8.3) Lo 7.4) Mc 3.

1) Jo 10.

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DO ESPIRITO HUMANO

A exemplo das crianças que começam a andar, nós também, depois de termos cambaleado pelo chão, e batido, não poucas vezes, a cabeça contra móveis duros, pedimos por fim que não nos deixassem entregues a nós mesmos. O propósito de atingir à perfeição permaneceu firme, embora se tornassem mais visíveis as dificuldades inerentes. Começámos a distinguir entre coragem e presunção, e vimos que a coragem se faz sempre acompanhar de uma percepção clara e de um sentimento vivo do nosso nada. Alcançámos certa solidez na devoção, tratando durante um ano ou mais de adquirir uma única virtude, ou de extirpar um único defeito. Tornámo-nos mais recolhidos sem o saber e sem o parecer. Manifestámos modesto receio de adotar novas práticas piedosas, ou de sobrecarregar-nos com orações vocais, escapulários, confraternidades e coisas semelhantes. Verificámos a importância da doçura porque envolve a prática de tantas outras virtudes, porque ê a mais poderosa força motriz dos motivos interiores e porque nosso Senhor nos convida a praticá-la de modo particular. E, no entanto, ao praticá-la, mortificámos diligentemente a ternura natural, percebendo que havia de ofender a um Deus cioso e tornaria o coração efeminado e incapaz de receber novas graças. Dia houve, dia de revolução, em que acabámos com as resoluções gerais, para só tomar as particulares. Cultivámos o espírito de fé, porque descobrimos que era um dom apto a ser desenvolvido. Aprendemos a rezar, como crianças aprendem sua lição sem perturbar-se, alheios ao fato de que dava lugar a verdadeira fonte de novas imperfeições. Cuidámos de não ostentar a espiritualidade. A paixão dominante tornou-se para nós objeto de aversão, e instintivamente nos esforçámos por vencê-la sempre que a ocasião se apresentava. Tolerámos com paciência a lentidão do nosso progresso, e cuidámos da graça atual. A nossa devoção à santa Humani-Faber, O progresso — 14 dade de nosso Senhor cresceu dia a dia, e, enquanto nos tornávamos mais indiferentes às luzes, às flores, aos epítetos, sentíamos que a nossa confiança em nossa Senhora se tornara mais grave e mais diligente.

Enquanto durou essa fase, sentimos a devoção sensível' acompanhar-nos quasi de contínuo, não notámos grande progresso; fomos fortemente tenta-dos a confiar em nós mesmos, e éramos sujeitos periodicamente a pânicos espirituais. O que fora feito, no entanto, estava bem feito. Só faltava a prova do tempo. E esta é a questão capital em tudo quanto é espiritual. Durará? Ai de nós! O mundo e o claustro estão repletos de espiritualidades esgotadas!

Correu tudo suavemente? Nunca cometemos erros? Ao contrário, o caminho não foi suave e os erros foram numerosos! Quanta aflição, quantas dúvidas, quantos temores, quantos desgostos, quantos caprichos! Em primeiro lugar, embora resolvidos a entregar-nos a Deus sem reserva; não o fizemos. Conservámos certos afetos, não pecaminosos, coisas que, ao nosso ver, as circunstâncias permitiam. Pusemos na balança a prudência e os deveres, esquecidos de que a concessão e a dispensa pertencem à última fase da

vida espiritual e não à primeira. Adotámos novas práticas, impusemo-nos novas severidades, insinuadas pelo amor próprio, e não pela simples conformidade à vontade de Deus, sem nos lembrar de consultar e investigar a pureza de intenção, tanto ao adotar uma penitência como ao pedir uma dispensa. Permitimo-nos pequenas regalias em relação à vigilância dos sentidos, ao vestuário, às conversações, ao cansaço físico, à saúde, e coisas semelhantes. Desanimámos por causa das nossas culpas e de um maior conhecimento de nós mesmos; e também, por causa das múltiplas tentações que nos assaltavam, da nossa incapacidade em ser fiel às resoluções, da falta de devoção, e acabámos por perder o ânimo e a presença de espírito, caindo em toda espécie de escrúpulos, provenientes de não sabermos distinguir entre a ten-tação e o consentimento, e da tenacidade secreta das nossas opiniões, do temor excessivo da justiça de Deus e da falta de confiança na sua misericórdia, do desejo mórbido de evitar tudo que se assemelha ao pecado, da austeridade indiscreta, da solidão e do recreio sacrificado. Depois de desanimar e de perder o sangue frio, entregámo-nos a uma tristeza inexplicável, e grande foi a tentação de mudar de vida, de abandonar toda severidade, de falar das nossas aflições e de procurar consolação nas vaidades do mundo. Se tivéssemos cedido a qualquer uma dessas quatro coisas, talvez nos tivéssemos perdido. Ainda assim essa tristeza nos foi muito prejudicial e levou-nos à demasiada introspecção. Perdemos de vista os grandes objetos da fé e exagerámos os exames de conciência. E, depois, querendo desenredar-nos de tudo isso, fizemos numerosos planos, pusemos muito ferro no fogo e ficámos desapontadíssimos quando vieram a falhar as nossas boas obras. Faltou, tanto aos projetos exteriores como à conduta interior, o aban-dono infantil nas mãos da Providência. Tentámos converter o próximo, quando ainda não tínhamos o direito de esquecer-nos a nós mesmos. A perfeição no mundo, como a perfeição nos mosteiros, carece de um noviciado para educar-se. Resolvemos, no entanto, tudo corrigir, falando com desprezo de nós mesmos, e assim cometendo o peior dos erros e perdendo a pouca humildade que a custo conseguíramos. Percebemos finalmente que fora a vaidade que nos levara a falar mal de nós mesmos. Em resumo, ocupámo-nos demais com a metafísica e com as coisas exclusivamente interiores da vida espiritual, e afastamo-nos da atenção amorosa devida aos sacramentos, a Jesus e a Deus. Os erros, como tudo o mais, têm, porém, sua hora e agora podemos tirar proveito dos nossos, e ao mesmo tempo considerá-los como uma espécie de divertimento grave.Mas tudo não foi ainda dito. O peior está por confesar. Esses erros só se referem a nós, mas há outros que se referem ao próximo. Quanta des-edificação de lado a

lado! Quanto escândalo dado aos que aspiram à perfeição e quanto causado por eles e pelo mundo!

Quão desagradável aos olhos do próximo tornamos a obra de Deus! Falamos da religião e ilustramos por

palavras a incoerência da nossa prática. E, como sempre acontece aos principiantes, falamos mais do

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que o permite a nossa condição, e antes pelos livros, que pela experiência. Adotámos devoções desusadas,

tornadas ainda menos convidativas quando comparadas à nossa falta de humildade, conduta imortificada e pouca amabilidade. A contradição

gerava impaciência; a oração, cansaço; a penitência, irritação, como pessoas habituadas a interpretar a seu modo os livros espirituais preferidos. Invejámos o

progresso espiritual de outrem, recorremos obsti-nadamente a austeridades que transtornavam a or-

dem doméstica, provocavam sem necessidade a opo-sição da família e perturbavam o conforto alheio.

Preenchemos os deveres de estado com precipitação, negligência e pouca vontade. Estando descontentes

com os outros, não os louvámos com simplicidade nem nos lembrámos que os caminhos de Deus são

múltiplos, e que não é dado a todos amesma luz. As nossas palavras e maneiras manifes-tavam o azedume do nosso zelo, e muitas vezes vinha-nos a tentação de ameaçar os homens com os juizos de Deus. Éramos dados a criticar, a pregar sermões, a moralizar; ou, querendo evitar tal culpa, caímos na oposta, cedendo com demasiada facilidade aos desejos de outros que, buscando o próprio interesse, queriam ver afrouxada a nossa severidade.

Na verdade, se o mundo foi injusto para conosco, nós também não o fomos menos para com outras pessoas piedosas. Iludimo-nos a seu respeito, enquanto nos queixávamos de que elas se iludiam ao nosso. Esquecemo-nos de que, no seu caso, muitos erros podem coexistir com os princípios de sólida piedade. A própria experiência devia dizer-nos que, em toda probabilidade, lutavam com energia contra aqueles mesmos defeitos que nos ofendiam, ou que Deus não as auxiliava, naquela circunstância, afim de humilhá-las e prová-las. Mas, em vez de ter tudo isso presenfe ao espírito, descansámos, deixando que as pessoas do mundo, mal humoradas, exagerassem tais defeitos.

Quanto a nós, havia muita verdade nos juizos severos do mundo, que nos deveriam servir de lição de humildade. Havia, provavelmente, menos razão na injustiça feita ao próximo. Tais juizos deviam, todavia, ter servido de aviso quando insensivelmente caimos na tibieza, e melhor fora aceitá-los como castigo porque julgamos os outros. A lembrança de Jesus, pelo menos, devia tornar-nos pacientes. Em todo o caso, isso nos ensinou que existem dois espíritos a impedir efetivamente todo progresso na vida espiritual: o espírito que se escandaliza com facilidade e o desejo irrequieto de edificar. Ambos negam os cinco princí

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pios essenciais da vida espiritual: a lei da caridade, que crê em tudo, a atenção que nos devemos prestar a nós mesmos, o amor à obscuridade, a indiferença aos juizos humanos e a prática da presença de Deus. Destroem estes cinco princípios da vida interior, infundindo diariamente na alma um mixto nocivo de pusilanimidade e de orgulho.

E não naufragámos, apesar de tanta miséria, de tanto erro? Não! quem ama a Maria, dificilmente havia de naufragar. E, agora, tendo adquirido tamanha experiência e alcançado este ponto de progresso na santidade, encontramo-nos face a face com o nosso inimigo, o espírito humano, e procuramos em redor as armas com que o combater.A primeira é frequentemente chamada, pelos escritores ascéticos, o espírito de cativeiro. A graça é o oposto da

natureza; esta clama sempre pela liberdade e aquela pelo cativeiro; e sem decidida vontade de nos tornar

cativos, nunca havemos de vencer o espírito humano. O espírito de cativeiro, como disse um eminente escritor

ascético, consiste ora na submissão a determinada regra escrita que nos governe as ações diárias,

conforme o permitir o nosso estado de vida, ora na obediência ao diretor, mesmo quando vai de encontro à

nossa opinião, e sempre sem dissimulação ou astúcia. Ou está na conformidade com os decretos da Providên-cia, sobretudo quando nos contrariam ou mortificam a

vivacidade natural ou as inclinações, ou ainda, por vezes, na docilidade à atração do Espírito Santo, que

para muitos é como que uma revelação especial. E' também um cativeiro recorrer com frequência, embora

não diária ou obrigatoriamente, a certas práticas de

devoção. Há ainda o cativeiro do recolhimento interior, com todas as dificuldades, provações e pressões que

exerce na atividade natural. Finalmente, toda mortificação é, em si, uma forma de cativeiro.

O espírito genuino de cativeiro se dá a conhecer pelos seguintes característicos: é universal, estendendo sua jurisdição mesmo onde não é questão de pecado. Deve incluir, ciosamente, tanto as coisas pequenas, como as grandes. E' perseverante; não é irregular, nem veemente, nem intermitente. Opera ainda quando a devoção sensível não o sustenta. A natureza muitas vezes há de irritar-se, de encolerizar-se, mas isso não é ofensa real da natureza superior contra o espírito de cativeiro, cuja principal fonte deve ser o amor de Deus, ainda que não seja sempre sensível.

O espírito de cativeiro é muito necessário e opera ditosas devastações no espírito humano. Não deixa, no entanto, de oferecer perigos, e, se os não tivesse, seria inútil. Devemos, pois, refletir antes de impor-nos obrigações que resultariam em escrúpulos, e, sobretudo, não devemos aceitar como inspiração divina cada sugestão solícita e engenhosa que o espírito humano nos insinua com o fim de estar sempre a aumentar as mortificações. O cativeiro não significa fazer sempre aquilo que não nos agrada. Isto, em geral, é perfeição jansenista, a perfeição da Theologia Sanctorum (5), perfeição condenada pelo Índice, como já tive ocasião de dizer. Afim de evitar excessos, deixemos o nosso diretor ditar-nos leis a respeito. Se nos permitir praticar diariamente numerosas, mas pequenas mortificações, deve fixar o número e mandar que interpretemos as dúvidas em nosso favor. Quando esse

5) Este famoso livro, em 3 volumes in folio, escrito por Henrique de sto. Inácio, carmelita, foi publicado em Liège em 1709 e condenado em Roma em 1714.

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cativeiro nos desanimar, ou se tornar em fonte de distração na oração, é melhor abandoná-lo de todo' durante algum tempo, sobretudo nos pontos em que mais nos molesta. Veremos que em breve uma espécie de hábito de discernimento se formará em nós a respeito. Rezemos para obter, entre os dons do Espírito Santo, o que santa Teresa preferia — a fortaleza. A liberdade de espírito consiste na isenção de cuidados, de remorsos e de afetos; e o cativeiro é o único caminho para essa liberdade régia.

A segunda arma contra o espírito humano é o repouso da alma na graça do momento, no seu estado presente. Não consiste em aquiescer às enfermidades ainda não vencidas, mas em considerar as inevitáveis circunstâncias que nos cercam, como permitidas e dispensadas por Deus, junto à espécie e ao quinhão da graça que então nos concede. E* a vontade de Deus, exata e infalível a nosso respeito. E' a graça do momento, Deus dá tanto e não dará mais; conduz-nos a tal ponto e não além; entende isto e não aquilo.

Ora, repousar na graça do momento é olhar para ela, pensar nela e medir-se nela. E' estranho ver como os homens pensam pouco no presente, em comparação ao passado e ao futuro. Aí está o talento do espírito humano, que assim favorece os seus interesses. O repouso e a aquiescência ao presente são-lhe fatais, pois deixa logo de existir quando não lhe é permitido pensar no dia seguinte. E' sobretudo nas coisas espirituais que o espírito' humano odeia essa morte mística. A vida de Deus é uma inalterável complacência no presente, e a alma deve imitar, ainda que de longe, essa adorável existência. Acresce que repousar no presente é tomá-lo a nossa ocupação, apesar das tentações que nos atacam quais lobos vorazes, das aflições interiores que nos torturam, ou da tormenta de perseguições exteriores em que gememos. Essa aparente tranquilidade envolve toda espécie de progresso, pois nutre o espírito de fé, forma e fortifica os hábitos de paciência quer com Deus, quer conosco, imprime às nossas ações ordinárias maior perfeição, faz-nos praticar admiravelmente a humil-dade heróica e multiplica em nossas almas, silenciosa e incessantemente, os germes da graça santificante.

Se examinarmos com atenção as nossas aflições espirituais, verificaremos que quasi todas provêm da falta de aquiescência à graça do momento. Não cogitar do dia seguinte é uma máxima celestial que tanto se aplica à nossa conduta interior como à exterior. Adquire-se assim a tranquilidade do coração, pois é o melhor remédio para tudo que perturba a paz interior. Modera a precipitação, acalma a agitação, e frequentemente evita ou atenua as calamidades exteriores.

O procedimento contrário é a obra por excelência do espírito humano. Envolve o hábito da oposição à vontade divina. Destrói a paz interior. Causa descontentamento em relação a Deus, ao próximo, aos nossos diretores e até a nós. E' fonte copiosa da inveja espiritual que temos dos outros. Sob tal influência,

nada é bem feito, porque tudo é feito ávida, agitada ou apressadamente, como se o fim de todas as coisas fosse passar o mais depressa possível à coisa imediata. Inutiliza-nos a vida inteira e envolve-nos numa atmosfera de languidez e de tristeza que nos tira o vigor das mortificações. O seu derradeiro golpe é inspirar, gradualmente, náusea pelos sacramentos. A aquiescência à graça do momento parece-me ter sido o dom grandioso do ilustre e sereno são Felipe Neri, e, comparados à solidez desse tesouro celestial, que foram as visões, os êxtases e os colóquios noturnos que teve com a sua doce Madonna?

E' quasi pueril dizer que o ódio a si é o remédio indicado para o amor próprio, a base do espírito humano. Por isso empregarei outra forma. Como já disse, temos sempre pressa de deixar a via da purificação espiritual para penetrar no caminho iluminativo, quais noviços que desejam sair do noviciado e suspiram pelas responsabilidades da profissão, devido à maior liberdade que lhes oferece. Queremos sobretudo abandonar os temas humilhantes da meditação, que pertencem àquele estado, e de modo especial as meditações sobre os novíssimos do homem. Ora, a perseverança durante muito tempo nessas mesmas meditações, ou pelo menos o retorno frequente a elas, é meio eficaz de combater o espírito humano. São Francisco Bórgia costumava meditar até duas horas por dia no seu próprio nada. E assim sua virtude característica era a humildade. A luz sobrenatural devia refrescá-lo e permitir-lhe empregar com proveito tão longo tempo numa mesma matéria. Era com certeza antes contemplação que meditação. Em todo o caso, serve-nos de exemplo. Uma inteligência bem exercitada na consideração do seu próprio nada está à prova de muita flecha atirada pelo espírito humano. Não é fácil ao homem odiar-se a si mesmo; mas enquanto não o conseguir sinceramente, nunca consentirá em mortificar-se, e, por conseguinte, nunca será capaz de união com Deus. Este ódio é, pela graça de Deus, o resultado inevitável da profunda reflexão sobre o nosso nada.

Agora, alguns pensamentos que nos devem ser familiares. Que somos na ordem da natureza? Simpies criaturas tiradas do nada e sem outros direi-tos senão os que Deus nos concedeu gratuitamen-te. A esse estado de degradação da natureza acres-centamos o crime da revolta. Somos inferiores aosanjos e vizinhos dos animais; inconstantes e quasisem domínio sobre nós mesmos; sujeitos a sofrimen-tos e afrontas, incapazes de qualquer coisa na in-fância, e sem dignidade na velhice; o corpo ca-minhando para a corrução e a alma gravitando lenta-mente para o pecado. E que somos nós na ordemda graça? Sem ela, somos desterrados e exilados.A graça santificante é-nos completamente estranha.Vem de Deus. Não nos basta a graça habitual, ca-recemos ainda da atual, e mesmo assim a nossavontade pode destruir-lhe a eficácia. Até nas pro-ximidades da perfeição o amor próprio mistura-seàs mais santas ações e corrompe-as. Temos senti-

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O ESPIRITO HUMANO VENCIDO

dos e cansa-nos muito vigiá-los; são fontes detentação e de pecado, que oprimem tiránicamentea alma. O entendimento é cego, incapaz, impruden-te, caprichoso e depende em grande parte da saúdefísica. Os afetos são insubordinados e violentos, eos seus gostos ignóbeis agarram-se a coisas bai-xas. Se pudéssemos julgar-nos pela mesma medidacom que julgamos o próximo, como havíamos denos detestar! Que seria de nós se pedíssemos eexigíssemos rigorosamente da nossa pessoa o que

exigimos dos outros? A mesma dedicação noite edia, a mesma generosidade espontânea, os mes-mos princípios elevados, a mesma pureza de inten-ção? Ai de nós! se pudéssemos ver-nos por olhosalheios e ao mesmo tempo possuir o conhecimen-to interior que temos de nós, dentro em breve se-ríamos santos. >

Se nos compararmos ao animal, veremos que este não é uma mancha na criação de Deus. E' mais pa-

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ciente que nós e parece ter na dor mais domínio sobre si. Corresponde melhor que nós ao fim para o qual foi criado. Ponhamo-nos agora ao lado do anjo decaído. Este caiu uma vez, e não lhe foi dada ocasião de arrepender-se. Muitos pecados, como a gula e a bebedeira, lhe são desconhecidos devido à espiritualidade de sua natureza. Ele ânsia por Deus, mesmo enquanto se insurge. Não tem esperança, e, por conseguinte, é mais compreensível que seja mau. Deus não o ama, e a desgraçada criatura sabe que nunca o amará. Mas Deus, pela sua graça, preservou-nos de maldade maior e estas comparações não nos movem. Ponhamo-nos .agora ao lado dos santos, meçamo-nos pela sua inocência, sua penitência heróica, seu zelo generoso, seu labor árduo por Deus e pelas almas, sua abnegação e sua perseverança. Ou então vejamos os anjos e pensemos na sua força, na sua beleza,, na sua inteligência, no seu poder, na pureza da sua admirável natureza espiritual e nos seus dons. Lancemos um olhar em nossa Senhora, simples criatura, e contemplemos-lhe a dignidade, a santidade, as prerrogativas, a pureza, o poder atual. Prosterne-mo-nos perante a sagrada Humanidade de Jesus, e escrutemos-lhe a graça, os méritos, a beleza, a ele-vação; vejamos o seu Corpo, a sua Alma, a sua união com o Verbo. Ele é a obra prima do universo, o ponto culminante de toda a criação. Ou meditemos ao lado daquele mar silencioso, o Deus imenso e incompreensível; lancemos um olhar espantado sobre o abismo terrível de suas infinitas perfeições, conhecidas e com nome, ou desconhecidas e sem nome. E, então, pobre criatura! pensa no que foste, desde a mocidade, nos teus pensamentos, sentimentos e atos, pensa no que és neste momento aos olhos de Deus1 tal qual te conheces

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a ti mesma (e quão pouco te conheces!) e pensa no que provavelmente hás de ser, por melhor que sejas!

Lutaríamos com mais êxito contra o espírito humano se nos humilhássemos mais. Ao contrário, aquecemo-nos ao calor das coisas elevadas e isto nos prejudica, como o clima enervante das latitudes do sul prejudica os filhos do norte.

CAPITULO XIV

Da indolência espiritual

Se a perseverança é a mais preciosa das graças, por dar valor duradouro a todas as outras, a preguiça espiritual, por ser o oposto da perseverança, é o peior dos vícios que cercam a vida devota. Duvido, porém, que nos inspire, na prática, o temor que nos devia inspirar. Assola as tres fases do estado normal, e, de modo particular, a fadiga. A luta está sujeita à tentação da preguiça e procura recreio fora de Cristo. A fadiga, no seu abatimento, tende a abandonar a árida fé interior e busca consolação nas criaturas, passo quasi tão fatal quanto o adormecer na neve. O repouso murmura quando toca o rebate para a luta, e quisera prolongar a existência por meios naturais logo que cessam os sobrenaturais.

Pode-se dizer que todo homem é mais ou menos preguiçoso. Não gravitam todos em torno da preguiça? E' tão natural que os preguiçosos, para se justificarem, aleguem que não podem resistir à natureza. Ninguém se entregou espontaneamente ao trabalho árduo. Precisa ser impelido, quer pelo amor ao dinheiro, quer pelo receio do inferno. A preguiça, em si, é suave, mais suave que os dons brilhantes que as vaidades do mundo podem oferecer. As pessoas espirituais, no entanto, não desconfiam sequer da tendência que têm para a preguiça.Nada é mais raro na Igreja que a verdadeira vocação contemplativa. E', por conseguinte, quasi impossível à maioria da gente piedosa empregar todo o tempo em atos diretos da virtude de religião, e cultivar motivos e disposições interiores. E, por outro lado, pessoas devotas concluem, nem sempre prudentemente, que devem renunciar aos hábitos de recreio e aos divertimentos de outrora. E assim a piedade cria-lhe no espírito uma espécie de vazio, sem nada lhe fornecer com que o encher. Esta razão poderosa deve impelir os que não têm profissão regular, ou ocupação doméstica adequada, a se incumbirem de alguma obra exterior de zelo ou de caridade. Se, todavia, não acertei na explicação deste fenômeno, resta o testemunho incontestável de que, há muito tempo, o mundo proclama, com má vontade, que a classe da gente religiosa é uma classe ociosa.

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O ESPIRITO HUMANO VENCIDO

Sendo a indolência um obstáculo declarado ao progresso, importa examinarmos de perto esta ques-tão. Ao fazê-lo, verificaremos que essa preguiça espiritual tem sete manifestações e trataremos de cada uma em particular.

A primeira manifestação é o que se costuma chamar dissipação. E' mais fácil descrevê-la que a definir. E' pecado sem corpo, mas que pode, de qualquer coisa, tomar corpo e animá-lo. Opera silenciosamente e mal se faz sentir; de fato, um dos seus perigosos característicos é que, em geral, não nos deixa perceber, no momento, que estamos dissipados. Os efeitos que produz na devoção não são, de todo, proporcionados à insignificância que reveste. Destrói em poucas horas a graça adquirida com meses de esforço, ou o fruto de todo um retiro, e escolhe de preferência o tempo que se segue a este. Vejamos agora em que consiste. Depois da queda todos sabem que se dissiparam; mas nem sempre vêem em que consistiu essa dissipação. A tristeza da alma prova-lhes que houve algo de mau; não sabem, porém, dar-lhe o nome que convém.A dissipação consiste, primeiro, em adiar para tempo

oportuno o que devia ser feito naquele momento. Assim, quando chega a hora de cumprir com os deveres que se acumularam, estes parecem-nos obrigações fastidiosas, ou um jugo, sob o qual nos agitamos, perdendo a paz do espírito. E o resultado, as mais das vezes, é não nos restar tempo para fazer o trabalho conforme deveria ser feito. Executado com precipitação, sob o esforço da energia natural, e portanto visando antes fazê-lo depressa do que fazê-lo bem, prejudica-nos, distrain-do-nos, enquanto dura, do pensamento de Deus. A máxima do estadista francês: "Não façamos hoje o que podemos fazer amanhã", que se aplica admiravelmente à execução prudente dos deveres mundanos, raras vezes será praticada sem perigo na vida espiritual. Também só resulta confusão da regra oposta, sustentada por Lord Nelson, de que nos devemos sempre adiantar quinze minutos sobre a hora marcada. O importante é cumprirmos cada dever a seu tempo, com tranquilidade è perseverança, o olhar fito em Deus. Embora não se observe uma regra invariável, a vida diária tende a seguir um mesmo rumo, e assim cada dever tem a sua hora. A observância desta regra evitaria, por um lado, a acumulação dos deveres atrasados e, por outro, a dissipação que resulta dos intervalos livres não preenchidos. Quem é ocioso jamais será feliz nem espiritual.

Outro sintoma da dissipação consiste em falar demais e prolongar imoderadamente as visitas de simples cortesia. Não digo que sc#a preciso parar em determinado ponto sob pena de pecado; existe, porém, a moderação, que nesta matéria deve ser resolvida conforme o caso. A postura preguiçosa e indolente, quando estamos sós, tende igualmente a dissipar o espírito e enfraquecer a influência que a presença de Deus deve exercer sobre nós. Guardemo-nos também do hábito, muito comum, de estar sempre prestes a

começar alguma coisa, sem nunca a começar. Consome e inutiliza-nos a força moral e faz-nos desperdiçar a vida, ficando ociosos hoje porque temos algo em vista para amanhã, e que só depois de amanhã pode ser feito. Sobrecarregarmo-nos com orações vocais e práticas exteriores de devoção, dá também lugar à dissipação. Estamos sempre com pressa e essa opressão contínua produzirá em breve tédio e desânimo.

A falta de vigilância sobre nós mesmos, durante o recreio, é outra fonte de dissipação. O recreio, em si, é perigoso. Com efeito, para fazer-nos algum bem, deve, até certo ponto, distrair e dissipar-nos e tal é a importância dessa distração que o recreio bem organizado é um dos maiores auxílios da vida espiritual, é ótima fonte de alegria e inimigo poderoso dos pecados de pensamento. Mais tarde tratarei deste assunto. Agora direi somente que a falta de vigilância sobre si, nos recreios, é uma causa de dissipação. O mesmo direi dos castelos no ar e do espírito de relaxamento que nos leva a pedir dispensa das pequenas obrigações e das regras que nos impusemos a nós mesmos. Por que no-las impor, se não as observamos? E como as observar, se não empregarmos ainda maior cuidado em evitar tais dispensas quando dependem de nós mesmos, do que quando devemos solicitá-las de outrem ?Fáber, O progresso — 15

As consequências de tal dissipação são infelizmente por demais conhecidas para que se torne necessário

descrevê-las longamente. Resulta, primeiro, o descontentamento próprio, a lagarta destruidora de

toda devoção. Aparece, em seguida, o espírito de artifício e o desejo de justificar-nos, para logo

sentirmos que a faculdade de orar se dissipou, quais forças que nos abandonam durante a moléstia. Essas

disposições são acompanhadas de verdadeiro mau humor, que nos faz perder numa hora o que

adquirimos em semanas de luta e de progresso. A isto alia-se uma tendência mórbida para julgar e

criticar o próximo, ou, se a graça nos preservar desses males mais graves, a dissipação patenteia sua

influência, multiplicando as distrações durante a oração, tornando-nos impertinentes depois da

comunhão e reservados com o diretor, fazendo-nos cumprir com languidez as nossas obrigações, ou inspirando-nos grande aversão pela penitência.

A segunda manifestação da indolência espiritual é a tristeza e o desânimo. Não raras vezes pessoas espirituais falam da tristeza como se fosse uma provação interior de valor, ou devesse inspirar simpatia, benevolência e compaixão. Ao contrário, pode-se dizer de modo geral, e sem faltar à verdade, que nenhum estado da vida espiritual apresenta tantos pecados veniais e tantas míseras imperfeições como semelhante tristeza. Não é humildade, pois torna-nos antes queixosos que pacientes. Não é arrependimento, pois é mais um vexame próprio que uma dor pela ofensa feita a Deus. A alma da tristeza é o amor

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O ESPIRITO HUMANO VENCIDO

próprio. En-tristecemo-nos porque estamos cansados de fazer o bem e viver sob uma regra severa. O grande segredo da nossa alegria foi a sáfacitude e a diligência que empregámos para evitar os pecados veniais e a habilidade que desenvolvemos para desarraigá-los da alma. E, justamente porque nos descuidamos deste ponto, ficamos tristes. Ainda que nos esforcemos, como outrora, por evitar o pecado venial atual, falta-nos no entanto a necessária coragem para afastar-nos de determinados lugares e circunstâncias que nos são agradáveis, sabendo perfeitamente que serão para nós ocasiões de pecados veniais. Certa segurança, interior e vaga, de que não cairemos, satisfaz-nos; e logo a luz da face de Deus torna-se também vaga, e seca a fonte de alegria interior. Procuramos o louvor e entristecemo-nos se passamos desper-cebidos. Buscamos na publicidade consolo, repouso e satis-fação. Queremos que os entes que nos são caros saibam tudo quanto sentimos e sofremos, tudo quanto fazemos e projetamos. O mundo torna-senos um raio de sol, e vamos aquecer-nos ao seu calor. Nada há, pois, que estranhar se a tristeza nos envolver.

Quantas pessoas há, cujo verdadeiro fim na vida espiritual consiste em procurar o próprio progresso, de preferência a Deus! E nem têm conciencia disto! Ora, podemos talvez dizer, sem faltar à verdade, que nunca nos será dado atingir, no caminho do progresso, o alvo que nos parecia de tão fácil alcance. Estamos sempre aquém do ponto visado, e aí temos outra fonte de tristeza. Seja qual for o aspecto sob o qual consideramos essa lastimável disposição, verificaremos que a causa secreta das suas diversas fases é a falta de mortificação exterior. Numa palavra, quem jamais descobriu, naqueles que aspiram à perfeição, uma tristeza espiritual que não proviesse quer da falta de humil-15*dade, quer do hábito de proceder sem referir tudo a Deus?

Terríveis são as consequências da tristeza, e nada confere ao demônio tamanho poder sobre as nossas almas. A tristeza diminue os efeitos dos sacramentos e destrói a influência que poderiam exercer sobre nós. Faz amargo o que é doce, e envenena os próprios remédios da vida espiritual. Essa ação mórbida torna-nos tão sensíveis que somos incapazes de sofrer, e trememos perante a simples idéa da mortificação corporal. A coragem, tão necessária para crescer em santidade, vai-se qual água que corre suavemente, e, por conseguinte, somos tímidos e passivos, quando deveríamos ser intrépidos e arrojados. A visão de Deus obscurece-se na alma e, enquanto durar a tristeza, baixamos dia a dia no abismo, onde nenhuma consolação racional nos atingirá. Não há exagero algum em afirmar que a tristeza espiritual tende ao estado de Caim e de Judas. A impenitência de ambos resultou da tristeza, proveniente da falta de

humildade, que, por sua vez, foi devida a eles se procurarem a si em vez de procurarem a Deus.

Não deixemos, sobretudo, que a tristeza nos afaste das comunhões regulares e das mortifica-çes que costumamos praticar. Porque estamos tristes, devemos ser-lhes mais fiéis, e não adotar nenhuma norma nova enquanto a nuvem nos escurecer o olhar. A exatidão no cumprimento dos pequenos deveres é uma maravilhosa fonte de alegria, e certas mortificações pouco numerosas e pouco severas, mas praticadas com perseverança e tranquilidade, afastarão o espírito maligno. Procuremos ocasião de ceder aos outros, pois acarreta a doçura de coração e o espírito de oração. Tomemos o emprego do tempo como objeto^Tde exame particular, e tenhamos sempre à mão algum livro ou trabalho para preencher os momentos livres. Não faltemos nunca à devoção a nossa Senhora, que a Igreja chama com tanta doçura "a causa da nossa alegria", e consideremos perdido o dia em que não lhe prestamos a nossa homenagem. Por fim, tenhamos em vista não somente o ato que fazemos, mas a hora que a obediência lhe assinou, quer obedeçamos a nós mesmos, às nossas regras, à família, ou ao diretor, pois a admirável virtude da obediência está muitas vezes mais na hora em que um ato se faz, e no modo de fazê-lo, do que no ato em si, assim como a vida espiritual não consiste tanto num conjunto de certas ações como no modo de fazer todas as ações.

A estas duas espécies de indolência: a dissipação e a tristeza, acrescentaremos uma terceira: uma apatia, uma languidez geral, difícil de descrever, mas cujos principais característicos facilmente se dão a conhecer. Ei-los: há algum tempo que não fazemos mais uma idéa exata de nós mesmos. Per-demo-nos de vista e caminhamos nas trevas. De repente surge qualquer coisa que nos desperta, re-velando-nos claramente a nossa situação. Verificamos então que estamos sempre a tomar novas resoluções, para rompê-las com igual facilidade. Essas resoluções fazem parte, como de costume, da oração da manhã, mas, passadas uma ou duas horas, já as esquecemos como se nunca as tivéssemos tomado. Mesmo se refletirmos nelas e fizermos certo esforço para cumpri-las, verificamos que não têm vigor e que estão destituídas de força e de animação. Não nos tornamos inteiramente surdos às inspirações que recebemos a todo momento, mas custa-nos executá-las, e assim passa a hora. outro dever nos chama, não resta mais tempo para tornar ao primeiro. De modo que, em geral, quasi não correspondemos às inspirações.

Isto já nos é prejudicial. Mas é mister acrescentar ainda um sentimento físico de incapacidade para

qualquer esforço. Parece-nos até impossível cogitar em semelhante coisa, o que na verdade não passa de uma moléstia moral, revestindo todas as aparências e sensações de uma indisposição física, que não tarda,

de fato, a provocar dentro em breve. Começamos então a tratar de leve as advertências sérias da

conciência, e recebemos com mau humor e

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O ESPIRITO HUMANO VENCIDO

impaciência qualquer admoestação, ou aviso, ou ainda qualquer tentativa que for feita para chamar-nos de novo à vida espiritual. Tudo quanto os outros fazem,

parece inoportuno e pouco delicado. Sem causa, sem razão, sentimos uma antipatia quasi universal pelos

homens e pelas coisas. Cedemos a uma irritação caprichosa, mal que carate-riza o paralítico. Parece-nos

que a vida se gastou, que chegámos ao fim de tudo e atravessámos com dificuldade as camadas superiores

da existência, até chegarmos ao que Bossuet chama "o inexorável tédio que forma a base da vida humana". Nesse estado tornamo-nos não somente distraídos, mas até negligentes na oração, e frequentamos os sacramentos com tal irreverência, indiferença e fa-

miliaridade, que só a idéa nos devia atemorizar. Reduzidos a semelhante estado, parecemos possuídos

do espírito de repugnância e de indolência, tal como se tivéssemos perdido a faculdade de ser sérios, ou estivéssemos entorpecidos, ou passando por um

período de transição, pelo menos em relação à vida espiritual. A dissipação tende sempre a esse estado, e

se, por infelici^de, não resistimos de início, se já nos domina, urge despertarmos e

procedermos com o mesmo vigor que se tivéssemos caido no pecado mortal.

Uma quarta espécie de indolência espiritual pode ser denominada energia inútil. E' forte tentação para as pessoas de índole ativa, pois, como já tive ocasião de dizer, se a preguiça é naturalmente agradável a todos os temperamentos, reveste formas diversas, segundo os gênios. Nada há no recreio que impeça a união com Deus, mas há uma variedade de ocupações sem valor que nos fazem perder tempo e nas quais é quasi impossível haver intenção decidida ou clara de glorificar a Deus. Todos sabem que há grande diferença, difícil de especificar, entre o recreio e a ociosidade, sendo que esta última consiste antes em fazer coisas inúteis ou, pueris, do que em não fazer nada. Há certas leituras que, embora não sejam más em si, por diversos motivos, são causa de dissipação, e preparam-nos distrações para a meditação, ou alimento para tentações futuras, pelas imagens que suscitam, ou então constituem perigo, absorvendo-nos demasiadamente. Apesar de estarmos convictos de que tais leituras não são más, sentimos certa exprobração interior que, se estivéssemos na disposição de espírito em que deveríamos entrar, bastaria para afastar-nos delas. Assim também hoje em dia, quando o correio circula tão rápido e -custa tão pouco, devemos ser ciosos da nossa correspondência. Seria exagero dizer que cada carta que escrevemos es-gota-nos um tanto a espiritualidade? E, assim sendo, não deveríamos impor-nos como regra não escrever cartas desnecessárias, mas somente aquelas •que os negócios, o dever social, ou o afeto tornam quasi inevitáveis? O tempo é precioso e pouco nos é dado, e no entanto quantas horas são empregadas em escrever cartas e quantas pessoas alegam, para se defender, que não podem ser censuradas neste ponto, porque isto lhes constitue verdadeira mortificação! A

correspondência multiplica e fortalece as amizades, aumentando, pois, a nossa solicitude, enquanto favorece a impaciência e a agitação, e aperta os laços de família, cuja idolatria sustenta em nossos dias luta vigorosa contra os brios da santidade cristã.

A correspondência tende também a aumentar o exagero natural do caráter. Exprimimo-nos com exageração e esta passa do estilo aos sentimentos. Formamos assim falso juizo das coisas; os pequenos acontecimentos inquietam-nos em demasia e as leves esperanças entusiasmam-nos em excesso. E, em geral, que é o círculo de família senão um conjunto de insignificâncias vistas através de um vidro de aumento?

A falta de veracidade é outra consequência óbvia da correspondência excessiva, pois dar tanta importância a coisas triviais é faltar à verdade. Os sacramentos e as orações perdem suas legítimas e naturais proporções, quando nos mostramos tão animados, decididos e comunicativos a respeito de filhos, casa, visitas, planos para o verão e projetos para o inverno. Romanceamos a vida nas cartas, pintamo-la com carmim, porque seiT* aspecto natural é quasi sempre doentio e melancólico. E se as cartas tratarem de assunto religioso, tanto peior, porque vão cheias de distrações, de futilidades e de tagarelices espirituais.

Construir castelos no ar é outro ramo dessa energia inútil e não dos menos inocentes. Quem jamais se surpreendeu a construir tais castelos sem que revertessem em sua própria honra e glória? Pode, quem é religioso, passar uma hora a dar mentalmente magníficas esmolas, a suportar cruzes heróicas, a sofrer o martírio, a fundar hospitais, a entrar para ordens austeras, a preparar-se para uma boa morte, a operar milagres no próprio túmulo, sem se tornar necessariamente mais mesquinho, mais grosseiro, mais vaidoso e mais tolo do que era até então? Adquirimos assim o hábito de admirar o que é belo, não o de pô-lo em prática. E' peior que a leitura de romances, porque escrevemos enquanto lemos, inebriando a mente com orgulho e sentimentalismo. Esse passatempo dá uma tintura de puerilidade a tudo aquilo que fazemos, e avilta-nos os pensamentos, sentimentos e propósitos. Não vos surpreenda a energia de minhas palavras, quando vos disser que este hábito de construir castelos desola e corrompe por completo a alma. E' como se uma errupção funesta a tivesse assolado, destruindo toda frescura, verdura e frutos, deixando após si a languidez geral, o mau humor e a aversão para com tudo que é de Deus.

Não há dúvida que a vida é cheia de tédio, mas é de admirar a rapidez com que a mocidade o descobre. A pressão deste sentimento parece até mais sensível na adolescência que nos primeiros anos da idade madura. E' uma das razões que explicam a tendência da juventude para construir castelos no ar. Dá-se isto sobretudo com os filhos únicos, com as crianças educadas em casa, ou em cujos lares falta certa dose de animação, elemento essencial da educação prudente; com os órfãos que vivem com parentes, com

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O ESPIRITO HUMANO VENCIDO

os filhos das viuvas, que crescem numa atmosfera de triste silêncio e de doce melancolia. Em tais circunstâncias, as crianças adquirem com rara facilidade o hábito de idear romances, criando-os na mente para se recrearem, romances em que o centro dos acontecimentos interessantes é sempre o seu próprio eu. Em geral os pais ou superiores nem sequer desconfiam de tal hábito, que lhes deveria inspirar o maior horror, empregando, para combatê-lo, meios diligentes e até severos, meios que frequentemente, consistem numa separação temporária. Este gênero de distrações arruina o futuro das crianças e causa muita infelicidade no casamento. Dificilmente imagino nos jovens qualquer hábito de pecado mais temivel que esta forma particular de construir castelos. Seu veneno é subtil, vigoroso e persistente. A alma que foi corrompida por semelhante hábito torna-se uma estufa de vícios. O pecado desenvolve-se nela com rapidez quasi visível, e cresce qual planta tropical, produzindo frutos com exuberância. Quanto às circunstancias futuras, não há diferença entre as crianças passarem o dia todo a ler os peiores romances ou adquirirem o hábito de imaginá-los. Seria necessário um tratado especial para delinear, com todos os rodeios secretos, as deploráveis contaminações que resultam de tal costume. Devemos esforçar-nos por crer que nenhum mau hábito seja incurável, mas qual de nós jamais teve o consolo de conhecer um caso destes de cura radical?

A má disposição das recreações basta, em si, para formar uma quinta espécie de indolência espiritual. Já disse que o recreio é de importância na vida espiritual. A tradição da Igreja favorece esta doutrina, e duvido que jamais houvesse casa religiosa que perseverasse na estreita observância, por pouco tempo que fosse, sem os recreios tradicionais da Ordem. Pois a Ordem sem tradições não tem vida, ou pelo menos não tem a plenitude de vida da idade madura. Está morta ou

ainda na infância. Parece estranho aos leigos que o recreio seja obrigatório nas casas religiosas; e, no entanto, se assim acontece, é devido à sabedoria celestial, comum a todos os legisladores monásticos. No mundo, contudo, o recreio oferece dificuldade muito maior, porque poucas regras podem ser ditadas a respeito. Só podemos dizer que nos cabe dar conta do gênero de recreio a que nos entregamos. Deve ser de acordo com a condição e também com o grau particular de progresso que alcançámos na vida espiritual. Deve ser conforme à nossa índole natural e nunca nos aproximar de companhias prejudiciais à alma. A quantidade necessária de distração é outro problema. Evitemos perder de vista a glória de Deus, e tenhamos certo e razoável receio de dissipação. O recreio deve ser oportuno, senão acarretará perda de graça.

E' difícil exagerar os frutos dos recreios bem di-rigidos. O espírito não pode estar sempre atento. E' preciso às vezes afrouxar a corda do arco, ou esta se romperá. Ora, o recreio bem organizado preenche tres fins: em primeiro lugar, conserva-nos todas as graças já adquiridas, sem permitir que uma única se perca, ou um mínimo grau de fervor se evapore. O amor de Deus passa, do trabalho ao recreio, e assim continua inalterado o hábito do recolhimento e permanecemos perto do nosso Pai celestial tanto nos divertimentos como nos trabalhos e provações. Em segundo lugar, o recreio não somente mantém o passado unido ao presente, conservando-lhe o espírito, mas fornece toda a força e frescura, coragem e prontidão necessárias para o futuro. Fortifica a graça antiga e aviva o desejo das novas. As crianças, é voz comum, crescem mais quando dormem do que quando estão acordadas. Dá-se o mesmo conosco no recreio e esta é a sua terceira função. Crescemos, não estacionamos. Não é somente benção para o passado,

ou benção para o futuro; é também benção para o presente, porque crescemos atualmente. Tornamo-nos mais alegres, e tudo quanto nos dá alegria na devoção aumenta-nos as forças. Já seria de imensa vantagem se o recreio nos preservasse do pecado, enchendo as horas vagas em que a enfermidade da natureza humana obriga-nos a afastar a atenção imediata das coisas de religião. Mas de-vemos-lhe ainda preservar-nos de mil pecados de pensamentos e trivialidades inúteis, que tanto dissipam o coração. Mas isto, em verdade, é uma pequena parte dos serviços que nos presta. Suas funções na vida espiritual não são inferiores às do sono na vida natural, e, como ele, carece de leis sábias, prudentes e firmes.

Terminarei as minhas reflexões acerca do recreio com um conselho de Scaramelli. Se o espírito pede-nos

coisas imperfeitas, como diversões, conversações e alívios supérfluos, que nem a saúde nem o

cumprimento dos deveres do estado exigem, as leis da perfeição mandam que nos mortifiquemos, Sei que tais recreios são o alimento dos fracos de espírito, e, como diz o Apóstolo: "Quem é fraco, deixai-o comer ervas".

Privados que estão das consolações que a graça traz às almas puras, procuram saciar a fome e acalmar a

tristeza nas consolações terrestres. Segundo Ricardo de São Victor, o homem encontra na própria natureza um alimento cheio de doçura e acha sustento nas causas acidentais, como na prosperidade e no êxito. Não foi

com semelhante alimento espiritual que o Cristo se refrescou. E', todavia, o manjar dos imperfeitos, a erva dos fracos, e pode ser alimento proveitoso, pois muitas

vezes concorre para suavizar e sarar o mal da inclemência de que padece a alma quando lhe falta a

graça. As pes~soas que tendem seriamente à perfeição devem privar-se desses recreios inúteis, de modo a se prepararem para receber de Deus maior abundância de graças e de bênçãos celestiais. Se o espírito pede-nos uma concessão referente à comida, ao sono, ao vestuário, ao divertimento, necessária para manter a vida, preservar a saúde ou concorrer para a boa execução dos deveres, qualquer concessão, enfim, que a obediência, a conveniência ou motivos justificados exijem igualmente, devemos ceder a suas exigências e entregar-nos aos

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O ESPIRITO HUMANO VENCIDO

recreios necessários. Nesses casos, porém, o homem espiritual deve cuidar de purificar a intenção e protestar a si mesmo que só condescende com isto para cumprir com a vontade divina e não para satisfazer às inclinações naturais, isto é, para agradar a Deus e não a si. Cede ao instinto e não aos afetos da natureza, e mesmo em tais concessões pode contrariar os gostos pessoais e procurar somente a vontade e o beneplácito divino. Assim o espírito humano satisfaz as suas inclinações, sem que a satisfação seja em detrimento do progresso espiritual. Sei que estas teorias são difíceis de praticar, mas diz são Bernardo que se nos apoiarmos em Deus, cheios de confiança, tudo se efetuará de acordo com estas palavras do Apóstolo: Posso tudo naquele que me fortifica (1).

Uma indiferença geral a respeito do emprego do tempo é a sexta manifestação da indolência espiritual. O emprego do tempo forma vasto assunto, cuja importância é muito maior do que julgam em geral os que aspiram à perfeição. Bellacius, na obra em que trata da Virtude Sólida, consagra um livro inteiro ao hábito de levantar cedo, um

1) Discernimento degli spirit. sect. 272, 273.exemplo apenas do emprego do tempo. Lembremo-nos

de que o tempo é a trama com que se tece a eternidade, que é, simultaneamente, precioso e ir-revogável, e que no último dia prestaremos conta

exatíssima a respeito. Poucas são as culpas irre-mediáveis, mas a perda do tempo é uma delas. Se

considerarmos quão fácil é cairmos nessa culpa, quão frequentes são as quedas, quão terrivel o silêncio em

que se envolve e, afinal, quão poderosa a atração que exerce, começaremos a compreender-lhe o perigo real. Demais, quando a preguiça se apodera de nós, torna-se

numa verdadeira tirania, numa escravidão, cujas algemas se fazem sentir a cada passo que damos e

mesmo quando nos conservamos quietos. E' uma escravidão atraente, e essa doçura torna-a mais

perigosa. O seu peior traço característico é o artifício. O preguiçoso nunca acredita que o seja, exceto nos inter-valos lúcidos da graça. Ninguém acreditará na rapidez

com que se desenvolve o hábito de perder tempo. Romper com tal hábito requer um esforço veemente e

contínuo, de que poucos são capazes, E, nesse ínterim, atravessa-se com velocidade o espaço que separa esse

estado da tibieza. Cada hora acumula os minutos de negligência, a pesar sobre a alma e a estorvá-la,

enquanto a nossa dívida para com a justiça temporal de Deus cresce assustadoramente. Torna a nossa vida o

oposto da vida divina. A atenção que Deus nos presta a cada minuto oferece terrivel contraste com o nosso esquecimento, meio voluntário, meio involuntário, e

com a nossa falta de atenção para com ele. Duvido que o emprego iconciencioso do tempo possa tornar-se num hábito, como as demais perfeições espirituais. Creio que

será necessário cuidar disso durante toda a vida. E' a corrente, cujas ondas levam sempre

consigo alguma testemunha, a qual se apressam em depositar com rigorosa fidelidade naquele mar que cerca o trono de Deus. Trememos ao pensar em santo Afonso de Ligório, que fez voto solene de nunca perder um momento do seu tempo. Compreendemos que um homem de tamanha humildade e discrição, ousando dar semelhante orientação à sua vida, só poderia acabar sendo elevado à honra dos altares da Igreja.

A sétima e última manifestação da indolência espiritual é a loquacidade. Tomaz de Kempis diz que nuiica tornou à cela, após uma conversação, sem sentir-se mais imperfeito que ao deixá-la, e outra pessoa piedosa diz que nunca se arrependeu de guardar o silêncio, ao passo que- raras vezes falou sem que depois ficasse pesarosa. Como isto nos dá um profundo conhecimento da vida dos santos! Na espiritualidade, para a alma fatigada que procura um recreio ou repouso indevido, não há alívio mais perigos^, depois dos excessos da imaginação, que a loquacidade. E' tentação das mais comuns. Alguns tornam-se tagarelas com qualquer pessoa que esteja disposta a ouvi-los; outros o são unicamente com gente que lhes é simpática, e com quem a troca de opiniões é um repouso para o espírito. Outros são tentados a falar em momentos inoportunos e sobre assuntos pouco apropriados, provindo isto, quer do demônio, quer do espírito humano. Podemos decretar, como princípio geral, que toda efusão de coração numa pessoa espiritual é condenável, seja Deus o seu objeto, seja algum ser indiferente, exceto se se expandir no seio de Deus. Não há escolha possível. O mal está na efusão. Imaginamos poder assim aliviar as tentações, mas é erro, e erro grande. Exceção feita de certas tentações, o silêncio fortalece-

nos, enquanto a efusão nos enfraquece e enerva. As pessoas piedosas, antes de dar os primeiros passos na santidade, são exageradamente loquazes; e muitas vezes é essa loquacidade que adia a hora em que poderão refletir, em seus traços, a semelhança dos "santos, ou que lhes tolhe completamente o progresso.

E' claro que cada uma destas sete manifestações da indolência poderia, de per si, formar matéria para um pequeno tratado; mas, visando o fim que me propus, já disse bastante. A perfeição no mundo é difícil e encontra muitos obstáculos que lhe são fatais. Talvez a indolência, mais que qualquer outra coisa, impeça o progresso na santidade, porque é dificílimo às pessoas no mundo não serem preguiçosas. Cerca-nos a

pusilanimidade e exagero. Circulam idéas mesquinhas e vulgares. Respiramos um ar impregnado de languidez. Vemos tipos que são loucos rematados. Não nos falta sentimentalismo espiritual e da fatuidade espiritual temos mais que suficiente. Da sã mortificação e da sincera e varonil devoção temos, no entanto, menos que, de fato, parece possível, se não fosse evidente. Tudo, pois, nos leva à ociosidade e à inutilidade. E' frequente ouvir-se dizer que os frades e as freiras são de uma alegria excepcional; é devido, em não pequena parte, à regra e à vida de comunidade, que os preserva da ociosidade. Não dispondo de nenhum desses auxílios, temos muito a recear desse inimigo. De fato, o perigo e o cunho fatal da ociosidade podem ser

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O ESPIRITO HUMANO VENCIDO

incluídos entre os principais fatores que caraterizam toda tentativa em busca da perfeição no mundo. Já verificamos que, para atingir a perfeição, é preciso pra-ticar de maneira especial a paciência, afim de suprir a falta da regra religiosa. Devemos, portanto, prestar cuidadosa atenção ao emprego diligente do tempo e à direção discreta dos recreios, de modo a fazer frente

aos perigos de que os religiosos se acham tão bem protegidas pela vida da comunidade, conforme a instituíram os santos fundadores. A indolência deve ocupar lugar proeminente entre os inimigos a combater, se não, jamais atingiremos à perfeição que os santos nos dizem estar ao alcance das pessoas do mundo.

Fáber, O progresso — 16

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CAPITULO XV

Da oração

A vida espiritual difere essencialmente da vida do mundo, e a diferença está na oração. Quando a graça

impele alguém suavemente à oração e este se entregar ao seu domínio, a oração transforma-o num homem novo e ele se convence de tal modo que a oração é

toda a sua vida, que acaba por rezar sempre. E assim sua vida torna-se numa oração contínua que nada

interrompe, porque não consiste tanto em métodos e formas, quer mentais, quer vocais, como na disposição

do coração em virtude da qual todas as suas ações e sofrimentos se tornam uma oração viva.

A vida de oração, que é a insígnia do homem so-brenatural, consiste, por conseguinte, em rezar

sempre. Que é rezar sempre? Que entende por isto nosso Senhor? Rezar sempre é sentir continuamente a

doce necessidade da oração; é ansiar por ela. Na oração sente-se a graça de modo palpável; toca-se

nela; a oração, portanto, fortifica-nos a fé e inflama-nos o amor. A provação mais penosa que traz o trabalho

árduo é afastar-nos da oração, porque, antes de termos tempo para rezar, já nos esgotou a melhor parte das

forças, e a força física é muito necessária para rezar bem. O resultado dessa atração é adquirirmos o

hábito da oração e fixarmos certas horas paraDA ORAÇÃO 243

a ela nos entregarmos, seja mental, seja vocal. Não digo que o simples hábito da oração baste para formar um homem de oração, mas que Deus não nos enviará o fogo do céu se primeiro não prepararmos o altar do sacrifício. Exercitemo-nos também na prática das orações jaculatórias, escolhendo determinadas invocações e elevando ao céu, durante o dia, frequentes e espontâneas aspirações que dimanem livremente do grande fervor do coração. Há, além disso, uma certa gravitação devota da alma a Deus, que resulta do amor e da prática da presença divina, e passa da intercessão à ação de graças, da ação de graças ao louvor, do louvor à súplica, conforme as disposições do espírito, sem o menor esforço da nossa parte, e sem quasi percebermos o que se passa em nós. Rezar sempre é ainda renovar frequentemente os atos de pura intenção pela glória de Deus, e assim comunicar a vida de oração às nossas ações, conversações, estudos e sofrimentos.

E' isto que significa rezar sempre. Vejamos agora os resultados dessa oração contínua e a força com que eleva o homem a um estado sobrenatural! Ele vive num mundo diferente. Aqueles que o cercam, os seus íntimos, não são deste mundo: Deus, Jesus, Maria, os anjos e os santos formam o movei secreto do seu espírito e muitas vezes presidem à expressão dos seus pensamentos. Ele não tem os mesmos interesses, as mesmas esperanças, as mesmas aspirações dos outros homens. E, se empreender qualquer coisa, não se guiará por métodos alheios nem empregará os mesmos

meios para verificar o êxito de suas empresas. Aliás, é sobretudo neste ponto que ele se afasta dos homens do mundo, pois o êxito das suas aspirações é pura-mente sobrenatural e impregnado do espírito celes-

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CAPITULO XV

tial da Incarnação. As idéas que faz do mundo pa-recem estranhas, embora sejam precisas e claras, porque vê o mundo confusamente através da visão da Igreja, e julga as relações e distâncias entre as diversas coisas, do modo pelo qual se agrupam em redor da fé central. Modera as afeições, de sorte que mesmo os seus íntimos o têm em conta de um ser impassível, um coração frio e destituído de carinho natural e das vivas simpatias de família. Demais, a tendência para, o repouso, que a oração desenvolve, é desfavorável ao êxito e ao progresso no sentido em que o mundo entende estas palavras, porque impede que as desejemos com ardor e as procuremos com impaciência.

Essa influência da oração transparece nas suas opiniões e no juizo que forma dos homens e das coisas em geral. Percebemo-la ria sua linguagem; vemo-la na sua tranquilidade; notamo-la no seu trato com o próximo. Forma o motivo principal da sua aparente falta de simpatia para com os outros. Tal o homem, cujas faculdades e afetos e, até certo ponto, cujos sentidos foram dominados pelo espírito da oração. Seria natural que semelhante espírito encantasse os homens pela sua graça, tal qual a presença de um anjo. Mas assim não é, porque, para sentir-lhe a beleza, faz-se mister o discernimento espiritual. Aos olhos do mundo tal homem tem a singularidade desajeitada de um estrangeiro, que de fato é. E, no entanto, causará, depois de passar, forte impressão, semelhante ao efeito que o Santíssimo Sacramento produz muitas vezes nos protestantes, quando estes, sem o saber, se chegam à sua presença, retirando-se em seguida. E' próprio de Deus e das coisas de Deus deixarem na alma uma lembrança que impressiona.

O negócio mais importante da vida interior é a oração mental. Dela falarei em primeiro lugar. Os escritores espirituais, e mesmo alguns santos, falaram às vezes da meditação como se fosse qua-si indispensável à salvação. Talvez seja em certo sentido e em certos casos; a verdade, entretanto, é que a oração mental é necessária à perfeição e que sem ela a vida espiritual torna-se impossível, porque a oração mental consiste em fixar as faculdades em Deus, não para refletir ou especular sobre ele, mas para induzir a vontade a conformar-se à sua, e os afetos a amá-lo. Os assuntos qpe a prendem são as obras e as perfeições de Deus e, de modo particular, a sagrada Humanidade de nosso Senhor. O tempo a ser empregado na meditação varia segundo os casos individuais, e os diversos métodos existentes facilitam a escolha de cada qual. O importante é ser fiel ao método adotado. Mais tarde falarei a respeito.

A oração mental, difícil em si, é agravada pelas tentações que a cercam. E' tediosa, além de toda explicação, de toda previsão; e este tédio leva-nos a abandoná-la. Muitas vezes, ao tentarmos meditar, tornamo-nos de todo incapazes de pensar, sem que nada o justifique. Seja qual for a atitude que nos for recomendada, acabará sempre por nos fatigar e, se a mudarmos constantemente, a oração que resulta não é digna do nome. As distrações — e o seu nome é

legião — atormentam-nos a todo instante. A devoção sensível, nossa única esperança, é-nos incessantemente retirada sem culpa aparente do nosso lado. A tentação de espaçar as meditações nos parece razoável, embora resistamos à tentação de abandoná-las definitivamente. Outras vezes somos levados a crer que a sua importância é exagerada e, se não ousarmos fazer-lhe modificações diretas, queremos pelo menos satisfazer nossa impaciência, variando-lhe as horas e muitas vezes pagamos caro tão ligeira concessão.

Ora, o remédio para essas tentações consiste em considerar a meditação como a tarefa principal do dia, em dedicar o maior tempo possivel à leitura espiritual, em ser franco,'sincero e obediente para com o diretor em tudo que se refere à meditação, em desapegar-se pouco a pouco das consolações sensíveis, e estimar, ao seu justo valor, os frutos da meditação árida, que a linguagem pervertida denomina, com frequência, meditação má. Carecemos de energia nesta matéria, pois a prática da presença de Deus, o poder de combater os maus anjos e os maus hábitos, o bom humor habitual, a força para carregar as cruzes, tudo enfim quanto pudermos fazer individualmente para a perseverança final, depende da oração.

Se examinarmos atentamente os diversos métodos de oração que os escritores aprovados nos legaram,

veremos que se reduzem a dois: o de santo Inácio e o de são Sulpício. As vantagens do método de santo

Inácio são as seguintes: adapta-se melhor aos hábitos do espírito moderno, convém a maior número de

pessoas, pode ser ensinado como uma arte; quasi todos os livros espirituais baseiam-se nele. Agora,

quanto às vantagens apresentadas pelo método de são Sulpício: é cópia mais fiel da tradição dos antigos

padres e dos santos do deserto; satisfaz a quem, por um lado, não pode seguir o sistema de santo Inácio, e, por outro lado, não tem aptidão alguma para a oração

afetiva; convém mais, enfim, sob certos pontos de vista, às pessoas que sofrem frequentes interrupções

durante a meditação, porque já é um trabalho perfeito em qualquer um dos pontos, enquanto a eficácia do

método de santo Inácio está na conclusão. Tais os característicos dos dois métodos. Não se pode esta-belecer comparação alguma entre eles, porque ambos são santos e formaram santos. O emprego de um ou de outro é questão de escolha ou de vocação.

Tratarei sucintamente destes dois métodos, co-meçando pelo de santo Inácio, muito mais divulgado que o outro. A meditação é um dom que devemos pedir, de modo especial, nas orações, juntando às súplicas o desejo ardente da perfeição em geral. Empreguemos com diligência os meios que nos são recomendados e consideremos a leitura espiritual como sendo para a meditação o que o óleo é para a lâmpada. Há, portanto, duas preparações a fazer: a remota e a próxima. Aquela consiste tanto em obter os auxílios necessários, como em remover os obstáculos. Os obstáculos são a boa opinião de nós mesmos; a ostentação das nossas austeridades e devoções; o apego às imperfeições habituais, embora estas imperfeições continuem por enquanto; a dissipação de espírito; a negligência em relação à vigilância dos

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sentidos; a indiferença no modo de cumprir as ações comuns. Os auxílios de que carecemos são: a profunda humildade, a simplicidade e, em geral, a pureza de intenção, certa vigilância dos sentidos que baste para assegurar-nos a tranquilidade de espírito, e tudo acompanhado de pequena dose de mortificação. A preparação próxima consiste em ler, ouvir, ou preparar a meditação na véspera, à noite, e sobretudo em notar os frutos que devem resultar naturalmente dela, ou que nos convêm mais às necessidades espirituais do momento. Antes de adormecer, devemos pensar alguns instantes no assunto da meditação e rezar alguma jaculatória apropria-

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da. Ao acordar, o nosso primeiro pensamento deve reverter logo ao nosso tema; apaziguemos nosso espírito, pondo-nos na presença de Deus ou da sagrada Humanidade de nosso Senhor, pelo espaço de uma Ave-Maria, e isto antes de nos ajoelharmos para rezar. Observemos também profundo silêncio desde o momento em que preparamos a meditação até à manhã seguinte, de modo a desviar os pensamentos e as imagens aptas a nos dissipar. Os que se sujeitarem ao jugo desse regulamento saberão apreciar-lhe os benefícios. Muitos espíritos, entretanto, não podem amoldar-se a eles. Sem conhecimento dos casos individuais é impossível dizer até que ponto, ou em virtude de que motivos, convém dispensar tal pessoa, sem que a dispensa lhe seja prejudicial. Poucos são os que carecem durante longo prazo de toda a disposição do método de santo Inácio, embora muitos não consigam fazer boas meditações, porque, ao principiar, não 3e esforçaram por tolerar tal jugo durante certo tempo. Estas duas preparações são seguidas de um ato de adoração e de uma oração preparatória.

Depois das preparações vêm os prelúdios, sempre dois e às vezes tres. O primeiro consiste em traçar uma rápida imagem do objeto a meditar. Ajuda a afastar as distrações, assim como fitar os olhos em alguma coisa obriga a pensar nela. Sobrevindo uma distração, no curso da meditação, devemos volver-nos à imagem, assim como voltamos os olhos ao que estamos copiando, quando um ruido no-los fez levantar. Alguns escritores recomendam-nos ter sempre uma destas imagens presente ao espírito, de acordo com o fruto que desejamos obter na meditação. O segundo prelúdio é a petição direta para obter tal fruto, sendo bom solicitá-lo por intercessão do santo que a Igreja honra naquele dia. Tratando-se de uma história, há um terceiro prelúdio, que consiste em percorrê-la com brevidade. Todos os prelúdios juntos não devem ultrapassar de cinco minutos.

Aos prelúdios segue-se o corpo da meditação, que se compõe de tres partes: o emprego da memória, o emprego do entendimento, o emprego da vontade. O emprego da memória assemelha-se ao primeiro prelúdio, mas difere quanto à extensão, à exatidão e às particularidades. Consiste, para explicá-lo com a possível brevidade, em fazer-nos sete perguntas: Quem? O que? Onde? Por que meios? Por que? Como? Quando? E isto se aplica tanto aos textos como aos mistérios. Não é preciso dedicar muito tempo a essa primeira parte da meditação, senão se tornará em simples diversão do espírito. Devemos, não obstante, cumpri-la com cuidado e escrupulosa exatidão, pois descobriremos, em seguida, que é a fonte dos nossos afetos e resoluções. As consequências do emprego negligente e perfuntório da memória serão a esterilidade de reflexões, a formalidade nos afetos e a falta de compunção e de vigor nas resoluções. Não nos perturbemos ao descobrir que a memória invade o domínio da inteligência. Uma se deverá confundir com a outra; mas pertencerá sempre ao entendimento a aplicação prática da verdade geral, tanto a nós mesmos como às nossas atuais necessidades espirituais.

Pelo entendimento, que é a segunda parte da me-ditação, fazemos cinco coisas. Aplicamos a nós mes-mos o objeto da meditação, tiramos conclusões, pesamos os motivos, examinamos a nossa conduta, passada e presente, e tomamos disposições para o futuro. A principal condição a observar no emprego do entendimento é a extrema simplicidade.

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A exemplo do emprego da memória, consiste também em fazer-nos sete perguntas. Io Que devo pensar a este respeito? 2o Que lição prática devo tirar? (Deve ser particular e não geral, e conforme ao estado, ao caráter e à condição). 3o Quais os motivos que me movem a adotar esta prática? (São mais ou menos estes: a conveniência, e por isto entendo que devem ser apropriados ao nosso caso, a utilidade pelo menos no que se refere à vida sobrenatural, a satisfação, a facilidade ou a necessidade). 4o Qual foi até hoje o meu procedimento a este respeito? (Desconfiemos aqui das respostas satisfatórias da conciencia, e cedamos somente à evidência. Procuremos nossa própria confusão, desçamos às minúcias, investiguemos cuidadosamente as nossas disposições presentes). 5o Como devo proceder no futuro? (Convém imaginar casos não extravagantes nem improváveis, mas tais quais se possam facilmente dar naquele mesmo dia). 6" Que obstáculos posso afastar? (empreguemos aqui o conhecimento próprio, fruto do exame quotidiano de conciencia. Em geral, os obstáculos são tres: o orgulho, a sensualidade e a dissipação). 7U Que meios devo empregar? (Sejamos prudentes, afim de escolher os que nos convêm e não recorrer a meios gerais ou vagos, e sejamos discretos para não nos sobrecarregar. Quantas pessoas, ao anoitecer, já não carregam cruz alguma, porque a que fixaram aos ombros na meditação matutina era pesada demais, e então afastaram-na, e só foram discípulos de nosso Senhor durante meio dia).

O emprego da vontade forma a terceira parte da meditação. Sem isto a meditação não é oração mental, mas simples especulação ou exame de conciencia incompleto. O emprego da vontade manifesta-se de dois modos: pelos afetos e pelas resoluções. E' verdade que os afetos estão bem em qualquer ponto da meditação, seja na aplicação da memória, seja nos prelúdios. E como não havia de estar bem onde quer que se apresentassem? E' bom ter algum texto, ou máxima dos santos, sempre presente ao espírito, para exprimir com maior facilidade os piedosos afetos que nos vierem, mas devemos escolhê-los nós mesmos, senão perderão a metade da unção. Não interrompamos o afeto que se refere à humildade, enquanto nos proporcionar alguma doçura. A hora inteira passada nesses sentimentos seria muito bem empregada, embora nos devêssemos descuidar do resto da meditação. Não direi o mesmo da alegria e do triunfo, que estão sujeitos à astúcia e às ilusões, e devem ser vigiados dentro de certos limites. Não nos entreguemos tão pouco inteiramente à compunção, por mais desejáveis que sejam os seus afetos, pois tende à imoderação e liga-se com facilidade ao amor próprio. Não percamos a paz de espírito e não nos inquietemos se os afetos tardam a vir, mas excitemo-los tranquilamente por atos de fé._Mas, por preciosos que sejam os afetos da oração,

as resoluções têm ainda maior valor. Pertencem não somente a cada ponto da meditação, como também à conclusão de cada doutrina prática. As resoluções devem ser práticas em si, e não consistir em prometer certas devoções e orações, mas em evitar isto ou mortificar aquilo. Devem ser particulares, não gerais, e referir-se ao nosso estado atual e à ação imediata.

Resolver fazer isso ou aquilo depois de chegar a tal ponto ou tal época, é construir castelos e não tomar resoluções. Tanto quanto possível, as resoluções devem se relacionar aos acontecimentos prováveis do dia, de modo que o exame particular se prenda à meditação. E' preciso que se baseiem em motivos sólidos, já meditados com frequência, e que não sejam nem precipitados nem repentinos, para não excederem as nossas forças, uma vez acalmado o fervor da oração. E' melhor que sejam aquém do que podemos razoavelmente esperar e repassadas de humildade. Na meditação, com efeito, tudo parece fácil, de modo que não desconfiamos bastante de nós mesmos; ora, como Deus raras vezes fortalece a alma que confia demais em si, sucumbimos. Quantas lamentações acerca da falta de progresso provêm de resoluções precipitadas, tomadas no ardor, meio natural, meio sobrenatural, da oração!

Chegamos agora à conclusão da oração. E' ponto importante, que requer calma e fervor. Uma conclusão feita às pressas, seja para não passar da hora marcada, seja por qualquer outro motivo, inutiliza muitas vezes toda a meditação. Devemos, em primeiro lugar, reunir as resoluções e renová-las. Isto frequentemente nos avivará o fervor que, no fim da hora, talvez se esteja afrouxando pela aridez e pelo langor. Em seguida vêm os colóquios com Deus, com nossa Senhora, ou com os santos.. Devemos então pedir cuidadosamente o fruto especial que esperamos obter na meditação, podendo acrescentar uma súplica que temos a peito, e, ao mesmo tempo, fazer humilde oblação das resoluções tornadas. A maior parte dos livros de meditação, baseados neste sistema, indicam, em seguida, um Pater, uma Ave, e a oração Anima Christi. Deixamos então de conversar diretamente com Deus, sem, porém, abandonarmos a sua presença. Pelo contrário, devemos prestar mais que a habitual atenção para que, naquele momento, o espírito de.dissipação não nos sobrevenha, e que ao recolhimento da oração se siga brusca reação.

Pudesse santo Inácio ditar a sua vontade, e a me-ditação não terminaria aqui. Quisera que descan-sássemos, fazendo o que ele chama a consideração da meditação. Atribue a tal lacuna a persistência das más meditações, pois, se nos parecessem más na ocasião, teríamos provavelmente refletido um pouco e descoberto a causa do mal, remo-vendo-a para o futuro. Tal é a importância desta consideração, que santo Inácio nos recomenda fazê-la no correr do dia, quando a omitimos pela manhã. A consideração é dividida em duas partes: o exame e a recapitulação. No exame passamos em curta revista a preparação da véspera, à noite, os primeiros pensamentos ao despertarmos, os passos iniciais, a oração preparatória, os prelúdios, a escolha do fruto, o curso da meditação, o modo pelo qual nos portamos durante as distrações, as tres partes, os colóquios, para verificar se foram fervorosos e humildes e se prestámos a devida atenção para ouvir a voz de Deus falando-nos ao coração, e se a nossa atitude foi isenta de irreverência, a nossa linguagem de ousadia, os nossos pensamentos de precipitação. Se o resultado

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for satisfatório, agradeçamos ao Deus todo-poderoso a graça em virtude da qual alcançamos êxito. Se, ao contrário, não o for, façamos um ato de contrição, e tomemos uma modesta resolução para o futuro, sem nos entregarmos à tristeza ou à inquietação. Lembremo-nos sempre de que Deus escolhe a hora da oração para castigar-nos. E' então que os pecados veniais, as ligeiras imperfeições, as amizades desordenadas e as afeições mundanas se levantarão contra nós e seremos punidos.

A recapitulação compreende as lições aprendidas, as resoluções tomadas, e o fruto que esperávamos obter, enquanto imploramos mais uma vez a graça de sermos fiéis às resoluções. Devemos então escolher uma jaculatória para o dia, ou algum pensamento que nos sirva de ramalhete espiritual e nos refresque entre o pó e o tumulto do mundo. Por fim resta anotar as luzes recebidas, as resoluções tomadas para que essa leitura nos reanime o fervor quando este se relaxar. Esta última prática requer, no entanto, grande discrição e não convém igualmente a todos. Segundo santo Inácio, esta consideração levará mais ou menos um quarto de hora.

A nossa impressão, ao percorrer, pela primeira vez, o plano de santo Inácio, é a mesma do clérigo que abre pela primeira vez o breviário. Parece que nunca o poderemos entender e pôr em prática. Mas seus métodos são, na realidade, tão simples, que não tarda em nos familiarizarmos com eles, pois um se prende de tal modo ao outro que quasi dispensam esforços e atenção. E' muito mais fácil do que parece. O método de são Francisco de Sales, exceção feita de algumas minúcias que o seu caráter particular nele imprimiu, é mais ou menos o mesmo. O de santo Afonso podemos dizer que é igual ao de santo Inácio, mas nos oferece maior liberdade, estando mais em harmonia com esse glorioso santo, a cujos títulos a gratidão da Igreja moderna acrescentou o de apóstolo da oração. Os principiantes tendem sempre a dispensar-se das par-

tes mecânicas do sistema. Quem tiver paciência du-rante algumas semanas, nunca se há de arrepender, ao passo que quem não a tiver, há de lastimar-se toda a vida. Guardemo-nos também de ajoelhar-nos distraidamente, sem fazer nada, pois seria juntar a irreverência à preguiça. Não procuremos ouvir vozes interiores, não contemos com experiências notáveis nem com impressões nítidas da vontade divina sobre o nosso espírito, não cedamos à tentação de abandonar o caminho simples da meditação árdua, para chegar a Deus por alguma vereda mais curta. No princípio não convém ler muitos livros sobre a oração, mas seguir fielmente os poucos conselhos dados de viva voz pelo diretor. Procuremos constante, porém tranquilamente, dedicar menos tempo às considerações e mais aos afetos; e se toda a meditação se passar na aridez, tomemos alguma resolução especial antes de nos afastar do nosso Crucifixo, e assim não teremos deixado passar o tempo em vão e sem fruto.

Uma palavra agora sobre o que chamamos me-ditações más. Em geral, são as mais fecundas em resultados. O só ato de permanecer no genuflexório durante o tempo marcado já é ótimo e meritório ato de obediência. O mistério, que, aparentemente, não conseguimos alcançar, na realidade impregnou-se em nosso espírito e guarda-nos todo o. dia na presença de Deus, o que de outro modo talvez não acontecesse. Pedimos a Deus alguma coisa, e isso, em si, já é ato importante; tomamos alguma resolução, e encontramos ocasião de humilhar-nos. Deus muitas vezes nos despede, qual mestre que manda o aluno voltar ao trabalho, afim de examinarmos novamente a nossa conduta e descobrirmos pequenas infidelidades, já esquecidas, e pelas quais nunca fizemos penitência. Cada vez que fizermos uma meditação má sem poder atribui-lo à nossa própria culpa, podemos ter certeza de que Deus tem alguma coisa em vista, sendo dever nosso descobrir do que se trata. Não é pouca coisa suportarmo-nos a nós mesmos e às

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nossas imperfeições; ao contrário, é um belo ato de humildade, que nos faz progredir no caminho da perfeição. Em verdade, as meditações más nos darão, se quisermos, juros de usurário.Muita coisa que acabo de dizer do método de santo Inácio se aplica igualmente a todos os métodos, no tocante à direção e orientação. Ao falar, portanto, do método de são Sulpício, limitar-me-ei aos pontos que o distinguem do outro. O padre Olier divide a oração em tres partes: a preparação, o corpo da oração, e a conclusão, empregando em geral a palavra oração, em vez de meditação. Impregnado do espírito da tradição antiga, recorre, a exemplo dos seus intérpretes, a santo Ambrósio, a são João Clímaco, a são Nilo, a Cassiano e aos escritores da mesma escola, cujas regras e métodos adota. Faz tres preparações: a remota, a menos afastada e a próxima. A primeira visa remover os obstáculos; a segunda prepara tudo quanto for necessário à boa oração; a terceira é, por assim dizer, "a entrada na oração. A preparação remota estende-se à vida toda, cuidando sobretudo de tres obstáculos: o pecado, as paixões e a lembrança das criaturas.

Nenhuma alma em estado de pecado goza da liberdade de conversar familiarmente com Deus. Os impulsos agitados das paixões humanas impedem a paz interior, condição indispensável à oração mental; a lembrança das criaturas é a fonte de toda dissipação, de toda distração. Assim, pois, a parte mais remota da preparação à oração consiste em evitar o pecado, mortificar as paixões e vigiar os sentidos. A menos afastada compreende tres fases: a primeira come-.ça na véspera, à noite, ao tomarmos conhecimento do assunto da oração; a segunda abrange o tempo que decorre entre esse momento e o despertar pela manhã; a terceira, do despertar ao iniciar a oração. A primeira, pois, requer atenção; a segunda, uma revista do assunto e o mais rigoroso silêncio; a terceira, os afetos de amor e de júbilo com que nos aproximamos da oração. A preparação próxima consiste quasi na oração em si. Compõe-se de tres atos: em primeiro lugar, colocamo-nos na presença de Deus; em segundo lugar, reconhecemos a nossa indignidade em nos apresentar ante essa presença; em terceiro lugar, confessamos a nossa falta de capacidade para rezar como deveríamos,

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sem o auxílio da graça divina. Cada uma dessas tres preparações tem regras minuciosas, oriundas todas de fontes primitivas, e atribuídas sobretudo a são Gregório, são Crisóstomo, são Boaventura, são Nilo, são Bernardo e são Bento.

Mas é no corpo da oração que se encontram os traços característicos. Como o método de santo Inácio, consta de tres pontos, que são chamados, res-petivamente, adoração, comunhão e cooperação. No primeiro, adoramos, louvamos, amamos e rendemos graças a Deus. No segundo, esforçamo-nos por transferir para os nossos próprios corações o que louvamos e amamos em Deus, e participar assim das suas virtudes conforme estiver ao nosso alcance. No terceiro, cooperamos, por meio de colóquios fervorosos e resoluções generosas, com a graça recebida. Os padres antigos nos transmitiram esse método de oração como sendo, em si, um resumo completo da perfeição cristã. Dizem que eles têm Jesus diante dos olhos na oração, que Jesus lhes está no coração pela comunhão, e nas mãos pela cooperação, e que toda a vida cristã se resume nestas tres coisas. Segundo o seu costume, deduzem isto do preceito dado por Deus Fáber, O progresso — 17ao povo de Israel, para que tivesse sempre as palavras da lei diante dos olhos, no coração e ligadas às mãos. Assim santo Ambrósio considera estes tres pontos como outros tantos selos. A adoração ele chama signaculum in fronte ut semper confitea-mur; a comunhão: signaculum in corde ut semper diligamus; e a cooperação: signaculum in bra-chio ut semper operemur. Outros também declaram que este método de oração está de acordo com o modelo que nosso Senhor nos deu. Assim é que a oração corresponde ao: Santificado seja o vosso Nome; a comunhão a: venha a nós o vosso reino; e a cooperação a: seja feita a vossa vontade. Tanto quanto podemos julgar, parece que este método de oração é o mesmo que prevaleceu' entre os padres do deserto, e admira-nos ver quantos fragmentos da tradição antiga existem a respeito (1). A conformidade com os padres antigos é o traço característico do método de são Sulpí-cio, sendo assim um monumento da mais antiga espiritualidade da Igreja.

O primeiro ponto é, pois, a adoração. Aqui con-templamos em Jesus o objeto da nossa meditação^ e prestamos o culto que lhe é devido em vista da sua infinita perfeição. Há, portanto, duas coisas a observar neste primeiro ponto. Imaginemos, para tomar o exemplo que nos oferece Tronson, que estamos a meditar sobre a humildade. Neste primeiro ponto consideramos o quanto Jesus foi humilde, incluindo nesta consideração tres coisas:: as disposições interiores de nosso Senhor a respeito da humildade, as palavras que disse e as ações que praticou. Em seguida

depositamos aos seus pés seis ofertas: a adoração, a admiração, o louvor, o amor, a alegria e a gratidão, escolhendo por vezes todas, por vezes as que mais se harmonizam com o objeto da oração. Este ponto é de

grande importância porque nos leva, primeiro, a contemplar nosso Senhor como a fonte de todas as virtudes. Segundo, a considerá-lo como o original e o modelo de que a graça nos há de tornar fiel cópia. Terceiro, a refletir sobre os dois fins da oração, que, segundo Tertuliano, são a veneração de Deus e as súplicas do homem, sendo aquela a mais perfeita. São Gregório de Nissa, finalmente, nos diz que, se procurarmos tão somente os nossos próprios interesses, das duas estradas que conduzem à perfeição — a oração e a imitação — a primeira é a mais curta, a mais eficaz, a mais segura. Falando da eficácia da oração, os padres empregam a seguinte comparação: há dois processos de tingir um pano branco de vermelho; o primeiro é aplicar-lhe a cor, e o segundo é mergulhá-lo na tinta; ora, este último é o mais rápido e torna, ao mesmo tempo, a cor mais firme. Assim, também, mergulhando as nossas almas, pelo amor e pela adoração, no interior do Coração de Jesus, mais depressa serão elas imbuidas de uma virtude do que por múltiplos atos dessa mesma virtude. O leitor verá que esta doutrina tem um caráter particular que, à primeira vista, parece afastar-se da linguagem comum dos livros modernos. Este são seis: os atributos e as perfeições de Deus, os mistérios, as virtudes, os vícios e as verdades cristãs.O segundo ponto é a comunhão, em que procuramos

participar daquilo que amamos e admiramos no primeiro ponto. Compreende tres coisas. Em primeiro lugar, é preciso convencermo-nos da necessidade da graça que desejamos pedrr, e basear essa convicção em motivos de fé. Em segundo lugar, é mister refletir sobre a falta que nos fez até hoje esta graça e como deixámos passar as ocasiões que se apresentaram para adquiri-la. Nesse exame consideremos o passado, o presente e o futuro. Em terceiro lugar, e esta é a parte mais importante, vem a própria petição da referida graça, petição que pode revestir quatro formas, cujos tipos figuram na Escritura. Pode ser Io a simples petição: petitiones vestra? innotescant apud Deum; 2a a obsecração, isto é, o acréscimo à nossa petição de algum motivo ou adjuração, tais como os méritos de nosso Senhor: in omni obse-cratione, como diz o Apóstolo; 3o a ação de graças: cum gratiarum actione, pois os santos ensinam-nos que o reconhecimento pelas graças passadas é o meio mais eficaz de alcançar novas; 4o a insinuação, à semelhança das irmãs de Lázaro, quando disseram apenas: "Senhor, aquele que vós amais está enfermo". Essas petições devem vir todas acompanhadas de quatro condições: a humildade, a confiança, a perseverança e a união dos outros às nossas súplicas, pois nosso Senhor ensina-nos a rezar pelo nosso e não pelo meu pão de cada dia; a dizer perdoai-nos as nossas dívidas, e não as minhas dívidas. São Nilo dá muita importância a este último ponto e afirma que assim rezam os anjos.

O terceiro ponto é a cooperação, quando tomamos as resoluções. Ora, essas resoluções exigem tres condições: devem ser particulares, atuais, eficazes. Particulares, porque as gerais só têm valor quando unidas às menos vagas e mais definidas. Atuais, isto é, devemos cogitar do modo ou da ocasião de pôr em prática as resoluções no mesmo dia. Eficazes, isto é,

1) Posso notar de passagem que Honorato de santa Maria, que recolheu a tradição dos Padres sobre vários estados sobrenaturais da oração, infelizmente se desviou do bom caminho na grande controvérsia sobre a caridade, e que deste modo desfigurou o seu livro e apagou, o efeito do seu testemunho.

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devemos esforçar-nos por executá-las fielmente, conforme o nosso propósito sincero ao tomá-las.

A conclusão da oração compõe-se de tres partes, que requerem apenas alguns instantes. Em primeiro lugar, agradeçamos a Deus todas as graças que nos foram dispensadas durante a oração: ternos tolerado em sua presença; ter-nos dado a faculdade de rezar, e, finalmente, ter-nos concedido qualquer bom pensamento ou emoção. Em seguida vem o ramalhete espiritual de são Francisco de Sales, que são Nilo foi provavelmente o primeiro a sugerir aos homens de oração.

O método carmelita, exposto por João de Je-sus-Maria, proibe qualquer plano complicado e recomenda um único ponto de meditação. Compõe-se das seguintes partes: adoração, oblação, ação de graças, súplica e intercessão. Ele não quer, no entanto, que sigamos sempre a mesma ordem, e prefere ver-nos tomar aquela que melhor se amolda ao tema da nossa meditação. Em geral, parece que as ordens contemplativas conservam o primeiro método, que chamei o método de são Sulpício, de preferência ao de santo Inácio; e todos os métodos parecem suscetíveis de se reduzir a um ou a outro. Ambos são santos, embora sejam muito diferentes. O espírito que os anima é diverso. Ambos tendem a formar caracteres diferentes, mas não podemos opor um ao outro, pois procedem do mesmo Espírito, o Espírito Santo, e saberão encontrar os corações a que se destinam. Feliz de quem é o discípulo fiel de um ou outro.

A classe de pessoas a quem me dirijo carece de alguma coisa mais do que destes métodos de medi-tação, mesmo sem se aproximarem dos chamados estados sobrenaturais de oração. Para muitos a meditação não passa de uma espécie de transição, lenta e penosa para a maioria das pessoas, rápida e perfeita para outras. Quem dedica a vida inteira a Deus, quem estuda principalmente livros espirituais e se ocupa na mor parte de coisas da religião, verificará muitas vezes que a meditação não é mais a espécie de oração que lhe convém, e que deve, portanto, praticar doravante o que os escritores ascéticos chamam a oração afetiva. Uma palavra agora a respeito.A passagem da meditação à oração afetiva consti-tue

crise na vida espiritual. Com efeito, podemos abandonar a meditação cedo demais, ou tarde demais; ou podemos recusar-nos a deixá-la de todo, ainda mesmo quando nosso Senhor nos convida a subir mais alto. Qualquer um destes errbs prejudica a alma. O primeiro leva-nos a ilusões, o segundo faz-nos perder tempo, o terceiro priva-nos da graça. Os escritores espirituais nos dão os seguintes sinais como indício de que chegou o momento oportuno de passarmos à oração afetiva: 1* quando somos incapazes de meditar e que os afetos nos atraem; 2o quando, apesar dos nossos esforços, não tiramos outro proveito da meditação senão o tédio e a aversão; 3o quando — desejo insistir neste ponto — as Verdades da religião e as máximas de Jesus nos penetram de tal forma que o nosso espírito dificilmente nelas se fixará na oração, sem passarmos, instantaneamente, aos afetos da vontade; 4o quando adquirimos maior horror ao pecado e maior indiferença pelos divertimentos, quando evitamos as ocasiões de perigo, quando nos tornamos mais moderados no falar e mais prontos a mortificar os sentidos. Então, sim,

podemos começar pouco a pouco a abreviar o emprego da memória e da inteligência na oração e concentrar-nos nos afetos da vontade, e assim passaremos, gra-dualmente e seguramente, da meditação à oração afetiva.

Vejamos agora como Courbon descreve a diferença entre estes dois estados de oração. No estado de meditação raciocinamos sobre um dado assunto, consideramos um texto, refletimos numa verdade, ou meditamos um mistério, com o fim de produzir em nós certos afetos referentes ao assunto. Na oração afetiva os raciocínios e as reflexões dissipam-se, e a alma começa, por si mesma, a produzir os necessários afetos. Por outro, na meditação, a alma não suscita tais afetos sem certa dificuldade e certo cansaço, precisando fixar a atenção, enquanto na oração afetiva esta operação nada lhe custa, porque se manifesta livre e espontaneamente. De sorte que a oração afetiva é superior à meditação pelo ardor, pela constância e pela continuidade.

Quando a mudança se efetua no momento propício e de modo conveniente, os frutos da nova oração se manifestam sem demora na alma. O primeiro é um grande amor a Deus, que se irradia em atos de amor, de preferência, de complacência, de benevolência e em obras de amor afetivo. Em seguida, vem o desejo de fazer a vontade de Deus, o zelo ardente pela sua glória, a fome insaciável da comunhão; suspiramos pela solidão, ansiamos conhecer mais a Deus, gostamos de falar com Deus, sentimos um acréscimo de coragem, desejamos morrer, e enchemo-nos de zelo pelas almas e de desprezo pelo mundo. A oração afetiva, no en-tanto, não está livre de certos perigos. Somos capazes de esgotar-nos pela veemência dos afetos imoderados, de fazer consistir a devoção tão somente em sentimentos fervorosos, de imaginar que sentimos o que os santos sentiram, de crer que nos move sempre a inspiração, de empregar demasiada atividade e precipitação nas boas obras, de levar o zelo até à indiscrição. Na oração afetiva, as distrações atormentam-nos de modo mais sensível que na meditação, porque a inteligência está menos ocupada. A falta de devoção se faz sentir muito mais vivamente, enquanto o mundo e o demônio se unem para atacar-nos com redobrada energia. Surpreende-nos sobretudo ver até que ponto estamos sujeitos à vaidade, à cólera, à falta de vigilância sobre os sentidos. Mas a isto opomos os favores sobrenaturais que acompanham em geral esse estado de oração, tais como o dom das lágrimas, os colóquios interiores, as emoções da alma, a languidez e a chaga do amor, a liquefação da alma em Deus, o vislumbre do nosso nada e a exuberância da doçura espiritual. Entrar em maiores minúcias pertence a um tratado sobre a oração. O que já disse da oração mental basta para o fim que me propus. Resta falar da oração vocal.

Um dos sinais de falsa espiritualidade, conforme verificamos nas proposições condenadas, é dar pouco valor à oração vocal. Com efeito, essa oração faz parte da prática universal dos fiéis, embora não seja indispensável à' salvação, como nos assegura santo Tomaz. Santo Agostinho parece sustentar opinião contrária, baseando-se no modelo que nosso Senhor nos ofereceu. Santo Tomaz reconhece, no entanto, a

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imensa utilidade da oração vocal, e isto por tres motivos: porque aviva a devoção interior, sustentando-a em seguida; porque devemos honrar a Deus empregando todos os seus dons, e a voz é tanto um dom quanto a inteligência; enfim, porque dá livre curso à devoção interior, in-tensificando-lhe a veemência. Tres pontos exigem atenção na oração vocal, posto que nem sempre ao mesmo tempo: cuidar da ordem e da enunciação das palavras, compreender-lhes a significação, e ter em vista o seu objeto, isto é, aquele a quem nos dirigimos, e as graças que pedimos.

Falando em geral, há quatro espécies de oração vocal, a saber: a oração que recorre ao livro, aquela que o dispensa, a oração intereessória e a jaculatória. Se nos utilizarmos de um livro de orações, convém usar somente um de cada vez, e não estar continuamente a mudá-lo. Devemos ler pausadamente, fechando por vezes o livro para repousar no pensamento de Deus, e sobretudo escolher cuidadosamente um que esteja mais ou menos de acordo com os nossos sentimentos e ao nosso alcance espiritual no momento. Se rezamos sem livro, sejamos breves e de poucas palavras, escru-pulosos na escolha destas — por causa da majestade de Deus, e intercalemos às orações períodos de silêncio. Quanto à intercesão, não prometamos levianamente rezar pelos outros, precavendo-nos assim contra novenas perpétuas e multiplicadas. Não fixemos, sem reverente premeditação, um dado tempo para pedir determinado dom, cessando as orações se Deus não se dignou ouvi-las. Concedamos ao Sumo Pontífice, e às suas intenções pelas necessidades da Igreja, lugar de destaque em nossas intercessões. Quanto às orações jaculatórias, devem, falando em geral, ser frequentes, mas não sujeitas a regras ou à obediência. Nos momentos de tentação serão quasi incessantes, sendo bom escolher algumas de ante-mão e tê-las sempre prontas.

O exercício das orações vocais exige muita precaução. Convém não nos sobrecarregarmos demais, e sempre

começá-las por um ato mental da presença de Deus. E' muito importante, para conservar a paz de espírito, não

repetir o que foi dito quando sentimos que nos distraímos e que a atenção se desviou

imperceptivelmente das palavras. Basta parar e fazer um ato de contrição e depois continuar. A conduta

oposta dá lugar a muito escrúpulo e acaba por tornar a oração vocal importuna e odiosa. Quando a negligência se insinuou pouco a pouco nos nossos hábitos, o único

remédio é recusar-nos certas liberdades que nos havíamos permitido, e combater deste modo a

negligência, dando alguns passos no sentido contrário. Se nos habituamos, por exemplo, a fazer orações

vocais fora de casa, ou passeando, ou na cama, e que daí resultou alguma negligência manifesta, é melhor abster-nos durante certo tempo de fazê-las

assim e recitá-las no quarto, de joelhos, ou numa posição de ligeira penitência. Não nos esqueçamos que.

o privilégio bendito da oração vocal é não somente a causa de muito escrúpulo, mas também fonte fecunda

de pecado venial, e a razão está quasi sempre na nossa falta de respeito e de reflexão. Não a comecemos,

portanto, se houver probabilidade de sermos interrompidos, e vigiemos rigorosamente o olhar. São

Carlos Borromeu nunca dizia de cor as partes mais

familiares do missal ou do breviário, porque achava que fitar os olhos no livro e ler as palavras muito contribuía

para inspirar devoção.E' bom meditar, de vez em quando, na dignidade das

orações vocais, e na comunhão dos santos, de que participamos ao recitá-las, sobretudo em se tratando de devoções universais, como o rosário e as orações do escapulário. Quem é muito dado à oração vocal deveria cultivar devoção particular aos anjos que, perante o trono de Deus, oferecem sem cessar, em suaves turíbulos, as orações dos justos à misericórdia divina. Lembremo-nos de que, enquanto outros meios nem sempre se aplicam a todos os casos, a oração convém a todos e a cada um em particular. Há pessoas que, depois de rezar durante determinado tempo para obter uma virtude, ou vencer um vício ou tentação, desani-mam e deixam de rezar. O demônio sugere-lhes que suas orações não serão ouvidas, não por falta de bondade de Deus, mas porque não merecem ser atendidas, e que a verdadeira humildade está em pensar assim. Na realidade tal fraqueza de espírito não é humildade; é uma ilusão tão contrária à fé como à esperança. E' muito importante lembrar-nos da verdade teológica de que a oração depende tão somente da bondade de Deus, e de modo algum dos nossos méritos. Os que se consideram incapazes da oração mental, devem cultivar a vocal. Se, no entanto, nos sobrecarregamos de tais práticas e verificamos que não prestamos a devida atenção, apesar da nossa boa vontade, é mister diminuir-lhes o número gradualmente, e, em compensação, redobrar de esforços para aplicar o espírito. Como regra geral, é melhor ter poucas orações vocais, e nelas perseverar com maior fidelidade. Diz santa Teresa que as posições cômodas são preferíveis para a oração mental, mas que as penitenciais convêm mais à oração vocal. Em todo o caso, uma postura respeitosa é metade da batalha na oração vocal. Quem encontra nessa devoção um auxílio para o recolhimento interior, deve tomá-locomo sinal de que tem vocação para isso; mas se, ao contrário, lhe for empecilho, santo Tomaz nos diz que é melhor abandonar o que não é de obrigação. Enfim, os que por tibieza se descuidarem durante longo tempo da meditação, não' têm melhor meio de se refrescarem e de tornarem assim à oração mental do que se entregando durante algum tempo ao hábito, talvez há muito abandonado, da oração vocal verdadeiramente infantil.

Agora direi umas palavras sobre as respostas à oração, assunto que perturba muita alma devota. São Bernardo, num dos seus sermões quaresmais, atribue a má oração a tres causas: a timidez, a tibieza e a temeridade. Podemos, portanto, desprezar estas tres espécies, na certeza de que não serão atendidas. A resposta às orações tem vários característicos, que devemos ter presentes ao espírito. O mais das vezes tarda em vir, e, ao ser concedido o que pedimos, sê-lo-á com frequência sob outra forma, ou ser-nos-á dada coisa diversa da que pedimos. As respostas são mais rápidas quando oramos no recôndito do coração, ou solicitamos cruzes, e portanto devemos ter cuidado neste ponto, ou ainda quando pedimos pela intercessão de nossa Senhora, ou, com santa Catarina de Bolonha,

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pelas almas do purgatório, ou, enfim, com santa Teresa, por meio de são José. E' falsa a espiritualidade que nos ensina a não rezar, ou rezar sem ânimo, pelo bem do próximo. O nosso poder de impetração depende muito de duas condições: Io do hábito da oração e da comunicação habitual com Deus; 2o do espírito de fé simples e pura com que rezamos.

Deus concede-nos sempre tres dons quando rezamos com humildade e fervor. O primeiro, diz são Nilo, é o dom da própria oração: "Deus deseja abençoar-te por mais tempo, enquanto perseveras nas orações, pois haverá algo de mais ditoso do que ficar em colóquio com Deus"? Aparentamos, por vezes, não ouvir os rogos dos entes que nos são caros, porque gostamos de ouvi-los suplicar. Assim José fingiu com seus irmãos. "Alegais, observa são João Clímaco, que nada re-cebeis de Deus, e todavia recebestes todo o tempo um dos seus maiores dons: a perseverança na oração". Deus tarda muitas vezes em responder porque muito preza a oração. O segundo dom é um acréscimo de méritos, porque perseverámos em orações que não foram deferidas. Deus, diz são Gregório, não se apressa em atender aos seus santos, para poder ampliar-lhes os méritos. Eo magis exaudiuntur ad meritum quo citius non exaudiuniu r ad votum. O terceiro dom é a preparação por meio dessa perseverança, para recebermos a graça com maior proveito, do que se nos fosse logo concedida. Segundo santo Isidoro, Deus tarda em atender às nossas orações, porque não estamos nas devidas disposições para receber o que pedimos, ou afim de que possamos receber dons mais elevados,. Assim, diz Gerson, dá-se conosco o que se dá às vezes com um mendigo que recebe esmola mais ge-nerosa de quem o fez esperar longo tempo à porta. Demais, os vestígios da vida que levamos antes da conversão, e que ainda não se apagaram de todo, fazem com que a oração opere com maior lentidão do que se a nossa penitência tivesse sido mais viva e mais vigorosa.

Os escritores místicos dão-nos diversos sinais, pelos quais podemos saber, mesmo na própria ocasião, se as nossas orações foram bem acolhidas. Muitas vezes sentimos uma firme confiança de que fomos atendidos, sem saber a que atribuir tal sentimento, e quando a esta confiança se junta um grande amor a Deus, um desprezo por nós mesmos, e um ímpeto quasi irresistível de prorromper em ação de graças, podemos, em geral, presumir que as nossas orações foram atendidas. Outras vezes, a esta confiança precede viva inspiração de rezar pelo objeto em questão, e Deus, diz santo Agostinho, não nos moveria a rezar assim se não estivesse prestes a no-lo conceder. Por vezes, também, além desses sinais exteriores, Deus envia outro, exterior, sob a forma duma aflição ou de um opróbrio, tais como a repreensão de Heli a Ana, a de nosso Senhor à mulher cananéa, e aquelas palavras misteriosas a Maria nas bodas de Caná. Foram sinais precursores de orações atendidas. Assim como diz Jó: "Quem é, como eu, escarnecido pelos seus amigos, clamará a Deus e Deus o acolherá". Ricardo de São Victor cita a fé robusta e rara, a profunda humildade ou veemente importu-nidade icomo provas interiores de que a oração foi atendida. São Boaventura receia, no entanto, que, a julgar estes sinais, talvez atribuamos com demasiada facilidade ao Espírito Santo o que é tão

somente o impulso da natureza exaltada. Finalmente, ao comentar as palavras do Evangelho: "Se dois dentre vós concordardes na terra para pedir qualquer coisa, meu Pai, que está no céu, vo-la concederá, pois quando dois ou tres se juntarem em meu nome, eu estarei no meio deles", santo Ambrósio nos diz: quem são esses dois ou tres, senão o corpo, a alma e o Espírito Santo? Com efeito, quando a alma reúne todas as faculdades interiores dentro do santuário do coração, afim de poder rezar em segredo a Deus Pai, quando o corpo recolhe os sentidos exteriores e os une à alma, então o Espírito Santo se aproxima e comunicaa essa união a tranquilidade e a paz, afim de que a oração se torne fervorosa e eficaz; então é que Jesus está presente no meio dos tres. Feliz união em que tantos elementos se combinam para suplicar o Padre eterno! Que resta a desejar, que podemos propor de mais eficaz? "Alegra-te no Senhor, e ele atenderá às tuas petições, diz Davi; pois, se fizermos consistir a nossa alegria em agradar a Deus, ele se alegrará em atender às nossas orações".

Não devemos, no entanto, preocupar-nos demais a respeito da resposta às nossas orações. Rezemos com fé, com profundo sentimento da nossa indignidade, e abandonemos o resto a Deus. Mesmo sob o ponto de vista do nosso próprio interesse, lembremo-nos de que nenhuma oração tem tamanho poder de impetração, como a que provém da nossa vontade conformada à vontade de Deus, e foi este o segredo da poderosa intercessão de santa Gertrudes. Resta ainda um assunto a reclamar-nos a atenção, enquanto tratamos da oração vocal. Quem é dado à oração vocal está ordinariamente à mercê do livro de orações. E', pois, muito importante saber escolher as devoções, e como nos havemos de guiar com maior segurança do que escolhendo as devoções que foram aprovadas pela Igreja e por ela indulgenciadas? Há estreita relação entre as indulgências e a vida espiritual, e o emprego das devoções indulgenciadas é a pedra de toque pela qual reconhecemos, de modo quasi infalível, um bom católico. Segundo santo Afonso, basta, para tornar-se santo, ganhar todas as indulgências possíveis, e são Leonardo de Porto Maurício é mais ou menos da mesma opinião. As revelações particulares e aprovadas dos santos projetam luz importante sobre esta matéria. Santa Brígida foi suscitada em grande parte, como ela mesma diz, para propagar a glória das indulgências; e santa Maria Madalena de Pazzi viu almas castigadas no Purgatório, somente porque as menosprezaram.

Há, na vida espiritual, o que chamarei as oito bem-aventuranças das indulgências. Em primeiro lugar,

porque se relacionam com o pecado, com a justiça de Deus e com a pena temporal devida ao pecado, as

indulgências conservam em nós certos pensamentos que pertencem à Via Purgativa, o que nos é salutar,

embora desejemos com impaciência ir adiante e livrar-nos deles. Em segundo lugar, produzem em nós a feliz

disposição de desinteressar-nos deste mundo e conduzir-nos a um mundo invisivel, cercando-nos de imagens sobrenaturais; infundindo em nosso espírito

uma ordem de idéas que nos desapega das coisas mundanas e exprobra os prazeres terrenos. Em terceiro

lugar, lembram-nos continuamente a doutrina do Purgatório, e assim nos obrigam ao constante exercício da fé, enquanto nos sugerem motivos de santo temor.

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250 CAPÍTULO XV

Em quarto lugar, fazem-nos praticar para com os fiéis defuntos o exercício da caridade, que se pode tornar

heroico, estando assim ao alcance dos que não podem dar outras esmolas, e produzindo na alma os efeitos

que acompanham as obras de misericórdia. Em quinto lugar, as indulgências muito interessam à glória de

Deus, e por dupla razão: porque libertam as almas do purgatório, apres-sando-lhes a entrada na corte

celestial, e porque patenteiam algumas perfeições divinas, tais como a infinita pureza, o ódio ao pecado,

mesmo ínfimo, e o rigor da justiça, aliada à mais engenhosa misericórdia. Em sexto lugar, as

indulgências prestam homenagem às satisfações que Jesus ofereceu

por nós. São para com estas satisfações o que é, para os seus méritos, a doutrina de que todo perdão dos pecados é devido a ele. Podemos, por conseguinte, dizer que, aproveitando-se o mais possível dele e dos seus méritos, as indulgências realçam a copiosidade de sua redenção. Honram também as satisfações de Maria e dos santos, de modo a honrar ainda mais a Jesus. Em sétimo lugar, dão-nos uma idéa mais séria a respeito do pecado e aumentam o horror que lhe temos. Com efeito, as indulgências lembram-nos constantemente a verdade de que o castigo é devido mesmo ao pecado

perdoado, castigo terrível, embora temporal, do qual só nos podemos livrar pelas satisfações de Jesus. Em oitavo lugar, as indulgências mantêm-nos em harmonia com o espírito da Igreja, e isto é de suma importância para quem aspira à vida devota e caminha entre as dificuldades do ascetismo e da santidade interior. Depreciar as indulgências é sinal de heresia, e o ódio que esta lhes vota é indício de que o demônio as detesta, e isto realça-lhes o poder perante Deus e a aceitação de sua parte. Estão de tal forma envolvidas nas particularidades da Igreja, — da jurisdição da Santa Sé até à crença no Purgatório, nas boas obras, nos santos, e na satisfação, — que nos dão uma quasi garantia de ortodoxia. O conjunto de erros infelizes que afligiram a Igreja no tocante à vida espiritual mostra-nos que, para sermos verdadeiramente santos, de-vemos ser verdadeiramente católicos romanos, pois fora de Roma não pode haver nem catolicismo, nem santidade.

Além do mais, as orações indulgenciadas oferecem em si outra vantagem: Temos certeza de que gozam da plena aprovação da Igreja. Sabemos que são empregadas diariamente no mundo por nume-Faber, O progresso — 18

274 CAPITULO XV DA ORAÇÃO

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rosas almas piedosas e, unindo-nos a elas, partici-pamos mais intimamente da comunhão dos santos e da

vida da Igreja, que lhe constitue a unidade. Por todas estas razões, o emprego das indulgências espiritualiza

cada vez mais a nossa alma e aviva-nos a fé. Levam-nos a rezar conforme quer a Igreja e sobre assuntos por

ela indicados, e assim podemos alcançar, simultaneamente, muitos fins, pois pelo mesmo ato não somente rezamos, mas protestamos a nossa veneração às chaves da Igreja, honramos a Jesus, a sua Mãe e aos santos, evitamos o castigo temporal que nos é devido, ou, melhor ainda, libertamos os mortos e assim glorifi-

camos a Deus. Podemos verificar também que, ao percorrermos as devoções indulgenciadas, transferimos para o nosso espírito muita doutrina tocante, que serve

de alimento à oração mental e a um amor cheio de reverência.

Tomemos um exemplo. Não posso conceber que alguém seja espiritual sem o hábito de rezar o terço, a rainha das devoções indulgenciadas. Em primeiro lugar, consideremos a importância do rosário como devoção própria da Igreja, imprimindo na alma um caráter essencialmente católico e con-servando-nos perpetuamente no espírito a lembrança de Jesus e de Maria, e como precioso auxílio para alcançarmos a perseverança final, se o recitarmos com fidelidade, conforme no-lo provam diversas revelações. Consideremos, em seguida, que são Domingos o instituiu em 1214, inspirado numa visão, e com o fim de combater a heresia, e consideremos o êxito que o consagrou. Quanto à matéria e à forma, não são menos notáveis. A matéria consta do Pater, da Ave Maria e do Glória, cujos autores foram respetivamente nosso Senhor em pessoa, são

Gabriel, santa Isabel, o concílio de Éfeso e a Igreja em peso, dirigida no ocidente por são Dâmaso. A forma é um resumo completo do Evangelho, constando de quinze mistérios, divididos em dezenas, exprimindo as tres grandes fases da Redenção: os gozos, as dores e a glória. Seu traço característico imprime-lhe uma nova atração, pois une a oração mental à vocal. E' um resumo de teologia, cheio de suave devoção, e uma prática eficaz da presença de Deus. E' um dos principais canais para propagar entre os fiéis as tradições da Incarnação. Mostra a verdadeira natureza da devoção a nossa Senhora. E' um meio de realizar a comunhão dos santos. Os fins do Rosário são: o amor a Jesus, a reparação à sagrada Humanidade pelos ultrajes causados pela heresia, e a ação de graças, contínua e fervorosa, à Santíssima Trindade, pelo benefício da Incarnação. E' uma devoção sancionada pela Igreja, pelas indulgências, pelos milagres, pela conversão dos pecadores e pela prática dos santos. Vejamos tudo quanto envolve o modo de recitá-lo. Devemos, primeiro, figurar-nos a imagem do mistério a considerar, dando neste quadro um lugar a nossa Senhora, pois o rosário lhe pertence. Unamos a cada mistério um dever ou uma virtude. Escolhamos previamente uma alma do purga-tório a quem desejamos aplicar as ricas indulgências que podemos ganhar. Não devemos, entretanto, rezar com tensão de espírito nem com escrúpulos, porque, na verdade, rezar bem o rosário constitue verdadeira ciência. Lembremo-nos sempre, como ensina o Compêndio das Indulgências, de que o décimo quinto mistério é a coroação de Maria, e não somente a glória dos santos. Nosso terço eonduz-nos aos pés de Maria coroada. 18*

Nada quisera dizer que pudesse restringir qual-auer devoção. Tomando, todavia, tudo em consideração quando a Igreja

indulgencien tao grande n^eJle

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250 CAPÍTULO XV

orações e devoções, por q™rrer a orações vocais que não são indulgenciadas?

CAPITULO XVI

Das tentações

As tentações constituem matéria prima de glória; saber regê-las é tão importante quanto governar um império, e requer a mesma vigilância incessante e universal. Estremecemos ao contemplar o mundo e estudar-lhe os hábitos, considerando em seguida que Deus se fez Homem e morreu na cruz para remi-lo. Não surpreende menos, porém, observar a vida da gente boa, examinar-lhe as disposições e depois compará-las às máximas do Evangelho. Neste momento milhares de almas queixam-se amargamente a Deus de suas tentações, enquanto ressoam, em centenas de confessionários, murmúrios impacientes contra a sua veemência e insistência. Disse, no entanto, são Tiago: "Meus irmãos, alegrai-vos ao cairdes em diversas tentações". E* evidente, por conseguinte, que desconhecemos, ou não temos sempre presente ao espírito, a verdadeira natureza e o caráter das tentações. São quasi tão numerosas quanto os pensamentos, e só as venceremos pela coragem perseverante e inalterável bom humor. As flechas das tentações caem embotadas e não ferem o coração jovial, tão profundamente abismado na humildade, que nada o fará cair mais baixo. Sede alegres, ou, para empregar as palavras da Escritura: "alegrai-vos, e de novo vo-lo digo, alegrai-vos", e não prestareis ouvido às tentações, nem elas vos prejudicarão.

Mas tratemos de obter uma idéa clara a respeito da natureza das tentações. Em primeiro lugar, se é supérfluo dizer que não são pecados, no entanto, em nove casos sobre dez, a nossa aflição provém de não fazermos esta diferença. Parece que o simples contato da tentação nos macula, enquanto nos revela, mais que qualquer outra coisa, a nossa extrema fraqueza e a necessidade constante que temos da graça, e de uma graça muito especial. Assemelhamo-nos às pessoas que ignoram quão dolorosa é a sua ferida até que seja comprimida, e então exageram o seu mal. Assim também, quando a tentação oprime a natureza decaída e débil, sua sensibilidade torna-se tão delicada e tão viva que temos logo a impressão de que se trata de uma chaga, ou moléstia. Evitemos, todavia, confundir pecado com tentação.

As tentações são interiores ou exteriores, ou uma e outra ao mesmo tempo. As interiores provêm quer dos

sentidos livres e indisciplinados, quer das paixões ardentes e desregradas. As exteriores assaltam-nos

quer nos deleitando, como as riquezas, as honras, as afeições e as distrações, quer nos atacando, como os

demônios. Quanto às que participam das duas naturezas, possuem os atrativos de ambas. Encaradas,

porém, sob certo ponto de vista, todas as tentações consistem numa aliança entre o que está dentro de nós

e o que está fora de nós, e, conforme tive ocasião de dizer, se não devemos atribuir ao demônio o que lhe

compete, todavia devemos receá-lo e ter uma idéa

clara das funções terríveis e malignas que lhe atribue a Escritura. Ele roda por toda a parte, procurando a

quem devorar. Será leão rugidor quando seu rugir nos amedrontar, e serpente silenciosa, quando o mistério

lhe garantir o êxito. Reduziu as possibilidades danossa ruina a uma ciência, que aplica com incansável atividade, magistral inteligência e com as mais variadas e terríveis modalidades. Não fora o pensamento soberano da graça que nos é dada em abundância, e não ousaríamos contemplar os modos e os meios de que dispõe o reino de Sa-tanaz.

E, no entanto, a tentação nunca é mero combate entre o homem e o demônio. Deus está sempre onde está a tentação. Não há uma só que sua yontade não tenha permitido, e não há uma única permissão sua que não seja ao mesmo tempo um ato de amor. Cada tentação está impregnada da sabedoria divina. Deus lhe calculou os efeitos e muitas vezes lhe diminuiu a violência. Mediu e pesou cada uma segundo a fraqueza da alma tentada. Previu-lhe igualmente as consequências e as circunstâncias. As minúcias não lhe escaparam. O perigo mais recôndito figurou nos seus juízos. E durante esse tempo o demônio permaneceu inerte e impotente. Não poderá tocar no filho enquanto as condições exatas não forem prescritas pelo Pai amoroso que já preveniu a alma com suas inspirações e a armou com os devidos socorros da graça. As tentações não vêm ao acaso; não se cruzam no ar como balas sobre o campo de batalha. Além de que, cada tentação já tem sua coroa preparada, se a alma

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250 CAPÍTULO XV

corresponder à graça e alcançar vitória. Não conheço imagem mais comovente de Deus do que esta que nos dá a fé, mostrando-o cheio de solicitude e todo entregue aos afazeres paternais, enquanto dura a tentação. "Onde estavas, Senhor, quando eu era tentado?" clamou o santo no deserto. "Ao teu lado, filho, todo o tempo", foi a terna resposta. Assim como os homens consideram, por vezes, a dor como um privilégio, porque lhes granjeia a simpatia dos superiores, assim também devemos regozijar-nos com as tentações, porque então Deus se ocupa intensa e amorosamente dos nossos pequenos interesses e cuidados. O santo mais altamente colocado no céu não conseguiria amar a Deus como Deus ama a alma que luta contra as tentações.

A tentação não deixa, todavia, de ser sofrimento agudo, maior que a doença e a adversidade. Seu sopro é execrável, no seu olhar há algo de terrível e fascinante, o seu contato gela e paralisa. O sentimento da nossa própria corrução e mísera fraqueza faz-nos desfalecer e desgosta-nos. Os interesses palpitantes que a nossa resistência ou derrota envolvem, agitam-nos as fibras mais secretas da alma. Querer negar tal sofrimento, ou não lhe dar importância, é uma tolice que nos torna menos capazes de suportá-la. E' no pensamento da proximidade de Deus e da sua graça abundante e pronta, que devemos procurar alegria e consolação.

Apesar de todo o seu saber, o demônio se engana constantemente a respeito das tentações, não por falta de inteligência, embora talvez Deus o prive às vezes deste dom, mas porque ignora o tesouro invisivel da graça que nos foi concedido misericordiosamente. O amor que Deus nos tem excede de tal forma os nossos méritos e a nossa espectativa, que não é dado nem ao tentador nem a nós mesmos imaginá-lo de antemão. Assim é que, por vezes, o demônio nos tenta de modo por demais vulgar. Encontrando-nos já prevenidos, ilu-de-se no tocante à tentação que nos suscita, a exemplo de alguém que recebe uma carta destinada a outro, ou, se acertar a tentação, a hora não convém; ou, ainda, como ele não pode sempre ler os pensamentos, interpreta erroneamente as nossas ações exteriores, e cessa cedo demais, ou insiste inoportunamente; ou não dá o justo valor aos efei-t,os que a penitência e o nosso amor a Deus produziram sobre hábitos antigos e pecaminosos. Assim é que, por um ou outro motivo, ele se ilude constantemente. Convém refletirmos sobre este ponto. Muitas pessoas, com efeito, ao serem interrogadas sobre Satanaz e os limites do seu poder, respondem corretamente e, todavia, fazem-se, na prá-tica, uma idéa falsa a respeito, enquanto a sua conduta na tentação patenteia a influência que este ponto de vista exerce sobre elas. Às vezes as quedas não lhes causam toda a aflição que deviam, e outras vezes o terror as invade ao perceber que estão em poder do demônio, de modo que basta tocá-las para vencê-las. Estou convencido de que isto é devido, em grande parte, à idéa falsa que, meio inconciente, formaram sobre o demónio, que atua sobre elas à semelhança do medo de fantasma sobre as crianças, desarrazoada, po-rém irresistivelmente. Consideram-no como rival de Deus, uma espécie de Deus perverso, cujos atributos divinos são todos maus, e cuja ubiquidade é onipotente. Não se lembram de que ele é simples

criatura como nós, e criatura vencida e maculada. Temos razão de temê-lo; não obstante, não nos amedrontamos com a companhia diária das nossa própria natureza corruta, e temos muito mais a temer dela que do demónio.

Por grandes que sejam a aflição e o desgosto que as tentações possam causar à alma, é, com frequência, dom de Deus não sermos preservados delas. E, algumas vezes, é até prudente não pedir que sejam afastadas de nós, mas implorar somente a necessária coragem para lutar com energia. Tres vezes pediu são Paulo que lhe fosse tirado o espinho, evidentemente para imitar a tríplice oração de nosso Senhor, quando pediu que o cálice se afastasse dele; e a resposta de Deus mostra quão precioso é o dom da tentação, ou a permissão divina pela qual somos tentados. Um eminente escritor ascético observou (e talvez seja consolador para muita gente) que, quando o demônio nos ataca o corpo, é muitas vezes sinal de que foi vencido ao investir contra a alma. Desviar-nos da virtude, de preferência a impelir-nos ao vício, é também um característico seu, que emprega sobretudo com pessoas espirituais. Nelas, os pecados de omissão têm maior valor para o demônio que os de ação, não somente porque é mais fácil cair a pessoa piedosa naqueles do que nestes, como também porque os pecados de ação despertam nela mais vivo arre-pendimento. A tibieza pode consistir em acumular a avenida da alma com pecados de omissão, de modo a impedir que as inundações frescas e salutares da graça encontrem livre passagem.

A aproximação do demônio quasi nunca deve surpreender a quem é vigilante. Seja em virtude da natureza espiritual da alma, seja pela advertência da graça, temos um quasi pressentimento da sua chegada, contanto que tenhamos o hábito do recolhimento. O importante é que não nos perturbe tal pressentimento, mas que aguardemos o inimigo revestidos duma tranquila humildade, e esta calma nunca nos deve abandonar, mormente se sentirmos o prazer que, a maioria das vezes, causa a tentação. Digo a maioria, porque há muita classe de tentações que deixaria de o ser se não fosse esse prazer. Mas prazer não significa consentimento. Não somos senhores do primeiro impulso ir-refletido do coração e do espírito. O inimigo pode estender subitamente a mão sobre as chaves antes de estarmos prevenidos. Mas para que importe em consentimento, ou se torne pecado, é preciso que aceitemos o prazer e nele nos demoremos propositadamente.

Todos têm suas tentações, e muitas. E, entre os diversos caminhos pelos quais Deus conduz as almas escolhidas, está a vereda das tentações. Tais almas não estão no caso das outras. A tentação é seu caminho e seu único caminho. Passam por entre multidões de tentações, atravessando uma após outra, e cada qual excede a precedente em horror e em fealdade. Não é esta, todavia, a norma geral de Deus, e não nos interessa agora legislar a respeito. O fato de poder Deus fazer consistir o caminho da perfeição unicamente em tentações lança, no entanto, considerável luz sobre a natureza da tentação em geral.

Da natureza das tentações, passemos à sua du-ração. Podemos ter épocas de grandes graças sem o

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percebermos, pelo profundo mistério com que o Espírito Santo opera nas almas. Mas a tentação se faz sentir com outra clareza que a graça; e, em geral, o tempo da tentação extraordinária é também o de graças especiais. Isto já nos deve consolar. Quando santo Estevão sofria as peiores tentações contra a sua fé heróica, viu nosso Senhor, não sentado, mas de pé, à dextra do Pai, exprimindo assim o auxílio que prestava ao seu servo na hora crítica. As tentações variam também, segundo as fases da vida espiritual. As tentações dos principiantes diferem das tentações dos adiantados, e estas, por sua vez, não se parecem com as dos perfeitos. Se todas são terríveis, todas de-pendem de Deus. Fiquemos, pois, tranquilos e serenos. Há também momentos em que as tentações resultam dos pecados passados ou da culpável ne-

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284 CAPITULO XVI

gligêneia atual. Nossa conduta suscitou-as, o que as torna ainda mais insuportáveis ao nosso amor próprio. Mas, porque são o castigo justo e imediato das nossas culpas, não há menor mérito em sofrê-las com paciência, e a aflição não deve fazer parte da penitência aceita. Também o tempo dedicado à oração está repleto de tentações especiais. E' natural que assim seja, pois o demônio nada receia tanto como as nossas comunicações com Deus. Com efeito, a presença e a veemência da tentação pertencem às dificuldades naturais da oração. A vida espiritual em si, com fases de retiro ou de maior recolhimento, acarreta tentações especiais. O mundo, com as atrações exteriores, aparta-se de nós, e o demônio, receoso dessas épocas de recolhimento, preenche largamente o lugar vazio com tentações interiores. Às vezes nos importuna com tentações, embora saiba antecipadamente que não havemos de consentir, mas de que tira proveito porque nos inquietam e desanimam, ou nos lançam num estado de irritação geral. Outras vezes tenta-nos na própria graça que acabamos de empregar contra ele, e em virtude da qual o vencemos de fato. Conta que o êxito nos tenha inspirado segurança, de sorte que não imaginamos poder faltar à virtude que acaba de nos alcançar a alegria da vitória. Assim é que nosso Se-nnor, tendo posto sua confiança no Pai, foi logo tentado pelo demônio neste ponto. Na sua ignorância, procedeu com ele conforme costuma proceder com os simples mortais.

Vejamos agora quais as diferentes espécies de tentação. Algumas são frequentes, e essa assiduidade envolve um perigo todo especial. Dissipam-nos e perturbam-nos a calma do recolhimento; ou cansam-nos e por fim desanimam-nos, e abandonamos a luta; ou familiarizamo-nos com elas, e perdemos o receio salutar que nos inspiram. Essas tentações frequentes se relacionam, em geral, com a paixão dominante. Certas tentações são permanentes e essas também oferecem perigos e consolações. Se o principal perigo é que a persistência do ataque exceda a nossa perseverança, a maior consolação é essa mesma persistência, pois indica que ainda não triunfaram. A pressão que sobre nós exercem desaparece no momento em que consentimos; e, por conseguinte, na continuidade da opressão mede-se a graça que Deus nos deu para resistir. Embora Jesus esteja a dormir no barco, no entanto, se este não submerge na tormenta, é devido à sua presença. Outras tentações não se demoram: são rápidas e fracas, ou rápidas e violentas. Aquelas nos deixam na dúvida se consentimos, e perturbam-nos; estas atordoam-nos no momento e deixam-nos atônitos para que, nesse inter-valo, outras nos venham surpreender. Cada virtude tem as tentações que lhe são próprias, dispostas pelo demônio como espiões em redor. O seu grande objetivo é afastar-nos das práticas devotas e reduzir-nos à inação estéril. Procedamos para com elas como são Bernardo procedeu para com o demônio, que lhe quis inspirar sentimentos de vã glória no meio de um sermão: "Não comecei por ti, e não cessarei por tua causa". As tentações que se chegam a nós pelos sentidos estão à prova de todas as armas, exceto as da mortificação e dos sacramentos. As tentações contra a fé e a castidade formam duas classes à parte e têm esta particularidade, que raras vezes convém resistir-lhes diretamente. Afastemo-nos e deixemo-las passar, ou então fujamos. Procuremos distrair-nos delas, de preferência a atacá-las. Por fim há tentações que

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DAS TENTAÇÕES

são meras sondagens que o demônio faz para verificar a possibilidade de pecarmos. Ele assim procede afim de adquirir algum conhecimento a nosso respeito, porque não lhe é possível ler nos corações (1); é qual exército sitiador qúe lança foguetes ao acaso dentro da cidade, tentando alcançar os armazéns de pólvora. Mas entre todas as espécies de tentações, não há uma só que seja indício de que a alma esteja em más condições. Os escritores espirituais sustentam isto como sendo fato incontestável, e no entanto quantas, almas no mundo se afligem e se atormentam tola e inutilmente, como se o contrário fosse verdade?

Quais são as utilidades das tentações? São tantas e tão grandes que apenas indicaremos algumas. Em primeiro lugar, provam-nos e não teríamos valor algum se não fôssemos provados. A nossa provação é a única coisa que Deus aprecia e a única que nos pode dar certo conhecimento de nós mesmos. Demais, as tentações nos desgostam do mundo quasi tanto quanto a doçura sensível que Deus nos concede na oração. E como é difícil sentir verdadeira repugnância pelo mundo, se o apego que lhe temos é, de fato, muito maior do que suspeitamos? Que valor não devemos, pois, dar a tudo que nos possa facilitar a separação radical e definitiva deste mundo sedutor! As tentações habilitam-nos a obter novos méritos, isto é, aumentam o amor que Deus nos tem, o que nós lhe temos e a glória que nos espera no outro mundo junto a ele. Infligem-nos o castigo devido aos pecados pas-sados, o que deveríamos procurar com avidez, por-quanto cinco minutos de sofrimento voluntário na

terra valem cinco anos de sofrimento tardio no pur-gatório. Purificam-nos para que possamos apresentar-nos diante de Deus e assim preenchem e antecipam as funções do purgatório, de cujas chamas nos livram. Dispõem-nos a receber as consolações espirituais, e talvez até no-las consigam, porque, no dizer de são Felipe Neri, Deus nos dá um dia nublado seguido de um dia luminoso, e assim corre a nossa vida. Haverá palavras que possam exprimir toda a alegria que sentimos quando Deus nos consola ? Não são as almas de quem ele se aproxima obrigadas a calar-se porque lhes faltam palavras para dizer o seu júbilo íntimo? E, no entanto, não fosse a tentação e não teríamos a con-solação, ou, se esta nos fosse concedida, talvez nos fizesse mal. As tentações tornam-nos aptos a suportá-la sem prejuízo, e a saboreá-la sem desfalecer sob a efusão da sua celestial suavidade. As tentações nos revelam a nossa fraqueza, e por conseguinte nos humilham; poderia o nosso anjo da guarda fazer mais do que isso por nós, apesar da variedade dos serviços que nos presta com tanta benevolência? Ah! Príncipe querido, mais amado que um irmão! Digo isto sem menosprezar-lhe a bondade inexprimivel, que nunca me desamparou, a mim, pobre átomo solitário nesta imensa criação de Deus, e cujos serviços só reconhecerei no dia do juízo final, ao vê-los todos mais brilhantes que mil sois, e cujo amor, em vez de se extinguir, redobrará quando vier abraçar-me no primei-ro momento da ressurreição da carne! Nada há, entretanto, que ele deseje tanto quanto me ver con-servar a humildade, e as tentações lhe são poderoso adjutório. Aumentam também a estima que

temos pela graça, e cuja falta dá lugar diariamente no mundo a males superiores aos que o demonio poderia causar em um século. A graça cresce ao ser apreciada e multiplica-se ao ser honrada, como a fé que merece

milagres, enquanto a infidelidade impede que nosso Senhor os opere. As tentações levarão a virtude a criar

raizes mais profundas, contribuindo, portanto, para alcançar-nos a grande graça da perseverança final.

Quão superficial seria a espiritualidade, se não fossem as tentações! Quão superficial é a piedade das almas

pouco tentadas! A Igreja nunca poderá contar com elas em caso de necessidade. Estão sempre do lado em em

que santo Tomaz de Cantuária não queria estar. As tentações tornam-nos mais vigilantes e assim, em vez

de nos fazerem cair no mal, impedem muito pecado. Avivam-nos o fervor; abrasam-nos com as chamas do

amor, que consomem o joio do pecado venial e cicatrizam as chagas, meio saradas, do pecado mortal.

Um transporte de amor generoso poderá alcançar os mesmos resultados felizes de um ano de jejum a pão e água, com disciplina diária. Finalmente, as tentações

ensinam-nos a ciência espiritual! Com efeito, tudo

quanto sabemos a respeito de nós mesmos, do mundo, dos demônios e dos artifícios da graça divina, devemo-

lo sobretudo ao fenômeno da tentação, tanto às der-rotas quanto às vitórias.

Tais as diversas utilidades das tentações, que, além do mais, nos deixam, ao passar, sete bênçãos indeléveis. Deixam-nos o mérito, coisa não transitória. Com efeito, tal é a sua vitalidade que, se o pecado mortal o destruir, a penitência pode ressuscitá-lo. Deixam-nos o amor, tanto o amor que Deus nos tem como o que nós lhe temos. Deixam-nos a humildade, e com ela os demais dons deDeus, pois o Espírito Santo em pessoa repousa nos humildes e habita em seus corações. Deixam-nos a firmeza, e o edifício que construímos sobe em franco progresso, enquanto os alicerces ficam assentados com mais estabilidade. Deixam-nos o conhecimento próprio, sem o qual tudo o que fazemos é feito nas trevas, pois não brilha o sol sobre a alma, nem está desimpedido o campo para as operações da graça. Deixam-nos o amor próprio sem vida, e haverá, no mundo, tarefa mais suave que enterrar o nosso peior e mais odioso inimigo? Seu cadáver nos é mais precioso que a relíquia de um apóstolo, e isto diz muito. Deixam-nos entregues aos cuidados de Deus e nunca ama alguma colocou uma criança nos braços do pai com maior cuidado e desvelo do que as tentações nos depositam nos braços

1) Surin diz que o demônio pode lér nos nossos corações; mas a opinião dos teólogos é contra ele. Demais, os fenômenos do demônio se explicam sem que seja necessário renegar as máximas admitidas pelas escolas.

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DAS TENTAÇÕES

estendidos de Deus. Estamos sempre, no entanto, a queixar-nos das tentações! Que perversidade! E foi sempre assim. Desde a macieira do Éden até esta hora, desconhecemos a nossa própria felicidade, e, em nossa ignorância, desafiamo-la para a luta.

Podemos tanto errar a respeito das tentações como a respeito de qualquer outra coisa na vida espiritual. Muitos erros foram explicados no que acaba de ser dito. Falarei, porém, de quatro erros em especial, que

merecem ligeiro estudo. O primeiro consiste em pensar que o tempo empregado em combater as tentações é tempo perdido. Tudo corre bem, gozamos a tranquilidade e temos mais ou menos o sentimento da presença de Deus enquanto nos ocupamos das lidas diárias; mas, no momento da visita ao Santíssimo Sacramento, uma multidão de tentações nos atacam incontinenti. Dispomos apenas de um quarto de hora para dedicar a essa visita, e o tempo vai-se todo em combater essas Fáber, O progresso — 19

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míseras tentações. Ou então levantamo-nos pela manhã, cheios do pensamento em Deus; rezamos

enquanto nos aprontamos, e depois ajoelhamo-nos para meditar, e logo nos assalta uma hoste de tentações. A

hora passa e que fizemos? 'Nada, senão lutar, e a nosso ver com desvantagem, contra as malditas tentações.

Ora, é preciso nos lembrarmos de que não servimos a Deus pela consolação, nem a nosso modo e segundo os

nossos gostos, mas conforme a sabedoria e a vontade divina. As recompensas não se destinam às boas obras que nós nos indicamos, mas aos combates em que ele se apraz envolver-nos. O tempo empregado em fazer a vontade de Deus nunca é tempo perdido; ao contrário, todo o tempo empregado de outro modo o será. Qual o

nosso objetivo? Glorificar a Deus, alcançar a perfeição e merecer o céu. Lutar contra a tentação é, pois, o meio

mais rápido de atingir estes tres fins.O segundo erro está no falso conceito que as almas

negligentes formam das tentações. Julgam, por vezes, que é sinal de progresso espiritual, permanecerem inertes e quasi passivas sob o efeito das tentações. Aplicam a si mesmas conselhos que só convêm aos perfeitos, ou máximas destinadas a gente escrupulosa. E assim caem no hábito pernicioso de dar aos pensamentos perigosos livre curso. O resultado será não somente enfraquecer o espírito, como também saturá-lo com imagens e inclinações inoportunas. Não encaram mais o pecado como outrora, e cresce a confiança que têm em si, enquanto aumentam as probabilidades da queda. A consequência final é um estado de torpor e de negligência geral em relação a Deus, e se, por ventura, vierem a despertar, será provavelmente por meio do pecado mortal. Almas tíbias já renasceram à santidade por tão terrível meio, e Deus patenteou-lhes a sua misericórdia no justo castigo dessa licença adorável. O só pensar em tal processo deve fazer-nos estremecer e no entanto é, a seu modo, uma espécie de misericórdia terrível, que ele provavelmente nunca concedeu às almas que adiam deliberadamente o arrependimento e confiam nas possibilidades incertas de uma reconciliação eventual. Quem se familiarizou com aquilo que sabe ser tentação, seja qual for a natureza, e se acostumou a tal pensamento, deu um passo decisivo em direção daquela tibieza, cujo desfecho lógico é a im-penitência final.

O terceiro erro está no modo de empregarmos os momentos de calma que se seguem às tempestades das tentações periódicas. Cada qual sabe, por experiência, que é sujeito a certas espécies, ou a certa espécie de tentação, que surgem como verdadeiros furacões, ou ciclones, com tempo firme e tranquilo de permeio. Corre-nos a vida como de costume e nada, em nós mesmos nem nas circunstâncias exteriores, faz prever uma mudança, quando de súbito desaba a tempestade, que nos enche de um pavor igual ao dos pagãos em presença do trovão num céu límpido. As imagens das tentações perseguem-nos. Vemo-las em todos os objetos exteriores. Pensamos ouvir vozes misteriosas, sons inarticulados se traduzem em palavras inteligíveis. Ao ler um livro, cada linha fornece-nos novas idéas para tentações, as orações e os nomes santos só servem para alimentar a imaginação oprimida. Estamos completamente submergidos nas tentações, e a corrente imperiosa passa por cima de nós em redemoinho. Não se dá conosco o que se deu com Pedro, a quem a mão de Cristo se estendeu no momento em que afundava. Já sossobrámos. Sim!mas Jesus está conosco nas profundidades em que nos encontramos. Agora, enquanto durar a tempestade, só nos resta agarrar-nos a Deus com toda a força. Não há nada a fazer e não podemos ditar leis ao furacão. Foi na calmaria anterior que devíamos ter-nos preparado para a tempestade vindoura. E' erro considerar essa bonança como período de repouso, em que podemos entregar-nos ao simples prazer de sentir que estamos livres de tentações, ou gozar da devoção espiritual que ge-ralmente sucede a tais tempestades. E' o momento de fazer planos, de tomar resoluções, em previsão do que nos espera. Devemos determinar as ocasiões a evitar, aumentar as mortificações e redobrar de fervor nas orações. Sossobramos em muita tempestade porque consideramos a bonança como temporada de férias. Lembremo-nos de que, se na vida espiritual há recreios, não há férias. Estas só começam uma vez, mas serão eternas.

O quarto erro é a ilusão em que o demônio nos procura lançar, isto é, de que ceder à tentação, na parte em que não chega a ser pecado, é enfraquecê-la. O espírito parece estar tão sobrecarregado com as imagens da tentação, que julgamos sofrer algum dano moral irreparável se esta durar, e que, portanto, tudo que serve para afastá-la, e que não chegue a ser

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DAS TENTAÇÕES

pecado, não é somente lícito, mas desejável. Estranhamos que tão grosseira cilada possa jamais ser bem sucedida, e, no entanto, assim será em muitos casos. Lembremo-nos, por conseguinte, de que ceder é enfraquecer-nos a nós, e I não à tentação. Não encontraremos outra posição tão firme quanto a primeira, e muitas vezes descobriremos à nossa custa que mudar de atitude, mesmo sem abandonar a defensiva, equivale à derrota no momento da tentação.

Mas como vencer as tentações? Pela alegria, em primeiro lugar, pela alegria, em segundo lugar, pela alegria, em terceiro lugar. O demônio fica preso. Pode latir, mas não morder, exceto se nos chegarmos a ele, e lho permitirmos. Tenhamos coragem. O poder da tentação está na fraqueza do nosso próprio coração. A confiança em Deus é outra arma espiritual, e tanto mais poderosa quanto ninguém pode confiar em Deus sem desconfiar inteiramente de si. A causa de Deus é a nossa causa, pois a tentação é antes raiva do demônio contra Deus, que o castigou, do que contra nós, a quem apenas inveja. Dá importância à nossa ruina por ser um golpe na glória divina. E' como se Deus estivesse ligado a nós, pois somos perseguidos por sua causa. Podemos ter certeza — e de fato o sabemos indubitavelmente — que nunca seremos provados acima de nossas forças. A oração, e sobretudo a jaculatória, é outro meio de vitória à qual se juntarão a mortificação e a frequência dos sacramentos, porque são fontes de fortaleza sobrenatural.

O exame de conciência nos ajudará a descobrir os lados fracos e vulneráveis da nossa natureza, para depois nos exercitarmos em atos que contrariem não somente as enfermidades que nos são próprias, como também as tentações habituais. Evitemos a ociosidade. Esmaguemos os impulsos incipientes. Não falemos indiscriminadamente das nossas tentações a quem não compete, nem mesmo a amigos espirituais. São confidências que não proporcionam nenhum verdadeiro alívio e só servem para alimentar a imaginação. Não convém tão pouco desanimar se o diretor não der a essas tentações toda a importância que nos parecem merecer. Por que lhe falar a respeito, se não preten-demos obedecer às suas regras, adotar os seus pontos de vista e seguir o seu conselho?

Em época de tentação, devemos abster-nos cui-dadosamente de interromper qualquer exercício es-piritual, embora o espírito maligno nos sugira muitos motivos especiosos. Carecemos então de toda a nossa força e não sabemos a qual dos exercícios habituais Deus concede as suas graças. Mais teria valido aos apóstolos lutar durante uma oração sonolenta, árida e cheia de distrações, do que adormecer nos jardins de Getsémani. Lembremo-nos também de que os exercícios espirituais são menos livres e menos agradáveis quando nos oprimem as tentações, porque estas nos importunam e perturbam. A natureza nos aconselhará, portanto, a abreviá-los, a interrompê-los

sob o pretexto de que são inúteis e feitos sem fervor. Mas embora os fatos fiquem provados quando há acordo entre duas testemunhas, não convém que estas sejam o demônio e o espírito humano. Evitemos também alterar os nossos projetos em tais ocasiões. A atmosfera está impregnada do pó e da fumaça do combate, que a tudo obscurece. Não é o momento de querer conhecer a vontade de Deus a respeito de mortificações e de vocações. Sua vontade é que resistamos ao mal e, por conseguinte, só isso nos compete. Devemos até temer qualquer novidade, por melhor que seja, que nos bate à porta do coração, ou se coloca, já formada, em nossas mãos. Há muito que santo Inácio nos previne contra certa espécie de tentação que se nos apresenta disfarçada no bem. Deus não nos mandaria o bem naquela hora, nem daquele modo. Repito, sua vontade é que resistamos ao mal. O bem, se o for realmente, não perderá em esperar e Deus nos enviará dias de paz em que o poderemos empreender calma e deliberadamente.

Devemos precaver-nos igualmente contra as pe-queninas tentações, ou, pelo menos, as que assim chamamos. Tudo guarda as devidas proporções, mesmo no tocante à alma. Não é raro resistir uma pessoa às grandes tentações, e cair nas pequenas. E' muito compreensível. Quando uma ação ou um sofrimento reveste certa dignidade, enfrentamo-la com mais coragem, pois podemos sacar livremente sobre a natureza e sobre a graça. O amor próprio preza a dignidade, e para atingi-la passará por indizível sofrimento, como se fosse insensível. Daí a importância das pequenas coisas em religião. Sendo mais alheias à natureza, firmam mais intimamente a união com Deus. Converter as almas, realizar obras de misericórdia em grande escala, visitar as prisões, pregar, ouvir confissões, e mesmo fundar instituições religiosas, é relativamente fácil quando confrontado com o cumprimento exato das obrigações diárias, a observância de regras minuciosas, a vigilância de cada minuto sobre os sentidos, ou as palavras afáveis e o porte modesto, que anunciam a presença de Deus. As pequeninas coisas nos proporcionam maior glória sobrenatural, porque exigem mais ânimo, são contínuas, incessantes, e sem dignidade que nos possa estimular. Toda a força de que carecemos tem que ser encontrada em nós mesmos. Não temos exteriormente nenhum lugar onde possamos apoiar a nossa alavanca, nem sequer no louvor dos homens; demais, o heroísmo nestas coisas é antes questão de paciência que de ação. E', pois, um constrangimento perpétuo.

Além de que, o nosso espírito se deixa prender mais eficazmente pelo jugo das pequenas coisas. As derrotas são mais frequentes. A mera continuidade das ações forma uma corrente que se estende sobre muitos pontos. Nenhum afeto será simplesmente natural, nenhuma palavra pronunciada com leviandade, nenhum passo precipitado, nenhum prazer gozado sensualmente, nenhuma alegria transformada em

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DAS TENTAÇÕES

dissipação, nenhuma ternura puramente carnal em que o coração possa repousar, nenhuma ação se inspirará na vontade própria. Trememos ao saber de uma perfeição de aparência tão dificil, e no entanto é apenas a perfeição nas pequeninas coisas! Demais, há nelas algo de humilhante e de secreto. Quem saberá se contamos as palavras, se contrariamos um sentimento? Deus, todavia, permitirá que caiamos, afim de esconder-nos ainda mais nele, e subtrair-nos aos olhos humanos. Carregamos conosco invisivelmente as mortificações de Jesus. E' um longo martírio de amor e Deus é o único espectador de nossa agonia. E até para nós será dificil compreender que de fato fazemos uni-camente por Deus tantas coisas triviais. Por isso mesmo a vã glória se dissipará bem como o ilusório apoio humano, conciente do bem que faz.

Mas essas pequenas coisas servem não só para nos dar maior glória, como para glorificar mais a Deus. São um tributo de profundo respeito, pois encerram, necessariamente, motivos mais puros e fé mais simples que as grandes. Estas, por sua grandeza, não raro encobrem a Deus, ou pelo menos dividem os nossos sentimentos entre Deus e a glória da ação, embaciando-a, enquanto a pequenez e a baixeza das coisas triviais, a aparente facilidade que apresentam e o desprezo que os homens lhes votam, deixam a alma face a face com Deus no crepúsculo desencantado da mortificação interior. E não exprimem somente profundo respeito. Prestamos a Deus um tributo mais real nas coisas pequenas. Nas grandes, recebemos maior auxílio e damos menos a Deus, porque empregamos menor esforço. A abundância da graça, a

suavidade e a animação do espírito que persegue um grande fim, diminuem-nos o labor. E, no entanto, é no esforço pessoal que está o verdadeiro tributo pago a Deus, assim como as orações áridas são tidas como mais meritórias que as suaves. Demais, nas grandes coisas raras vezes temos liberdade de agir segundo a1

nossa vontade. Nas pequenas, temo-la e pagamo-la a Deus a cada hora, como tributo de fidelidade e de amor.

Fazemos mais que testemunhar essa estima e pagar esse tributo. Nas coisas pequenas sacrificamos mais a Deus. Dando-lhes pouca importância, fazemos o sacrifício sem satisfação presunçosa, compenetrados, ao contrário, do nosso próprio nada e da imensa condescendência de Deus, que nos permite sacrificar-lhe seja o que for. Sacrificamos também o nosso interesse próprio, que não se sente atraído por tão ignóbeis vítimas; e assim procuramos unicamente a Deus, apartando de nós a busca do louvor e do amor próprio. Renunciamos também ao gozo das ações enérgicas e briosas, pois que haverá de brioso, ao ver dos homens, na regularidade, nas minúcias, na exatidão e na obscuridade? E, no entanto, é o único caminho que conduz à sólida virtude. Não é o que lemos na vida dos santos que os santificou; é o que não consta nelas que lhes proporcionou fazer o que admiramos ao ler. As palavras não exprimem o horror da natureza ante os ligeiros constrangimentos que formam o nosso cativeiro. E quanto às pequenas tentações, é fácil conceber que alguém, legado pela graça, se deixasse abrasar lentamente pelas chamas para defender a Imaculada Conceição

de nossa Senhora, ou a supremacia do Papa, mas que não tivesse a graça para guardar a calma numa discussão teológica sobre qualquer destes pontos da fé católica.

Resta ainda uma questão a resolver 'no tocante às tentações. Que fazer quando formos vencidos? Há só uma resposta, só um conselho; é pueril, mas haverá outro? Quem cai, deve levantar-se de novo e seguir caminho, confiante no futuro.

CAPITULO xvn

Dos escrúpulos

A alma escrupulosa importuna a Deus, irrita ao próximo, atormenta-se a si e cansa o diretor. Para provar estas quatro afirmações seria necessário escrever um volume inteiro; o leitor, portanto, que as aceite sob palavra ou trave conhecimento com gente escrupulosa. Quem está na aflição e na desgraça merece compaixão, mas a piedade diminue ao sabermos que a própria pessoa é a única responsável

pelos seus sofrimentos, e desaparece por completo quando verificamos que continua a sofrer por obstinação. Ora, é justamente o que acontece com os escrupulosos, nas fases iniciais do mal, isto é, antes que se tornem incuráveis. Oprimem os médicos espirituais e opõem tantas dificuldades à cura que Deus, por vezes, permite a quem mais tarde deve guiar as almas, passar por uma crise de escrúpulo sobrenatural, afim de que se torne apto a remediar o mal dos outros. Discernir entre tentação e pecado constitue ramo importante da espiritualidade, e o escrúpulo nada é senão uma condenável incapacidade para fazer tal distinção. Outra pessoa vê logo que o meu escrúpulo não é pecado, mas, se eu mesmo o discernisse, não teria escrúpulo; e mais ainda, se confiasse na palavra do meu diretor quando ele mo dissesse, não seria escrupuloso. Isto dá bem a conhecer a secreta malícia dos escrúpulos. Não sendo pecados, estão tão impregnados de disposições perniciosas que se podem tornar, de momento a momento, em outros tantos pecados, além de nos levar ao mal, sob o pretexto de nos impelirem ao bem. São quais germes de morte espiritual disseminados na alma, ou, ainda, uma espécie de erisipela moral.

E' pena que os escrupulosos inspirem sempre muito maior compaixão do que merecem, porque assim se

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DAS TENTAÇÕES

arrogam o direito de considerar os escrúpulos como provação interior. Não nego que às vezes o seja, mas é raro.

'E' pena também que a palavra "escrúpulo" seja interpretada frequentemente no bom sentido, como se fosse algo de digno, um sinónimo vago de retidão de conciencia. Seria, pois, de grande vantagem convencer-nos da verdade ascética de que o escrúpulo nada tem de respeitável. Não tem valor intelectual; não merece a estima moral; não possue o menor elemento de bem espiritual. Não passa de um sentimento perverso e falso, digno de inspirar piedade, mas a mesma piedade que merece o condenado a caminho da forca. Francisca de Pampeluna viu muitas almas a sofrer no purgatório, 3omente por causa dos escrúpulos, e, como se surpreendesse, nosso Senhor disse-lhe que nunca o escrúpulo estava inteiramente isento de pecado. E' claro que isto não se aplica aos escrúpulos so-brenaturais, que estudaremos oportunamente. Os escrúpulos são não somente maus em si, mas causam muitos outros prejuízos, e um dos mais graves é o que o medo dos escrúpulos não raro afasta os homens da busca da perfeição e do jugo da vida interior.

A teologia define o escrúpulo como sendo o vão receio de pecar, quando não há motivo ou base razoável para suspeitar o pecado.

Emprega-se por vezes, para explicá-lo, uma ima-gem que lhe exprime mais ou menos as funestas consequências na vida espiritual: O escrúpulo é como o seixo que se introduz no sapato de alguém, e que o faz manquejar, ferindo-o a cada passo. O escrúpulo pode ainda ser comparado a um cavalo espantadiço e medroso, que recua em vez de avançar, desobedecendo às rédeas do cavaleiro, pondo este repetidamente em perigo, além de irritá-lo. Acresce que o escrúpulo, fugindo da sombra do pecado imaginário, precipita-se no pecado real. Tudo isso está de tal forma ligado ao orgulho, que o indulgente são Felipe Neri se mostrava inexorável para com os escrupulosos que não estivessem dispostos a obedecer cegamente às regras que lhes traçava. O escrúpulo, portanto, difere essencialmente da delicadeza de conciencia, fácil de discernir pela conformidade à razão e pela calma que reveste. Não confundamos tão pouco o escrúpulo com o relaxa-mento. Gerson considera aquele talvez ainda peior que este.

Consideremos agora as causas dos escrúpulos. São em número de tres: Deus, o demónio e nós mesmos, ou o espírito humano, concorrendo para esta última causa tanto o corpo quanto a alma.

Em primeiro lugar, os escrúpulos podem vir de Deus. São os chamados escrúpulos sobrenaturais. Deus nos permite cair neles por várias razões. Ora é para preparar o sacerdote a exercer a função de diretor de almas; neste caso convém que ele tenha passado pelos escrúpulos, afim de poder guiar com segurança as almas que sofrem deste mal. Ora é uma

provação exterior, a que os místicos denominam purgação do espírito, e cujo fim é, ou afastar-nos do excessivo apego à devoção sensível e aos favores extraordinários de Deus, ou fazer-nos pas-

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sar o purgatório na terra, ou destruir a prolongada atividade do amor próprio. Deus assim nos purifica das culpas passadas por uma penitência severíssima, porém apropriada; confirma-nos num temor salutar e humilha-nos justamente naquilo em que a humilhação se faz mais viva. Ele apenas retira da alma a luz gratuita sob a qual lhe permitia caminhar. Foi sob a influência de semelhantes eclipses que são Boaventura não queria rezar missa, que santo Inácio se recusava a comer, que Hipólito Galantini se submergia num mar de escrúpulos, que santa Luitgarda repetia o ofício tan-tas vezes, que Deus lhe enviou um anjo para proibir-lhe de continuar, e que santo Agostinho, conforme narram as Confissões, era importunadíssimo com escrúpulos causados pelo prazer natural que achava no comer e no beber.

Em segundo lugar, os escrúpulos podem vir do domônio, sendo ele causa positiva, enquanto Deus só poderia ser causa negativa. Citemos, a respeito, são Lourenço Justiniano: Em virtude das disposições de Deus, acontece frequentemente que o espírito maligno perturba as conciencias dos fracos, suscitando-lhes dúvidas e inúmeros receios cruciantes, ao ponto de não poderem mover o pé pelo excesso de temores que os assaltam. Demais, à força de argumentos e de importunidades, os escrúpulos talvez venham a transformar em pecado mortal o que não passava de pecado leve ou nem pecado fosse. O objetivo do demónio é conseguir o pecado real, e bem sabe ele que o escrúpulo é um caminho seguro, embora sinuoso, para alcançar o seu fim e que essa sinuosidade não o torna menos seguro.

Em terceiro lugar, a maior fonte de tão desprezíveis indignidades está em nós mesmos, tanto na

DOS ESCRÚPULOS

alma como no corpo. Sendo esta a parte mais prática do assunto, convém examiná-la detidamente. As causas dos escrúpulos que provêm da alma são intrínsecas ou extrínsecas. Aquelas são em número de cinco. A primeira é a falta de discernimento entre tentação e consentimento. Já falei no capítulo precedente desta lastimável ignorância que corrompe tanta coisa, e cuja importância é difícil exagerar. A segunda é um orgulho secreto que reveste a forma da obstinação, e poucos são aqueles que não acariciam determinada opinião, a que se apegam com desarrazoada tenacidade. Podem ser muito humildes no tocante a outras coisas e possuem mesmo certa humildade intelectual; não é possível, no entanto, convencê-los do absurdo da sua teimosia. Se estiver em jogo uma questão de teologia, esta se tornará, em nove casos sobre dez, numa heresia implícita. Não percebem a força do argumento de seus adversários. Interpretam de boa fé e em seu favor, embora inteiramente contrárias às suas, as mais claras declarações dos teólogos, cuja autoridade não ousam pôr em dúvida. Tiram das conversas uma impressão diametralmente oposta à que o seu interlocutor quis dar. Se houver algum assunto na teologia sobre o qual não podemos discutir com sangue frio, isto é, sem tristeza e irritação, é prova de que a nossa opinião, nesse ponto, é roais ou menos errônea. Quando a tenacidade de juízo se fixa numa questão da vida espiritual, torna-se em fonte de escrúpulos e fonte

envenenada por más disposições. O jansenismo e o quietismo resultaram daí, e como afirmam eminentes escritores, está sempre arruinando almas no segredo da vida particular e mesmo da conventual. Feliz de quem — se tal pessoa existir — não tiver, fora dos limites da fé católica e da doutrina aprovada pela Igreja,

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uma opinião que não abandonasse dentro de dez minutos, sem inquietação. Pode estar tranquilo, que o ofício do seu anjo da guarda é digno de inveja.

A terceira causa é o temor excessivo,da justiça de Deus, ou a falta de confiança na sua misericórdia, pois reveste uma ou outra forma. Quem se compenetrar do que já foi dito, e considerar a Deus como Pai, foge a esta cilada. Não é que os escrúpulos prestem, de fato, culto à justiça de Deus, e que este sentimento os leve, em consequência de uma enfermidade intelectual, a menosprezar os tesouros de sua misericórdia; não, os escrúpulos não se ocupam de Deus por causa de Deus, pois neles nada há que se pareça com o espírito de de-voção, nem mesmo o de falsa devoção. O disfarce pode variar quasi ao infinito, mas o amor próprio aparece sempre que for levantado o véu. E' o temor, não a glória de Deus, que os leva a exagerar um dos atributos divinos e a depreciar o outro.

A quarta causa é a ânsia imoderada de evitar a simples aparência do pecado e querer ter plena certeza de que essa ou aquela ação não é pecado. Suportamos com impaciência a incerteza em que aprouve a Deus deixar-nos. De bom grado trocaríamos o testemunho ou a convicção da fé pela evidente confirmação dos olhos ou convicção da razão. Deus quis que a fé fosse a luz da vida e nós desejamos uma luz menos vacilante e mais intensa. Quem ama a Deus, procura evitar o pecado. Evitar-lhe até as aparências não é, de modo al-gum, prova infalível de santidade e de amor. Não havendo risco de escândalo, os santos parecem ter procurado uma espécie de refúgio nas aparências do pecado, descobrindo nisso uma analogia com aquele que, por nossa causa, revestiu a semelhança do pecado. E' o pecado, e não a aparência, que ofende a honra de Deus, de forma que aqui, também, é a reputação exterior, ou a própria satisfação interior, que procuramos sob o falso pretexto da glória de Deus. Nunca repetirei demais, afim de inspirar profundo horror a essa espécie de peste, que os escrúpulos não procuram a Deus. O seu centro é o amor próprio, e, em redor dele, gira com odiosa regularidade e fidelidade.

A quinta causa é uma austeridade indiscreta, que nos leva a abandonar a companhia dos outros, como se a perfeição consistisse na melancolia. Poucas são as almas que podem suportar a solidão. As mais das vezes, tornam-se vítimas do pecado, em vez de se aprofundarem no hábito da presença de Deus. E' porque os antigos cenobitas do deserto custavam tanto a opinar sobre a vocação dos que se julgavam chamados à vida de eremita. Os mesmos princípios podem, de certa maneira, se aplicar às pessoas do mundo. Fugir da sociedade e trancar-se em casa, com o fim de afastar as ocasiões de pecar, evitar os juizos temerários, fazer penitência, e entregar-se à oração é

conduta que poucas vezes dá bons resultados. Está cercado de tentações e impregnado da atmosfera de ilusões. Apesar de haver copiosa fonte de pecados na crítica temerária, na intemperança da língua e num gênio irascivel e exigente, os homens, em geral, pecam menos quando estão com os outros do que a sós.

Quando as causas dos escrúpulos, embora residindo na alma, resultam todavia de circunstâncias exteriores, provém quer da permissão de Deus, quer da tentação de Satanaz, (e já consideramos estes dois casos), quer das conversações com pessoas escrupulosas ou da leitura de livros de espiritualidade e de teologia moral que um diretor prudente teria Fáber, O progresso — 20 proibido. Estas duas causas explicara-se por si e dispensam comentários.Restam ainda duas causas que provêm antes do corpo

que da alma. A primeira provém do temperamento frio, melancólico e hipocondríaco, e a segunda é a fraqueza cerebral. Os escrúpulos que nascem do temperamento melancólico são, entre todos, os mais dificeis de curar. Atacam de preferência as pessoas dessa índole que se

entregam a austeridades corporais imoderadas, pois estas parecem logo aumentar-lhes a tristeza do

espírito, e dar novo vigor à obstinação. A cura, nesses casos, é, de fato, raríssima. Demais, como veremos adiante, qualquer cura radical deste mal por assim

dizer não existe. Tais temperamentos têm, em virtude de sua constituição, uma aptidão especial para tornar

amargo o que é doce, e assim os melhores remédios só servem para agravar a moléstia. A fraqueza cerebral

ora é natural, ora resulta de estudos excessivos, bem como da aplicação ardente na oração ou da exagerada

privação de sono. E' difícil cometer qualquer excesso desses sem incorrer em culpa. Assim procedendo, a

gente prepara em si até as próprias causas físicas do escrúpulo, por desobediência e obstinação. Haverá

algo de mais irritante e, infelizmente, de mais comum, que o devoto que pratica erroneamente uma boa ação

e sustenta que tem razão?Os sintomas dos escrúpulos podem ser deduzidos

das causas. O primeiro é a tenacidade da vontade e da conduta. Com efeito, é muito raro que uma pessoa dócil seja escrupulosa; e, se o for, seus escrúpulos serão na maior parte sobrenaturais e, por conseguinte, santificantes. A desobediência corresponde à escrupulosidade. A obstinação é o oposto do espírito de Jesus.

O segundo sintoma é o desejo ávido de conhecer o nosso estado interior. Isto acontece quando o amor próprio se apossou de nós como se fora demônio vivo. Somos incapazes, emprego as palavras de Inocêncio III, "de reprimir a credulidade leviana e temerária da

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conciência". Fazemos questão de saber se estamos em estado de graça e recusamos dar um passo, enquanto tal desejo não for satisfeito. Precisamos que o nosso confessor nos diga se o pecado de que nos acusamos é grave ou não, do contrário tornamo-nos mudos, até forçá-lo a falar. Se Deus não nos der uma certeza matemática, em questões de moral, desfalecemos, renunciando à santidade e desistindo de perseverar. Há um número infinito de particularidades, nos diz santo Tomaz, que a razão humana não pode com-preender, de modo que nossas conjeturas permanecem incertas. Tal é a vontade de Deus, não a nossa. O homem escrupuloso não se guia pela vontade de Deus, mas somente pela sua. Não devemos, então, saber com certeza se o que fazemos é agradável a Deus? "Não", responde são Boaventura, "não é necessário à salvação saber que temos caridade; o necessário é tê-la". Assim, querendo luzes superiores à luz que Deus nos concede, andamos nas trevas e lançamo-nos no precipício. O primeiro passo leva-nos à perplexidade, o segundo à pusilanimidade, o terceiro à tristeza e o quarto à perda irremediável.

O terceiro sintoma é uma instabilidade de opinião frequente e desarrazoada, junto à inconstância e à perturbação no modo de proceder. Não somente somos propensos a ceder a receios frívolos, mas flutuamos à mercê desses receios que nos inquietam e agitam, — e não obstante persistimos em acariciá-los. Se alguém nos pergunta se há pecado 20« em tal ou tal ação, respondemos que não. E, no entanto, receamos agir de acordo com a própria razão, mesmo unida às admoestações da obediência, como se a nossa alma valesse mais que a dos outros.O quarto sintoma é, segundo a definição de Des-curet,

o alimentar-nos com reflexões extravagantes a respeito das mais triviais circunstâncias que nos

cercam as ações. Pertence ao gênio perverso dos escrúpulos prestar atenção às coisas de pouca valia e retirá-la das essenciais. E' um espírito genuinamente

impertinente, no sentido etimológico da palavra, sempre ocupado, mas nunca com o que lhe compete

fazer; sempre trabalhando, mas numa obra destituída de ordem e cheia de confusão. Quando paira por entre as flores, pousa sobre elas, vira-lhes os cálices e seca-

lhes o orvalho cristalino, sem tirar o mel sequer de uma. Há animais que fazem ruido, não para exprimir

suas emoções, mas para dar expansão à própria impor-tância, e os escrúpulos a eles se assemelham. Não são nem úteis, nem decorativos, mas podem importunar, e

esta prova do seu poder é-lhes agradável.O quinto sintoma é j » receio de pecar, mesmo

naquilo cuja excelência é manifesta até aos olhos do próprio escrupuloso. Algo há de espantoso no engenho

com que o seu espírito trata de encontrar argumentos para opôr a boas obras, e algo de ainda mais surpreendente no poder com que crê em si mesmo. Essa fé não se deixa de modo algum abalar pela incredulidade patente do mundo inteiro, ao ponto de desconfiarmos que de fato haja certa verdade no que foi dito: "que todos os homens são loucos, e o que chamamos loucura é somente questão de grau". Com pessoas nestas disposições é inútil racioninar; cabe-nos dirigi-las, mas a tentação seria bater nelas.

O sexto sintoma está nas atitudes e posições do corpo, na aflição, nas jaculatórias a meia voz, nos gestos nervosos, no movimento incessante, -em tudo aquilo que um antigo escritor beneditino chama simplesmente ridículo, mas que a educação moderna considera antes lastimável. Suponho que tudo isso significa, segundo o sistema das explicações místicas de Gõrres, que o mal da alma já se tenha estendido e transmitido ao organismo todo, atingindo as extremidades. Neste caso, os meios a empregar são os mesmos com que corrigimos e curamos as crianças de hábitos semelhantes, quer provenham da ociosidade ou do nervosismo, quer do mau humor ou da distração.

O sétimo sintoma é o desejo incessante de tornar às confissões passadas, de revolvê-las, de examiná-las de novo, afim de ver se não encontramos matéria para algum escrúpulo especial. Não sabemos o que há nelas de mal; evitamos mesmo vê-las de perto, com receio de que a ilusão se desfaça. E', contudo, sofrimento aprazível, é aflição que deleita o espírito escrupuloso; acalenta-a, qual filho de Albion, com a melancolia que preza. Ansiamos fazer nova confissão geral, sem todavia nos dispor a empregar o necessário preparo, nem adotar medidas vigorosas contra as culpas atuais. Mas serve para firmar o nosso domínio sobre o diretor. Triunfamos da sua relutância e vamos a ele na certeza infalível de que se engana, e o que diz ser o nosso pecado dominante é, graças a Deus, aquilo que menos nos inquieta. Será outro, talvez, não este. Iludimo-nos, supondo que estar em movimento significa progredir. Somos como as asas do moinho de vento, sempre em movimento, mas girando da mesma forma.Mas os sintomas e os desenvolvimentos dos escrúpulos diferem entre si, segundo as causas de que procedem, e importa notar este fenômeno. Os escrúpulos, por exemplo, que provêm do nosso próprio temperamento são em geral os mesmos; falta-lhes a variedade. A tenacidade apega-se às mesmas coisas e os pensamentos sombrios são contrários à mudança. E assim nunca nos afastamos do círculo já percorrido, moendo sempre o mesmo barro para fazer os mesmos tijolos. Nosso espírito assemelha-se ao do protestante obstinado, que alega sempre a mesma dificuldade, já

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refutada umas vinte vezes, abstendo-se, no entanto, de fazer qualquer alusão às respostas recebidas. Estamos sempre a tocar a mesma nota. O papagaio também fala com clareza, mas tem uma esfera de conversação extremamente limitada. Quando os escrúpulos pro-cedem do demônio, o caso é outro. Então são nu-merosos e variadíssimos. Atacam, em geral, a honra de Deus, e firmam-se de preferência nos seus atributos benditos, no suave mistério da Incarnação, ou nos sacramentos de que carece a alma. Envolvem-nos o espírito numa obscuridade, numa espécie de eclipse da fé, que é o recurso predileto do espírito maligno. A oração encontra-nos mudos e frios, oprimidos pela languidez enervante e pelo vivo desejo de afrouxar a regra de (vida, ao menos temporariamente. Quando os escrúpulos provêm de Deus, cessam repentina e completamente, qual carregador que depositasse a carga em lugar apropriado. Temos nisto sinal infalível de que são de Deus. Não poderíamos depor, com o auxílio de meios naturais, a carga de uma conciencia escrupulosa. Outra prova da origem divina é que prosseguimos no encalço da perfeição, apesar dos escrúpulos, ou antes misteriosamente por sua própria causa. Quanto mais nos importunam, mais fiéis somos aos exercícios espirituais, e mais benévolos e indulgentes para com o próximo, mais obedientes para com os diretores e os superiores. Volvemos a Deus um olhar sorridente na plenitude de uma confiança filial, isenta não só do temor servil, como também da familiaridade presunçosa, e, não obstante, o sorriso é impregnado de dor.

Todo escrúpulo que não é sobrenatural gira sim-plesmente em redor de duas coisas: a ignorância e a pusilanimidade. Afastemos a primeira e fortifiquemos a segunda e estes miseráveis emissários do mal não nos prejudicarão.

Se lançarmos um olhar sobre o objeto em que se firmam os escrúpulos, maior razão teremos para afastar-nos deles com aversão e desprezo. Primeiro, quanto à oração. Num espírito doentio, esta parece positivamente atrair a si os escrúpulos. Quer seja mental, vocal ou jaculatória, quer sejam considerações, afetos ou resoluções, todas as partes oferecem aos escrúpulos um alimento predileto, do qual sugam a medula da vida divina. Perseguem os sacramentos, mormente a confissão e a comunhão, com uma tenacidade só igualada pela sua versatilidade, e se a comunhão árida tem uma série de escrúpulos que lhe são próprios, a fervorosa terá outros. Quanto à confissão, fixam-se, com tal pessoa, na. penitência; com outra, na contrição; com uma terceira, na narração, na preparação ou na revisão. E'-lhes indiferente. Mancham tudo quanto tocam. Mesmo no ar vivificante das alturas em que se encontram os votos,

os escrúpulos ainda respiram à vontade. São criaturas pequenas, mas robustas; e os votos lhes proporcionam boa presa e ótimo alimento. Nada mais elevado que um voto, no entanto, não lhes fica tão fora do alcance que o não possam atingir. Nada mais vil que o receio do desconforto corporal, mas nem isso é demasiado vulgar para eles. São insetos universais e ubíquos, mais impertinentes do que aqueles que outrora atormentaram o Africano até torná-lo maniqueu. A correção fraterna torna-se-lhes em verdadeiro regalo. O escrúpulo habita na sombra, onde não penetra luz forte. Esconde-se de preferência nos motivos dos nossos atos. As tentações constituem-lhes a tarefa e os casos imaginários o passatempo. Quanto à predestinação, é-lhes qual tope de uma montanha inacessível. Algo que fosse perigoso e ao mesmo tempo destituído de dignidade, que nos provocasse enquanto se evadisse, absurdo, mas que nos impressionasse, tal é o escrúpulo. Desprezamo-lo enquanto o odiamos e receamos. E a cólera alia-se ao ódio e a inquietação ao desprezo.

Dos objetos dos escrúpulos passemos aos efeitos, que são em número de tres: a cegueira, a falta de devoção e o relaxamento. Se os escrúpulos provêm da ignorância, a aumentam e a aprofundam a um tempo. Perturbam o espírito á tal ponto que impossibilitam o discernimento. Confundem os limites do bem e do mal. Afastam as barreiras que outrora separavam a tentação do pecado, e o prazer do consentimento. Enleiam inextricável e indissoluvelmente o pecado mortal e o venial. Mudam os preceitos em conselhos, e os conselhos em preceitos. Trocam os nomes das coisas e incorrem na lamentação do profeta, tornando amargo o que é doce, e doce o que é amargo. O cego não pode conduzir outro cego, nem caminhar a sós com segurança. Há um momento na vida espiritual em que a marcha é sustada e se tornará em alta definitiva se não se romperem as linhas inimigas. E' este o primeiro efeito da escrupulosidade. Lembra a razão inicial alegada pelo prefeito de uma cidade francesa para não salvar a Henrique IV — não tinha canhão. Assim também o efeito da ignorância dispensa-nos de investigar a respeito dos outros, pois foi bastante para sustar a nossa marcha. Mas como os escrúpulos me inspiram ódio implacável, semelhante à ira de quem persegue um hipócrita, prosseguirei no encalço dos outros dois. Sejam anatematizados de todas as formas possíveis, pois trazem heresia à doutrina, revolta à disciplina e corrução à moral.

O segundo efeito dos escrúpulos é a falta de de-voção. E' claro que tudo quanto traz a morte à devoção é desfavorável. Mas por que será que os escrúpulos consomem a devoção? Porque a devoção é paz e eles são perturbação; é simples e eles são legião; é difícil e

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eles são desobedientes; é o culto de Deus e eles são o culto de si. A devoção alimenta-se do divino e os escrúpulos corrompem o alimento de que se nutrem. Impedem que a luz da oração nos penetre os espíritos perturbados; interrompem as operações dos sacramentos, suspen-dendo-as. Por vezes obscurecem-nos a fé, enfraquecem-nos a esperança, afrouxam-nos a caridade. Produzem os efeitos prejudiciais das tentações, sem produzir os bons. Atendei a uma história do cardeal de Vitry, citada por Surius. Havia um piedoso cisterciense que, tolamente, resolveu recobrar o estado da inocência primitiva. Seria longo narrar tudo por que passou. Basta dizer que não conseguiu o seu fim, e sofria por se ver tão afastado dele. Se percebesse na comida algum sabor, desconsolava-se; se sentisse a menor sombra de mau humor, pertur-bava-se; se cometesse as mais ligeiras imperfeições, desanimava, julgando-as pecados mortais. Desse excesso de escrúpulos caiu numa profunda tristeza que o lançou no precipício do desespero, como acontece em geral às almas tristes. Tendo perdido toda esperança de salvação, deixou de frequentar os sacramentos, pois, como disse são Bernardo, a tribulação gera a pusilanimidade; a pu-silanimidade, a perturbação; a perturbação, o desespero, e o desespero, a morte. Os frades estavam aflitíssimos. Recomendaram seu irmão a Deus com muito fervor. Admoestaram-no com sábios conselhos; repreenderam-no severamente, mas tudo foi em vão. Felizmente a bem-aventurada Maria de Oignies estava perto e Deus lhe permitiu curar por milagre esse desgraçado filho de são Bernardo, que, sem isso, diz o cardial, se teria indubitavelmente perdido. E acrescenta: Já vi um homem dilacerar o peito com a faca por causa de escrúpulos, e outro se suicidar com um tiro no pescoço. São os escrúpulos que produzem aquilo que os médicos franceses, ao encarar a vida dos santos sob o ponto de vista do demônio, chamam théomanie. O grave beneditino Luiz de Blois falou muito acertadamente quando disse com sua forma magistral: "O teAior excessivo e a demasiada pusilanimidade, a .profunda tristeza e os escrúpulos supérfluos, os ^cuidados inquietadores e as solicitudes intricadas, são coisas que o asceta deve evitar".

O terceiro efeito dos escrúpulos é o relaxamento. Basta ter escrúpulo sobre um ponto, para relaxar nos outros. As pessoas escrupulosas são as mais relaxadas, e é natural. Em primeiro lugar, parece que temos apenas certa dose de retidão de conciencia e quando gastamos demais de um lado, resta-nos menos para empregar do outro; logo, se as gastamos todas em um dever cuja importância exageramos, nada sobra para os restantes deveres, e assim passam despercebidas certas ações, que nos haviam de surpreender se nos

fosse dado vê-las sob o seu verdadeiro aspeto. Quem se sobrecarregou de trabalho é quem mais se dissipa no recreio. Demais, os escrúpulos são uma tirania e uma opressão, e toda submissão tem suas reações, que nos levam a procurar consolo nos prazeres mundanos, nas afeições naturais, em tudo que nos cerca e que é brilhante, belo e terno. Repete-se então a história dos soldados de Anibal, em Cápua. Acontece também, em consequência da nossa cegueira, que nos enganamos em relação ao adversário, e quando encontramos o verdadeiro inimigo estamos por demais cansados e preferimos entregar a espada. Não distinguindo entre uma coisa e outra, procuramos evitar coisas simples e cuidamos das que deviam ser evitadas. Se errámos antes por excesso de austeridade, erramos agora ainda mais, entregando-nos ao bem-estar. Lembro-me que um escritor antigo disse que os escrúpulos são um castigo muito comum para quem leva vida mole e delicada; e que será tudo isso, senão relaxamento? São os escrúpulos que provêm do demónio, que produzem geralmente tais resultados.

Baseados na história, parece que certo afrou-xamento, tolerado pela Igreja, fora causa inicial dos escrúpulos. Rosignoli, na Disciplina da Perfeição Cristã, diz que os padres antigos desconheciam os escrúpulos, o que atribue à prática da penitência canónica de outrora. Os homens davam satisfações mais amplas pelos seus pecados do que em nossos dias. A Igreja triunfante que se alegra aumentou tanto que mais que contrabalança a Igreja militante que padece, e assim vivemos sob o regime das indulgências, enquanto os nossos pais velavam e jejuavam sob o jugo das penitências canónicas. O afrouxamento da disciplina produziu nova feição na Igreja, a saber, os escrúpulos. E esta afirmação de Rosignoli foi feita sem o menor espírito de crítica, pois um verdadeiro filho de santo Inácio jamais censurou a Igreja. Menciona apenas o que considera um fato. Nada mais direi sobre esta teoria, exceto que é digna de nota e plausível. Gerson, o santo Tomaz da espiritualidade moderna, é um dos primeiros e dos maiores escritores a tratar metodica-mente dos escrúpulos. Santo Antonino e são Lourenço Justiniano vêm em seguida e, entre os mais modernos, Fénélon destaca-se como o mais suave e o mais admirável médico das almas escrupulosas.

João Cassiano falou dos escrúpulos, embora não lhes tenha dado o nome, e as imagens deixadas por são Gregório e santo Agostinho são tão parecidas, que dificilmente nos poderiam enganar. Inocêncio III é ainda mais explícito. Algumas das tentações de são João Clímaco seriam, com certeza, na linguagem moderna, denominadas escrúpulos. Ao mesmo tempo, não se pode negar que, nos sistemas da espiritualidade

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medieval e hodierna, os escrúpulos ocupam lugar muito mais importante do que p nas obras de moral e ascese dos padres ou nas crônicas anedóticas dos santos do deserto, o mesmo se dando com a confissão dos pecados veniais, e, em geral, com a de simples devoção. O mero termo "confissão de devoção", que se integrou no vocabulário ascético, teria soado estranho aos ouvidos dos antigos; creio, porém, que já existisse e lhes fosse mais conhecido do que Gerson o supõe. Não me compete, todavia, fazer o histórico da teologia ascética, apesar das disposições e frases devocionais dos padres serem assuntos de grande interesse, e as tradições que nos chegam serem suficientes para nos permitir tirar valiosas conclusões.

Os remédios para escrúpulos já foram, em grande parte, compreendidos nestas considerações, mas podemos recapitulá-los agora, ao terminar o estudo que trata das suas causas, sinais, assuntos e efeitos. Como a principal causa do escrúpulo é a falta de luz, a oração é um dos primeiros remédios. Convém meditarmos sobre temas que nos alegram e cultivar a devoção filial para com nossa Senhora. Esforcemo-nos também por crescer no temor de Deus. A petulante confiança em Deus é tanto fonte habitual de escrúpulos quanto a excessiva timidez. Evitemos a ociosidade e revigoremo-nos com a mortificação corporal. Não mudemos com facilidade de diretor, nem consultemos muitas pessoas, pois isto é próprio de gente leviana e de espiritualidades superficiais; evitemos igualmente longas conversas com pessoas escrupulosas, porque o mal é contagioso. Não reflitamos sobre os nossos próprios escrúpulos, mas procedamos como vemos proceder a gente de bem, lembrando-nos sempre de que Deus é nosso Pai, e a Igreja uma Mãe benigna. Os preceitos de Deus e da Igreja, diz santo Antonino, não foram feitos para tirar-nos toda doçura espiritual, como fazem crer as interpretações exageradas dos tímidos, nem a Igreja, ao ditar-nos os mandamentos, teve intenção de levar quem quer que fosse à loucura. Nenhum preceito, portanto, obriga a quem é discreto, logo que a ocasião e o lugar não sejam próprios para a sua observância. Santo Inácio mandou que um padre, escrupuloso a respeito do ofício, o recitasse diante da ampulheta e que o interrompesse quando a areia acabasse decair: e o doente sarou. Evitemos cuidadosamente os gestos a que já aludimos e não imaginemos que seja possivel afastar o mau pensamento sacudindo a cabeça, torcendo as mãos, ou batendo compasso com os pés. Tomemos também o lado moderado das questões de moral. Nada gera tanto escrúpulo como uma teoria severa demais e que não se pode pôr em prática minuciosamente. Quem adota uma teoria indulgente, o fará por princípio e com cautela. Sabe até

que ponto pode ir nas concessões que faz e sabe onde deve parar. Quanto ao rigo-rista, não conseguirá executar as suas idéas, nem que os outros as executem, e, não tendo um princípio ao qual recorrer, recuará sempre que for repelido, acabando por fazer concessões visivelmente más. Os mandamentos, os preceitos de Deus e o respeito para com os sacramentos estão muito mais seguros, entregues a um teólogo moderado, do que a um severo, embora naturalmente todos os princípios tenham seus extremos e todo exagero seja prejudicial. Há um remédio, porém, que é um quasi específico, se assim podemos chamar o que, sem curar um mal incurável, coloca a alma numa existência espiritual que equivale a um sofrível estado valetudinário. E' a obediência cega. E a própria palavra o explica. Segundo são Felipe Neri, uma vez que o escrúpulo atacou a alma, poderá conceder-lhe uma trégua, nunca a paz. Quem foi escrupuloso, a não ser que os escrúpulos viessem de Deus, levará até à cova a fraqueza e a pusilanimidade que lhes são próprias, e, como Francisca de Pampelu-na o faz supor, os restos ainda irão ao purgatório para a cauterização final. A obediência cega, porém, cura-nos para todos os efeitos. Mas como saber se, de fato, somos obedientes? A pergunta é das mais escrupulosas! Procuremos, todavia, uma resposta afável conquanto breve. Os sinais são tres: Quando cessamos de dizer: "Sim, mas o meu diretor não é santo"; ou, "eu obedeceria, se fosse escrupuloso e se isto fosse escrúpulo"; ou, enfim, "eu obedeceria,, se conseguisse explicar-me ao meu confessor de modo a que compreendesse o meu caso".

Consideremos agora os privilégios que, segundo os teólogos, podem ser concedidos às pessoas escru-pulosas. Apesar de sofrerem em grande parte por culpa própria, a existência, não obstante, desses so-frimentos dá-lhes direito a certos privilégios. Filipino, o Teatino, escreveu dois volumes in-fólio sobre os Privilégios da Ignorância; seria mister igual precaução, embora em menor escala, para escrever sobre os Privilégios do Escrupuloso. Estes privilégios, no entanto, são mais que direitos, são obrigações. Se assim não fosse, os fracos, para quem foram feitos, não ousariam empregá-los. O primeiro-privilégio da pessoa escrupulosa é, conforme a instrução dada pelo seu guia espiritual, a licença de agir ainda mesmo com receio de pecar. Tem até obrigação de proceder assim e, recusando-se, comete deliberadamente cinco culpas que atingem as raias do pecado venial, e não raras vezes as ultrapassa. Tal pessoa opõe presunçosamente suas opiniões às do diretor, e isto é orgulho e obstina-ção. Recusa prestar-lhe a obediência que lhe é devida e que provavelmente lhe prometeu. Estorva, o seu

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próprio progresso na vida espiritual e, por conseguinte, afasta-se da perfeição a que se obrigou pelo estado de vida ou em virtude das graças recebidas. Em muitos casos prejudica a saúde, enfraquece ainda mais a cabeça e dá motivo a que seus deveres de cada dia sejam mal desempenhados, porquanto se priva dos meios de recobrar aquela luz,.paz e presença de Deus, que lança o brilho da per-feição sobre todas as nossas ações ordinárias.O segundo privilégio da pessoa escrupulosa é poder ter

certeza de que não cometeu pecado mortal, a menos que se possa, com plena advertência, jurar

reverentemente que o fez. Com efeito, seria impos-sivel à vontade, passar, inconciente e instantanea-

mente, do temor excessivo para a moral relaxada. E se é verdade que os escrúpulos levam ao relaxamento,

não o produzem numa mudança repentina, nem abrangem o próprio objeto do escrúpulo. Este privilégio

ainda impõe aos escrupulosos a obrigação de não confessarem uma ação dúbia como sendo pecado

mortal e de não omitirem por tal motivo as comunhões habituais. Mas, para que possam gozar desse privilégio,

é preciso discernir na conduta e na disposição da pessoa escrupulosa pelo menos um dos seguintes

sinais. O pecado em que imagina ter consentido, deve, habitualmente, inspirar-lhe aversão, de modo a

evidenciar o estado normal da sua vontade a este respeito. Ao perceber que conservava concientemente

a imagem da tentação, deve ter se esforçado por afastá-la, ou sentido certa inquietação. Se a -ocasião

de cometer o pecado se apresentou e dela não se aproveitou, é lícito concluir que sua vontade está firme

e intata. Se não puder lembrar-se se teve conciência das tentações que a assaltaram, não se deve inquietar,

mas, ao contrário, resolver a dúvida em seu favor.O terceiro privilégio da pessoa escrupulosa é não ter

obrigação de examinar as coisas com a mesma exatidão que os outros. A razão está na sua en-fermidade. São invádilos espirituais, e a vida dos inválidos é toda cheia de dispensas, concedidas pela própria autoridade de Deus. E' provável que nunca se restabelecerão completamente e, por conseguinte, é preciso poupar as forças lentas da convalescença. Para os escrupulosos, o minucioso e reiterado exame de conciência e dos motivos impulsores, equivale ao atar e desatar das ligaduras de uma ferida, quando o cirurgião exigiu justamente a imobilidade e compressão do membro ferido. Não lhes será tão pouco permitido, como antigamente, recorrer a tais exames^ sem motivo grave e sem licença do diretor, obrigando este privilégio tanto quanto os outros.

Cuidamos certamente mais do corpo que da alma. Logo, é razoável que, se nos submetemos com

diligência, em se tratando daquele, devemos também nos prestar de bom grado em se tratando desta. Quem fratura a clavícula, ou adoece de cólera, sabe que terá de sujeitar-se a certo método de tratamento, repulsivo à natureza, e não protesta se o cirurgião ou médico, juntando a firmeza à bondade, lhe ordena que fique quieto quando quisera mover-se, ou proibe alimentos que lhe apetecem. Assim, também, quem sofre de escrúpulos deve tomar a resolução de se deixar tratar pelo médico espiritual. Por mais difícil que lhe pareçam as questões casuísticas, o diretor não manifestará a menor incerteza ou hesitação, de modo que a alma es-tará na dúvida se ele as pesou bem, ou se ela se fez compreender. Não dirá os motivos dos seus conselhos, pois tais razões seriam viveiros de novos escrúpulos. E' mister ser muito franco para com ele, por mais que isto custe, e ao mesmo tempo ter um verdadeiro escrúpulo de exagerar na confissão. E' erro comum às pessoas espirituais. Imaginam que só exagerando conseguem uma explicação adequada. E' erro, e erro peior que o procedimento oposto. Menos prejudicial seria uma atenuação indevida.Fáber, O progresso — 21

lí ...:-«L..O confessor se mostrará cheio de benevolência quando a alma for dócil, mas será breve e brusco quando for teimosa. Não lhe deixará repetir as mesmas coisas em cada confissão, apesar de ansiar fazê-lo. Ensinar-lhe-á a desprezar os escrúpulos pelo desprezo que manifestará, lição que será tão penosa à alma quanto o estudo dos epigramas gregos para o jovem colegial. Ele lhe proibirá confessar os escrúpulos e a levará a comungar sem receber absolvição, e isto lhe custará mais à sensibilidade mórbida que uma grande dor física. Limitará o tempo concedido ao exame de conciência, o que provocará tanta agitação que, antes de acabado o ato de presença de Deus, o prazo já es-tará esgotado. Ele a forçará também a decidir com presteza se deve ou não agir nessa ou naquela cir-cunstância, a menos que se trate claramente de pe-cado. Quando o procurar, perturbada, tendo errado em virtude deste princípio, o diretor será áspero e lhe desprezará os escrúpulos. Nunca lhe dirá se julga que progrediu ou não, mas fugirá das perguntas com uma observação insignificante. Como a alma carece sobretudo de repouso, ele lho negará, e a cansará impiedosamente com um sem número de ocupações absorventes. Em se tratando, como muitas vezes acontece, de pessoa que tiver escrúpulos, embora não seja habitualmente escrupulosa, isto é, se for exigente demais em algum ponto e relativamente condescendente em outro, ele será severo e lhe chamará a atenção somente sobre o seu relaxamento.

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Em tudo isso, a sua paciência é posta a prova e a alma há de opôr-lhe muitas dificuldades e causar-lhe muitos aborrecimentos antes que lhe possa dar alta do hospital. Dos doentes com quem lida são os que lhe dão mais trabalho e lhe fazem menos honra.

As pessoas recem-convertidas têm escrúpulos a respeito da confissão geral, quer se trate da inte-gridade, quer da contrição. O médico espiritual só lhes autorizará reflexões gerais sobre os pecados da vida passada, e mesmo isto muitas vezes vedará. Não lhes permitirá, enquanto forem escrupulosas, demorar-se em certos pecados, e menos ainda nas circunstâncias que os cercam. A tristeza é uma cilada que o demônio gosta de armar nessa fase da vida espiritual. Ao dissiparem-se os escrúpulos, talvez o diretor lhes permita a confissão geral, se for feita com calma, para depois nunca mais falarem da vida passada, exceto se estiverem de todo sem escrúpulos, ou forem capazes de jurar que se lembram de algum pecado mortal nunca confessado. Tal pecado já foi perdoado indiretamente, e a integridade material das confissões passadas não deve ser observada quando acarreta consequência tão grave, como seja a recaída nos escrúpulos. Mesmo se disserem ao diretor que a acusação do pecado lhes trará tranquilidade, ele continuará a negar-lhes licença, aconselhando-lhes oferecer a Deus o sacrifício dessa inquietação interior. Ser escrupuloso é grande infelicidade para quem acaba de se converter. Receio que nunca se torne um bom católico. Os escrúpulos fazem circular nas veias o veneno secreto da obstinação, justamente quando a alma tem tudo a aprender e tudo que desaprender e que a obediência é o único meio indicado para reformar cabalmente o horário interior. E\ todavia, consolo saber que o Espírito Santo dispõe de modos e de meios de reparação que iludem as definições da nossa pobre ciência espiritual, mas cujas operações são maravilhosas e eficazes, como verificamos a todo instante. 21*

Não ouso deixar esta matéria sem dizer algumas palavras sobre os escrúpulos razoáveis, que de fato existem. A teologia não deixa dúvidas a respeito; e nada do que foi dito se aplica a eles. Um receio prudente de pecar torna o escrúpulo razoável, assim como um receio vão o fará sair dos limites da razão. "Mandastes que os vossos mandamentos fossem diligentemente observados", diz o salmista. São Gregório, escrevendo a santo Agostinho de Cantuária, e são Clemente V, resolvendo umas dúvidas a respeito da regra franciscana, admitem tais escrúpulos e mandam que sejam respeitados. E' erro chamar de escrupuloso o católico que teme e ama a Deus até ao requinte, isto é, que procura evitar o pecado venial e

mesmo a imperfeição insignificante. Os sentimentos filiais e a tranquila solicitude pela perfeição, que o animam, mostram que não é escrupuloso no mau sentido da palavra. Existe a chamada conciencia larga, e essa largueza é devida à falta de escrúpulos razoáveis. Digo isto para não ser mal interpretado. Melhor seria empregar sempre a palavra escrúpulo no mau sentido da palavra e dar aos escrúpulos razoáveis o nome mais verídico e mais honroso de delicadeza de conciencia.

Que os imperfeitos nada receiem, diz santo Agos-tinho, mas que adiantem tão somente. Só porque, no entanto, lhes digo de não temer, não devem, por isso, amar a imperfeição, ou nela permanecer depois de havê-la descoberto. Que adiantem somente na medida do possível, e tudo irá bem.

Deus seja louvado! Fizemos alguma coisa, pouca, é verdade, mas o que estava em nosso alcance pelas almas atacadas de escrúpulos. Agora abandonemos esta prisão sufocante e procuremos respirar o ar fresco.

CAPITULO XVffi

Do diretor espiritual

Este capítulo apresenta-nos a questão mais debatida de toda a vida espiritual, isto é, o ofício do diretor espiritual. Em matéria alguma reina maior harmonia até certo ponto, para depois surgir maior divergência de opiniões. Os escritores que vivem em comunidade e pertencem a ordens religiosas, tendem a exagerar o ofício do diretor, confundindo-o com o do superior monástico ou do mestre de noviços, tornando-se assim ilusório às pessoas que vivem no mundo. E' certo que, se levarmos alguém a fazer mais do que pode, acabará inevitavelmente por fazer menos; e a culpa será nossa e não sua. Por outro, se formarmos a este respeito idéas vagas ou relaxadas, arriscamo-nos, segundo algumas interpretações, a incorrer na censura da décima primeira proposição dos Illuminati e da se-xagésima-sexta de Molinos, proposições estas que os católicos, de modo inconciente e quasi nos termos condenados, sustentam com frequência em conversa. E' difícil, por conseguinte, tratar do assunto com a devida moderação, e no entanto é tão necessário quão difícil. Este capítulo não discutirá a simples teoria, mas referirá fielmente os dois lados da tradição católica, de acordo com os livros antigos e modernos, inclinando-se

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talvez um pouco pelos primeiros, porque neles se encontra, como em quasitodos os pontos de ascetismo, a falta de exageração, o que não se dá sempre nos sistemas modernos. Evitarei qualquer opinião pessoal a respeito e, se me afastar deste intento, será tão somente no que for inevitável a um autor que comenta opiniões alheias.

O essencial é a clareza, e insistirei neste ponto, embora incorra em repetição, mal menor que a obscuridade. Dividirei, portanto, a matéria do seguinte modo: em primeiro lugar, tratarei da importância de ter um diretor; em segundo, do que significa ter um diretor; em terceiro, da necessidade de ter um diretor; em quarto, da escolha do diretor; em quinto, da mudança de diretor; em sexto, da verdadeira idéa católica a respeito do nosso trato com ele; em sétimo, dos sofrimentos que o diretor nos causa. Nem sempre é fácil decidir sob que título classificar certas coisas, mas depois de estudar estes sete pontos, não restará, com certeza, nada de importante a examinar.

Tratarei, em primeiro lugar, da importância de ter um diretor. O sistema das práticas e das devoções da Igreja católica oferece maior provação para a fé que o sistema doutrinal. E nenhuma prática foi mais atacada, não só pelos herejes fora da Igreja, como pelos próprios católicos ignorantes e tíbios, que a do ofício do diretor espiritual. Podemos dizer, por conseguinte, a este respeito, o que costumamos dizer da devoção a nossa Senhora, isto é, a guerra que lhe é feita mede-se pelo ódio e pelo temor que lhe vota o demônio. As forças vitais da Igreja guardam-se muitas vezes em lugares secretos, onde seria difícil descrobrí-las, e os míseros instintos da heresia podem prestar frequentemente aos católicos o mesmo serviço que, segundo dizem,, certos cães prestam aos homens que procuram determinada espécie de raiz. Assim, a heresia não somente leva a verdade a ser definida, mas indica também a virtude oculta de cada verdade em particular. Tomar um diretor é certamente aceitar um jugo; se, entretanto, não estamos dispostos a isto, é de todo inútil, para não dizer impossível, tentar a vida espiritual ou interior. Talvez possamos, sem perigo, dispensar o diretor, se nos contentarmos em vegetar no pó e nas cinzas dos resultados ínfimos, não de outro modo. Não somente muita gente boa se extravia por falta de diretor, tanto nas obras exteriores que fazem pela Igreja, como também na economia da sua devoção particular, mas muitas vezes sua benevolência parece apenas estender o seu erro e o prejuízo que causa. Dá-se isto de dois modos. O amor próprio, primeiramente, impele sempre o homem a afastar-se imperceptivel-mente dos princípios elevados, de modo. que, não sendo dirigido, permanecerá num nivel inferior ao que almejou de início ou imagina agora ocupar; é qual casa que acaba de ser edificada, mas

cujos defeitos só aparecerão mais tarde, quando se abrirem rachas feias e irregulares. Ou então o mal está na falta de discrição. Receamos que o nosso fervor es-teja a se apavorar, porque o ardor sensível diminuiu, e isto conduz à singularidade e depois à verdadeira loucura. Tais as duas razões pelas quais os leigos devotos são muitas vezes dilacerados e rejeitados por Deus como naves indirigiveis e defeituosas. Aqueles que poderiam ter sido um santo Edmundo, um são Luiz ou um santo Elzeário, tor-narn-se espinhos nos flancos da Igreja, ferindo-a tanto quanto o permite a sua pequenez. E' a razão pela qual tantos que vivem para reformar abusos morrem privados da graça. Surpreender-nos-ia verificar que a Igreja perdeu de fato grandes santosx em consequência deste erro? Quando lançamos um olhar sobre a multidão de almas devotas, o que inspira mais vivo pesar? E' o desperdício da graça, é a evaporação dos princípios elevados, é a fragilidade dos propósitos nobres, e tudo isto é, em grande parte, devido à falta de diretor espiritual. Seria possivel dizer mais para provar a sua importância? Os santos todos sustentam uma mesma opinião a respeito: ter um diretor, usar para com ele de inteira franqueza e obedecer-lhe sem escrúpulo e sem escravidão. Eis a metade da batalha da vida espiritual!

Considerarei, em segundo lugar, o que significa ter um diretor, o efeito que produz enquanto fato exterior. Dá à vida das pessoas do mundo a aparência da vida monástica, como se fossem membros de uma ordem sem claustro, pois é impossivel que o diretor permaneça tão somente um conselheiro espiritual. Se a oração e a mortificação, as tentações e os sacramentos são matérias espinhosas e dão lugar a uma multidão de casos de conciên-cia, que não seria nem seguro nem fácil decidir por si mesmo, no entanto a conduta exterior e os negócios temporais parecem-me ainda mais prolíficos em casos discutíveis, nem penso que geram perplexidade espiritual menor. A disposição dos deveres domésticos requer tanto discernimento quanto a consideração de um ponto de oração mental, e o caminho que serpeia através das exigências da sociedade é muito mais confuso que as incertezas de uma vocação mal definida. Há quem diga que o diretor que trata de coisas puramente espirituais deve ser homem de conhecimentos maiores do que aquele que ensina a espiritualizar as coisas do mundo. Parece-me a mim que este último precisa de maior sabedoria, de maior ciência, de mais intima união com Deus. Acontece em geral que os manuscritos inteligíveis saem com mais erros, enquanto os ininteligíveis os têm em menor número, e a razão é porque na tipografia as páginas nítidas são dadas aos novatos e as indecifráveis são entregues aos peritos. O

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mesmo se dá com a direção. O sacerdote que pode dirigir arrojadamente uma religiosa num estado sobrenatural de oração, treme ao conduzir uma princesa à perfeição através das dificuldades de que se compõe a vida da cidade, da corte e do campo.

A vida espiritual não consiste tanto num grande número de devoções, de ceremônias, de crenças e de exercícios particulares, como em dar um cunho sobrenatural à vida ordinária; numa palavra, não está tanto eia certas coisas, como no modo de fazer todas as coisas. Assim, cada negócio temporal, cada trato com o mundo, cada dever social, acarreta um caso de conciência, e embora muitos possam resolver-se por si, e que essa facilidade aumente progressivamente, no entanto, a vista das pessoas do mundo é tão curta, por causa do pó que as cerca, que surgem sempre inúmeros problemas cuja solução será deixada a outrem. Nada, portanto, mais destituído de fundamento do que a queixa de quem acusa a direção espiritual de se intrometer nos negócios temporais. O seu ofício é precisamente espiritualizá-los, infundindo neles motivos sobrenaturais e ajudando a cegueira ou a cobardia do amor próprio a submeter tudo à obediência de Cristo e às máximas do Evangelho.

Seja qual for a nossa experiência, esta não impedirá a surpresa, ao verificarmos, por meio de revelações fortuitas e interiores, o imenso poder que o mundo ainda exerce sobre nós, apesar dos anos passados no serviço de Deus. Muito embora fazendo abstração do pecado, os princípios mundanos domi-mam-nos. Formaram-nos o espírito, saturaram-nos as afeições e vergaram-nos a vontade; sua influência faz-se sentir até no modo pelo qual os sentidos registam os objetos exteriores. Introduzem-se-nos na linguagem, e esta atua sobre os pensamentos, que, por sua vez, insinuam motivos com a rapidez do raio, apenas iniciamos qualquer ação. Ora, a direção espiritual, considerada simplesmente como um fato, dá testemunho contra o mundo e entre-gamo-nos a esse testemunho. Ela não toma em conta as idéas que o mundo faz de si mesmo, trata-lhes as pretenções com desprezo, fala dele como de um impostor e define-o simplesmente como um vil criminoso, condenado a ser queimado, embora ainda não esteja marcada a hora da execução. O mundo, para responder, recorre à voz dos homens como Michelet, e exprime o seu ressentimento natural com veemência cômica. Digo ressentimento natural, porque o mundo faz necessariamente uma idéa falsa da essência da direção espiritual e lhe exagera, com certeza, tanto a influência como a extensão. A direção toma aos olhos do mundo um ar de conspiração, que a torna odiosa. Este modo de encará-la não é, todavia, de todo errôneo, pois o que é a Igreja, senão uma conspiração divina contra o mundo? Demais, assim

como certas palavras aparentemente inofensivas lançam os doidos em frenesi, assim também a interferência eclesiástica, por meio de vínculos naturais, exaspera o mundo dum modo estranho. Nós, católicos, devemos lembrar-nos disto quando o mundo nos fala da direção espiritual. A vida interior é, forçosamente, uma luta inexorável contra o mundo, luta que só acabará com os nossos dias.

Cuidarei, em terceiro lugar, da necessidade de termos um diretor. Forma parte importantíssima da matéria que ora desenvolvemos e tentarei defendê-la, recorrendo a seis fontes diferentes: a auto-1 ridade, o bom senso, a própria natureza, o cara- I ter particular da vida espiritual, o caráter do ofí-cio do diretor e a sua necessidade universal.

O primeiro argumento, baseado na autoridade, pode dividir-se em tres partes: a prática da Igreja, a condenação da heresia e as atrações do Espírito Santo, reconhecidas pelos escritores ortodoxos que escreveram sobre o discernimento dos espíritos.

Segundo os preceitos dos padres, o ofício de diretor espiritual é representado nas Escrituras pelas relações de Samuel com Heli, de Pedro com Cornélio, de Ananias com Paulo. Mas, sem nos determos para averiguar se tal indução é ou não um tanto forçada, guiemo-nos pela prática infalível da Igreja. Nos diálogos de são Gregório, Pedro pergunta se Honorato tem um diretor. Simeão Me-tafrastes diz que, quando Pacômio desejou conhecer os segredos de uma vida mais perfeita, tomou Palemão por diretor e acrescenta que são Crisóstomo foi indicado para diretor espiritual do seu mosteiro, cabendo o mesmo ofício a Doroteu, que era também diretor particular de são Dositeu. São João Damasceno foi nomeado diretor espiritual dos noviços da sua Laura. Eutímio recomendou a são Sabás que tomasse Teoctisto por diretor. O próprio são Doroteu foi dirigido por Sidério, de modo que a direção espiritual de Doroteu era, naquela época, tradição assentada. João o profeta foi dirigido por Barsanúfrio, e Jorge o Arsilaita foi o diretor espiritual de são João Clímaco. Teodoro o Estudito pôs-se sob a direção do frade Platão, que tinha sido formado sob a direção de Teoctisto, cuja tradição transmitiu a outros, como fez são Sabás no seu mosteiro. São Romualdo foi dirigido por Marino e Pedro Damião por Leão o Eremita, que, diz ele, não lhe foi simples "cúmplice" e amigo, mas também lhe serviu de médico, de mestre predileto, e que tanto sobressaiu pela grandeza dos seus conselhos espirituais, que suas palavras eram tidas como oráculos por todo aquele que o consultava. Santo Antonino gozou de tamanha fama no seu tempo como diretor espiritual, que foi chamado o Pai dos conselhos. João Cantacuzeno diz-nos, — e isto nos faz lembrar a direção dos leigos no mundo — que estando o

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imperador Andrônico moribundo, pediu pelo seu diretor e, tendo o mestre do paço lhe enviado um frade que lhe era desconhecido, caiu em pranto, insistindo para que fosse chamado o seu próprio diretor. O imperador Manoel nomeou Macário, que ele designa como seu diretor espiritual, um dos seus testamenteiros. Quando o imperador João partiu para o Concílio de Ferrara levou, como dizem, o seu diretor espiritual, Gregório, um cenobita, que, em seguida, se tornou patriarca de Constantinopla, segundo refere Pontano nas suas notas sobre a história de Jorge Phrantzes, onde ele observa que esses homens não eram simples confessores, porém diretores espirituais no sentido exato da palavra. A tradição moderna é tão conhecida que dispensa, exemplos.

Em conformidade com a prática da Igreja, temos as sentenças com que condenou uma doutrina, contrária. Em 1623, os Illuminati diziam que não havia necessidade de um diretor espiritual, mas que cada alma devia confiar nas inspirações sagradas do Espírito Santo e seguí-las a todo o transe. Esta doutrina foi condenada pela Inquisição espanhola e os teólogos louvaram-lhe a sentença. Molinos sustentou que a noção católica a respeito do diretor espiritual era ridícula e nova (doctrina risu digna et nova in Ecclesia Dei) e esta proposição foi condenada, bem como a sexagésima oitava, na qual dispensava os devotos da direção espiritual como sendo capazes de se guiarem com o auxílio das luzes do próprio espírito.

Madame de Chantal reconheceu por dados sinais que Deus destinara são Francisco de Sales para ser-lhe o diretor espiritual, e escritores místicos nos indicam certas inspirações como provenientes do Espírito Santo. Uma delas é uma atração indefinível, da qual nunca desconfiamos nos melhores momentos, e que nos impele a depositar inteira confiança em algum servo de Deus, formando uma união de graça entre a sua alma e a nossa. Outra é uma paz que se derrama sobre a alma, qual suave inundação, cada vez que nos fala, nos solve as dúvidas, ou nos dissipa os escrúpulos. Parece magneti-_zar-nos pela santa alegria, isenta de qualquer estima natural ou sentimento pessoal para com ele. •Outra ainda é um ardor, ou desejo veemente de pertencermos a Deus, que nos sobrevêm quando estamos com ele ou se inspira em palavras suas. Outra indicação consiste, finalmente, numa certa impressão, um mixto de respeito, de obediência e de docilidade, que nos faz ver a Deus, e somente a Deus, nele e na sua direção.

O segundo argumento em favor da necessidade de um diretor é o do bom senso. Os casos de conciencia surgem constantemente, e muitos são de dificílima solução. As dificuldades só podem ser superadas pela prática, pela experiência, pelo estudo e pela

autoridade, requisitos estes que faltam evidentemente à maioria dos homens. Vejamos agora o da autoridade. Os nós cegos devem ser cortados, e isto compete ao ofício da autoridade. Consideremos também a proverbial impossibilidade de julgar a própria causa e pesemos bem o caráter do amor próprio, com o qual, infelizmente, travamos conhecimento por demais íntimo; convencer-nos-emos então de que o lugar ocupado pelo diretor espiritual, no sistema ascético da Igreja, é a simples expressão do seu bom senso maternal.

O terceiro argumento assemelha-se ao preceden-, te: pertence à própria natureza da direção espiritual. A vida interior, como descobriremos mais tarde, está repleta de ilusões e de perigos. Dado isto, a sua analogia com as outras partes e ciências basta para provar que carecemos de um pedagogo, de alguém que nos ensine, que nos mantenha no caminho reto, que não nos deixe perder tempo em descobertas já feitas, que nos impeça de seguir os fogos fátuos que levaram outras pessoas ! ao absurdo e à ruina; alguém que nos faça observar, proceder, experimentar, que nos verifique os resultados, nos corrija os processos, nos anime os cansaços. Levar vida espiritual é morrer cada dia a si mesmo, é carregar diariamente a cruz; e quem terá coragem de castigar-se durante toda a vida, se não tiver ao seu lado quem saiba animá-lo, moderá-lo, proibir ou suspender os rigores de sua santa crueldade? Todos têm grande confiança em si, e no entanto ninguém tem a necessária independência para fazer valer as suas próprias consolações. Homem algum poderá consolar-se a si mesmo, pois ninguém tem bastante confiança em si para contentar-se com as suas próprias consolações. A consolação é coisa social. Logo, pois, será possivel a uma pessoa, antes que se torne realmente santa, levar, sem consolo, uma vida desapegada do mundo? Todo homem julga-se sábio e pensa ter sempre razão; todavia duvido que haja quem possa se guiar habilmente pelas próprias idéas, sem ter escrúpulos. Ninguém é dotado de luz contínua para descobrir seus erros, nem da necessária paciência para esperar quando for preciso e saber dominar-se na provação. Temos uma facilidade extraordinária para iludir-nos, e a oração, o sofrimento e a ação, os tres ramos da direção, são, por sua própria natureza, os domínios prediletos da ilusão. Andar só é impossível, querer fazê-lo é contrário à humildade, e a falta de humildade impede qualquer progresso, mesmo no que se refere à simples excelência moral. Além de que, a experiência mostra, a despeito de toda previsão, que quem não tem diretor cairá por fim nas meras práticas exteriores de uma formalidade estéril, pois só se tornará interior à medida que adquirir o hábito de renunciar aos pontos de vista pessoais, à sua vontade,

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ou a seu modo de agir. Resulta pela metafísica, em parte pela natureza da inteligência e em parte pela matéria da vida espiritual que ora tratamos, que quem estiver entregue a si mesmo terá um horizonte mui limitado e, mesmo nesse círculo estreito, os objetos lhe parecerão frequentemente turvos e alterados.

O quarto argumento ficou quasi incluído no terceiro. Visa expor a necessidade do diretor pela própria

natureza da vida espiritual. Todo animal sofre quando obrigado a viver fora do seu elemento. O sofrimento é rápido porque a morte sobrevem misericordiosamente. Ora, a vida espiritual é, para as nossas almas decaídas, o que é para o peixe a vida fora d'água. E', primeiro, sofrimento e, segundo, só se pode sustentar pelas intervenções sobrenaturais. A vida num campo de batalha, com os olhos cegos pela fumaça e os ouvidos sangrando

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com o estrondo da artilharia, ou a vida num sino de mergulhador, com o olhar sobressaltado, os ouvidos a zumbir e os pulsos agitados, são imagens da vida

espiritual. Seu caráter é sobrenatural e só poderá ser dirigida por meio de um verdadeiro estudo científico.

Multidão de tentações invisíveis assaltam-na, umas em silêncio, outras em alta voz. As ilusões que a

deslumbram são tão variadas e tão inconstantes quanto os raios coloridos das penas das aves. Quer ser

consolada, qual criança doente; e um espírito desoprimido é-lhe tão indispensável que não pode viver sem ele. Quando pudermos ver nas trevas,

respirar no vácuo e agarrar o impalpável, então poderemos dirigir-nos a nós mesmos na vida ascética; antes, não. Godinez, na Praxe de Teologia Mística, diz:

"Entre mil almas chamadas por Deus à perfeição, apenas dez respondem ao chamado; entre cem cha-

mados à contemplação, noventa e nove não com-preendem a sua vocação. Por isso digo que muitos são

chamados, mas poucos são escolhidos. Pois além de outras dificuldades quasi insuperáveis à nossa débil

natureza, e que cercam a conquista da perfeição, uma das principais causas que levam tantas almas a não

corresponderem ao que era esperado delas é o pequeno número de diretores espirituais que possam

guiá-las, com a pilotagem da graça divina, sobre esse mar desconhecido da vida espiritual".

O quinto argumento em favor da necessidade de diretor pode ser deduzido da natureza do seu ofício. Sua missão é semelhante à do explorador. Deve de preferência ver e seguir a Deus, que vai à frente, na penumbra. O Espírito Santo guiará os seus penitentes, não ele. Estenderá os braços em volta de nós, qual mãe com o filhinho que aprende a andar, para equilibrar-lhe os passos incertos quando se inclina, ora de um lado, ora de outro. Não terá um método próprio que aplique indistintamente a todos. Assim faz o mestre de noviços, em relação aos seus discípulos, conduzindo-os segundo a tradição aprovada, animando-os com o espírito definido e fixo da Ordem, e, copista fiel, modelan-do-os no santo fundador. Tal

não é, absolutamente, a função do diretor espiritual. Este só saberá que estamos no bom caminho quando vir a Deus em nossa frente, e então nos fará seguir religiosa, quasi supersticiosamente, as santas pegadas que Deus deixou ao passar. Vigia-nos os passos, e quando vê Deus se distanciar da alma, incita-a discreta e suave, porém firme e continuamente. Sua luz não provém menos da oração que do conhecimento que tem do nosso caráter e das observações que faz a nosso respeito. No seu ofício há muito de sobrenatural, mas há também muito de natural, e ele não nos dirigirá bem se deixar aquele sombrear a 'este. Antes errasse atribuindo suas luzes à penetração e sagacidade naturais e a seu talento em adivinhar, quando, ao contrário, lhe foram dadas pela graça sobrenatural e gratuita do discernimento dos espíritos, do que se tomasse por sobrenatural aquilo que, na verdade, é apenas natural. E' perigoso tornar a direção numa superstição. Por isto o diretor prefere, em geral, dizer coisas sobrenaturais de modo natural a emitir oráculos, guardando silêncio singular ou falando com grandiloqüência sobre o que Deus lhe pôs no espírito. E' de estranhar que o anjo da guarda de semelhante diretor não rompa o silêncio para dizer-lhe com impaciência: "Tudo é dom de Deus; vai-te, simplório! e presta ao teu próximo todo o auxílio de que és capaz, com diligência e bom humor, sem Fáber, O progresso — 22

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dares a isso demasiada importância, nem o envolver em mistério". Sim, na direção, evitemos sobretudo o mistério.

O diretor deve também cuidar da pureza de sua conciencia e do desinteresse de sua conduta, de modo

a estar pronto a receber as luzes e os auxílios sobrenaturais quando aprouver a Deus enviá-los. Não

falará demais conosco, embora seu silêncio nos seja dura provação. O modo pelo qual Deus operou em cada

alma pelo passado lhe servirá de modelo. Tomará, por base de tudo quanto fizer e de tudo quanto tentar, as

operações anteriores das graças. Como poderia semelhante ofício ser simples ornamento, ou acessório?

Não é natural que faça parte integrante dum sistema em que entre de todo?

Mas o sexto argumento é que uma necessidade universal deve ser necessidade de valor indiscutível. Ora, haverá quem, esforçando-se por ser bom, possa prescindir de um diretor? Pobres criaturas que procuram desenredar-se dos hábitos do pecado, que precisam aprender tudo e tudo principiar, que estão sem armas e a quem o inimigo assalta, que têm traidores nas próprias almas, mas que só discernirão a traição quando esta se tiver consumado em novo ato pecaminoso; cegas e imprudentes, fracas e agitadas, cobardes e. presunçosas, hipócritas e desanimadas, importunas e irritantes, mas envoltas no manto espesso do suave amor paternal de Deus e de sua graça regeneradora. Não carecem tais almas de um pai espiritual? E que homem se recusaria a servir-lhes de pai e a morrer pelas suas grandes almas imortais, se nosso Senhor já não tivesse tomado a si tão sublime missão, deixando-nos apenas pequena parte?

Quanto aos principiantes na vida perfeita, carecem eles menos de um diretor? Difícil é sua tarefa e grande a sua inexperiência para levá-la a cabo. Ninguém pode conhecer um ofício sem aprendizagem; e que ofício é este! O desânimo lhes seria fatal e no entanto ninguém lhe está tão sujeito e ninguém tem motivos tão razoáveis para desanimar. Os principiantes jazem no meio de sua própria ruina. Cercam-nos resoluções falidas, votos cujo ardor já esfriou, orações cheias de distrações, escrúpulos excêntricos, entusiasmos de um espírito débil, sacramentos recebidos com negligência, planos que se sufocaram uns aos outros por falta de espaço; enfim, inexprimível variedade de pensamentos, de aspirações e de casos, outrora brilhantes, e hoje embaçados e espalhados cá e lá no solo enlameado, como restos do ouropel de um teatro devorado pelo incêndio; e o demônio está pronto para assaltá-las, e eles precisam sem demora ter tudo

em ordem e lutar para defender a própria vida. E' esta a luta que lhes cabe agora sustentar.

A necessidade das pessoas mais adiantadas na es-piritualidade não é menor. Penetram nos caminhos mais sobrenaturais, transpõem as fronteiras dum império regido por leis severas. Estarão os passaportes em ordem? Não haverá entre seus bens algum contrabando? Convém avisá-las de que só viajem com bagagem leve. As dificuldades, no entanto, parecem multiplicar-se! Não falam a mesma língua, nem se familiarizaram ainda com os hábitos dessas regiões desconhecidas. Estão sempre em apuros e não sabem discernir os alimentos saudáveis. Ofendem-se e dão motivo a que outros se ofendam quando não houve, de lado a lado, intenção malévola. Com o tempo?- talvez, acabem por acos-22*tumax-se à vida nova. Mas, no correr desse período, suas ilusões tornam-se, a um tempo, mais numerosas, mais secretas, mais contraditórias, mais complicadas. O demônio desenvolve maior habilidade que no passado, e o espírito humano levanta o estandarte da revolta, coroa-se rei e começa uma usurpação que, segundo todas as aparências, promete ser duradoura. A prática da humildade torna-se mais necessária a cada passo e parece que só um diretor possa encaminhar-nos ao exercício firme, contínuo e restaurador dessa graça revigorante.

Quanto aos perfeitos, nada sei a seu respeito. Vejo, porém, pessoas a andar em ziguezagues, como se o

amor divino lhes tivesse inebriado a fragilidade humana. Parecem estar sempre em desacordo com os outros e

muitas vezes em franca contradição com elas mesmas. Ora não sabem que caminho tomar, ou o que fazer. Ora

tornam-se impassíveis, inexpressivas e inanimadas como as frias cavernas da lua. Vejo também o ar repleto

de balões, cujos tripulantes se permitem as mais indiscretas liberdades. Atiram-se fora e andam sobre as

nuvens, ou munem-se de asas e voam através do pôr do sol. Arremessam-se para o ar, quais foguetes que se

espalham em faíscas, ou equilibram-se sobre uma estrela, ou escondem-se na via láctea, ou navegam em

sentido contrário, como se cada alma tivesse o vento ao seu dispor. Não é raro vê-los baixar à terra em frágeis

paraquedas, ou mesmo sem auxílio algum, com velocidade assustadora; e, posto que não faça idéa do

que sejam seus outros movimentos nas regiões etéreas, estou, pelo menos, convencido de que semelhante

exercício de paraquedas é extremamente perigoso e digno de censura. Não sei como o diretor possa chegar

a tais almas, mastenho certeza de que carecem dele. Não será dado a todos, como a Catarina de Gênova e a Cláudia dos

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Anjos, terem o Espírito Santo por único diretor. Calculo que algumas das almas a que me referi sonharam que ele as dirigia, mas enganaram-se irremediavelmente.

Não é lícito deduzir, destas seis considerações, a necessidade do diretor espiritual?

Tratemos, em quarto lugar, do que diz respeito à escolha do diretor. Há várias espécies de diretores. Um escritor ascético os classifica em tres espécies: humanos, espirituais e divinos. O diretor humano é aquele que procede segundo o espírito do mundo e as máximas da prudência humana. Infeliz da alma que se entrega a semelhante guarda. O diretor espiritual é o que conduz à mortificação e à oração, mas que não tem idéas claras e firmes sobre a espiritualidade, de modo que algumas vezes comete erros, embora em geral Deus lhe abençoa a pureza de intenção e não permite que as almas fiquem prejudicadas. O diretor divino é o homem inteiramente sobrenatural, sempre inundado de uma torrente de luz, e que nos guia como se pudesse ler nos nossos corações e profetizar o nosso futuro. Os diretores gozam também de diferentes dons. Uns recebem uma graça particular para dirigir os principiantes; outros, os mais adiantados; outros ainda, os perfeitos. Uns são admiráveis no modo pelo qual dirigem os neo-convertidos. Outros, dotados de aptidão toda especial para conduzir pessoas finas e educadas, ao conduzir os pobres, cometeriam erros crassos. Uns sobressaem em solver as dúvidas das vocações, o que para outros é árduo porblema. Uns têm a graça insigne de formar o operário na vida interior e de espiritualizar a pobreza e os sofrimentos. Outros são hábeis no tratamento dos escrúpulos, outros no das provações interiores. Uns, apesar das mais santas intenções e da mais pura ciência, parecem inevitavelmente envolver os penitentes em fantasias e ilusões, tornando-os sentimentais e vãos, enquanto outros têm o dom de desencantar os que se deixam seduzir pelo erro, e de transformar os penitentes em pessoas espirituais, e ao mesmo tempo naturais e sensatas. Qua-si nenhum convém igualmente a todos, nem à mesma pessoa durante toda a vida. Devemos ter isto presente ao espírito, porque é um ponto importante, tanto na escolha como na mudança de diretor.

Quanto à escolha do diretor, o que acabamos de dizer mostra que não devemos de modo algum agir com precipitação. Trata-se de uma das questões mais sérias da vida, e o mal que possa advir da demora não se compara aos prejuízos da precipitação. Deve ser objeto de longas e fervorosas orações, não com a esperança fútil de que Deus nos há de dar alguma prova milagrosa da sua vontade, mas afim de obter a graça de escolhermos com discernimento, com fé, e sem respeito humano. E' bom implorar a intercessão

especial de são José, o padroeiro das almas interiores. Sempre que se manifestar na alma a atração para a vida devota e que não seja simples capricho de um fervor passageiro, então é chegado o momento em que Deus nos chama para escolher um diretor, se ainda não o tivermos. E' mister procurar em redor e ver se possuímos os sinais interiores de que já tratei e então afastar cuidadosamente da escolha qualquer sentimento natural. Esta deve obedecer ao impulso ponderado de um espírito recolhido e satisfeito — o que eu prefiro — ou resultar de atrações sobrenaturais — o que me agrada menos — porque e3tá mais afastado da deliberação calma e do cálculo sóbrio.

Parece estranho associar a mudança do diretor com a sua escolha. Tratarei, contudo, deste ponto em quinto lugar. Falando de modo geral, a mudança de diretor é, às mais das vezes, um mal. Podemos, no entanto, errar de quatro modos: mudando cedo demais, ou tarde demais, ou apenas mudando, ou enfim não mudando de todo. Nada é mais perplexo do que saber distinguir a ocasião propícia nesta matéria. Mas a mudança de diretor é um passo tão grave e cercado de tamanhas consequências, que Deus raramente nos sujeitará a tal dificuldade, sem nos proporcionar ao mesmo tempo uma luz mais abundante que a habitual. Se a escolha foi feita sem deliberação, teremos menos escrúpulos em mudar. Se verificarmos que não progredimos sem percebermos, no entanto, diminuição no desejo sincero de progredir, e julgarmos ver algum obstáculo no método de direção, então podemos ao menos pedir conselho a outrem e admitir a hipótese de mudança, embora esta não se realize. Só um conselheiro leviano poderia dizer que não é preciso dar muita importância a tal mudança; não sei, porém, se não é peior o que nos representa esse passo como o maior mal da vida espiritual, a mãe de todas as ilusões, o equivalente da perdição final. Creio que, longe de ser desejável que nos aferremos tão escrupulosamente ao diretor (falo sem afirmar), quando deixamos de gozar de liberdade e não estamos mais a vontade com ele, é que ele perdeu a graça que tinha para conduzir-nos, e tudo isso pode acontecer sem que haja culpa de lado a lado. A direção espiritual deve ser livre como o ar e fresca como o sol matutino. Nem a tentação, nem o escrúpulo, nem a mortificação, nem a obediência, devem poder inspirar-lhe o menor elemento de obrigação. Se isto se der, rom-pamos logo com a direção e aceitemos as conse-quências, pois o único e invariável fim da direção espiritual, em todas as fases da vida interior e mística, é a liberdade de espírito. À doutrina oposta não pertence a sabedoria da direção, mas a superstição da direção. Há, todavia, dois casos em que a mudança está não somente livre de perigo, mas é imperiosa. Primeiro,

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quando sentimos que deveríamos abandonar o nosso diretor se não fosse a gratidão pelas bondades passadas. Segundo, quando deixamos de sentir-nos a vontade com ele e que já esperamos bastante tempo para certificar-nos de que não se trata de simples tentação passageira. Nestes dois casos, se não mudarmos, havemos provavelmente de ofender a Deus e prejudicar forçosamente a nossa própria alma. A direção espiritual tende então desesperadamente a tornar-se em tirania; logo, o mal que nos causaria seria tão grande quão grandes seriam as bênçãos que nos proporcionaria se soubéssemos empregá-la bem. Não se transformará, porém, em tirania, sem primeiro se ter tornado em superstição.

Este pensamento leva-me, em sexto lugar, a falar da idéa que forma o catolicismo a respeito do trato com o diretor. O seu primeiro característico deve ser, sem dúvida, o da franqueza. Os pecados e as imperfeições, as paixões que se agitam em nós, as inclinações desregradas, as tentações e as sugestões secretas do espírito maligno que nos perseguem, o estilo de arquitetura dos castelos no ar, as boas obras, penitências, devoções, luzes e inspirações, tudo deve ser-lhe exposto, não com a minúcia supersticiosa que degenera em frivolidade, mas de modo a que possa julgar com discernimento a nossa conduta interior. A franqueza juntemos a obediência. Nós o escolhemos pela sua doutrina espiritual, em virtude da qual conhece os caminhos de Deus, a índole e o caráter do tentador e do espírito humano; pela sua santidade, que lhe desperta zelo pelo aperfeiçoamento das almas que dirige; pela sua experiência, que lhe torna fácil pôr os princípios em prática; enfim, pela sua aptidão, natural ou sobrenatural, em dirigir almas, ou de ambos os modos. Devemos, portanto, ver a Deus no diretor, pois obediência significa isso. Devemos submeter-lhe as nossas opiniões, pois sua ciência lhe constitue o principal requisito. Santa Teresa diz que o diretor "deve ser erudito e piedoso, mas, se não for possível reunir estas duas qualidades num só homem, é preferível aceitar a ciência sem a devoção, do que a devoção sem a ciência". De todas as palavras sábias proferidas pela santa — e são inúmeras — nenhuma lhe reflete melhor o caráter que esta.

Infelizmente, a obediência ao diretor é uma pedra de tropeço para muita gente. Creio que assim não seria se formássemos a respeito uma idéa clara, ou, o que vem a ser o mesmo, uma idéa despida de exagero. Que posso eu dizer para esclarecer-vos as idéas, sem que baixem de nível? Em primeiro lugar, um diretor espiritual não é um superior monástico. A obediência a este deve ser minuciosa; àquele, geral. A jurisdição do

superior é universal; a do diretor versa sobre os pontos em que a convidamos, ou ele no-la pedir e nós lha concedermos. O superior ordena-nos sem que o con-sultemos; as ordens do diretor nascem das nossas próprias perguntas. Nigrônio diz que nunca augurou bem daquele que deixasse o diretor tomar a iniciativa na direção espiritual (1). O superior converte em preceito matérias de supererrogação; o diretor que tentar algo de semelhante terá perdido o tino. Se desobedecermos ao superior, pecamos; para que a desobediência ao diretor seja pecado, seriam necessárias circunstâncias especiais e extraordinárias.

Ora, o mau emprego de uma coisa boa é sempre prejudicial, e o ato de confundir o diretor espiritual com

o superior monástico acarreta consequências particularmente nocivas para as almas. Se vivemos no

mundo e almejamos a perfeição por entre as liberdades, as distrações e as ocupações do século, a subordinação

ao diretor não está de acordo com o resto da nossa vida. E' uma discordância. E' um elemento estranho que

causará, conforme o temperamento, a corrução ou a explosão. Desanima-nos, e esta simples palavra encerra

uma hoste de inimigos! Demais, desempenha o papel de uma ou outra das múltiplas formas de indolência

e3pi-tual e nutre secretamente o amor próprio. Gosta-mos de crer que somos obedientes e de sentir que somos governados. E'-nos agradável viver entre o

tumulto de uma administração espiritual perpétua. Convocamos repetidos conselhos de estado e torna-mo-

nos orgulhosos, tolos, misteriosos e vãos. Ima-ginamo-nos personagens importantes. Ampliamos as menores

experiências. Por fim, tornamo-nos afetados, efeminados, sentimentais, febris, e lânguidos. Perdemos

grande parte da gravidade nas nossas relações com Deus e caminhamos, sem o saber, numa

1) Lemos, entretanto, na vida de Madre Ana Serafina Boulier, da Visitação de Dijon no século XVIII, que se ela tolerava que suas noviças tomassem a iniciativa, era somente para deixar-lhes o mérito da obediência e da franqueza. Vida, cap. XVII p. 168.espécie de irreverência. Imputamos ao diretor coisas que não podemos imputar senão a Deus. Perdemos a idéa da presença imediata de Deus. E' este o segredo da falsa espiritualidade, e o seu fim a incapacidade moral.

Parece incrível, mas infelizmente não é raro, que uma alma criada para coisas elevadas se extravie unicamente porque uma falsa noção da espécie de obediência devida ao diretor levou-a a entregar-se indolentemente a uma completa segurança, como se tivesse transferido a conciência. Não podemos livrar-nos das nossas responsabilidades. E' física e moralmente impossível colocar o diretor no lugar do superior

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monástico, de modo a aplicar, tanto a um como a outro, os aforismos dos santos a respeito da obediência cega. Pesemos as palavras de santa Teresa: "Meus diretores me disseram que tal pecado venial não era pecado e que tal mortal era apenas venial. Isto me prejudicou de tal maneira que não considero inútil mencioná-lo aqui como advertência. Pois vejo claramente que isso não me desculpava perante Deus. Basta que uma coisa não seja boa para que dela nos abstenhamos, e creio que Deus, por causa dos meus pecados, permitiu que os meus diretores se iludissem, e depois me iludissem a mim, e que eu, em seguida, iludisse a outros, repetindo o que me haviam dito os meus diretores. Tal foi minha cegueira durante dezessete anos". Schram, o beneditino, cita esta passagem e acrescenta: Tremenda theologia de ignorantiis saepe vincibilibus. Esta teologia, no entanto, como toda verdade, é tão salutar quão terrível (2).

2) As palavras da santa são dignas de nota. "Pensava", diz ela, "que não era obrigada a mais do que crer neles", (seus diretores). "Yo pensaba que no era obligada á mas do que creerlos". Vida, cap. 5. Esta notável pas-

Assim como o diretor deve ser vigilante e lento para não estorvar a obra de Deus nas almas, assim também devemos cuidar de não obstá-la, exagerando nossas relações com o diretor e atribuindo-lhe aquilo que não pertence à simplicidade austera do seu cargo. Não devemos procurá-lo demasiadamente; pois indicaria impaciência e o faria perder tempo. Tão pouco lhe devemos solicitar uma entrevista extraordinária sem refletir e sem rezar. Examinemos primeiro o que vamos pedir, se vale a pena, se é algo de real, e não um impulso ou esboço de pensamento, uma idéa impraticável ou uma conclusão a que chegamos apressadamente e no calor do momento. E' preciso tomar essas coisas a sério, pois dizem respeito a Deus. Não prolonguemos as entrevistas com o diretor, nem digamos mais que o necessário. Com efeito, nossas conversações com ele devem ter, pelo menos quanto à brevidade, à conveniência e à reflexão, certa analogia com a oração. Os penitentes que mais falam são os me-nos obedientes. "Acreditai", dizia Lantages, superior do seminário de Puy, "que as confissões longas não são as melhores". Não procuremos o nosso diretor simplesmente para que nos console, pois seria avidez e pusilanimidade. O fim da direção espiritual é elevar as almas e quantas vezes as rebaixa! E isto porque não. nos lembramos de que deve ser, como tudo quanto se refere ao serviço de Deus, profundamente razoável.

sagem despertou, como era de esperar, muita atenção. Foi comentada não somente por Schram na Teologia

Mística, mas também por Arbiol, um franciscano, nos Desenganos Místicos, lib. III, cap. 9, em que trata das ilusões de certas almas, que parecem ter adiantado muito na oração e que entanto pouco progrediram na prática das virtudes sólidas.

Agora só me resta falar, em sétimo lugar, dos sofrimentos que nos causa o diretor. A obediência que lhe devemos, para ser razoável, deve estar sujeita às modificações de tempo, de lugar, de pessoa, de circunstâncias, de país, de proficiência, de caráter, tanto dele como nosso, e de companhias. Mesmo assim, será para nós fonte de muito sofrimento. Não preciso insistir neste ponto, pois já os mencionei no capítulo que trata da paciência. Custa-nos sempre mortificar o juízo, mas custará sobretudo fazê-lo no que diz respeito à piedade. Não é pequena aflição imaginar que não somos com-preendidos. O diretor ponderado fala pouco, e palavras escassas são intoleráveis ao amor próprio, pelo único motivo de serem poucas. Vendo que nos apoiamos por demais nele, retira o braço e deixa-nos cambalear. Abandona-nos por vezes a nós mesmos, afim de ensinar-nos a andar, embora à custa . de uma queda inocente. Ele sabe que nunca daremos provas de bravura para com Deus, mesmo em matéria espiritual, se não tivermos certa independência de caráter, aliada à humildade. Um dos seus maiores e mais preciosos segredos consiste em saber guardar intatos todos os direitos da humildade, sem que esta degenere em fraqueza mental ou em espiritualidade cobarde.

Guardemo-nos de induzir o diretor a falar muito, quer por meio do seu respeito humano, quer da sua bondade natural, quer cansando-o pela importuni-dade. Afinal, há pouco que dizer numa matéria como a da vida espiritual, onde o progresso é tão lento. Uma conversa entre o carvalho e o lenhador acabaria forçosamente se versasse sobre o crescimento, o desenvolvimento, a geada, os pássaros, as abelhas e a hera, e lhe fosse proibido abordar assuntos fúteis e alheios. Pois o carvalho não cresce uma polegada por mês, nem de tronco, nem de rebento, e não poderia querer ser polido, envernizado e embutido com ouro. Assim também a alma não é revolucionada cada dia. Hoje assemelha-se a ontem e a amanhã. Que resta a dizer? As conversas nos levam a principiar de novo em outras direções depois de cada falatório. E' adotar devoções para depois abandoná-las, qual criança caprichosa com os brinquedos. E' amontoar prática sobre prática, sem tirdr proveito de nenhuma. E' aplicar um remédio para logo aplicar outro, antes que os primeiros tenham produzido efeito. E' tentar a Deus. E' zombar temerariamente das proverbiais ilusões das comunicações espirituais. E' cobrir de nuvens a Deus e forçá-lo a subir à superfície da alma, quando lhe apraz esconder-se nas suas profundidades.

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E' preferível sofrermos as pequenas contrariedades que nos causam a lentidão e o silêncio do diretor, a expor-nos a todos esses males, pois, na verdade, nenhum desses sofrimentos nos faz perder a liberdade, a única coisa que devemos recear. Tudo o mais pode ser tolerado em se tratando de causa tão grave. Por que razão exigir mais do médico espiritual do que daquele que cuida da nossa saúde? A profissão é análoga, ainda que a matéria seja bem diferente. Procedamos da mesma forma em relação ao nosso diretor e as graças se farão sentir: a segurança, a vitória, a paz interior, o mérito da obediência e a intercessão de um homem de bem.

Vi um gerânio que foi tirado da adega nos primeiros dias da primavera. O inverno fora brando e a planta brotara na obscuridade e no calor. Pendia qual trepadeira, com rebentos débeis, folhas tristemente amareladas. O desenvolvimento fora abundante; não seria, porém, exato dizer que essa abundância fora o seu principal atributo, quando, ao contrário, fora o seu maior mal. Havia somente essa planta. Foi, pois, cortada, replantada, mas foi a, última a florescer naquele ano, e suas flores foram mais raquíticas que as outras. Tal a alma que foi super-dirigida. A eternidade é a primavera. Ai de nós! então haverá a poda; não haverá, porém, transplantação. Nunca conheci, nem soube de ninguém, que, tendo um diretor, sofresse por falta de direção. As almas prejudicadas pela direção exagerada encheriam, ao contrário, um hospital em qualquer cidade de tamanho regular.

Escrevi, inspirado em grande número de auto-, ridades, e creio que resumi de modo geral o parecer dos autores mais conceituados da Igreja sobre tão difícil questão. Procurei só uma coisa: não me afastar do seu espírito de moderação.

CAPITULO XIX

Da dor constante dos pecados

E' triste pensar que há tantas pessoas, com aspirações elevadas e sinceras, à procura dê coisas nobres e tão poucas conseguindo o seu fim; tantas, diz Godinez, convidadas à perfeição e tão poucas respondendo ao chamado; tantas pondo-se à obra com ardor e prudência, e morrendo com a torre por edificar; tantas, no dizer de Arbiol, versadas na oração mental e nunca atingindo a perfeição. Triste pensamento, que nos leva a calcular as possibilidades que nos dizem respeito a

nós, e, vencido o egoísmo, a refletir na perda que daí resulta, perda de glória para Deus e de poder para a Igreja. Com efeito, a alma do verdadeiro asceta é uma fonte genuína do poder na Igreja, por mais escondida, desconhecida e obscura 'que seja. Existe certa analogia entre a perda de graças no mundo espiritual, e o desperdício de sementes, de flores e de frutas no mundo da natureza, embora esta estéril analogia ofereça pouca consolação. Talvez seja util para fazer demonstrações, mas oferece-nos pouca luz e ainda menos calor. Não nos satisfaz. E' mister continuar na mesma idéa, até podermos tirar dele algum proveito ou advertência salutar.

A universalidade deste fenômeno leva-nos a supor, quando nele refletimos,^ que haja uma causa comum, que, por sua vez, seja comum á todos nós. Ora, na vida espiritual há uma variedade de causas que produzem efeitos análogos. Mas aqui trata-se de uma questão que tanto se aplica aos habitantes do norte como do sul, aos católicos natos e àos convertidos, a todos os paises e a todos os tempos. Quanto mais refletimos nisto, mais irresistível se nos torna a conclusão de que existe essa causa comum, sendo, pois, importantíssimo desco-brí-la. Durante muito tempo pensei que fosse a falta de perseverança na oração. Mas há tantos casos em que esta teoria não vale, que teria sido preciso ir de encontro a toda a tradição mística para sustentar que a oração mental estivesse necessariamente ligada à perfeição. Nada nos impressiona tanto como a imensa diferença entre o hábito da oração e o dom da oração. Há muita gente que, apesar de não faltar anos a fio à meditação diária, não parece ter progredido, nem mesmo adquirido a terna piedade que devia infalivelmente brotar da oração perseverante, se esta fosse boa sob outros pontos de vista. Talvez leve a crítica a excesso quando julga o próximo, ou não modere e refreie a loquacidade. O mês sucede ao mês, o ano ao ano, e as orações continuadas aparentemente não produzem efeito algum sobre qualquer dessas faltas. E, no entanto, haverá defeito mais fatal à piedade do que esse da crítica ou da loquacidade? Tais pessoas parecem rezar um tanto exteriormente, e sua oração é um acessório à vida espiritual e não o sangue que lhes palpita no coração. Essas meditações ineficazes e essas orações que não reformam, são coisas próprias a inspirar melancolia. Mas, querendo firmar-me nesta teoria, verifiquei ser de todo impossível atribuir estes defeitos à mera falta de perseverança na oração.Fáber, O progresso — 23Procurei então outra coisa, e convenci-me de que o mal

estava na falta de mortificação exterior. Por que não

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culpar de preferência a falta de mortificação interior? Pela seguinte razão: Julguei que a mortificação interior fosse um meio de dispensar a exterior, tão rara me parece esta. Algo há de honesto, de satisfatório e de inteligivel na mortificação exterior e preferi lidar com ela. Não podia também deixar de verificar que a mortificação exterior quasi sempre se faz acompanhar da interior, ou a ela predispõe. Receei que houvesse antes falta da exterior que da interior. E os hábitos modernos justificam plenamente este medo. Verifiquei que, de fato, prejuízos incalculáveis podiam ser atribuídos à falta de austeridade física, mas que não se lhe podia imputar o mau êxito dos aspirantes à perfei-ção. Primeiro o fato exquisito — já observado — de que aqueles que mais pregam austeridades são os que menos as praticam. E' natural fazermos inocentemente certas perguntas impertinentes aos que pregam doutrinas severas, e notei com surpresa o pouco que faziam os que assim falavam. Isto, no início do inquérito, não era animador. Ulteriores investigações, contudo, pareciam provar que, apesar de não haver progresso sem austeridade, aquele não depende desta. Há gente que se mortifica e permanece estacionária, impedindo muito mal e, em grande parte, o destruindo. E assim almas que se poderiam ter extraviado se conservam boas, sem no entanto darem sinal de progresso; a austeridade purifica-as, prepara-as, não vai além. Santo Efrém tinha isto em mente quando se referia a um velho amigo, dizendo que a imundície jdo corpo lhe limpava as manchas da alma. Falo, aliás, das macerações asseadas. Em resumo, pareceu-me que o efeito produzido na alma pela austeridade física era antes terapêutica que nutritiva, chegando até, por

vezes, a causar irritação, tristeza e dureza, tal qual acontece com certos remédios. Honra lhe seja feita, porém não nos assegura só por si o progresso na santidade.

Qual séria o terceiro objeto das minhas suspeitas? Foram estas despertadas por certas insinuações e sugestões de são Francisco de Sales, que as minhas observações pessoais pareciam confirmar cada vez mais, e, como ele, atribui o malogro na busca da perfeição àquela forma de indiscrição que consiste em sobrecarregar-nos de coisas e nos leva a agir de modo ansioso, febril e precipitado. São Francisco chama a isto de empressement. A vida moderna parece impelir-nos cada vez mais nesse sentido e as míseras consequências patenteiam-se por toda a parte. Corrompe tudo o que toca e enfraquece o que há de mais divino nos exercícios espirituais. Confunde as operações da graça e desloca os frutos dos sacramentos. As nossas obrigações, porque nelas reina a confusão, são invadidas pela desordem e pelo mau humor e andam aos encontrões de manhã à noite, a repreenderem-se mutuamente. Procuremos agora quem não tenha outros deveres senão os que o seu estado torna indispensáveis, e cujo dia seja amplo e conchegado, tranquilo e calmo, tudo limpo e arrumado. Terá poucos exercícios espirituais, mas deles tirará o máximo proveito; fá-los-á lenta e escrupulosamente, estimando o recolhimento, e sem dar o menor sinal de tibieza. Encontrei muita gente desta espécie, mas, depois de minucioso exame, verifiquei que o progresso na santidade não lhes era norma espiritual — longe disso. A lentidão com que agiam, e a largueza em que viviam, lhes constituía uma fonte de bênçãos e de graças. Mas eram, na mor parte, um fenômeno. 23*

A menos que todos os livros espirituais existentes tenham combinado errar neste ponto, como às vezes estou propenso a crer, não existe na. piedade um terreno plano que se possa percorrer de lado a lado sem avançar nem recuar, como se fosse um terraço espaçoso, sem a mínima desigualdade e nivelado especialmente para nele se recitar o ofício. Toda teoria é positivamente contrária a isto. Essa boa gente imaginou, entretanto, que havia de descobrir esse terreno, ou inventá-lo. Quem puder explicar que o explique. E estão agora a caminhar a passos largos. E' gente boa e verdadeiramente edificante, mas permanece num mesmo nivel, e esse nivel é baixo. Não procurarei explicar semelhante conduta, mas derribou a tal teoria, e nem com toda a boa vontade do mundo, nem por amor a são Francisco de Sales, posso acusar a precipitação de culpa. Ao contrário, fui obrigado a absolvê-la, pelo menos de ser causa do malogro das

almas que buscam a perfeição. Quanto mais a gente é derrotada, mais teimosa se torna. Tendo errado tres vezes, resolvi fazer nova tentativa.

Desta vez a dificuldade foi maior que das outras. Não procurei teorias. Pus-me a observar e esperei. Pouco a pouco tantos fatos foram surgindo que me levaram, inevitavelmente, a tirar conclusões. A primeira revestiu uma forma técnica: todos os homens estão ansiosos por deixarem a Via Purgativa ou ascética, afim de penetrarem no esplendor da Iluminativa, ou na doçura da Unitiva; e todas as tentativas frustrada^ para alcançar a perfeição ou, pelo menos, o bastante para estabelecer uma regra geral, são devidas a isto. E jamais coisa alguma se me apresentou que me fizesse duvidar da veracidade e justeza desta conclusão. Mas-a Via Purgativa é coisa ampla, é termo lato. Poderia a experiência nos permitir limitá-la, sem todavia estreitá-la demais, para que pudesse sustentar uma superconstrução ? Só me restava aguardar outros fatos

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para chegar a uma indução mais sólida e segura. Como resultado final convencí-me, e me aventuro a declará-lo sujeito à correção, de que a causa comum de todas as falências no caminho da perfeição se devem à falta da dor constante dos pecados. Assim como todo culto que não se baseia nos sentimentos que a criatura deve ao Criador, se há de romper: assim como toda conversão que não for a conversão do pecado, não tem valor; as-sim como todas as penitências que não repousam em Cristo, são nulas; assim como todas as boas obras que não são feitas por Deus, desfazem-se em pó; assim também toda santidade perderá seu princípio progressista se for separada da dor constante dos pecados, pois o princípio do progresso não é só o amor, mas o amor que nasce do perdão.

Esta convicção confirmou-se ao verificar que a a ausência da dor constante do pecado explica plenamente os diversos fenômenos que me tinham levado a acusar e perseguir, primeiro, a falta de perseverança na oração, depois a ausência de aus-teridade corporal, e, por último, a precipitação que nos sobrecarrega de múltiplas coisas. Pois esta dor perene teria como resultado conservar continuamente em nós o espírito de nossa própria indignidade e dependência de Deus, que seriam os frutos da oração perseverante. Levar-nos-ia a fazer guerra incessante a nós mesmos, e a desprezar-nos, conservando-nos no espírito de penitência, o que a mortificação corporal faria de modo admirável, mas somente por intervalos. Dar-nos-ia o sossego, a moderação para com nós mesmos, a doçura e a indulgência para com o próximo, a paciência e a lentidão para com Deus, o que conseguiríamos com a ausência da precipitação. Os traços salientes, que despertaram minhas suspeitas sobre estas coisas, se reuniram todos nessa dor constante dos pecados.A meditação sobre os mistérios de nosso Senhor e a

vida de nossa Senhora lançou novas luzes sobre esta suposição. Em primeiro lugar, um fato notável: Jesus, embora isento de pecado,'em virtude de sua própria perfeição e da santidade inefável de sua divina Pessoa, e Maria, imaculada em virtude do dom de Jesus e da graça preventiva da sua redenção, tinham, como traço característico de uma e outra vida, a penitência, que ambos praticavam em grau heróico, como se a penitência pudesse ser santa sem a inocência, mas nunca a inocência sem a penitência. O modo pelo qual a teologia explicou a penitência de Jesus e de Maria abriu-me novos horizontes; pareceu-me que sua vida de penitência consistia, de certo modo, numa dor contínua desde a primeira até à última hora. No mesmo momento da sua concepção tiveram uso completo da razão, em toda a sua energia. Mas essa razão se despertou numa dor maravilhosa, profunda e fixa.

Daquele instante até ao momento da morte, essa dor acompanhou-os. Identificou-se a todos os sentimentos e adaptou-se a todas as circunstâncias. Nunca se obscureceu a ponto de mergulhar nas trevas, e nunca se converteu em luz. Vivia do presente, mas o futuro que antevia claramente fazia parte desse presjente e conservava-se unido ao passado. Era aguda e distinta na alma de Maria, enquanto glorificava a Deus na exaltação da sua divina maternidade. Na alma para sempre abençoada de Jesus residia entre as chamas da visão beatífica, sem jamais se consumir. Adorável mistério de dor perene!

Esta dor teve os seguintes característicos: durou toda a vida, foi tranquila, sobrenatural e constituiu uma fonte de amor, Estes traços merecem ser estudados e pesados. Com efeito, quando voltamos os olhos a nós mesmos, quer consideremos os poucos que conservaram a inocência batismal, e cujas almas estão carregadas somente de pecados veniais, quer consideremos os grandes apóstolos, sem rivais por entre os santos, confirmados na graça e cuja graça foi superabundante, quer consideremos a massa dos homens cujo melhor estado é o de pecadores que se arrependem e se convertem, veremos que a única dor que reúne estes quatro característicos é a dor constante dos pecados. Se há coisa que possa durar toda a vida, é sem dúvida este sentimento. Teve parte saliente quando primeiro nos voltamos a Deus e não há altura na santidade em que nos abandone. Representa o papel do anjo da guarda em nossas almas e é a disposição, a conduta em que ele nos quisera ver constante e perseverantemente. E' uma dor tranquila. Antes apazigua a alma inquieta do que perturba a alma satisfeita. Acalma os ruidos do mundo e censura a loquacidade do espírito humano. Suaviza as asperezas, modera o exagero e atua sobre tudo com doce, benévolo e inegualavel encanto. E' sobrenatural, por não ter motivo em que se alimentar. E' todo de Deus e para Deus. Choramos o pecado já perdoado, e não o que nos põe em perigo, e assim se converte em fonte de amor. Amamos porque muito nos foi perdoado e porque nos lembramos sempre do muito que foi. Amamos porque o perdão destruiu o temor. Amamos porque con-sideramos, admirados, a compaixão que se dignou visitar tanta vileza. Amamos porque a doçura dopesar é semelhante à confiança filial do amor. Eassim a dor constante dos pecados é o único pa-ralelo que se pode estabelecer entre as Aossasalmas e a dor misteriosa e vitalícia de Jesus e deMaria; e o fato dessa dor os ter sempre acompa-nhado, apesar de sua pureza, parece mostrar quan-tos segredos de santidade cristã estão ocultos emtão suave e sobrenatural melancolia. t

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Demai3, era impossível não perceber que, classificando-a de dor, arrependimento, temor e expressões

análogas, a Escritura fala de uma penitência constante, do temor contínuo, do temor do pecado perdoado,

da dor que se torna em vida. Aconselha-nos a passar no temor a tempo da nossa peregrinação. Nunca admite a

possibilidade de ver cessar as disposições do arrependimento; pois a passagem de são João sobre o amor que afasta o receio dificilmente se refere a esta

vida. De modo que parece existir o preceito de um pesar contínuo dos pecados, análogo ao de rezar

sempre e sujeito à mesma espécie de dificuldades na interpretação. Ora, que entende a Escritura quando fala dessa dor constante? Não é certamente a austeridade,

que é intermitente e ocasional. Também não é a tristeza, essa dor que se dá a si o lugar que compete a Deus. Não é tão pouco a melancolia humana, que é, ou

consequência do pecado, ou fruto da indolência, ou uma moléstia do corpo desequilibrado. Assim foi a Escritura, formando o último anel daquela cadeia de provas, que

me levou a atribuir as falências na busca da perfeição à falte de .dor constante do pecado, como sendo a única causa comum aplicável a todos os homens, porque une

todas as outras causas que afetam esse ou aquele indivíduo. E é a Escritura que me leva também

a entrar na consideração do meu assunto. Verifiquemos primeiro qual a natureza desta dor.

Consiste na lembrança contínua de que somos pecadores, sem procurarmos trazer à memória certos e definidos pecados. Isto, pelo contrário, devemos evitar por prudência, além de ser de todo estranho à sua índole. Está demasiadamente atenta a Deus para fazer mais que se fitar a si mesma com olhar tocante, paciente e repreendedor. Consiste também na oração confiante e incessante pelo perdão. Se fosse dada à argumentação, poderia alegar que o pecado ou estava perdoado ou não o estava, e que o perdão, gratuito ou condicional, é ato instantâneo, e que, portanto, pedir perdão do que já fora perdoado seria chegar-se a Deus com palavras ocas. Davi, no entanto, lhe empresta sua voz: Amplius lava me. Purificai-me cada vez mais, Senhor; e a Igreja em peso adotou o Miserere e está continuamente de joelhos, clamando em alta voz: Amplius lava me. Oh! como a alma suspira por aquele amplius! Dizem os teólogos que as chamas do purgatório, por entre os seus ofícios seve-. ros e benignos, não queimam as manchas do pecado nas almas, porque, em verdade, estas não existem mais. O precioso sangue de Jesus as obliterou ao perdoá-las. As chamas, todavia, existem. Assim também as chamas do Amplius na alma. E' coisa que se faz sentir, mas que não se explica, que se preza, mas que dificilmente se define.

Essa dor consiste tambern num mixto dé temor pelo pecado perdoado, não tanto por causa do purgatório, embora a pobre alma esteja longe de aparentar superioridade a tão mesquinhos motivos — como ousaria ela achar-se superior ao que fosse! — mas por causa da facilidade com que os hábitos antigos ressurgem e os pecados passados importunam, voltando frequentemente à imaginação, e, para empregar uma imagem da Sagrada Escritura, tornando-a semelhante a uma gaiola de pássaros imundos. Não ousa adormecer, com o inimigo aparentemente morto a seu lado. Permanece acordada, e vela durante a noite sobre o campo de batalha, cheio de destroços, cantando em voz baixa os triunfos da graça para resistir ao sono que se insinua. Consiste ainda num ódio sempre crescente ao pecado, ódio que difere do horror que nos sobressaltou nos primeiros tempos da conversão, quando Deus, arrancando-lhe a máscara da face, o desvendou à luz tremenda e deslumbrante do seu espírito, mostrando a deformidade odiosa e a hediondez sobrenatural do pecado à nossa pobre alma, que tremia com a idéa dos juízos divinos, enquanto a nossa carne gelava sob o temor agudo que a castigava. Essa hora já passou. Foi um castigo, mas Deus tomou-nos nos braços enquanto nos batizava, e não perecemos. E', pois, um acréscimo do espírito de Getsêmani na alma, é uma participação àquele mistério solitário que se desenrolou sob as oliveiras quando os próprios apóstolos adormeceram. E' o Sagrado Coração de Jesus que se chega aos nossos corações, deixando impresso neles um fraco estigma da dor que o acompanhou toda a vida.

Finalmente, esta dor consiste numa sensibilidade de conciência cada vez mais delicada a respeito do pecado. O brilho inefável da santidade de Deus e de sua resplandescente glória fortalece-nos o olho da alma em vez de deslumbrá-lo. Distinguimos com maior clareza o que há de imperfeito, de indigno e de pouco honroso em nossas ações. Discernimos com maior nitidez a complicação e confusão de motivos. Enredados num mixto de enfermidades e imperfeições inevitáveis, em que o amor próprio não encontra onde repousar, uma tristeza divina invade-nos, mas a humildade e a fé não permitirão que nela entre nenhum sentimento de in-quietação. Ao mesmo tempo, e como que em con-sequência disto, dilata-se o amor que temos a nosso Senhor e amamo-lo por ser ele quem nos salvou do pecado. Alegramo-nos em dizer que o "seu Nome é Jesus, porque salvou o seu povo do pecado".

Há duas classes de pessoas que se esforçam por servir a Deus: as que não sentem esta dor constante pelos pecados e as que a sentem. Talvez fosse mais exato dizer que umas não a têm e não sentem necessidade de tê-la e outras a têm ou desejam ter. São diversas as

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causas que levam as almas a não sentir falta dessa dor e a mais comum é a tibieza, porque a contrição perene é incompatível e não pode existir com a falta de fervor. O característico da primeira classe é a ausência de progresso espiritual, e a sua perseverança nas veredas da devoção é incerta. Os que, não tendo tal dor, sentem, no entanto, necessidade de tê-la, devem consolar-se com a idéa de que o desejo em si já é sinal de saúde, ou pelo menos do retorno das forças, embora talvez seja a própria tibieza que lhes faça ver a

necessidade que têm dessa dor. Muitos, infelizmente, não a sentem, porque.se elevaram repentina ou prematuramente alto demais na vida espiritual, ou abandonaram cedo demais a Via Purgativa, ou viciaram o paladar com livros místicos ou adotaram penitências por demais rigorosas e empreendimentos superiores à graça do momento. Se quisermos que as almas brotem antes de criarem raizes, impedir-lhes-emos com certeza o des-envolvimento. Os passarinhos que tentam voar antes de estarem em estado de fazê-lo, caem no chão

e ferem-se ou morrem conforme a altura da queda, O amor que essas almas têm a nosso Senhor é frio e pobre; tudo que se assemelha ao fervor é-lhes romance empolado, ou entusiasmo desmedido. Embora não seja sempre sensivel, a dor não deixa de ser habitual. A dor sensivel, a exemplo da devoção sensivel, é um grande dom que devemos desejar e pedir a Deus com moderação.* Ai de nós! como desejaríamos voltar a possuir os sentimentos que tínhamos quando Deus primeiro nos atraiu a si. Pudesse eu reviver os dias passados! dizia Jó. Todavia apresenta-se uma dúvida: Seria isto possível? e, sendo possível, até que ponto seria desejável? Mas a dor que devemos cultivar é de outro gênero.

O Apóstolo ensina-nos que há duas espécies de dor: uma conduz à morte, outra à vida. A primeira mais se assemelha ao simples vexame do que à dor genuína. Nasce frequentemente do respeito humano. E' uma contrição que dá lugar a novos pecados, porque nos torna irasciveis com os outros e com nós mesmos. Falta-lhe a confiança em Deus, não atrai nenhuma graça nova, e não conduz à menor reforma de vida. Tal é, em suas primeiras fa--ses, a dor que leva à morte, podendo por vezes incorporar-se insensivelmente às disposições de pessoas excelentes e interiores. Suas fases ulteriores serão os prelúdios do desespero e suas consequências lógicas serão a impenitência final e a condenação.

A dor que leva à vida é de duas espécies: a pri-meira, que opera a conversão, é impetuosa, demons-trativa, desejosa de vingar-se de si mesma, ávida de mortificação, impaciente se o perdão lhe for con-cedido com facilidade e consumida pelo desejo de padecer, ainda que não verdadeiramente enraizado na alma, e pelo gosto de sofrer, que é mais uma ânsia nervosa do que um desejo delicado de justiça, e como tal não deve ser satisfeito. E' uma dor naturalmente transitória, que desaparece uma vez preenchidos os fins. A segunda é a dor que devemos querer sempre conservar em nós. Acompanha-nos, como já disse, toda a vida; é tranquila e sobrenatural, constituindo também fonte de amor. E\ portanto, terna e não nos censura. Sabe tratar-se com suavidade, se bem que

sem indulgência. E' humilde e não se deixa desanimar pelas quedas. Parece estranho, mas o medo do inferno será raro, fraco e intermitente, e no entanto não lhe faltará um instante sequer, mesmo durante os êxtases, um temor solene e reverente dos juizos impenetráveis de Deus. Os transportes celestiais da sagrada Humanidade de nosso Senhor nunca interromperam, nem por um momento, esse temor reverente de que estavam penetrados seu corpo e a sua alma. O medo do inferno pode ser, ao contrário, tão forte e tão prolongado, que se torne moléstia espiritual. A dor constante dos pecados im-pele à devoção. Tende à devoção, fazendo com que encontremos prazer nela e, conquanto seja dor, é também doçura. E' muito confiante, e sua confiança descansa unicamente em Deus. Vive fortalecida pelas fontes do sangue de nosso Salvador, derrama lágrimas silenciosas como alguém que recebe a toda hora boas novas e está sempre esperançoso.

Esta dor terna livra-nos de muitos perigos espiri-tuais. Abranda-nos o caráter e torna-nos a um tempo profundos e flexíveis. Traz consigo a unção do dom especial do Espírito Santo, chamado piedade. Impede que nos habituemos a praticar as ações e devoções de modo rotineiro. A seiva das árvores cai com a chegada do inverno e as noites frias apressam-lhe a queda. Assim é com o desaparecimento gradual do fervor em nossas almas. Mas a contrição constante preserva-nos deste mal e òon-stitue-se a seiva da nossa vida espiritual, cujo caráter será perene e cuja folhagem permanecerá sempre verde. As folhas talvez se endureçam e queimem com a geada, mas a árvore continuará viçosa. Impede também que menosprezemos os pecados veniais e afasta a todo momento, mesmo sem o percebermos,' mentiras leves, ciúmes importunos, vaidades melindradas e pecados da língua. Tal a dor que serviu de manto a nosso Senhor. Toquemos-lhe nas orlas sagradas, e a virtude dele manará para penetrar em nós, e a perda de sangue que nos afligia a alma será detida.

Os frutos produzidos em nós por essa dor rivalizam em importância com os perigos de que nos preserva. Torna-nos caridosos para com as quedas de outrem, e

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338 CAPITULO XVIII

a reação é dilatar-nos a humildade. Implica a contínua renovação dos bons propósitos; dilata a sinceridade, e a energia do desejo que temos de fazer mais por Deus; é força sempre crescente de perseverança, com maior estabilidade e menor esforço. Diminue com vantagem o gosto pelo mundo e pelos seus prazeres. Lança em redor de nós o encanto do céu e desilude todas as fascinações. Leva-nos a tirar maior proveito dos sacramentos, recebendo-os com maior reverência, com maior avidez. Nenhuma graça que nos for concedida será desperdiçada enquanto essa dor nos dominar a alma, pois mói todo e qualquer grão em seu moinho. Nada nos faz suportar as cruzes com maior paciência ou benevolência, nada nos dá uma tenacidade tão calma e tão fértil nas obras de misericórdia. Inunda-nos sempre da ternura interior, de modo que nenhuma dor, ou sofrimento, em um membro de Cristo deixa de despertar a nossa simpatia e de repercutir em nossa sensibilidade. A devoção à Paixão de nosso Senhor deve ser o pão de cada dia do pensamento cristão, e essa atmosfera favorável ao seu desenvolvimento conserva-a fresca e nova. As idéas que formamos do mundo invisível tornam-se mais finas e mais subtis. Movem-nos mais facilmente os interesses espirituais e estamos alertas às necessidades e perigos da alma enquanto a

vivacidade revela a abundância de alegria que se oculta nessa aparência de dor. E' como se a feliz ressurreição da carne fosse parcialmente antecipada. Os vínculos nos caem da alma, e adquirimos nova facilidade e nova prontidão para tudo o que se refere a Deus.

Mas como adquirir ou, se já a temos, como con-servar dor tão preciosa e tão suave? Será supérfluo lembrar que deve ser o objeto de orações especiais? Não nos deixemos desgostar por devoções banais, ou livros sem valor, por práticas ordinárias, ou direção trivial. Evitemos mudar de diretor precipitadamente e preparemo-nos. cuidadosa e tranquilamente para receber os sacramentos, dando-lhes o devido valor. Cultivemos grande devoção à conversão dos pecadores e sejamos muito simples ao acusar-nos no confessionário. Afastemos ciosamente tudo que constitue obstáculo à dilatação do amor pessoal que temos a Jesus. Outras coisas podem cessar momentaneamente, sem culpa da nossa parte, mas o amor, nunca. Não tem limites. Participa da infinidade de Deus. Nada lhe é superior em gênero, nada o iguala em grau. Não procuremos, de propósito deliberado, a consolação como objeto principal nos sermões, na direção, na devoção, nos castigos corporais que nos infligimos

voluntariamente, ou nas conferências espirituais.Não queiramos ser consolados de uma dor que énosso tesouro, que devemos desejar e conservar emnós não somente até o último dia deste mundo,mas até o verdadeiro raiar da eternidade. Se es-tamos na Via Iluminativa ou mesmo na Unitiva,nunca nos apartemos inteiramente da meditação so-bre os novíssimos do homem. '

Convém precavermo-nos sobretudo contra dois erros tolos, que denunciam ignorância dos princípios elementares da vida interior, mas que não são raros. O primeiro consiste em afastar, sem reflexão, os movimentos de remorso e as exprobrações interiores, como se fossem meros escrúpulos. Os diretores que têm pressa de livrar-se dos penitentes, ou desejam guardá-los calmos a todo o custo, frequentemente os lançam nessa ilusão. Não é só grande infelicidade, é ainda erro grave. Talvez a causa desse remorso seja uma antiga raiz amargosa, ou uma reserva secreta com Deus, que agora se externa e nos censura. Que temos a perder, se deixarmos repousar tranquilamente em nós essas coisas? Talvez seja nosso Senhor que esteja a fazer conosco o que lemos a respeito de diversos santos, isto é, espremendo-nos

do coração as últimas gotas de sangue impuro. Devemos nós intervir e afastar do ponto dolorido a firmeza suave dos seus dedos, quando, se conhecêssemos a nossa própria ventura, havíamos de ver que esse sofrimento nos é mais precioso que um império? A nuvem é sempre nuvem, mas a sabedoria está em reconhecer o Espírito Santo naquela que nos encobre.

O outro erro consiste em crer que é contrário ao espírito do catolicismo encarar as coisas sob um ponto de vista severo e religioso. Os convertidos estão muito sujeitos a isto pela lei de reação e de retrocesso. Assim também os padres, os seminaristas e os religiosos, porque consideram a seriedade como algo de profissional. A futilidade não nos torna felizes, e nunca li na vida de um santo que apreciasse o falar no ar ou que assim procedesse. Falavam pouco e suas palavras eram sempre graves. Creio que era essa mesma gravidade que os tornava alegres. Algo há de insensato nessa leviandade. Daí, em parte, a vaidade e a vulgari-dade da vida espiritual.

Tenho fé que nenhuma vocação à perfeição será frustrada para a alma que tiver essa dor constante pelo pecado. E' a quintessência da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e lá devemos procurá-la.

Fáber, O progresso — 24

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CAPITULO XX

De como devemos encarar as culpas

A mais suave de todas as doutrinas consoladoras que são Francisco de Sales teve a feliz inspiração de nos

ensinar, foi a que se refere ao modo pelo qual devemos encarar as culpas. E' chegado o momento de

considerá-la. De um lado já adquirimos noções claras a respeito das tentações e dos escrúpulos e, de outro, já

nos convencemos da necessidade da dor constante dos pecados. Esta dor, como agora a entendemos, não se

pode tornar em fonte de escrúpulos, mas requer a nítida percepção das nossas culpas, que nela se encaixa e dela faz parte. Infelizmente nossas culpas constituem

porção importante de nós mesmos, e claro é que a ação a exercer contra elas não será negocio trivial na vida

espiritual e que tal ação depende, em grande parte, do juízo que delas formamos.

Com efeito, muita coisa nesta vida depende das idéas que fazemos a respeito. A justeza de vista economiza tempo e evita muitos erros. Por vezes, encontramos fortuitamente um caminho mais rápido que leva ao céu. Não que os mais rápidos sejam os mais cômodos. De fato, nenhmn é rápido e nenhum fácil, senão relativamente, mas todos são cheios de doçura e de paz. Que temos nós em maior abundância? Culpas, com certeza. Talvez a justa noção neste ponto nos abra um caminho mais curto para o céu. Em todo o caso

DE COMO DEVEMOS ENCARAR AS CULPAS 371i

nos ajudará a romper caminho através de uma su-posta série de barreiras.

Se pedíssemos a uma alma piedosa que nos desse conta de si, fá-lo-ia provavelmente do seguinte modo: Estou constantemente a fazer coisas que são más em si. Não que as faça de propósito, ou com premeditação, pois espero não cometer delibera-damente nenhum pecado venial — é este, depois do amor de Deus, o grande objeto de minha vida. Mas tão pouco posso dizer que minhas quedas sejam, de todo, surpresas. Assim parecem no primeiro momento, não, porém, quando reflito nelas. O sentimento de culpabilidade, em vez de acusar-me no momento, cresce com o exame retrospe-tivo. Mas o peior é que não noto em mim nenhum progresso visível. E, ao fazer coisas exteriormente boas, generosas mesmo, e que exigem certo sacrifício, descubro continuamente nelas algum motivo baixo. Não posso sacudir orespeito humano. O amor próprio parece estar ligado aos meus próprios pensamentos e até aos meus sacrifícios. Não é como se isso acontecesse de vez em quando, mas dá-se a todo momento. Corre paralelo ao curso da vida. Creio nunca ter feito uma boa obra. Uma boa obra estragada é o ponto culminante de toda a minha vida.

Na oração, porém, sou pessoa diferente. Parece que penetrei noutro mundo. Estou livre e à vontade. As aspirações dos santos parecem ser as minhas. Desejos de sofrer, avidez pela calúnia, penitências formidáveis, resoluções ardentes, feitos heróicos, tudo ferve em mim e exprime exatamente o que sinto com maior veemência na vida interior. Palavras audazes, de que teria fugido respeitosamente noutros tempos, enchem minhas orações. Alego os direitos dos santos, insto pelas suas pe-

tições e procedo como se, na realidade, fosse um deles. K tudo isso em presença de Deus! Não faço tenção de faltar à sinceridade. Sinto, ou creio sentir, o que digo. Quando volto, contudo, ao nivel das práticas diárias, tenho a impressão de que a minha oração foi uma hipocrisia de princípio a fim; no entanto quisera que assim não fosse. Não há proporção alguma entre a oração e a vida prática. Aquela vai sempre na vanguarda, e a distância que as separa é absurda.

Na prática, vejo que a generosidade no sofrimento é justamente o que não posso conseguir; e, quanto às mortificações, são para mim o que o castigo é para a criança. Seria surpresa para os outros, e humilhação para mim, contar as coisas mesquinhas que faço por Deus, o esforço laborioso que emprego, e o sofrimento que me custam. E como me queixo, como tremo, como trato de adiá-las, como procuro uma dispensa justificável e como caio de novo na espiritualidade cômoda, logo que se findou o esforço momentâneo! Poderia revelar, a respeito da minha pusilanimidade, coisas incriveis, não obstante ter brilhado na oração da manhã, brilhado como mártir no cadafalso, diante do meu castelo no ar.

A conclusão a tirar é que a mim me parece estar peorando e retrocedendo. Os fervores sensíveis

desapareceram e não vejo que, ao passar, tenham deixado hábitos definitivos. Quisera poder nomear uma só imperfeição que tivesse sido arrancada de fato, ou um só pecado venial cuja frequjncia tivesse diminuído, ou, enfim, poder mostrar alguma coisa mais que uma simples arranhadura cá e lá, na paixão dominante. Emprego os mesmos esforços que outrora, ou talvez maiores ainda, e o êxito é aparentemente menor.

Ora, está em bom caminho quem der de si se-melhante conta? Respondo: Sim, em suma! — e o meu parecer se baseia em duas coisas: o desejo manifesto da perfeição com que começou, e o esforço contínuo com que perseverou. Apoiado, por conseguinte, nestas duas coisas, pode encarar o resto sob um ponto de vista consolador. Mas falemos de nós mesmos. As nossas culpas são muito numerosas e muito grandes, é verdade. Mas há nelas algo que nos possa surpreender? Dado o conhecimento que temos de nós mesmos, e o que tínhamos da medida em que a graça nos foi concedida, não era de esperar? Algumas vezes meditamos com humildade e prudência sobre o nosso futuro; revelou-se este muito diferente na realidade ? O fato é que nada há em nossas culpas, nem no gênero nem no grau, que nos deva- espantar, portanto nada que nos deva desanimar. Digo mais. Se algo há de

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espantoso, é não terem sido maiores. Quando pesamos, de um lado, as tentações, e do outro o nosso próprio peso, apreciamos as coisas de modo diverso. Quão diferentes de nós mesmos fomos, felizmente, em muitas circunstâncias! E devemos atribuir isto exclusivamente à obra da graça. Em vez de afligir-nos por ter procedido tão mal, devemos, ao contrário, louvar-nos por ter procedido tão bem e recear que tais descobertas nos encham de orgulho.

O bom senso tem também uma ou outra palavra a dizer sobre o assunto. As culpas foram cometidas. O mal está feito e está entregue a Deus. Nada lucraremos com o desânimo, mas muito havemos de aproveitar se lhe resistirmos. O desânimo de nada adianta, pois as culpas não poderão ser revogadas. Podemos atormentar-nos a respeito das circunstâncias e afligir-nos pensando na facilidade com que poderíamos ter evitado o mal. Mas se a culpa já nos fez perder certa paz de espírito, por que perder ainda mais pela irritação? Demais, o desânimo não faz parte da genuína penitência. Nada expia, nada satisfaz, nada merece e nada alcança. Não nos tornará mais cautelosos no futuro, antes pelo contrário, pois o abatimento predispõe à tentação e torna-nos menos esforçaáos na' resistência. Mas há imensa vantagem em não nos entregarmos ao desânimo. Preocupar-nos-á mais a infidelidade feita a Deus do que a imperfeição em nós mesmos. Cair em culpa e não perder ânimo com a queda é não só conservar a coragem existente, mas é ainda aumentá-la. E' o caminho mais humilde, e, por conseguinte, o mais agradável a Deus. E' também o mais razoável, e portanto o que atrai maiores bênçãos.

Acontece, algumas vezes, a um santo emitir um pensamento novo, ainda não encontrado em nenhum escritor espiritual que o precedeu. E' a contribuição que presta à tradição. Depois de enunciado — e isto se dá com as máximas de todos os grandes espíritos — parece-nos tão banal que estranhamos não ter tido a mesma idéa. Temos um exemplo disto em são Francisco de Sales, homem de muitas idéas novas, quando nos ensina que, se na vida espiritual caímos muitas vezes sem o perceber, também devemos levantar-nos sem o saber. Parece pueril, e, todavia, se quem tem o hábito infeliz de se afligir a respeito de suas culpas meditasse de longe em longe uma hora sobre esta máxima, extrairia dela a verdadeira medula da sabedoria espiritual. Eu a prejudicaria, se me esten-desse neste ponto.

Imaginamos talvez fazer de nós mesmos um con-ceito pouco elevado e avaliamos os nossos êxitos segundo a humildade. Mas qualquer inquietação a respeito das culpas que não for passageira ou de-genere em tentação, é prova de que fazíamos de nós mesmos um juizo secreto por demais favorável. Cóm efeito, o testemunho dado contra nós é o'único proveito, aliás fortuito, dessas inquietações. Não nos revela, porém, Deus, de vez em quando, coisas terríveis nas profundezas da alma? Acontece com frequência, que uma família, cercada da alegria da paz doméstica e da virtude, residindo há longos anos numa casa antiga, verifica a necessidade de certos reparos,

e, mandando executá-los, descobre cárceres secretos e subterrâneos terríveis, onde a miséria passada e os crimes perpetrados deixaram vestígios. Assim também sucede com a alma. O acesso de alguma tentação desusada, o despertar de uma paixão longamente adormecida, ou um clarão de luz sobrenatural enviado por Deus, ilumina um instante cavidades desconhecidas e elementos imprevistos para a prática do mal. E' pos-sível que isto resulte da leitura ou da narração de grandes crimes. Mas, seja qual for o meio pelo qual fazemos a descoberta, não há dúvida que trazemos em nós faculdades imensas de pecados não cometidos. Somente o freio da graça e os rodeios misericordiosos de uma Providência atenta impedem a consumação do mal. Oh! como nos chegamos ao manto de Deus, agarrando-nos a seus pés, quando primeiro percebemos a tudo isto! Que desproporção espantosa e abençoada entre o mal que cometemos e o que somos capazes de cometer, ou que às vezes estamos prestes a cometer. Se o joio cresceu na alma quando ela estava cheia de sementes de ervas mortíferas, não terei motivo de satisfação? E se o joio não abafou de todo o trigo, é coisa admirável, é uma operação da graça, é obra dos sacramentos? Se um imperador pagão rendia diariamente graças a Deus pelas tentações de que o livrava, que gratidão lhe devemos nós pelos pecados não cometidos!

Não temos nós também épocas em que a graça parece agitar-nos a própria escória da natureza, lançando-a num estado de efervescência ardente, por meio de um produto de química sobrenatural, se assim posso dizer? Parecemos aos nossos próprios olhos semelhantes aos demônios e aos animais. Ve-mo-nos, um momento, com a mancha dos pecados que poderíamos ter cometido, e embora não passe de sonho, é tão vívido que a impressão horrenda nos importuna dias seguidos. Sentimos na alma o peso do sangue. Em tais momentos, sem um átomo de vaidade, sem o mínimo receio de complacência, o pensamento consolador do que somos, é o travesseiro de repouso a que volvemos para esquecer, no sentimento das misericórdias de Deus, a idéa do que poderíamos ter sido e talvez venhamos a ser. Não é curioso que as

nossas leves culpas estejam destinadas, um dia, a proporcionar-nos a paz?

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1) Vida, I. 285. Convém observar que os epítetos em-pregados pelo autor revelam a sua doutrina a respeito do pecado original, que se manifesta de modo impres-sionante no Catecismo da Vida Interior, onde ele tão longe a levou, que chega aos limites da ortodoxia. Sempre que no correr deste livro fui obrigado a empregar adjetivos para a qualificar a natureza decaída e suas propensões, falei baseado na crença de que o estado do pecado original é semelhante ao da pura natura, com a diferença de que é um estado de privação. Como o modo pelo qual encaramos o pecado original exerce grande influência sobre a nossa vida espiritual, achei bom refutar as expressões de Olier, sem, no entanto, ter a menor intenção de faltar ao respeito que lhe é devido. Já observei, em outro lugar, que, de todos os servos de Deus não canonizados, cujas vidas tenho lido, é a que mais se assemelha à de um santo canonizado.

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Outra visão consoladora. Comparai o que somos, uma vil mistura da graça de Deus e do espírito humano, com o que seríamos se Deus abandonasse simplesmente o espírito humano a si mesmo, embora afastando dele o contato, o gosto ou o odor do demônio. O padre Olier não podia compreender isto, mas Deus lho fez ver, subtraindo-lhe todo socorro. Mostrou-lhe o que seríamos, se ele nos deixasse entregues a nós mesmos. O grande interesse do seguinte trecho justifica-lhe a extensão.

"Essa subtração — diz Olier (1) — dá-se em relação à graça sensível, pois a bondade divina não deixa de socorrer-nos com graças insensíveis, sobremodo eficazes. A falta dessas graças sensíveis causa efeitos estranhos e muitas vezes humilhações prodigiosas na alma. Sob a influência desses socorros, a vontade e o coração se dirigem a Deus alegremente, e observam-se mesmo exteriormente, no ar, no porte, nos atoa, uma doçura, modéstia e uniformidade sem iguais. Deus, ao retirar os dons sensíveis, deixa a alma em sua nudez; e, como desses dons nasciam outrora grandes luzes, só resta agora à alma a perturbação e a confusão.

"Movido de compaixão para comigo, Deus mise-ricordiosamente retirou-me esses 'dons, para mostrar-me o que eu era, e assim desenganar-me suavemente do erro em que estava. E', de fato, imensa misericórdia de sua parte deixar-nos ele entregues a nós mesmos, se não, continuaríamos a estimar-nos, e apropriar-nos do que pertence exclusivamente a Deus, até cairmos, por fim, numa cegueira semelhante à de Lúcifer. Destarte Deus mostra visivelmente à alma o fundo da sua abjeção, acabando por lhe revelar sua miséria, pois, tendo-se retirado a graça sensível que reprimia o homem corruto, tudo se modifica tanto no interior como no exterior. O Espírito Santo deixa-lhe então sentir o seu desen-freamento natural e a corrução dos seus desejos. O freio parece estar tirado às paixões. Motivos insignificantes despertam-nos a cólera, inveja, aversão, sentimentos de amor próprio, até que a soberba se reflete no semblante altivo e arrogante. A alma, entretanto, muitas vezes não concorre para isso sequer com um pensamento ou sentimento voluntário; é o efeito próprio de um levante da soberba, que se faz sentir na ausência de quem a continha e obrigava a esconder-se. Assim quando o Espírito Santo, que durante algum tempo elevara a alma a Deus, se retira, esta, sem o apoio de tão forte e tão poderoso princípio cai em si, e a queda parece lançá-la num abismo de obscuridade, de trevas, de corrução, de confusão; num abismo de paixões que, à semelhança das feras, se dilaceram e se devoram umas às outras. Em resumo, a alma julga ter caido do céu no inferno e tanto mais pavor lhe causa a vista de sua baixeza, quanto mais a considera aos olhos de Deus, a mesma pureza e santidade! Deus deixa assim, em nós, essa fornalha ardente, essa concupiscência que, não menos que as cinzas de Sodoma e Gomorra, nos lembra as sentenças proferidas por Deus contra Adão e sua posteridade. E' uma boca do inferno que levamos nas entranhas, a vomitar a todo instante mil exalações insuportáveis a Deus, e a atrair sobre a

nossa carne pecaminosa o castigo da sua mão vingadora. Não falo aqui dos pecados que cometemos pela nossa prójpria malícia, mas somente da humilhação comum a todos nós. Não admiro que os santos, animados por vezes de um santo furor contra si mesmos, se armassem de instrumentos de penitência, dilacerassem a carne e derramassem o sangue, infli-gindo assim ao corpo um justo martírio. Foi para mostrar aos homens o que deviam sofrer na sua carne criminosa, que o Filho de Deus quis ser flagelado, ver correr o sangue de todos os lados, e que se lhe deslocassem os ossos. Quando, pois, o socorro sensivel se retira, e essa subtração põe a descoberto a nossa malícia, encontramos satisfação em estar expostos às injúrias, aos ultrajes, aos mais injustos e rigorosos tratamentos.1 "Vede o que operam essas subtrações: em primeiro lugar, o conhecimento visível e manifesto de que, por nós mesmos, somos só pecado; e em segundo, a humildade, em virtude da qual nos deliciamos em ser tratados por parte de Deus e dos homens conforme merece o nosso pecado. Deus só opera essas subtrações das graças sensíveis para substituí-las por outras, mais excelentes, qual jardineiro que arranca uma árvore do jardim para plantar outra melhor. Mas, como não deseja sempre realizar operações idênticas em todos os homens, não os prepara a todos da mesma maneira. Não tencionando apossar-se tão intimamente de todos, não os desapega tão universal e radicalmente, como a outros. Ele nos faz sentir essas subtrações e esses abandonos em proporção aos dons que deseja conferir, e, porque o orgulho é mais frequente nos dons da graça e mais odioso que nos dons da natureza, o bom Mestre, cioso da nossa salvação, opera de preferência as subtrações nos dons da graça do que nos outros".

Tal a opinião de Olier. Indubitavelmente antes mil culpas, que não fossem pecados mortais, do que essa natureza, emancipada do demonio, mas privada da graça e gozando de suas miseráveis prerrogativas! Vede o que somos no íntimo. Somos atualmente santos, apesar das nossas culpas e graças, em comparação do que seríamos, se, livres de tentações, Deus nos retirasse a sua graça e compaixão.

Deduzo destas considerações que devemos con-siderar-nos, não digo plenamente satisfeitos, porém mais ou menos felizes, se, com o passar do tempo, não juntarmos aos pecados de que nos acusámos novas espécies de pecados veniais, nem aumentarmos o número dos que nos afligem, nem cairmos neles com maior advertência que no passado, nem oferecermos menor resistência às surpresas da tentação e se persistirmos, mesmo nos peio-res momentos, em preferir habitualmente Deus a tudo o mais. São cinco fontes de felicidade moderada, que nos alegram sem inebriar-nos.

Será, porém, seguro e prudente entregarmo-nos a tais considerações? Não corremos perigo . se aceitarmos tranquilamente os nossos erros ? Vejamos, pois, a conveniência e a sabedoria espiritual que há em proceder assim. Tudo quanto for humilde é seguro,

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conquanto a humildade seja sincera. Ora, ficar indiferente aos erros, sem tentar o menor esforço para progredir, não seria humildade, seria tibieza ou irreligião. Coisa mui diferente, todavia, é aceitar tranquilamente as culpas, tendo ao mes-*mo tempo firme propósito de emenda e fervoroso desejo de perfeição. Quem fita a Deus não precisa recear o relaxamento, pois relaxamento subentende o olhar fixo para baixo e não para cima. Munidos de tais sentimentos, desprendemo-nos de nós mesmos. Até o amor próprio nos incita a odiar-nos. Assim a regra que nos faz aceitar tranquilamente as culpas baseia-se, na verdade, num princípio sobrenatural que a um tempo supõe e aumenta a mortificação interior.

Demais, o progresso espiritual carece ordinaria-mente de tranquilidade. Atravessamos, por vezes, rápidas tempestades interiores, durante as . quais crescemos, como acontece às crianças na doença. Mas são fenômenos fora do comum. Claro é que a serenidade deve ser a atmosfera predominante do asceta. Precisamos de sossego para rezar. A mortificação deve ser calma, para não ser simples impulso violento da natureza, cujo furor aumenta na razão direta do sofrimento. A confiança em Deus deve ser calma. A própria palavra é re-pousante. A recepção dos sacramentos exige calma. O ruido e a precipitação seriam meras faltas de respeito. O amor ao próximo deve ser calmo, para não degenerar em afeição humana. Numa palavra, não há quasi função na vida espiritual, cujo exercício e cuja execução não exijam tranquilidade. As culpas, todavia, são universais e diárias, invadindo todas as matérias; estão no pen-samento, nas palavras, nas obras, nos olhares, nas intenções e nas omissões. Cobrem incessantemente toda a superfície da vida, de sorte que, se não as aceitarmos tranquilamente, nunca estaremos em paz. Tal resultado seria tão absurdo que basta para demonstrar a serenidade com que devemos aceitar as culpas.

O desejo da perfeição, como já vimos, é um dom, e dom insigne, de Deus. E', pois, necessário perseguir a virtude com generosidade e diligência para alcançar semelhante fim. Não devemos, contudo, desejá-la, ou procurá-la com demasiado apego. Se aprouver a Deus reter-nos, contentemo-nos em fa-zer-lhe a vontade. Por ser a coisa boa em si, nada justifica a ânsia desmedida em conseguí-la. A avidez da procura faz-nos perder os melhores frutos que nos proporcionaria a sua aquisição. Deus permite as nossas queda3. A parte que nelas tivemos deve ser apagada pelo arrependimento tranquilo e cheio de esperança. Deus providenciará quanto ao mais. A nós compete ficar em paz.

A conduta oposta oferece outra desvantagem, pois o desânimo acarreta necessariamente avidez pelas consolações. Quanto mais inquietos estamos, mais procuramos o que nos possa consolar e aliviar. Isto, no entanto, é antepor de novo o interesse próprio em tudo, o que, além de enfraquecer-nos para a luta real, nos há de inspirar repugnância pela mortificação. As consolações provenientes das criaturas nunca nos são verdadeiro auxílio, e muitas vezes nos embaraçam; desejá-las é de mau augúrio.

Na vida espiritual nunca há, entretanto, licença sem advertência, nem mitigaçãb sem cláusula que a garanta contra o relaxamento. Assim, neste ca-, so, evitemos cuidadosamente confundir a esperan-* ça com a vaidade e a presunção. Conservar a calma depois das culpas não é aceitá-las com indiferença e com negligência; e a alegria difere essencialmente da vaidade. E como discernir entre as duas? A esperança implica, até certo ponto, a dúvida, e isto, por sua vez, supõe o medo; de modo que, mesmo na esperança de ultrapassar um dia a esfera de certos e determinados erros,c ainda fica o receio de não o conseguir. Este receio é evidente falta de confiança em si e deve ser subordinada à nossa esperança, para não degenerar em desânimo. A arrogância não tem medo, porque não tem dúvidas e não tem esperança, porque não imagina que o êxito lhe possa falhar. De maneira que a falta de confiança em si é um meio de distinguir a esperança da vaidade. A confiança em Deus, que sobrepuja a falta de confiança em si, é outro sinal. A vaidade confia em si é, nos seus cálculos, considera como de direito o que a humildade tem em conta de graça. Temos outro sinal ainda, na influência gradual do sobrenatural sobre os nossos sentimentos, motivos e desejos. Se procuramos mais a Deus, se nos apoiamos mais nos sacramentos, se preferimos a vontade divina ao nosso próprio progresso espiritual, então podemos ter certeza de que a tranquilidade com que aceitamos as nossas culpas é feita de esperança e não de vaidade.

Toda a questão resume-se nisto: há dois modos de encarar o progresso na graça, o do aperfeiçoamento pessoal e o da vontade de Deus. Na consideração destes dois pontos de vista (pois haverá algo de mais influente que o modo de encarar as coisas?) encontra-se a raiz de todo erro e de toda sabedoria na matéria. Quem tomar o aperfeiçoamento próprio como o alvo de sua vida, pisará quasi sempre em falso. Se tal pessoa, a exemplo do escultor qué remata a sua obra, ocupar-se consigo mesma, cada golpe do cinzel aumentará a disposição já existente em seu trabalho e fará surgir novos defeitos e falhas. Os seus motivos não serão retos, nem sinceros os seus desígnios. Se quiser entregar-se ao exame particular, à regra de vida, a penitências regulares, como se estivesse se submetendo a um tratamento médico; se for refugiar-se num colégio reformador de sua própria criação, e amoldar toda a vida espiritual segundo a teoria complacente do aperfeiçoamento pessoal, seu ascetismo não será mais que uma sistematização e uma glorificação da própria vontade. Sob tais auspícios nunca se há de tornar espiritual e raras vezes se guiará por princípios de moral. Este miserável ponto de vista é, todavia, aceito, com frequência, até mesmo por pessoas que vivem no âmago de um sistema tão profundamente sobrenatural, como é o da Igreja católica.

Quem, ao contrário, considera o progresso na graça sob o ponto de vista da vontade de Deus, abandona tudo a ele, exceto a diligência e a boa vontade em corresponder à graça. Seguirá as pisadas de Deus e não procurará traçar o seu próprio caminho. Modela-se, conforme os seus meios e medidas, na imitação de Jesus. Procura agradar a Deus e procede inspirado no

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amor. Suas incoerências não o surpreendem nem o irritam. A imperfeição o entristece, não porque desorganiza a simetria do seu caráter, mas porque penaliza o Espírito Santo. Os sacramentos e os escapulários, os terços e as medalhas, as relíquias e os ritos, tudo tem lugar marcado no seu sistema, onde o natural e o sobrenatural se completam. Deus se compraz sempre que alguém procura agradar-lhe humildemente e pelos meios aprovados. Quem aceita as culpas com tranquilidade, está sempre alegre e cheio de esperança. Palpita-lhe no coração o júbilo de- um êxito sem fim, pois Deus é o seu Pai. Quem, ao contrário, procura o próprio aperfeiçoamento, ou jamais o conseguirá, ou levará muito tempo para alcançar o seu fim, ou perderá çpor um lado o que

adquiriu por outro, ou ainda conseguirá escandalizar o próximo com sua conduta edificante. Com gente dessa espécie a edificação é a auréola da virtude, e julga que não conseguiu seu fim se não soube edificar. Tal pessoa ficará, por conseguinte, inquieta, rabugenta e desanimada com as culpas. Seu coração se tornará amargo por causa 1 dos reveses constantes e sem fim.

Depois da morte teremos muitas revelações. Creio que o segredo que envolve, aqui na terra, o nosso progresso espiritual, dará lugar a algumas. Que surpresa para muitos espíritos humildes verem a beleza extraordinária das suas almas depois que a morte as libertar! Estamos longe de suspeitar tudo quanto em nós se opera.

Fáber, O progresso — 25

CAPITULO XXI

Dos ímpios e dos eleitos

Um dos meios menos eficazes de convencer a quem diverge de nós, é dizer que suas objeções carecem de valor. E', portanto, mais fácil convencer a um adversário, que alega sólidos argumentos, do que outro que apresenta fracas objeções. Além de respondermos a um argumento definido e inteligível, admitimos, com sinceridade e candura, a justeza de suas objeções e assim lhe ganhamos o coração. Por conseguinte, quem se recusa a admitir que o sistema católico oferece numerosas e incontestáveis dificuldades às inteligências a ele estranhas, não somente admite um argumento poderoso contra sua divindade, mas, em geral, não conseguirá muitas conversões nem terá muitos motivos para se alegrar com o progresso, a perseverança ou o espírito profundamente católico de quem se converter.

O mesmo princípio dá motivo a este capítulo. E' curioso ver um homem, versado nas coisas interiores, atormentar-se com dificuldades exteriores. Como, todavia, não pode livrar-se da tendência que tem para a presunção e o desânimo, estes sentimentos se exteriorizam em alguma dificuldade que nada tem a ver com ele, mas que basta para distrai-lo e torná-lo infeliz. Grande é o número de pessoas espirituais e perspicazes para quem é verdadeira tentação comparar a perversidade do mundo com as suas próprias virtudes, o que as leva à presunção, ou à doutrina do pequeno número de eleitos, o que as lança na aflição. Não posso dizer que tais objeções, que importunam tantas almas, sejam destituidas de valor, ou que nada haja de razoável nos argumentos que apresentam; só poderia chamar tal gente de des-arrazoada, se empregasse a palavra no sentido que lhe dão ordinariamente os controversistas, aplicando-a a quem é bastante ousado para não concordar com

elas. Aceito as objeções para as aprofundar, esperando assim atenuabas.

O progresso da espiritualidade consiste no desapego sempre crescente do mundo. Ora, nos meios que empregamos, quanta coisa imperfeita e pouco generosa da nossa parte! Não conseguimos logo odiar o mundo de modo sobrenatural, ao deixar de amá-lo. Trememos com o mesmo respeito antigo enquanto lhe aguardamos as sentenças, ou o contemplamos com o olhar do crítico que experimenta natural aversão. E' quando estamos nesta última fase, que a profunda perversidade do mundo nos leva à tentação de nos termos em conta de santos.

A maldade do mundo reveste cinco aspetos dife-rentes, que igualmente nos afligem. Com efeito, os homens ou deixam endurecer seus corações, ou não fazem caso de Deus, ou não se convertem quando devem, ou odeiam positivamente a Deus, ou fazem profissão de serví-lo e são inconsequentes consigo mesmos, como acontece muitas vezes com pessoas devotas.

O primeiro estado é o da impenitência, isto é, o dos corações endurecidos. Os homens sabem que devem renunciar ao pecado e recusam-se a fazê-lo, 25* não porque odeiam deliberadamente a Deus, ou têm aversão voluntária à moralidade, mas porque amam o pecado e estão dispostos a cometê-lo a todo custo. O homem intrépido, que goza de boa saúde, encontra muito prazer natural no pecado, enquanto a sensualidade oferece repouso e consolo às pessoas adoentadas ou infelizes. O mundo também se apresenta cheio de graça e de encanto. E' preciso já estar convertido para compreender a verdade das sentenças amargas que se pronunciam contra o mundo nos púlpitos e nos confessionários, pois esses anátemas não bastam para converter. Tais homens fazem calar deliberadamente a voz da conciência, quando esta os adverte, e, no entanto, fica-lhes sempre uma vaga noção sobre a obrigação do' arrependimento, que poucos conseguem abafar completamente, a qual, se não lhe couber função mais afável, pelo menos justificará a severidade de Deus nos castigos eternos que lhe infligirá. Seria bom que os cristãos se lembrassem de que toda confissão sem contrição, e toda recaida no pecado tendem, na verdade, fortemente a esse estado de impenitência. Há, na

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malícia própria da recaida algo de muito semelhante à impenitência final.

O segundo estado é o da indiferença. Os homens não fazem caso de Deus, mesmo quando não são infiéis. Isto não é incompatível, nem com a profissão exterior de cristianismo, nem com a crença intelectual nos seus dogmas. Tal estado reveste algo de odioso e de irritante aos olhos da gente espiritual. Os indiferentes arrogam-se toda a candura e moderação possíveis. Imaginam esta/ numa altura donde não precisam olhar de baixo para nada, e sim de cima para tudo. No seio da Igreja, pouco se afligem com as doutrinas, e desejam viver em paz com todos os partidos. Não experimentam nenhum sentimento de real interesse pela Igreja, nem de terna compaixão pelos pobres, nem tão pouco percebem a hediondez do pecado. Querem agarrar-se a Deus somente pelos deveres im-prescindiveis e nada mais. Formulam sua própria teologia e traçam-se um caminho para o céu sem outro amor senão o sentimento radical que todo homem organizado sente pelo seu Criador na alma, na vontade, na razão, na inteligência, no sangue, nos ossos e no âmago do ser. Suas idéas e seus interesses estão impregnados de materialismo, e, quanto à religião, consideram-se dotados de admirável prudência, porque não visam muito alto e abandonam a Deus a salvação de sua alma. Estão sempre prontos a sufocar toda obra de zelo, a paralisar todo empreendimento nobre, porque esta lhes parece ser a noção exata da moderação. Quem os ouve falar, supõe que o mundo está abrasado de um amor romântico por Deus, e que o nosso misericordioso Criador os encarregou de extinguir a conflagração, o que fazem com toda a calma e dignidade possíveis. As pessoas espirituais enojam-se ao vê-los e não obstante continuam a observá-los, chegando, muitas vezes, a fazê-lo com um olhar fascinado.

O terceiro estado abrange o das pessoas que não se convertem. Não pensam de todo em Deus, ou afastam de si as - graças, como se estivessem a repelir um choque nas ruas, sem saber a que estão resistindo. Não querem decidir-se pró ou contra Deus, não tanto pela indiferença como pelo desânimo ante as dificuldades. Para elas não existe nem mundo espiritual, nem forças invisíveis. Não parecem sequer suspeitar da existência de coisas sobrenaturais, o que resulta de longa indulgência pessoal, independente do pecado positivo. Com efeito, muitas vezes patenteiam moralidade exterior, e os caracteres que mais se distinguem na vida doméstica pertencem frequentemente a esta classe. Se alguém procura convencê-las da necessidade da religião, elas sustentam idéas vagas a respeito de Deus e generalidades tão banais quanto profanas sobre a sua misericórdia; ou tomam as dissidências religiosas como pretexto para não enfrentar francamente a questão. Ã própria gente piedosa convém lembrar que toda reserva para com Deus, mesmo acompanhada de qualidades excelentes, é sempre um passo para á não conversão.

O quarto estado é o de irreligião. Deus é positi-vamente objeto de aversão para muitos homens.Tornam-se irrequietos quando seu nome é pronun-

ciado. Revoltam-se quando seus direitos são rei-vindicados, embora modestamente. A santidadeaflige-os mesmo quando não lhes possa causar ne-nhum inconveniente sério. A definição do dog-ma da Imaculada Conceição exaspera-os ao pontode não poderem zombar dele. A canonização deum santo irrita-os, ainda que seja dificil ver de quemodo possa interessá-los. Estão convencidos de quea religião deve ser destruida, e contam com os jor-nais para dar esse grande golpe. Uma palavra afavor de Deus é-lhes afronta pessoal; e,- se as con-vicções intelectuais exercem neles alguma influên-cia moral, o pensamento do inferno só lhes des-perta no coração um mixto de incredulidade e dedespeito. ~

A afirmação do sobrenatural irrita-os, enquanto se pronunciam vivamente contra a mortificação, como sendo prática supersticiosa e indigna. São veementes em se tratando da autoridade da Igreja, e toda disposição ou jurisdição eclesiástica suscita-lhes o ódio. Não se podem, entretanto, libertar de uma idéa que os inquieta, e lhes tira a segurança: a idéia de que não são tão infaliveis quanto desejariam parecer. Sentem que, na retaguarda, há um inimigo, que úm dia os alcançará, e nisto não se enganam. Talvez seja esta a explicação do seu mau humor, que, aliás, é um dos característicos das pessoas irreligiosas. O homem que perde a calma ao saber que nossa Senhora apareceu nas alturas de La Sallete, não está evidentemente à vontade com suas convicções religiosas, senão havia de sorrir em vez de franzir a testa, pois todos gostam de estar de bom humor.

A cegueira do juizo segue-se a estes estados. Os homens deixam-se levar pela neblina sem o saber, e só os que olham de fora percebem que esta existe. Cegos, não podem ver o mal que fazem, nem o bem que poderiam fazer. Andam nas trevas em relação ao estado real de suas almas, às verdades da religião, ao caráter de Deus e às suas disposições para com eles. E assim penetram na eternidade, onde seus olhos se abrem e eles acabam vendo.

Quão desolador é o aspecto do mundo! Não admira que em tal meio pareçamos a nós mesmos tão bons. Para afastar esta tentação, contemplámos o pequeno número de almas boas que nele vivem, mas mesmo assim não conseguimos resultados satisfatórios. Eis o quinto aspecto que reveste a perversidade do mundo. Algo há que nos repugna sobremaneira nas culpas das pessoas piedosas. Sua incoerência impressiona-nos desagradavelmente. Em vez de serem humildes, são orgulhosas. A gravidade lhes ficaria bem, e são, pelo contrário, frívolas. A misericórdia deveria transbordar delas, e conservam-se alheias e indiferentes. São rabu-gentas e suportam com menos paciência que outros a contradição e a interrupção. Há, em suas culpas, uma mesquinharia que enerva e ,que, por vezes, nos faz aspirar pelos grandes pecados do mundo. Tornam grotescas as coisas sagradas e vivem numa atmosfera fictícia, impregnada de exagero. Julgam-se umas às outras, percorrendo cada qual o seu caminho. Nesta última visão da perversidade do mundo é que se acha o ferrão da tentação. Se nos julgamos bons em

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comparação aos maus, devemos considerar-nos santos ao lado dos bons. E quanto mais nos esforçamos por servir a Deus, mais se firma esta idéa, que nos assalta de preferência nos momentos de oração e de penitên-cia. Concedo que seja uma provação, e provação bastante grande para se tornar em tentação. Convém, pois, fazer algumas considerações que nos ajudem a afastá-la.

Consideremos, em primeiro lugar, que os homens são muito diferentes do que parecem e que pouco sabemos a seu respeito. Demais, mesmo quando tentam fazer o contrário, dão a conhecer o lado mau, e escondem o bom; a perversidade, de fato, revela-se muito mais facilmente que a bondade. E que seríamos nós, também, sem a graça? No princípio, no entanto, não a merecemos por nós mesmos, e, com frequência, os seus impulsos ardentes e duradouros não conseguiram mover-nos. Teria qualquer alma dessas que nos escandalizam tido semelhante impulso? Quem sabe? Não podemos aplicar à graça a doutrina das probabilidades. De que teriam sido capazes, se tivessem recebido a mesma graça que nós ? Parece impossível que .alguém fosse menos fiel em corresponder do que nós* Quanto às coisas sobrenaturais, ocupamos posição vantajosa em virtude da nossa experiência passada no tocante às operações de Deus em nossa alma. Possuem essas almas algo de comparável a isto? Quem sabe? E, afinal, que temos a ver com elas? Apre-sentar-nos-emos sós perante o Juiz Supremo! Não seremos julgados em massa, mas cada qual ficará sozinho, afastado dos outros, diante do grande trono branco, ao serem abertos os livros. Assim como Cristo morreu para cada um de nós, assim também cada um passará em juizo como se fosse o único a ser julgado. Há, portanto, nesta tentação, uma alusão inconciente ao mundo, como se ele nos servisse de modelo e de medida, e que manifesta a imperfeição de nosso estado. Conforme as graças e as luzes que recebemos, e as obras que realizamos e a liberdade de que fruímos, havemos de levantar-nos, ou de cair; e somente por misericórdia divina serão os eleitos exaltados naquele dia.

Ignoramos tanto o futuro desses homens como o seu passado. Isto, junto ao nosso exagero acerca do seu presente, deixa-nos de todo incapazes de julgá-los. Talvez ainda se convertam, e quem sabe se não se tornarão grandes santos? No fervor da penitência, não lhes será difícil ultrapassar-nos e até eclipsar-nos. Amarão mais, porque mais lhes foi perdoado. Nós, os sacerdotes, que socorremos as almas, quantas vezes não nos surpreendemos ao ver pecadores ousados e destemidos, cuja atitude toda é própria a inspirar respeito, cairem em nossas mãos e revelarem a doçura de disposição, o caráter infantil e a encantadora timidez moral que encobria a ousadia da voz, do olhar, do alarde e das más ações. São tão capazes de se tornarem santos quanto nós de nos tornarmos demônios. Além do mais, e tomando as coisas pelopeor lado, nós sabíamos com certeza e de antemão que o mundo era inimigo de Deus, pois nas promessas

batismais comprometemo-nos a renunciar a ele. E' coisa contra a qual não somente fomos prevenidos, mas até prévia e solenemente armados e que não nos deve surpreender.Quanto a criticar as culpas das pessoas devotas, não

será isto antes pecado que simples tentação? Nada temos a ver com elas. Quando o mundo se torna verdadeira e radicalmente nosso inimigo, participamos dos direitos divinos para julgá-lo, não para julgar os servos de Deus. Tais juizos nos são prejudiciais, desviam a atenção das nossas próprias almas. Importa, todavia, saber que não podemos formar uma idéa justa a respeito das pessoas devotas, nem apreciar-lhes os progressos na santidade. E isso tanto pelas razões que se aplicam aos homens no mundo, como por outras que lhes são próprias. A vida espiritual compõe-se sobretudo de motivos e de lutas interiores, e nós só vemos o exterior. Ora, as culpas são mais aparentes que as virtudes. Um só pecado não constitue hábito, e mesmo muitos talvez não o sejam. As quedas podem ser ocasionadas por surpresa, ou violência. Os cos-tumes antigos permanecem ainda após a conversão interior, assim como o aroma forte custa a evaporar-se dos vidros de perfume. Deus conduz os homens por modos tão diferentes que as diversidades na vida espiritual são quasi tantas, quantas são as feições humanas. Para julgar do progresso de alguém é preciso conhecer o seu pecado dominante e nós não o conhecemos. Não é sempre pela soma total de graças concedidas a tal pessoa que podemos julgar da sua virtude, mas sim pela fideüdade maior ou menor com que correspondeu à graça. Os próprios santos parecem paradoxais. Numa palavra, caridade significa largueza e a caridade que não for larga não é caridade. Não há ninguém no mundo que não nos seja superior em determinada coisa, e a caridade crê naquela única coisa e supõe outras, mesmo a despeito do que vê.

Nada mais direito sobre a tentação de presunção. Não digo que a refutei, já que comecei por admiti-la. Mas fixei-lhe um contrapeso para que deslize suavemente e não nos arraste fora da nossa órbita. Resta-nos agora enfrentar a tentação do desânimo, baseado no pensamento contínuo e opressivo do pequeno número de eleitos. Admito a tentação; creio até que não se lhe podem exagerar os tormentos, e cuidarei apenas de remediá-la.

Devíamos estar tanto menos dispostos a tratar superficialmente esta tentação, quanto provém fre-quentemente do temperamento físico ou do estado atual de saúde; e os que lhe estão mais afetos são os menos responsáveis, quer provocando-a, quer exagerando-a negligentemente quando se apresenta. As mesmas dúvidas que aos tíbios inspiram medo salutar, atormentam, atordoam e entristecem os devotos. Se a tentação de nos ter em conta de bom, porque o mundo é mau, é antes pecado que tentação, a do desespero, porque o número dos eleitos é tão pequeno, é antes sofrimento que tentação.

Esta tentação parece que nos sobrevêm da seguinte forma: Na maioria dos casos, a pessoa está predisposta em virtude da disposição, do nervosis-, mo, da dor física, da acumulação de desgraças temporais, ou da

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opressão causada por certa tristeza. Então começamos, na medida do possível, a calcular as possibilidades que temos de salvar-nos; é uma tolice, mas atrai-nos por vezes irresistivelmente. Comparamos a grandeza da recompensa com os nossos deméritos. Medimos os nossos hábitos atuais segundo a exigência da lei de Deus. Colocamo-nos ao lado dos santos para verificar a nossa estatura. E qual será a consequência inevitável? Assemelhamo-nos aos escolhidos, aos eleitos? Mas ninguém teria semelhante idéa! As ocupações da eternidade são-nos, até certo ponto, reveladas; serão de espécie a tornar-nos felizes e correspondem elas aos nossos gostos? Penetramos mais adiante nas trevas? Sentimos, ou não, a solicitude habitual pela salvação da nossa alma? E a vida espiritual é, ou não é, para nós uma contenda? Se o for, por que e contra o que lutamos nós?Depois parece que somos arrancados de nós mesmos,

levados para longe até nos encontrarmos entre montanhas desertas, banhadas por mar sombrio,

cujas ondas coléricas despertam ecos eternos. Estamos no meio da predestinação eterna do

Entendimento divino. E' o cenário onde se desenrola o primeiro ato de Deus em relação a nós. Quão imenso,

quão potente, sob todos os aspectos, e quão inteiramente desconhecido é esse ato! Que

profundo mistério o envolve! Assim como os raios solares não mancham as nuvens, assim também este ato não nos prejudica de modo algum o livre arbítrio.

Quão terrível é, todavia, o simples fato de que o destino que estamos a nos preparar já é conhecido daquele que nos marcou o lugar. Em certa parte da

criação existe uma morada, pronta e desocupada; pertence-nos. Masç onde? Em cima? Em baixo? Só um

espírito superficial ou impenetrável não estremece repetidas vezes, ante esta dúvida, como se fosse uma

corrente elétrica. Logo à primeira vista a Escritura,parece falar do pequeno número, de eleitos e da dificuldade da salvação, e o que observamos dia-riamente entre os homens parece confirmar esta idéa. Quão poucos nos dão a esperança de que um dia irão para o céu. E nosso livre arbítrio só nos pode aumentar o receio. Sendo Deus o que é, não estaríamos nós mais seguros sob a sua absoluta soberania? Mas ele sabe o que faz. Entregou-nos a alma, mas cheio de misericórdia conserva as nossas mãos entre as suas. O livre arbítrio, sem a graça, seria o desespero diabólico.

Ora, não em réplica, mas para atenuar tudo isto, farei duas observações. Primeiro, se nada sabemos a respeito do futuro, muito sabemos a respeito do presente. Em matéria espiritual Deus com-praz-se em instruir a Igreja por meio de santos, e a Igreja, antes de canonizar a estes, imprime-lhes nos escritos o seu sinete. Ora, os santos indicam-nos sete coisas como sinais de predestinação. Não servem apenas para provar que estamos atualmente em estado de graça e a caminho da santidade; são até certo ponto profecias do futuro, se não infalivelmente exatas, pelo menos cheias do sobrenatural. São os característicos que contamos encontrar nos eleitos e só neles; coisas que lhes são essenciais e que os distinguiram através da vida secular da Igreja. Por conseguinte, se descobrir-

mos em nós algum destes sinais, ou muitos ou todos, temos legítimo direito à consolação proporcionada. Os sinais são: a imitação de Cristo, a devoção a nossa Senhora, as obras de caridade, o amor à oração, a falta de confiança em si, o dom da fé e as misericórdias passadas que Deus nos concedeu. Lembremo-nos também de I que não é a posse plena e inteira destes sinais que nos dá valor perante Deus, e é indício de predestinação, mas o desejo ardente de possuí-los e as tentativas sinceras que fazemos para adquiri-los. Não é de estranhar, portanto, que o teólogo Viva julgue tão grande o número dos que se salvam e que o santo bispo de Genebra chegue quasi a duvidar que um católico se perca.

Agora, quanto à segunda observação que fiz. Es-tamos a examinar uma tentação da vida espiritual católica, e podemos limitar-nos ao que for estritamente prático. Consideramo-nos, por conseguinte, dispensados de entrar na questão do pequeno número de eleitos dentro da humanidade em peso. A curiosidade acerca dos destinos futuros dos pagãos e dos herejes não nos diz respeito. Não quero perder a minha alma, irritando-me contra Deus, porque ele não me disse como administra a sua própria criação. As probabilidades que eles têm de se salvar medem-se evidentemente pela grandeza do benefício que confere à alma o dom da fé. Para nós isto não implica dificuldade. As graves opiniões dos teólogos ensinar-nos-ão tudo quanto precisamos saber, ou supor, o que, aliás, se resume em bem pouca coisa. O assunto que nos interessa é saber se poucos são os católicos que se salvam e até que ponto podemos procurar consolo nas indicações da vontade de Deus, no seu Verbo divino, e nas razões da teologia.

Em primeiro lugar, temos as palavras de são João: Vidi turbam magnam, que a Igreja nos faz ressoar aos ouvidos no ofício da Sexta, durante a oitava de todos os santos. "Vi uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações e tribus e povos e línguas, em pé diante do trono e em presença do Cordeiro, todos envoltos em roupas brancas e com palmas nas mãos" (1)»

Em segundo lugar, no dizer de um teólogo espanhol, podemos respeitosamente, e com toda a certeza,^ supor que fica bem à bondade de Deus ser o número dos eleitos igual, ou superior, ao dos que se perdem. Esta interpretação favorável excede de muito às maiores exigências dos católicos, e lança certa obscuridade sobre palavras muito claras de nosso Senhor. E', todavia, de vantagem saber o pensamento de um homem tão santo e tão esclarecido como Luiz da Ponte e que deve ter tomado em consideração a multidão de criaturas batizadas. Em terceiro lugar, é motivo de consolação saber que talvez haja analogia entre os anjos e nós, pois, como nos refere o Apocalipse, só a terça parte caiu. Também não é exato que no céu haja somente os lugares vagos deixados pelos anjos. Há, além disso, uma multidão enorme. Tal a doutrina que quasi todos os teólogos nos ensinam, e alguns dizem ainda que o número dos eleitos será igual, ou superior, ao dos anjos bons. São simples

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2) if 3, 10.

1) Apoc. 7, 9.

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opiniões, mas a nossa tentação também não é mais que uma opinião que opomos à deles e i que só fazemos nossa enquanto nos atormenta, pois, se fosse possível, livrar-nos-íamos dela com muito gosto. Em quarto lugar, a glória de nosso Senhor parece exigir que os frutos de sua Paixão sejam numerosíssimos. Os santos inocentes são um exemplo disto. Isaías,

falando da Paixão de nosso Senhor, diz (2): "Se ele der a vida pelo pecado, terá uma raça imortal, e a vontade de Deus se cumprirá nas suas mãos. Porque sua alma padeceu, ele verá e será saciado". Em quinto lugar, a própria glória e alegria dos bem-aventurados também pede multidão, sobretudo porque estão

agrupados em ordens e graus diversos, e a multidão convém também à magnificência do lugar, como diz Baruc (3): "O' Israel, quão grande é a casa de Deus, e quão vasto o seu domínio. E' grande e não tem fim; é alto e imenso". Em sexto lugar, dos dois ladrões, um foi salvo, e dos doze apóstolos, só um caiu. São argumentos que não nos bastam, se os examinarmos em separado, mas coletivamente nos permitem fazer uma exposição lícita e benigna. Em sétimo lugar, diz nosso Senhor: "Na casa de meu Pai há muitas moradas"; em seguida, como se previsse as nossas aflições, acrescenta numa intenção sagaz e suave: "Se assim não fosse, eu vo-lo teria dito". Tais as considerações que levaram são Francisco de Sales e Viva a crer que a grande maioria dos católicos seriam salvos.

Lemos na vida de são Felipe Neri o seguinte: uma freira do mosteiro de Santa Maria, de nome Escolástica Gazzi, foi procurá-lo na portaria, para lhe dar a conhecer um pensamento que nunca revelara a ninguém: a convicção de que ela seria réproba. Ao avistá-la, disse-lhe são Felipe: "Que fazes, Escolástica, que fazes? O paraíso é teu". "Não, meu pai, respondeu-lhe a monja, receio que se dê o

contrário; sinto como se me fosse perder". "Não, respondeu-lhe o santo, eu te digo que o paraíso é teu, como vou provar: Dize-me, por quem morreu Jesus Cristo? Pelos pecadores, respondeu-lhe a irmã. Pois bem, concluiu o santo, o paraíso é teu, pertence-te, porque te arrependeste dos teus pecados". Esta conclusão restituiu a paz de espírito à irmã Escolástica. A tentação abandonou-a e rínn-ca mais a perturbou. Pelo contrário, as palavras""o paraíso é teu" ressoavam-lhe sempre aos ouvidos. Caro leitor, possa são Felipe prestar-nos, a vós e a mim, idêntico serviço!

Ora, aqui temos, não uma resposta à nossa ten-tação, mas outro modo de encará-la. Supliquemos o dom de um santo discernimento e temor e conti-nuemos alegremente o caminho, acrescentando graça a graça, amor a amor, sem duvidar de nossa eternidade. O céu não tardará a vir. A tentação seria antes impacientar-nos pela demora. Mas seja feita a vontade de Deus. Que o nosso ato de amor seja permanecer onde estamos, contentando-nos em viver por sua causa. A vida é uma luta; não, porém, muito dolorosa, porque não nos impede de amar a Deus. Com este amor, só podem ser leves todas as aflições.

Eaber, O progresso 26

CAPÍTULO xxn

Da verdadeira idéa a fazer da devoção

A devoção é uma palavra com muitas acepções e raras vezes é empregada no bom sentido. Ora ex-prime uma das partes em vez do todo, ora algum dos acidentes, especiais ou característicos, ora um dos efeitos, doçura, beleza ou heroísmo. Mas é inútil apelar para a etimologia e pelejar a respeito de palavras. O importante é fazer uma justa idéa daquilo que vamos exprimir. Daremos um passo nesse sentido, indicando algumas das faltas que ordinariamente se cometem.

Quando dizemos que tal pessoa dedica mais tempo às devoções e menos aos afazeres temporais, ou às obras de caridade, claro é que neste caso devoção significa oração. Se dizemos que tal homem é excessivamente devoto, entendemos por devoção os atos que se referem diretamente ao culto de Deus. Quando declaramos que sentimos muita devoção nessa igreja, ou naquela festa, servimo-nos da palavra no sentido de doçura espiritual. Dizemos que tal coisa respira devoção, quando nos incute sentimentos

sérios, ou é criteriosa. Empregamos frequentemente esta palavra para exprimir o recolhimento, a frequentação das igrejas e tíoi-sas análogas. Estas expressões são exatas e significativas e é inútil querer atacá-las. Não raras vezes, porém, têm sido prejudicadas, obscurecendo a verdadeira idéa que devemos fazer da devoção. Um fato resulta destas observações; pois, tendo a palavra se ligado a muita prática santa e revestido muitos significados respeitosos, a coisa em si deve ter certa importância. Com efeito, podemos atribuir a esta má interpretação da palavra grande parte de quanto há de imaginário, sentimental, inconstante e exagerado nas pessoas espirituais.

Na teologia, devoção significa a propensão particular da alma, em virtude da qual se dedica, se confia, se liga e se consagra ao culto e ao serviço de Deus. Pode-se empregar, para tal fim, o voto, o juramento, ou o simples sentimento. Assim é que um autor, que passou outrora por ser santo Agostinho, diz que devoção é o ato de nos volvermos a Deus num afeto humilde e piedoso, — humilde pelo conhecimento interior que temos da nossa própria fraqueza, e piedoso pela nossa confiança na compaixão divina. Mas santo Tomaz define-a com maior exatidão, e ao mesmo tempo com maior clareza, como sendo a vontade de fazer com prontidão tudo quanto se refere ao serviço de Deus. Não se deve, como nos admoesta Valentino, cometer o erro comum de confundi-la pom o fervor. Segundo são Francisco de Sales, é uma espécie de caridade, pela

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qual não somente fazemos o bem, mas fazemo-lo cuidadosa, frequente e prontamente. Faz parte da virtude da religião. E', diretamente, um ato da vontade, implicando, indiretamente, um ato da inteligência que excita a vontade. A causa é extrínseca; é Deus mesmo que opera por meio da graça intrínseca. São Francisco de Sales observa que, embora seja uma espécie de amor, é algo mais que o amor a Deus, e a diferença está numa certa vivacidade com que fazemos aquilo que Deus deseja que façamos. Talvez me seja permitido, portanto, dizer que a devoção é uma agili-26»

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CAPITULO XXII

dade espiritual, pois isto parece exprimir a idéa de santo Tomaz e de são Francisco de Sales.

Devoção é, pois, coisa grave, sólida, severa, enérgica e ordenada. Não é coisa suave, fervorosa, heróica, graciosa, terna, como muitas vezes aparenta ser. Tanto melhor, se puder igualmente reunir todas as qualidades compreendidas nestes epitetos. Mas existem por acréscimo, e não exprimem em si a natureza da devoção. Se não parecesse trocadilho, eu diria que convém formar uma idéa mais teológica e menos devota da devoção do que habitualmente formamos.

Os teólogos dividem a devoção em substancial e acidental, e subdividem a esta em acidental espiritual e acidental sensivel. A devoção substancial é a prontidão inteligente da vontade que, para servir a Deus, não descansa em nenhuma atração da imaginação, ou doçura do afeto, mas somente nos princípios da fé, firmando a alma num propósito sólido de servir a Deus em quaisquer circunstâncias. Sem a devoção substancial as outras não têm valor, não são duradouras, não prestam serviço razoável. Nada devemos prezar tanto, depois do dom da fé, como a devoção substancial. A devoção acidental espiritual não passa, na verdade, do estado de devoção substancial, à qual Deus se apraz juntar misericordiosamente o dom de doçura. Algo de recreativo, que nos sustenta e conforta, dele emana e repousa em nosso espírito, sem todavia descer à parte sensitiva da natureza. Isto dá-lhe nova agilidade para vencer as dificuldades e certo prazer em superá-las. A devoção acidental sensivel, pela qual Deus se digna atender ainda mais às nossas enfermidades ou necessidades, é também um estado de devoção substancial e de devoção acidental espiritual. E' por ela que nos prodigaliza de modoDA VERDADEIRA IDÉA A FAZER DA DEVOÇÃO 405

mais sensivel as carícias de seu amor, permitindo que a doçura que dele emana não só nos inunde o espírito, mas desça até os apetites sensitivos, e às vezes à própria carne e sangue. Daí se segue que a aridez e a desolação são de duas espécies: a desolação do espírito, que consiste na falta de devoção espiritual acidental e nos deixa no estado de simples devoção substancial, e a desolação dos sentidos, que consiste na privação da devoção acidental sensivel e detém as suavidades divinas nas partes superiores da natureza, assim como nosso Senhor desviou as águas benéficas da sua divindade das partes inferiores da sua alma, no jardim de Getsémani.

E', por conseguinte, de grande importância saber distinguir entre os efeitos da devoção e a devoção em si. Santo Tomaz ajuda-nos com simplicidade é clareza. A sua escola emprega as palavras luz e entendimento onde a escola Duns Scoto diz vontade e afetos. Assim, a respeito deste ponto, observa santo Tomaz que a devoção produz na alma uma luz, cujos efeitos variam segundo os objetos em que cai. Se a luz aproxima da alma a beleza de Deus, de modo a que possa, até certo

ponto, gozar dele, produz alegria e júbilo. Se mostra a Deus a grande distância, fora do alcance do nosso nada e dos nossos débeis desejos, causa dor; não inteiramente destituida da atração, do desejo e da ânsia espiritual. Se nos revela a malícia dos nossos pecados e a nossa baixeza, resulta numa dor afável e numa santa aflição.

Ponderando esta doutrina do doutor angélico, quão estranhas nos devem parecer as ilusões de quem procura perpetuamente a devoção onde esta não se encontra e lamenta a todo momento a ausência de um dos seus acidentes e complementos menos sub-stanciais, como se a alma se tivesse apartado in-teiramente de Deus. Muitos a procuram naquela doçura que é um favor gratuito de Deus. Muitos esperam encontrá-la na isenção de tentações, que talvez seja, por parte de Deus, uma desgostosa condescendência para com a lentidão da alma em convalescer do pecado; ou talvez ainda ele tenha afastado dela essas ocasiões de mérito, por achá-la indigna da perfeição, ou por estar o espírito todo concentrado em alguma ocupação temporária; ou talvez seja um estratagema de Satanaz, para fins que descobrirá mais tarde. Uns buscam a devoção na multidão de práticas, como se a nossa força consistisse em ter muita coisa que fazer, quando, muito ao contrário, só podemos obrar porque somos fortes. E se sucumbíssemos sob a carga? Outros são tão insensatos que a procuram no amor sensível das imagens e figuras, o que equivale a pedir à matéria que espiritualize o espírito, coisa que, no fundo, não se pode dizer nem dos próprios sacramentos, tão maravilhosos em frutos. Este erro enfraquece o raciocínio e torna o homem fictício e tolo. Uns põem a devoção nos propósitos veementes. E, como na vida espiritual, a veemência traz pouco proveito, quem assim procede confunde a intenção de ser virtuoso com a própria posse da virtude, quando é apenas um meio de consegui-la. Uns esforçam-se por obtê-la em austeridades sempre crescentes. Mas nern estes a conseguem invariavelmente, e muitas vezes só serve para endurecer-lhes ainda mais os corações, cuja falta de ternura pode ser a causa da verdadeira falta de de-voção. Desconfio de toda austeridade feita para um fim especial. A austeridade deve ser, tão somente, a dupla expressão de um amor, que quer, a um tempo, vingar-se de si mesmo e imitar 'a mortificação do Redentor. Uns procuram a devoção nos suspiros e nas lágrimas, quando esses próprios suspiros e lágrimas, para terem algum valor, devem resultar dela e ser-lhe como que o acidente exterior. Uns esperam encontrá-la na violência da contrição, mas esta deve consistir, do nosso lado, num proposito calmo, inteligente, doloroso, pois a vio-lência e a intensidade são dons de Deus. Alguns até colocam a devoção na aptidão em ecoar as palavras quentes e fervorosas de outrem, esquecendo-se, primeiro, de que não há quasi um sentimento que não seja capaz de ser despertado, e, segundo, que é possível cair a alma na ilusão a ponto de crer que experimenta todo e qualquer sentimento. E, todavia, quantas aparências de radiante devoção descansam nesse abismo traiçoeiro! Alguns, por fun, pensam que consiste em discernir a ação atual de Deus na alma.

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Mas olhar para a nossa própria devoção, é verificar que existe, não é pro-vocá-la. Aqui temos dez ilusões que desaparecem diante da luz e da simplicidade da doutrina de santo Tomaz.

Já vimos em que consiste a devoção, mas como a discernir? Quais são os seus sinais infaliveis, as circunstâncias invariáveis que a acompanham, senão aquilo de que já tratei? Discernimo-la pela vontade forte e prática que, sem confiar em si, emprega todos os esforços e não se poupa. Discernimo-la pela prontidão, ou agilidade de ação, que não teme trabalho algum, não opõe limites à sua energia, não tem reservas para com Deus e não estipula quais serão as recompensas. Patenteia-se pela perseverança, pois as graças de Deus são propositadamente transitórias, enquanto as nossas ilusões são pomposas e falsas, e só a devoção substancial resiste ao correr do tempo. Aparece no sofrimento e na violência que nos fazemos a nós mesmo3r pois ainda que outros sentimentos ousem tentar grandes feitos, só a devoção pode levá-los a cabo. Manifesta-se na santificação das ações comuns, cuja graça insigne é que nenhuma ilusão pode imitá-la satisfatoriamente. Mostra-se na falta de ego-ismo e na renúncia dos interesses pessoais, enquanto as falsas imitações se procuram a si, sob um disfarce mais ou menos evidente. Depois de indicar os sinais que nos levam a discernir a devoção real, convém lembrar que é coisa essencialmente interior. Desta única verdade emanam muitas consequências. Demais, é um hábito, e os hábitos, em geral, manifestam-se por atos. E' o ato em si que revela a devoção substancial e é a doçura que o acompanha que a torna sensivel.

Que significam, então, seja-nos lícito perguntar, devoções especiais, e como se adaptam ao que foi dito da devoção em geral? Para esclarecer este ponto, preciso repetir-me. A devoção é a dedicação de nós mesmos a Deus, é a prontidão amorosa da vontade para tudo que se lhe refere ao culto e ao serviço; é, enfim, a agilidade espiritual. E é isto que torna aceitáveis e meritórios todos os atos de virtude, pois é a mão com que a graça os toca. A causa extrínseca é Deus, a intrínseca é a meditação ; os efeitos são a alegria, a ternura, a bran-^ dura de coração e a paz deliciosa. A devoção terna é, portanto, o característico do Evangelho. E, como a devoção substancial descansa nos princípios da fé, toda forma de heresia perde esta amável ternura, conforme podemos verificar, se lhe percorremos a história, ou comparamos.o misticismo estranho à Igreja com o que lhe pertence. A ternura na devoção é necessariamente ortodoxa.

Ora, a devoção é o hábito de agir em virtude de nossa crença nas coisas espirituais e num mundo invisível. O cristianismo é o culto, não de coisas, mas de Pessoas divinas, que se revelam a nós por certos mistérios, na mor parte mistérios de dor e de sofrimento. Assim, a Infância e a sagrada Paixão de nosso Senhor, a santíssima Eucaristia, as dores de nossa Senhora, os atos dos mártires, tudo tem por fim especial conquistar-nos e enternecer-nos. Tais os característicos que nosso Senhor quis dar à sua

religião. Ele fez com que cada circunstância da Incarnação e cada disposição da Igreja contribuísse para esta obra celeste, tocante e maravilhosa. Cada um desses mistérios, circunstâncias ou característicos torna-se, em sua esfera, objeto de devoção especial.

Toda alma amiga de Deus goza de um estado de graça habitual, ou santificante, pois a amizade com o Criador consiste nisso. Sobre essa graça habitual, Deus derrama incessantemente os impulsos da graça atual, esclarecendo a inteligência, assim creio, em todas as circunstâncias da vida, e não somente em ocasiões raras e solenes. Além dessas duas espécies de graça, toda pessoa batizada tem os sete dons sobrenaturais do Espírito Santo infundidos na alma. Segundo santo Tomaz, esses dons são hábitos, em virtude dos quais o homem se torna capaz de obedecer prontamente ao Espírito Santo, e, segundo são Boaventura, são hábitos que determinam o homem a seguir as inspirações do Espírito Santo. São dons que jazem na alma, quais teclas de um instrumento que não está sendo tocado. São passivos, habituais, e, como a graça santificante, constituem um estado. Vibram segundo as necessidades da vida espiritual, pelo que são chamados impulsos atuais do Espírito Santo, e correspondem, na sua esfera, à graça atual, e têm a mesma relação com os dons habituais e com a graça habitual.Desses dons, quatro pertencem à inteligência: a

sabedoria, o entendimento, a ciência e o conselho; tres pertencem à vontade: a fortaleza, a piedade e o temor. A devoção terna é o fruto do dom da piedade, que se pode definir como sendo o raio divino que ilumina o espírito e dispõe o coração a adorar a Deus, nosso Pai amoroso, e a socorrer ao próximo, que é a sua imagem. Mas pertence à natureza da ternura especializar, isto é, escolher um objeto, engrandecê-lo, e, durante certo tempo, excluir qualquer outro da sua atenção amorosa. Há sempre, por conseguinte, um quê de exagero nas devoções especiais, que torna mais necessário que a devoção seja ortodoxa e tenha analogia com a fé. Para ser especial deve ser exclusiva, e o exclusivo tende a ser exagerado. A Incarnação é, por assim dizer, uma via láctea de mistérios de amor, e implica forçosamente devoções especiais, e o dom da piedade é o telescópio que nos permite dividir essa via láctea em grupos de constelações, ou em estrelas isoladas. Devoções diversas têm a ver com virtudes diversas e possuem dons especiais para alcançar as virtudes mais de acordo com a sua própria índole. O Espírito Santo também conduz certas almas, quer segundo o caráter natural, quer pela atração sobrenatural, a certas devoções, for-necendo-lhes luzes diversas. Assim é que temos de-voções especiais, que dados santos foram suscitados a propagar: a devoção à infância de nosso Senhor, à adolescência, à vida ativa, à paixão, às sagradas Chagas, à vida ressuscitada, ao precioso Sangue, ao sagrado Coração, a Maria santíssima, aos anjos, aos apóstolos e às várias classes de santos. A unidade da fé impede o desequilíbrio nas devoções especiais e assim as devoções de todos os filhos da Igreja podem ser consideradas como um só culto, completo, harmonioso e, humanamente falando, adequado à Santíssima Trindade e igualado à infinidade da majestade divina,

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pelo culto supremo tributado pelo próprio Deus Incarnado.

Tal a explicação a dar das devoções especiais, que são quais desenvolvimentos do culto da sagrada Humanidade do Verbo eterno. São devoções es-sencialmente doutrinais e, por conseguinte, devemos nos assegurar sempre e ciosamente de que foram aprovadas pela Igreja. Mas, alegam alguns, as de-voções se transformam e crescem, constituindo di-ficuldade incontestável. E' verdade, procuremos dar-lhe uma solução.

E' inegável que as devoções crescem. A história é por demais clara para que se possa citar um caso,em contrário. A devoção que não se baseasse no dogma seria vã. E não nos podemos dedicar a uma coisa falsa, a um mistério de fantasmagoria. Não se conclue daí que, se as devoções crescem, crescem também os dogmas. São duas proposições distintas. E' de fé que nosso Senhor passou certo número de anos na terra, empregados de tal e tal modo. Este fato não pode crescer, mas dá lugar a uma multiplicidade de devoções. Ninguém lhe pode fixar um limite. Cada definição nova se torna, em breve, a base de devoções especiais, porque a definição torna a verdade mais clara e mais segura aos olhos do amor, e as devoções têm uma manifesta inclinação pelos artigos de fé. O espírito e o coração da Igreja, os doutores e os fiéis, trabalham e movem-se juntos, de modo que as devo-ções representam quasi sempre a orientação da teologia, de acordo com a época. Por vezes anteci-pamos os colégios, e por vezes dá-se o contrário, mas os colégios e os fiéis nunca estão muito afastados uns dos outros. A história da doutrina e da devoção à Imaculada Conceição serve-nos de exemplo. O progreso da devoção a são José é, porém, um fenômeno à parte, na história das devoções, porque não parece ter seguido esta regra.

Ora, a Igreja é sobretudo uma instituição que 3e destina a salvar as almas, e a doutrina concorre tanto para isto quanto os sacramentos, a jurisdição, a disciplina, a hierarquia e os ceremoniais, ou talvez ainda mais. E as devoções são a aplicação da doutrina às almas das pessoas. Não devemos perder de vista a vitalidade da Igreja, pois então o desenvolvimento das devoções se tornaria séria dificuldade; seria o mesmo que admitir que a arte tipográfica faz as vezes do papa. Ao contrário, a Igreja é uma instituição vital para salvar as almas; como, porém, para salvá-las não basta atraí-las em busca da salvação, mas sobretudo ir-Ihes ao encalço nos desertos onde se extraviaram, os movimentos da Igreja dependem, até certo ponto, dos caprichos do mundo. E' por que, de antemão, era de esperar essa variedade, mudança, amolda-ção e progresso que, longe de serem contrários à sua unidade, são na verdade os seus frutos. Quem é soldado, não permanece sempre no mesmo lugar, mas justamente porque é soldado percorre o país, a serviço da pátria. Persegue os inimigos, assim como a Igreja persegue os seus, com o fim de re-haver as almas extraviadas. Serve-nos de exemplo a história das Penitências Canónicas e das Indulgências. Explica também a razão pela qual a Igreja, de vez em quando,

parece copiar o mundo, em-, bora a seu modo. Sua conduta, por ocasião da Renascença, é mais uma prova disto. O modo pelo qual a Igreja, com o intuito de salvar as almas, se amolda às circunstâncias do tempo, é produzido pelo Espírito Santo, que nela vive, por meio dos papas, dos santos da época e do espírito, quer das ordens antigas que conservam o fervor, quer das novas, que ele suscita para irem ao encontro das exigências do momento.

A devoção especial mais antiga, a revestir aspeto moderno, parece ter sido a dos santos anjos, a qual enche as atas dos mártires.

Os diálogos de são Gregório tanto descrevem as devoções da sua época, como as propagam para os tempos futuros, mormente a devoção às almas do purgatório. As devoções se tornaram aparentemente mais numerosas com o desuso das peregrinações, e se multiplicaram em proporção à liberalidade com que a Igreja concedia indulgências. Além do mais, à medida que o espírito europeu se tornou mais subjetivo, o domínio da oração mental espalhou-se. Seria preciso ter noções estranhas sobre a fertilidade dos mistérios divinos, ou sobre o poder da contemplação humana, para surpreender-se com o fato de que as meditações de mil e oitocentos anos, sobre o mistério da Incarnação, contribuíssem e continuem a contribuir com o seu tributo de arte, de poesia e devoção à Igreja cristã.

A história do culto ao Santíssimo Sacramento serve de comentário a isto, e pode-se dizer o mesmo do Sagrado Coração. Santa Gertrudes perguntou, numa visão, por que não existia a devoção ao Sagrado Coração, e são João lhe respondeu que a hora ainda não era chegada. Chegou, finalmente, por intermédio de Margarida Maria Ala-coque e da Visitação. A devoção à vida interior de Jesus principiou na França e fez parte da reforma do clero secular. A devoção ao precioso San-.gue de Jesus parece ter começado com santa Catarina de Sena e tomado um feitio definitivo em Ferrara. A do Coração Imaculado de Maria nasceu na França; a de são José originou-se entre os cavalheiros de Avignon, desenvolvendo-se muito com o espírito de são Sulpício. A do santo Nome de Jesus foi uma devoção franciscana, e a do mês de Maria é tão moderna que santo Afonso de Lagorio não a conheceu. Quando dizemos, todavia, que as devoções começaram em tal lugar, ou com tal pessoa, referimo-nos tão somente à data em que tomaram forma e consistência. Encontram-se sempre, nos escritos dos padres e dos santos, certas alusões que lhes servem de prelúdio. E' o caso, sobretudo, da devoção ao Sagrado Coração de Je-sus.

A Igreja, entretanto, nunca é apanhada de improviso por qualquer dessas devoções. E' antes ela quem as proclama como fazendo parte de sua própria vida. Assim é que, quando os franceses pediram a festa do Padre Eterno, Benedito XIV expôs por extenso as razões puramente doutrinais pelas quais a Igreja desconfiava desta devoção. A devoção à escravidão de nossa Senhora foi também condenada como perigosa em doutrina. A devoção a nossa Senhora do Santíssimo

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Sacramento, apesar de sustentada aparentemente por santo Inácio, teve a mesma sorte. As dificuldades com que lutaram Juliana de Retine, quanto à devoção ao Santíssimo Sacramento, Margarida-Maria no que se re-fere ao culto do Sagrado Coração, e são Bernardino de Sena com a sua nova devoção ao Nome de Jesus, mostram o desvelo e a sagacidade com que a Igreja observa, contém, examina e pesa as devoções novas, ou as expressões modernas de uma devoção antiga.Assim também com a devoção a nossa Senhora. Como

diz a Escritura, ela devia tirar a sua origem de uma linhagem respeitável e o criar raízes exige tempo. A

devoção a nossa Senhora foi enraizada pelos santos, pelos concílios, pelas universidades, pelas ordens

monásticas, pelos colégios de teologia, bem como pelas vicissitudes sucessivas e a homenagem pessoal dos papas. Pio IX, em Gaeta, relembra-nos Pio VII, em

Savona. Ao passo que o mundo se acostumava ao mistério da Incarnação, seu coração se tornava

sensível à ternura que dele emanava, e a devoção a Maria, em que reside o verdadeiro espírito de Jesus,

soprou sobre ele, semelhante ao vento húmido e quente do sul a soprar sobre o jardim aromático. A Igreja enredou-a inextricavelmente em todo o seu

sistema. Deus sancionou-a por meio de revelações, visões e milagres. Mesmo na poeira da nossa lida

moderna, penosa e ingrata, somos saudados por Rimini e refrescados por La Salette. Os frutos de santidade, no

século XIX, realçam a devoção que, desde o fim dó primeiro século, fora objeto de profecia no livro

inspirado do Apocalipse. Já não invejamos mais a quem ouviu Maria aclamada Mãe de Deus, em Êfeso, pois

ouvimos hoje o santo Padre proclamar infalivelmente a sua Imaculada Conceição.

Os livros espirituais, no entanto, repetidamente nos põem de sobreaviso contra devoções falsas. Quais são elas? Há tres classes de devoções falsas: as prejudiciais, que estão demasiado acima dos que as praticam, as singulares ou raras, e as excessivamente subtis.

As primeiras provêm, quer do próprio tempera-mento, quer da precipitação do diretor, quer de forte ilusão por parte do demónio. Tendem a lançar seus adeptos nos estados sobrenaturais da oração, onde estes procuram suspender o emprego da inteligência e descansar passivamente em Deus, qnando a tal não foram chamados. Consistem nu-na imitação dos santos, disparatada, orgulhosa e indiscreta. Tais pessoas desprezam as coisas ordinárias, afetam um vocabulário interior e imitam a grandiloqüência de são Dionisio e de outros místicos. Em geral, não têm simpatia pelos escritos de santa Teresa. Os diretores impelem por vezes seus penitentes para essas devoções falsas, imaginando discernir neles sinais sobrenaturais, não prestando a devida atenção ao seu progresso na vida sólida e confiando prontamente nas descrições que semelhantes pessoas fazem das suas almas. Tal moeda não deve ter, na circulação, a vi-gésima parte do seu valor nominal.

Outras devoções são falsas porque sao singulares, raras ou grotescas. Almas há que contemplam com aversão as muitas devoções comuns à multidão dos

católicos piedosos, e apegam-se doentiamente a um ato, ou palavra assombrosa de um santo, que fora um erro da sua parte, ou um impulso especial do Espírito Santo, baseando-se nisso para criar alguma devoção estranha e desusada. Há exemplos de pessoas cuja única oração consistia em pedir a Deus que se retirasse delas e se conservasse na sua própria grandeza, em vista das palavras de são Pedro: "Afastai-vos de mim, Senhor, que sou pecador!" E no entanto essas pessoas deviam, antes, trepar nos sicómoros, como Zaqueu, para verem Jesus mais de perto. As devoções baseadas nos evangelhos apócrifos, ou em revelações não aprovadas, estão incluidas nesta ca-tegoria, assim também como tudo que for estranho ao modo de agir da santa Madre Igreja.

As devoções falsas, porque são subtis demais, são as que descansam em opiniões teológicas dúbias, ou em conceitos abstratos dos colégios. Tais foram certas devoções aos atributos de Deus, não muito honrosas à sagrada Humanidade de nosso Senhor. Eram frequentes entre os quietistas e ainda podem ser encontradas nas obras de certos espiritualistas franceses da escola de Bernières de Louvigny, a menos que eu lhes faça injustiça. Brotam, em geral, da atividade da imaginação e muitas vezes parecem belas à primeira vista, mas na prática carecem de unção. A devoção deve ser despida de arte, terna, simples, sincera, natural e espontânea. E como o poderá ser, se o seu objeto for obscuro, abstrato, dificil e subtil? Não é preciso lembrar que toda devoção que for falsa em virtude destes tres vícios é funesta à alma.

Na devoção somos chamados a receber, assim como a dar. E recebemos mais do que damos. Parece que, de princípio a fim, muito recebemos e pouco damos. A devoção pratica-se sobretudo na oração, e as inspirações são a parte que Deus nela toma. Não devemos falar sempre, mas também escutar. E' bom ter momentos de repouso e, de vez em quando, acalmar tudo na alma, afim de nada perder daquilo que a voz do céu vem murmurar-nos ao coração. Não falo aqui dos colóquios místicos e extraordinários, mas do que se passa durante o curso da oração, na alma de todo homem recolhido. Logo que uma inspiração chega à alma, diz são Gregório, eleva-a acima de si mesma, re-prime os pensamentos dos bens temporais e aviva o desejo dos eternos, de modo que se alegra somente com as coisas celestiais, e se desgosta das terrenas, enquanto comunica à alma tal perfeição que a toma semelhante ao Espírito Santo, pois, se-Faber, O progresso — 27

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gundo a Escritura, "o que nasce do Espírito é espírito". Essas inspirações fazem parte dos impulsos atuais do Espírito Santo, de que já falei; são, por assim dizer, indispensáveis a quem almeja a perfeição. A todo momento sua necessidade se faz sentir, pois, se é devido à graça habitual e atual que vivemos da vida da graça e obedecemos aos mandamentos de Deus e aos preceitos da Igreja, assim também é devido aos dons habituais do Espírito Santo, e aos seus impulsos e inspirações atuais, acrescentados à graça, que vivemos a vida de homens perfeitos, ou de ascetas que se exercitam na prática da perfeição. Tais inspirações não são o fruto do acaso, não são raras, nem são, como reza o termo técnico, favores espirituais. São para a perfeição o que a graça é para a virtude. Inundam-nos, num curso contínuo, quer as ouçamos* ou sintamos, quer não. Mesmo antes da entrega- sem reserva a Deus, era-nos dado recebê-la com frequência, e frequência maior que os pecadores negligentes, que, aliás, as recebem a miúdo, em virtude do batismo. Agora essas inspirações nos inundam, qual correr contínuo da água. Um grande teólogo místico chama os dons do Espírito Santo "as sete velas da alma, que recebem os vários sopros da inspiração, navegando assim sobre o mar da perfeição" (1).

A primeira observação a fazer a respeito dessas inspirações é a que nos vem de santo Tomaz: que todos os justos têm direito de pedí-las e de aguardá-las, porque receberam, no batismo, os sete dons doEspírito Santo, cujo fim é torná-los aptos a obedecer

prontamente a essas mesmas inspirações. Devemos pedi-las sobretudo quando procuramos atingir os caminhos mais perfeitos da vida ativa ou contemplativa e isto implica, da nossa parte, uma súplica contínua, uma atenção constante do espírito, bem como uma razoável obrigação de obedecer-lhes. A segunda observação é qüe não podemos, por nós mesmos, fixar-lhes a hora, o lugar, o exercício e a ocasião, pois essas inspirações dependem tão somente da vontade do Doador sempre abençoado, o próprio Espírito Santo. Sabes, diz o Senhor a Jó, por que meio a luz é derramada e o calor distribuído pela terra? O Espírito Santo sopra onde deseja e escolhe suas ocasiões. Nem o nosso próprio esforço, portanto, por veemente que seja, nem a nossa ânsia atenta em ouvir vozes in-teriores, nos comunicarão essas aspirações. Cuidemos, porém, para que a atenção na oração não se torne preguiça, nem degenere num sossego a que não somos chamados. Também não empreguemos a força, pois serve apenas para retardar a ação do Espírito Santo. Sejamos pacientes e esperemos, e a paciência lhe apressará a vinda. A terceira observação a fazer é que

há, no entanto, determinados lugares onde ele costuma vir e onde, por conseguinte, é mais prudente esperá-lo. São Gregório, na Moral, expôs-nos tão cabalmente toda a teologia de inspirações, e fê-lo com tanto método e exatidão, que os escritores posteriores nada parecem ter que acres-.centar. Ele chama, a estes meios de comunicações que o Espírito Santo se digna empregar, "veias do sussurro de Deus", e as compara às veias d'água que regam a terra, e as veias que distribuem o sangue vital aos nossos membros. Inclue no número destas inspirações a oração, a palavra de Deus, os 27»

1) Há um colégio de teólogos misticos que tornam o exercício dos sete dons do Espírito Santo muito mais raro. Não posso concordar com eles; e sinto não poder excetuar o cardial de Laurea. Espero.discutir o assunto a fundo, num tratado sobre as operações do Espírito Santo.

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sermões, a leitura espiritual e todos os exercícios da vida contemplativa. Mas, entre todas estas veias, as mais ricas são o Sacrifício da Missa e o Sacramento do Altar; assim nos indica o tempo e o lugar em que nos é mais provável receber as inspirações.

Há quatro fontes de inspirações, apesar de ema-narem todas indiretamente de Deus. A primeira é o próprio Deus, agindo diretamente sobre a alma, como nas inspirações de que acabo de falar. A sepn-da é o anjo da guarda. A terceira, a conciência. A quarta, o amor. Já falei das inspirações que provêm diretamente de Deus. A Escritura refere-se ao anjo da guarda como sendo uma fonte de inspirações santas e, de fato, seria difícil conceber que companheiro tão, inseparável, guia tão amoroso e tão dedicado, como é o nosso anjo da guarda, não nos comunicasse frequentemente seus pensamentos, quando somos forçados tanta vez, mau grado nosso, nas tentações quasi diárias, a receber as impressões dos demônios.

Assim disse Deus a Moisés: "Eis que enviarei o meu anjo, que irá em tua frente e te protegerá em viagem e

te conduzirá ao lugar que eu te preparei. Trata-o com reverência, ouve-lhe a voz e não o desprezes, pois ele

não te perdoará quando pecares, e meu nome está nele" (2). Assim se exprime Zacarias: "O anjo que falou em mim voltou e me acordou, qual homem despertado do sono. E respondi ao anjo que me falou interiormente

dizendo: Que é tudo isto? E o anjo respondeu e disse-me: Não sabes o que é tudo isto? E eu lhe disse: Não,

Senhor. E ele respondeu e disse-me... Então a visão mudou e o profeta diz: A palavra de Deus

veio a mim" (3). Assim, quando Elias fugiu de Jezabel, o anjo do Senhor acordou-o quando ele dormia sob um zimbro, falou-lhe, deu-lhe a comer e enviou-o a Horeb; e lá não foi o anjo, mas o próprio Deus que lhe falou. De modo que os exemplos de Elias e de Zacarias não só estabelecem o ofício do anjo, como também a sua relação com as inspirações diretas de Deus.

Com que cuidado, diz são Bernardo, citado por Da Ponte, e com que júbilo, os anjos se unem aos que cantam os salmos, auxiliam os que rezam, permanecem ao lado dos que meditam, acompanham os que se entregam à contemplação e presidem aos trabalhos dos que se dedicam à vida ativa! Pois essas inteligências superiores reconhecem seus futuros concidadãos e cooperam, cheios de solicitude, com aqueles que receberão a herança celestial. Regozijam-se com eles, isto é, conosco, animam-nos, protegem-nos, cuidam de nós, e tomam providências. Finalmente, levam-nos a rezar, a nos mortificar, a cantar os salmos e tocar os címbalos, pois os corpos que maceramos são os címbalos que oferecemos a Deus para que lhe seja agradável a música da oração entremeada de mortificação. Se o sono sobrevem durante os exercícios, os anjos despertam-nos, dizendo: "Levanta-te e apressa-te, pois tens em tua frente a longa viagem da vida ativa e a da contemplativa, mais longa ainda, se é que queres ir de virtude em virtude e ver em Sião o Deus dos deuses, que te recreará o espírito, te falará ao coração e te unirá a si pelo doce e leve sussurro das suas inspirações". O' excelso anjo! acrescenta Da Ponte, cujos impulsos são tão poderoso auxílio para receber essas doces inspirações, assisti-me

sempre, despertai-me do torpor, animai a minha confiança, supri a minha enfermidade, afim de que possa percorrer prontamente em vossa companhia as veredas da mortificação e da oração e chegar à montanha de Deus, onde possa vê-lo e dele gozar em sua glória" (4).

A terceira fonte de inspirações é a própria conciencia. Seu fim é dizer-nos o que devemos procurar, acautelar-nos contra o que devemos evitar, dirigir-nos a vontade e iluminar-nos o entendimento. Apesar de sermos criaturas decaídas, santo Tomaz declara que as virtudes nos são inatas e, de certo modo, conformes às propensões naturais do espírito. As inspirações da conciencia atuam sobre essas propensões, discernindo-as ativamente e libertando-as da lei do pecado, do ferrão da carne e dos golpes de Satanaz, que as oprimem. O gfício da conciencia, diz Orígenes, é despertar toda a casa, nunca dormir, permanecer qual mestre nas partes superiores da alma, e dar ordens. Suas inspirações não são somente impulsoras. São também, sendo preciso, censoras, uma vez cometido o ato. A conciencia é o bom lado do espírito humano, e reclama a obediência pelo direito divino.

A quarta fonte de inspirações é o estímulo do amor. A caridade de Cristo impele-nos, diz o apóstolo. E'

característico do amor avivar-nos a percepção em relação aos desejos do objeto amado. A sua docilidade iguala a sua vivacidade. Um simples olhar é-lhe uma ordem, enquanto um sorriso o recompensa. E' essencialmente engenhoso, cheio de astúcias carinhosas, adivinhando os desejos, profetizando o futuro, interessando-se por tudo o que diz respeito ao presente. Quando dorme, o coração vela. De modo que, pela sensibilidade, delicadeza e contagiosa proximidade de Deus, é uma fonte independente de inspirações que, por serem humanas, são muitas vezes deterioradas pela indiscrição e extravagância, mas que, recebidas com cautela e prudência, são de grande auxílio à perfeição. Estas quatro espécies de inspirações fazem jus, conforme os seus diversos atributos, à nossa obediência. Formam como que a regra sob a qual vivemos, preenchendo os lugares dos superiores, e dos que deles dependem, segundo a ordem e a harmonia que reinam em todas as obras de Deus, e, em parte alguma, mais do que nas subordinações da vida interior.

Importa saber distinguir, em matéria de devoção, entre as inspirações e os favores espirituais, pois aquelas pertencem à ordem ordinária e estes à ex-

2) Ex 23. 3) Zac 4.

4) Dux Spiritualis Tract. 1, cap. XXI, sect. 2. Cito a tradução latina de Tresvinnius por não possuir o texto espanhol.

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traordinária ; assim também importa distinguir entre a ternura e a doçura espiritual, por ser aquela da ordem ordinária e esta da extraordinária. Passamos muitas vezes de leve sobre tais distinções, que não somente geram confusão de idéas, como também nos levam a interpretar mal os livros espirituais e a aplicá-los erroneamente. A ternura é o característico cristão da devoção. Não digo que devemos abster-nos de procurar a doçura espiritual: •é uma questão que tratarei no próximo capítulo, mas devemos certamente pedir a Deus os impulsos que vêm do dom da piedade e rezar para que nossas inspirações se baseiem nesse dom. A ternura é parte essencial da devoção católica, e devemos pedi-la como pedimos a graça. Reclamamo-la como reclamamos o espírito de oração. Pertence-nos, não como um dos fenômenos extraordinários dos san-tos, mas como algo sem o qual não podemos nem rezar, nem nos confessar, nem comungar, como o devíamos fazer.

Não posso explicar a minha idéa com maior clareza, nem expor de modo mais categórico o espírito da Igreja, do que falando daquilo que se chama, na teologia, o dom das lágrimas. Tenho certeza de que a maioria das pessoas acharão que, apesar da preciosidade de semelhante dom, não seria natural pedi-lo. Mas entre as mais belas coletas do Missal encontramos algumas que pedem. o dom das lágrimas, símbolo escolhido da ternura. São do seguinte teor: "Deus onipotente e misericordioso, que para apagar a sede do vosso servo fizestes brotar do rochedo uma fonte de água viva, arran-cai-nos dos corações endurecidos lágrimas de compunção para que choremos os nossos pecados e mereçamos vê-los perdoados pela vossa ^misericórdia.. Rogamo-vos, Senhor Deus nosso, que lanceis um olhar propício sobre esta oblação e nos arranqueis dos olhos copiosas lágrimas que extingam a fúria dos fogos que merecemos. O' Senhor Deus nosso! Derramai misericordiosamente em nossos corações a graça do Espírito Santo. Que ela nos purifique dos nossos pecados com as lamentações das nossas lágrimas e obtenha, por vossa misericórdia, o fruto das indulgências que desejamos". E' dever nosso, diz são Gregório, no terceiro livro dos Diálogos, implorar do Criador, com as mais profundas lamentações, o dom das lágrimas, e o Catecismo do Concílio de Trento, falando da contrição, diz que as lágrimas devem ser desejadas e procuradas com todo cuidado. Não resta, pois, dúvida a respeito da idéa da Igreja.

De acordo, pois, com o desejo da Igreja, os teólogos espirituais trataram sistematicamente do dom de lágrimas, dividindo estas em quatro espécies: naturais, diabólicas, humanas e divinas. As naturais resultam da constituição, do temperamento, da idade, do sexo e de causas análogas. Deus, diz um escritor, quis que suas lágrimas chovessem tanto sobre o justo como sobre o pecador, para que as empregassem, ou não, em proveito da alma. Essas lágrimas naturais não têm significação nem para o bem, nem para o mal. Quem

não as derrama não deve desanimar, porquanto a expressão física, embora suave e animadora, é apenas a manifestação exterior da ternura interior. As lágrimas diabólicas são causadas pelo demônio, que atua por meio do espírito sobre o temperamento físico. Tais foram as lágrimas de Ismael, filho de Nata-nias, de quem fala Jeremias. O Eclesiástico também se refere a elas, quando diz: "O inimigo derrama lágrimas, mas, se a oportunidade se apresentar, não se saciará do teu sangue. O inimigo tem lágrimas nos olhos e finge ajudar-te, mas está cavando o abismo sob os teus pés". Tais são, também, as lágrimas dos hipócritas, que aparentam tristeza perante os homens. Os teólogos místicos observam que os herejes têm muitas vezes o dom diabólico de lágrimas, para que se iludam, confundindo a fraqueza de coração com a ternura da devoção. Deixam assim de perceber que se afastaram do verdadeiro caminho da piedade interior, e assim aqueles a quem iludem, mormente as mu-lheres, imaginam que seus guias são santos e que onde eles estão, a Igreja também deve estar. As lágrimas humanas são as que emanam do espírito humano. As que vertemos por ocasião da perda dos bens temporais, do rompimento das afeições terrenas, ou ao ouvir contar narrativas comoventes e episódios patéticos, são todas humanas. Tais as lágrimas de Esaú quando, como diz o Apóstolo, ele não encontrou lugar em que fazer penitência, apesar de tê-lo procurado com lágrimas, pois chorava a perda das bênçãos temporais, e não as promessas espirituais. Diz são Jerônimo que Miquéas se referira a essas lágrimas quando falava dos gemidos dos dragões e das lamentações das avestruzes. Claro é que não são santas em si e nada poderá santificá-las, em geral, porque um mau motivo as corrompe. Mas quem ousará dizer que as lágrimas da mãe ao ver o filho único partir para os horrores da guerra, ou as que derrama longa e silenciosamente a viuva do soldado, não lhes produzem na alma frutos da vida eterna? Equivalem, sem dúvida, na gente boa, a uma espécie de oração.

As lágrimas que procedem do Espírito Santo são, propriamente dito, o dom das lágrimas, e assemelham-se às de Tobias, aS^uem são Rafael disse: "Quando rezaste com lágrimas, oferecia tua oração ao Senhor"; ou às de Ezequias, a quem Deus disse: "Ouvi tua oração e vi tuas lágrimas", e também às de nosso Senhor, que, segundo são Paulo, ofereceu durante a vida orações e súplicas, com forte grito e lágrimas, e foi ouvido em virtude de sua reverência. Tais lágrimas provêm daqueles suspiros inexprimíveis com que o Espírito Santo intercede em nosso coração; é seu característico esclarecer o espírito e não perturbá-lo ou inquietar, mas inundá-lo com deliciosa e inefável serenidade. Os teólogos discernem cinco, graus mais ou menos perfeitos nessas lágrimas. O primeiro são as que derramamos sobre as misérias humanas. Mesmo estas podem provir do Espírito Santo. Tais as lágrimas de Ana, mãe de Samuel, de Tobias, de Sara, filha de Raquel e de Judite. As lágrimas do segundo grau

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dimanam da consideração do pecado visto à luz da divina compaixão. Tais as que Davi derramou muitas vezes, as de Maria Madalena aos pés do divino Mestre, as de Pedro quando se ergueu da queda. As lágrimas do terceiro grau dimanam da sagrada Paixão. Tais as de Maria nas suas dores. As lágrimas do quarto grau resultam do desejo de ver a Deus e do tédio intolerável que nos causa a sua ausência. Tais as de Davi que lhe serviram de pão dia e noite enquanto sua alma suspirava por ver a face do Deus poderoso e vivo; tais as que Maria Madalena derramou quando permaneceu chorando junto à sepultura, porque Jesus não estava lá. As lágrimas do quinto grau provêm dum amor ardente pelo nosso próximo e de uma dor sobrenatural pelos seus pecados e pelos males que lhes sobrevêm. Tais as que Samuel derramou por Saul e nosso Senhor sobre Lázaro e sobre a sua amada Jerusalém, tão bela e tão enfatuada.Resulta, portanto, que essas lágrimas não são pequeno

auxílio à santidade; que, embora gratuitas, devem todavia ser impetradas; que agimos segundo o espírito

da Igreja quando as pedimos com ardor e perseverança. Devemos, todavia, moderar a nossa

ânsia, senão nos será prejudicial. O apetite desordenado denota moléstia. Podemos compra-zer-nos nessas lágrimas, sem, porém, a elas nos apegar

nem tão pouco delas nos ufanar, pois são um dom. Qual não será, no entanto, o espírito da Igreja em se

tratando da ternura interior, quando se aparta da sua conduta habitual, ao ponto de querer que peçamos a

manifestação exterior ou física dessa mesma ternura?

CAPITULO xxrn

Do modo de aproveitar ps favores espirituais

Em matéria alguma da vida espiritual parece haver maior divergência entre a tradição antiga e a moderna, do que sobre o modo de aproveitar os favores espirituais. Os livros antigos aconselham-nos a procurá-los, a pedi-los e a apreciá-los ao seu justo valor. Segundo os modernos, devemos evitá-los, temê-los, usá-los com muita cautela impregnada de receio, e rezar para sermos conduzidos de preferência pelos caminhos ordinários da graça. Não há nesta aparente contradição disparate real. E' a mesma tradição que se manifesta de modo diferente pela alteração das circunstâncias. Não obstante, tremo ao abordar o assunto.

Cumpre-nos, primeiro, formar uma idéa clara da questão. Os favores espirituais pertencem a uma ordem de coisas extraordinárias, que subdividimos em duas classes. Uma compreende os transportes, os êxtases,

as visões, as locuções, o contato, as chagas, as sedes, os estigmas e as transformações, que pertencem aos santos. A segunda compreende apenas duas coisas, as doçuras e as consolações espirituais, que são os dons frequentes, e mesmo quotidianos, dos cristãos medíocres, isto é, daqueles que se elevam acima dos meros preceitos para se guiarem pelos conselhos, mas que não * penetram na sublimidade mística dos santos. Ora, nada tenho a ver com a primeira classe, e portanto não lhe farei alusão. Talvez seja verdade que o estado extático, como nos ensinam certos teólogos, seja o estado natural do homem, que Adão foi nele criado, e nosso Senhor nele viveu, e que a santidade mística sobrenatural se encaminha novamente a ele com maior ou menor perfeição. Nada disso, porém, se aplica à classe de almas a cujo interesse se dedica este Tratado.

Escrevo — seja-me dado repeti-lo — para a gente que vive no mundo, mas que almeja a perfeição e o desinteressado amor de Deus. E' mister ter isto constantemente presente ao espírito, para que muita coisa do que disser não seja inevitavelmente mal interpretada. Se alguém for bastante audaz para afirmar que qualquer espécie de perfeição é impossível aos seculares, há de considerar este Tratado como um simples erro, de fio a pavio. Não pretendo sustentar uma polêmica nem interromper o trabalho para provar uma verdade que é sustentada por toda a tradição ascética dos escritores espirituais e pelos fatos indubitáveis de muito processo de canonização. Tal controvérsia seria inútil e vã. Mas, por causa daqueles a quem esta doutrina errônea pudesse perturbar, ou mesmo suster, no caminho de um amor generoso a Deus, citarei, tirada das obras dos Bolandistas, uma anedota sobre santa Catarina de Gênova. Vivia ela no estado conjugal, num palácio em Gênova. Certo dia, frei Domênico de Ponzo, um franciscano, ouvindo-a falar de modo arrebatador do amor divino, seja para prová-la, seja para instigá-la a invejar o estado religioso, começou a dizer-lhe que, no estado secular, e preso pelo vínculo do matrimônio, o coração não tinha liberdade para amar a Deus e não podia amá-lo com a mesma pureza do estado religioso. Enquantoo frade se contentava em mostrar-lhe a superioridade inegável do estado religioso sobre o secular, Catarina concordou com ele; mas quando veio a fixar limites ao amor de Deus no estado secular, ela ergueu-se da cadeira, com o semblante todo em fogo e os olhos

1) No Scale of Perfection, dirigido a uma freira clau-surada, Walter Hilton diz: "Reverencia em teu coração os que levam vida ativa no mundo, e que sofrem mui-tas tribulações e tentações, que tu, em tua casa, não encontras de todo. Eles,passam por muitos trabalhos e ansiedades e lutam muito para se sustentarem a si mesmos e aos outros, e muitos haviam de preferir, e se pudessem, servir a Deus, como' tu, no descanso corporal e na tranquilidade. E todavia no meio de seus negócios terrenos evitam muitos pecados que tu, se estivesses no mesmo estado, havias de cometer, e fazem muitas boas ações que tu não podes fazer. Não há dúvida que muitos assim procedem, mas como não sabes quais, é bom reverenciá-los a todos no teu coração acima de ti mesma, como sendo melhores do que tu, e prostrar-te aos seus pés". E' bom lembrar que quem escreveu nestes termos foi um frade cartuxo. (Ed. de 1659, págs> 21-22).

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cintilando, e disse: "Se' eu acreditasse que o hábito que usais, e que não está em meu poder vestir, pudesse acrescentar a menor parcela ao meu amor, arrancá-lo-ei dos vossos ombros e rasgá-lo-ia em pedaços. Que a renúncia a tudo e o estado religioso vos habilitem a adquirir méritos muito - superiores aos meus, talvez seja verdade,. eu o concedo e felicito-vos por tal ven-tura. Mas nunca me haveis de convencer de que eu não possa amar a Deus com tanta perfeição quanto vós. De fato, o meu amor nada encontra que o contenha, e, se encontrasse semelhante barreira, deixaria de ser um amor puro". Então, vol-tando-se a Deus, disse em alta voz: "O' meu Amor, quem então pode impedir que eu vos ame tanto quanto o desejo ? Não preciso para isso da profissão religiosa. Estivesse eu num campo, no meio dos soldados, e não vejo quais seriam os obstáculos ao meu amor!" Saiu então da sala, deixando os presentes atônitos com o calor da sua energia, e, retirando-se ao quarto para dar livre curso à veemência do seu amor, exclamou: "O' amor! quem impedirá que eu vos ame? Se o mundo, ou o estado conjugal, ou qualquer outra coisa fosse empecilho ao meu amor, como seria desprezível! Mas sei que o amor vence todos os obstáculos". Deus se aprouve em recompensar tamanho entusiasmo, falan-do-lhe interiormente à alma, assegurando-lhe que nenhum estado poderia obstar a perfeição do amor, apagando assim de uma vez a perturbação que a.doutrina temerária de frei Domênico lhe havia causado (1).

Limitar-me-ei, por conseguinte, à segunda classe de dons, e, ao falar dos favores espirituais, refe-rir-me-ei quer às doçuras quer às consolações espirituais, ou a ambas, pois, embora pertençam à ordem extraordinária e gratuita, são os dons ordinários, não somente dos perfeitos, mas de toda alma que procura sinceramente a perfeição. E' como se as merecêssemos por não termos reserva para com Deus, e fossem uma consequência espiritual da nossa generosidade, apesar de nos serem frequentemente retiradas ou sustadas por motivos diversos.

As doçuras e as consolações espirituais, embora pareçam aliar-se, são na verdade duas coisas dife-rentes. Obedecem às mesmas leis, mas manifestam fenômenos diversos. Alvarez da Paz recomenda-nos nunca esquecer esta distinção. A doçura espiritual é uma graça de Deus, que produz a serenidade e a tranquilidade, seja qual for o tumulto das pai

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DO MODO DE APROVEITAR OS FAV. ESPIR. 215

xões e das tentações que assaltam a alma. Quando surge em nossa frente uma dificuldade, perante a qual nossa fraqueza recua, logo a doçura fá-la desaparecer,

nivelando as colinas e aterrando os vales, de modo que seguimos, como sobre trilhos, num plano suave.

Quando uma obrigação nos reclama, para a qual o nosso caráter sente insuperável repugnância, a doçura

supera o insuperável e a repugnância dissipa-se. A doçura suaviza a alma endurecida e torna tratavel a

indócil. Dura mais tempo que a consolação. Vive fora da oração, ainda mesmo que dela provenha, e torna-

nos afáveis para com os outros, enquanto a consolação por vezes nos deixa ainda propensos a irritar-nos. A

consolação, por outro lado, tem o doçura do mel para o paladar do espírito. Infunde o gozo e o prazer, de

preferência à paz e à tranquilidade. Atrai a alma a si, e então inunda-a com as sensações espirituais da mais

requintada delicadeza. Dura menos tempo que a doçura, mas sua eficácia é maior. Produz mais em

menos tempo. Pertence sobretudo à oração, mas em geral só vem depois de nos desapegarmos do mundo,

assim como o maná só caiu no deserto depois de consumido o trigo do Egito. Logo, apesar de manifesta

diferença, a doçura aproxima-se mais da ternura em devoção, enquanto a consolação toca mais de perto

aos favores excelsos de que já declarei não tratar aqui. Ambas são divinas, mas a doçura opera de modo mais

humano e com menos dextreza que a consolação. Ten-do estabelecido a distinção entre as duas, dar-lhes-ei dora em diante o título comum de favores espirituais,

porque, como já tive ocasião de dizer, embora manifestem fenômenos diferentes, obedecem à mesma

lei, e é quanto basta para o fim que meproponho (2). Falarei agora a respeito dos seguintes pontos: primeiro, dos ofícios desses favores espirituais; segundo, dos seus frutos; terceiro, da sua necessidade, revelada pelos seus efeitos; quarto, dos seus sinais; quinto, da sua demora, recusa, ou interrupção; sexto, dos meios de alcançá-los; sétimo, do modo de empregá-los, e oitavo, da aparente divergência existente entre os livros antigos e os

2) O padre Graciano de la Madre de Dios faz estu-diosamente a mesma distinção na segunda parte do seu Dilucidario del Verdadero Espíritu, vol. II, cap. 74. O que chamamos doçuras ele chama ternuras, e distingue-as da alegria espiritual, do júbilo, do regozijo, das con-solações, da embriaguez, da fartura. Este assunto é também discutido por Frei José do Espirito Santo, Carmelita português, na Cadena Mística Carmelitana, Col. Pri. Proposta 1, resposta V. A linguagem dos escritores místicos espanhóis é, na mor parte, mais exata e expressiva que a de outros. Assim é que o termo italiano liquefazione é muito menos forte e expressivo para a operação da graça que descreve do que o espanhol derretimiento. "Saliendo assl de si el alma, y como abriendo los poros para atraer a si el bien amado, esta dilatación, se llama Derretimiento". Como cito o Dilucidario do Padre Graciano, posso mencionar, por lançar novas, luzes sobre o que já disse do respeito humano, o seu comentário sobre as palavras de Eliu, no livro de Jó (cap. 32) onde ele fala do seu fervor inteiro "como um vinho novo que arrebenta os vasos novos". Ele diz que quando pessoas piedosas, e sobretudo principiantes, se descuidam dos estudos, ou dos deveres de estado, para se entregarem a exercícios de devoção, é voz geral que estão sujeitas à ilusão do demonio; mas, na verdade, observa ele, é simplesmente a .fraqueza do espirito humano que muitas vezes não é culpado porque ainda está habituado a essa "divina embriaguez" e aqueles que os condenam, áspera, excessivamente, correm o risco de, afugentar os homens de vida espiritual. E' esta urna das mais belas peças de doutrina espiritual que eu jamais encontrei.Fáber, O progresso — 28

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modernos. Esta divisão, exigida pela clareza, me levará a repetições ocasionais.

Em primeiro lugar, quanto aos ofícios desses favores espirituais. São Boaventura resume-os em cinco: Enchem a memória de pensamentos santos. Dão-nos uma vasta inteligência de Deus. Inspiram-nos conformidade eficaz com a sua vontade. Tradu-zem-se na reverência, na compostura e no porte exterior. Levam-nos a comprazer-nos no trabalho árduo e, sendo preciso, a sofrer por Deus. Passemos agora a outro modo de encarar o ofício dos favores espirituais. Considerando a natureza da devoção e a nossa própria natureza, verificaremos que existem em nós tres obstáculos à devoção: a fraqueza da carne, que fez com que os discípulos adormecessem em Getsêmani; a sensualidade, lei que são Paulo sentiu em seus membros lutar contra a lei de Cristo; e, finalmente, os cuidados necessários da vida, que ele conheceu pela solicitude que teve ao ocupar-se das Igrejas. Ora, a doçura e a consolação, unidas, afastam estes tres empecilhos, e Deus no-las enviará por vezes sem cooperação nossa, quer seja para recompensar os esforços passados, quer o fervor presente.

Em segundo lugar, quanto aos frutos desses favores espirituais. Manifestam-se rapidamente na alma. A memória ocupada, barulhenta, populosa, semelhante a uma cidade agitada e sediciosa, torna-se quieta, fiel e cumpridora dos seus deyeres, guardando as festas da santa Igreja com alegria obediente. Todo pensamento que se refere às coisas celestes patenteia uma fertilidade e uma exuberância que outrora lhe eram desconhecidas. As meditações são fáceis e copiosas. As virtudes já não produzem seus atos com dor e fadiga, mas com facilidade e abundância, e seus frutos

são ricos, belos e heróicos. Há sempre, de certo, provín-cias de tentações, cheias de protestos e de revoltas latentes. Agora, porém, dispomos de um novo e sempre crescente poder contra elas. A nossa facilidade em vencer as dificuldades transforma o caráter da vida espiritual. Conseguimos com isto tamanha união do corpo e do espírito que equivale à chegada da concórdia e da paz numa família onde reinava o desacordo. Estas sete bênçãos são as mudanças operadas pela Dextra do Altíssimo. Deus muitas vezes se digna concedê-las aos principiantes, não como disseram singularmente alguns escritores, como se dão doces às crianças, mas para lhes beneficiar verdadeiramente as almas e habituá-las a abrir caminho entre as dificuldades sobrenaturais próprias ao seu estado. Os proficientes devem desejá-las ardentemente, porque alimentam a oração. Os perfeitos nunca poderão dispensá-las, pois nunca deixam de ampliar suas virtudes e tornar-lhes agradável o exercício. Que são os últimos momentos senão um exercício de virtudes tão intenso que nos pode merecer, numa hora, o progresso de dez anos? Ainda mais delas carecemos na desolação, pois é axioma da teologia mística que Deus aflige e consola ao mesmo tempo e da mesma forma.

Bem pode Alvarez da Paz; dizer (3): "Erram, portanto, aqueles que não engrandecem esta doçura espiritual, que não anseiam por ela na oração, e que não se entristecem ao ser-lhes retirada. Mostram que nunca aprenderam, pela experiência, as suas numerosas utilidades. Se a tivessem provado uma só vez e visto como, em virtude dos seus impulsos, antes corriam do que andavam, digo até voavam, à perfeição, então teriam de fato jul-

gado precioso aquilo que traz consigo um aumento de virtudes e de pureza. Ao tomar posse de um coração, mesmo de um principiante e de um homem imperfeito, extraem atos que são perfeitos em todos os sentidos, omnibus numeris absolutas. E, se vier a esconder-se da alma já adiantada na virtude e perfeita, ela não saberá, enquanto durar a privação, livrar as suas ações ordinárias de múltiplas imperfeições. Não é indício de vida mole e de coração efeminado, nem de espírito delicado demais, o suspirar por tal doçura. E', ao contrário, obra de homem sábio e forte, que,

reconhecendo sua fraqueza inata, deseja possuir aquilo que o habilite a dirigir-se a Deus com mais diligência e com maior agilidade e executar feitos maiores e mais heróicos. Quem pensar de outro modo não se conhece a si mesmo, não deseja ardentemente a perfeição, nem compreende as riquezas reais e sólidas desta doçura" (4).

Uma das razões que levaram alguns escritores espirituais a falar das consolações de modo desani-mador é que estas nos dispõem às ilusões. E' verdade incontestável da teologia ascética. Aventuro-me, porém, a dizer que o exagero, esse veneno comum dos livros espirituais, e no qual incorreram certos escritores, prejudicou muito mais as almas dos leitores, pelas suspeitas falsas e desarrazoadas que suscitou, do que a própria e positiva ilusão de Satanaz. Digo mais, esta prudência diabólica, para empregar uma expressão comum aos ascetas, é em si uma ilusão do inimigo, um

3) De Inquisitione Pacis II, 3, 2. 28»

4) Tal é a importância deste assunto, sobretudo no que se refere à solidez da virtude, que não me posso abster de citar uma passagem de Da Ponte, extraída da vida de Marina d'Escobar. Como ele não trata manifestamente do assunto em questão, esta passagem mostra até que ponto a opinião dada no texto era própria do seu espírito. Diz ele que os favores espirituais, as cruzes e as virtudes formam a tríplice corda da vida espiritual, que segundo o Eclesiastes não se rompe facilmente. Eis a razão que nos dá: "Porque á los favores, y regalos sin las cruces, y tormentos, sin alívios de regalos, facilmente despenan en impaciência, tédio, y pusalini-midad de espiritu. Las virtudes sin la mezcla de essotras dos cosas nunca son solidas, nl fuerte», ni bien probadas, y asi facilmente las vence la pereza, y tibieza dei co-razon; pero quando todas tres se juntam, hacen una santidad aventajada, y como inexpugnable". — Vida maravillosa, vol. 1. Introd. Sect. TV.

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dos seus estratagemas mais fatais, um dos que emprega com maior êxito, armando suas ciladas preferidas nos livros espirituais. Tomemos um caso da peior espécie, caso em que as consolações foram realmente ilusões, e aprendamos dos santos, pelo exemplo e pela doutrina, a sagacidade celestial e a moderação esclarecida. Como exemplo podemos tomar santa Catarina de Bolonha, cujas consolações durante o espaço de cinco anos foram, em grande parte, ilusões, entre as quais figuravam aparições constantes de nosso Senhor que, na realidade, eram ficções de Satanaz. Mas pela sua humildade e obediência soube tirar delas vantagem e progrediu na santidade. Diz ela até que "tirou grande proveito" das ilusões.

Mas, mesmo o exemplo dos santos nos são menos úteis que os preceitos que deram a almas mais parecidas com as nossas. Atendemos, então, à grande profetisa do Carmelo, a santa Teresa, explicando as palavras do Pater Noster: "Não nos deixeis cair em tentação". Aqueles que atingem à perfeição1 diz ela, não pedem para ser libertados das tentações, que consistem em sofrimentos e lutas. Antes pedem e deleitam-se nessas provações, quais soldados a querer a guerra, porque sabem que delas tirarão vantagem. "Não receiam muito os inimigos francos. . . Temem, e devem temer continuamente, implorando a Deus que os livre deles, os inimigos traiçoeiros, certos demónios que se trans-formam em anjos de luz e se disfarçam para os ataques. Estes só serão descobertos depois de terem prejudicado grandemente a. alma. Estão sempre a chupar-lhe o sangue e a destruir-lhe as virtudes, e assim nos encontramos em plena tentação sem o saber. Deles é que devemos pedir ao Senhor que nos livre". Agora, depois que, a santa nos indicou claramente o mal que podem fazer os demônios transfigurados, notemos a seguinte passagem: "Notai que há muitos modos pelos quais nos prejudicam e não acrediteis que é somente fazendo-nos crer que essas falsas consolações e gozos que eles suscitam em nós provêm de Deus. Este me parece o menor dano que podem causar, pois, ao contrário, assim podem fazer com que a alma caminhe com mais pressa e que,

atraída pelo gozo, permaneça mais horas na oração. Como ignora que vêm do demônio, e como se conhece indigna desses favores, não cessa de render graças a Deus e se achará mais obrigada a serví-lo, esforçando se por conseguir mais graças do Senhor, pois julga que procedem de sua mão. Segui sempre nas veredas da humildade. Lembrai-vos de que sois indignos desses favores e não os procureis. Inúmeras almas, que ao meu ver o demônio esperava arruinar, serão arrebatadas de suas mãos se agirem deste modo, e nosso Senhor tirará o bem do mal que Satanz tenta causar. Pois sua Majestade olha a nossa intenção, que é agradar-lhe e servi-lo quando estamos com ele em oração, e o Senhor é fiel. Convém andar cuidadosamente, para que a humildade não venha a sofrer em virtude da vanglória, e rogar a nosso Senhor que vos livre desse perigo. Não temais, minhas filhas, pois suaMajestade não vos permitirá receber muita consolação de outrem que não ele mesmo" (5).

Animada pelo mesmo espírito, diz santa Teresa que é falsa humildade rejeitar., com receio de vanglória, os dons e as consolações sobrenaturais que Deus concede na oração às almas fiéis. Já que sabemos que são dons, e que não os merecemos de modo algum, servem apenas para excitar em nós um amor mais intenso pelo Doador. "Parece-me, acrescenta ela, impossível, de acordo com a constituição da nossa natureza, que alguém tenha a coragem de empreender grandes coisas, se não perceber que está sendo favorecido por Deus. Pois somos tão miseráveis e tão propensos às coisas terrenas, que dificilmente poderemos odiá-las sinceramente e desapegarmo-nos realmente delas, se não nos for dado algum penhor do céu. E' por meio desses dons que nosso Senhor nos concede a força que perdemos pelo pecado. Custa também querer ser desprezado e odiado por todos, assim como aspirar às demais virtudes das almas perfeitas, se não tivermos um penhor do amor que Deus nos tem, junto à fé viva. Por natureza, estamos sempre prontos a seguir o que vai à nossa frente e assim essas graças são o meio de despertar-no3 e fortalecer nos a fé. Talvez, com efeito, seja eu tão vil

criatura que julgue os outros por mim mesma, e talvez haja pessoas que não precisem mais do que a verdade da fé para executarem obras de grande perfeição, enquanto eu, por ser tão miserável, careço de tudo" (6).

Tão pouco devemos lançar-nos no extremo oposto e pecar contra a moderação dos santos, no que se refere a essas doçuras e consolações. Segundo são João da Cruz, o melhor caminho para alcançar o cume, o único mesmo que leva ao pico mais elevado do seu Carmelo, é reto e estreito, o caminho da fé pura e da ausência de consolações sensíveis. Mas, por outro lado, ele indica-nos outro caminho, sinuoso, que se

dirige também para o alto, e sobre o qual escreve as palavras: Ciência, Conselho, Doçura, Segurança e glória, e a este dá o nome de Caminho do Espírito Imperfeito, com essas duas divisões: "Porque me esforcei por conseguir essas consolações, recebi menos do que teria tido se tivesse subido pelo caminho reto", e "Fui mais lentamente e alcancei menor elevação, porque não segui o caminho reto".

5) As palavras da santa, na passagem em itálico, sao as seguintes: "Este me parece el menos daño em parte que ellos pueden hacer antes podrá ser que con este hagan caminar mas a priesa, porque cebados de aquel gusto, están mas horas en la oración; y como ellos es-tán ignorantes que es el demonio, y como se ven in-dignos de aquellos regalos, no acabarán de dar gracias á Dios: quedaran mas obligados á servirle: esforzarse han á disponerse, para que les haga mas mercedes el Señor, pensando son de su mano. — Camino de Perfección, cap. XXXVIII.

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Que conclusão podemos tirar dessa doutrina, senão que a mais alta perfeição está em renunciar a tais dons, mas que existe outra, que os procura e pela qual se podem escalar os mesmos topes do Carmelo? Já é muito, para a maior parte das almas, alcançar de qualquer modo a perfeição, ainda pelo caminho menos perfeito. A seguinte passagem de santa Teresa expõe-nos, de uma vez, os dois lados da questão, com clareza que dispensa comentários:

"E' digno de nota, e falo por experiência, que, se a alma, ao penetrar resolutamente no caminho da oração mental, não ligar muita importância a esses gozos e ternuras, e não se deixar abater de-masiadamente se vierem a faltar, ou se enlevar se o Senhor lhas conceder, tal alma já efetuou grande parte da jornada. Não há receio que volte atrás, por mais que tropece, porque as bases do edifício são sólidas. O amor de Deus não consiste em derramar lágrimas, nem está nessas delícias e ternuras que almejamos, principalmente pela consolação que nos trazem, mas em servi-lo com justiça, força de vontade e humildade. Quem procede de outro modo parece-me que recebe tudo sem dar nada. Para mulheres como eu, pobres, fracas e sem forças, julgo conveniente o caminho (pelo qual Deus me leva atualmente) das consolações; assim habilito-me a suportar certas lidas que aprouve a sua Majestade impor-me. Mas quanto aos servos de Deus, homens de peso, de ciência e de inteligência, que se penalizam tanto porque Deus não lhes concede a devoção, desgosta-me ouvir-lhes as queixas. Não digo que não devam aceitá-la se Deus lha conceder, e estimá-la ao seu justo valor, desde que sua Majestade julgue que lhes sejam convenientes. Não se devem afligir, porém, quando forem provados, mas conservar-se senhores de si, lembrando-se que a devoção não é necessária desde que sua Majestade não lha concedeu. Convençam-se de que isto é culpa: eu o experimentei e vi. Acreditem eles que é imperfeição, e que não possuem a Uberdade de espírito, mas que, ao contrário, são fracos em tudo quanto empreendem.

"Não digo isto tanto para os principiantes, embora insista muito sobre este ponto, porque, para eles, é da máxima importância porem-se à obra com firme propósito e liberdade. Mas falo àqueles, e são numerosos, que principiaram e nunca conseguiram acabar; e creio que a razão é, em grande

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parte, que não abraçaram a cruz de início. Estão sempre aflitos, porque estão sempre a cismar que nada fazem e quando não sentem mais as operações da inteligência não podem suportar tal provação; mas talvez seja esta a hora precisa em que a vontade se desenvolve e adquire forças, embora não o percebam" (7).

Em terceiro lugar, animado pela doutrina de Alvarez da Paz, continuarei a dizer que esses favores espirituais são, em Certa medida, necessários e que a necessidade se demonstra pelos efeitos. Podemos dispensar o fervor, que lhes compete produzir? Não serão os afetos copiosos e ternos algo mais que um mero auxílio na oração? Não medimos nós, de fato, o progresso na santidade pela facilidade com que praticamos as virtudes? Continuaremos a mortificar-nos com perseverança se não chegarmos, um dia, a amar as mortificações? Frequentemente carecemos em absoluto de ver as verdades da fé sob outras luzes que não as que apresentam de ordinário. Mesmo para manter a reverência é mister às vezes extrair dos mistérios o sabor e o aroma recreativo que contêm. A vaidade mundana é vasta, sua seiva é obstinada, e por vezes arrebenta, mesmo na alma devota, qual con-flagração devoradora. Só a abundância de doçuras espirituais pode extingui-la. Um ébrio ousa tentar aquilo que uma pessoa sóbria não ousaria, do salto difícil às coisas mais perigosas. Assim, também, na vida espiritual temos muitos pulos a dar na obscuridade da fé, a que nunca nos arrojaríamos se não estivéssemos inebriados pelo amor divino e pelo vinho das consolações espirituais. A discrição é indispensável à espiritualidade, mas suas delícias são inseparáveis da serenidade que difunde a doçura espiritual. E' a razão pela qual santo Inácio recomenda que nunca tomemos uma decisão em momentos de aridez e de desolação. Ora, examinemos estas nove necessidades. Não carece delas em absoluto a alma devota? E, no entanto, como as satisfazer senão pelos nove efeitos dos favores espirituais ?

Podemos ainda considerar a questão sob o ponto de vista de Da Ponte. Segundo ele, quando nos en-tregamos a Deus e almejamos a perfeição, labutamos entre duas necessidades. Insiste em chamá-las necessidades. A primeira é a perseverança na oração; a segunda, a perseverança na mortificação. E esperaremos em vão perseverar numa ou noutra sem os favores espirituais. De acordo com esta doutrina, Deus nos patenteia isso, pois escolhe em geral o tempo da oração, da mortificação, da dor, da aridez e das distrações para visitar-nos. Mas atendei ainda a dois grandes padres da Igreja. Diz são Gregório: "Irei à montanha de mirra e à colina de incenso". Que significa montanha de mirra senão a mortificação elevada e sólida? E a colina de incenso, senão a grande humildade e a oração? E' então que o Esposo se chega a essa montanha e a essa colina e visita

familiarmente aqueles que se esforçam por atingir-lhe o cume mediante a mortificação dos vícios e das dis-trações, impregnando-se suavemente da oração pura e humilde. Mas que resultará dessa visita senão que os justos, quais árvores de mirra e de incenso, plantadas na montanha e na colina, distilem em maior abundância e excelência licores preciosos e desenvolvam em grau mais elevado e com mais frequência os efeitos da mortificação e da oração? Tais os sentimentos da própria alma, quando exclama: "Vinde, ó vento do sul, soprai através do

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meu jardim, para difundir o aroma nele contido", isto é, o orvalho perfumado das lágrimas que derramam os nossos olhos. E a alma entendeu que a visita do Espírito Santo, representada pelos ventos húmidos e quentes do sul, era necessária ao coração, para o abrandar, afim de que pudesse produzir em abundância os ternos afetos do coração; aos olhos, para que vertessem lágrimas doces, e às mãos, para que executassem obras fervorosas. Pois essa visita nada mais é senão a mirra por excelência que cai das mãos da Esposa" (8).

São Bernardo, o santo que leva a antiguidade a revestir subitamente ar moderno, descreve do seguinte modo a situação infeliz do coração, ao serem-lhe retirados os favores espirituais: "Daí provém a aridez da alma e a falta de devoção que sinto. Por isto é que o meu coração secou e a minha alma se assemelha à terra sem água. Não posso derramar lágrimas. Não encontro sabor nos salmos. Não sinto prazer em ler livros bons. A oração não me recreia. A porta da alma não se abre à meditação. Sou preguiçoso no trabalho, sonolento nas vigílias, propenso a encolerizar-me, teimoso nas antipatias, livre na linguagem e sem moderação no apetite. Ai de mim! pois o Senhor visita as montanhas que me cercam, e não se aproxima de mim. Sou eu então uma daquelas colinas sobre a qual o Esposo voa, afim de não tocar nelas ? Vejo um homem que possue o dom da abstinência em grau elevado, e outro admirável na paciência. Um está em êxtases na contemplação, outro penetra os céus pela importunidade das suas intercessões, aqueles sobressaem em diversas virtudes, como montanhas que o Senhor visita e nas quais o Esposo das almas santas pula e se exulta. Mas eu, miserável, que não sinto nada disso, que sou eu

senão um desses montes de Gelboé de que, devido aos meus pecados, o Senhor se apartou enquanto visitou compassivamente os outros? Por conseguinte, ó minha alma, deves temer ao sentir que te é retirada a graça dessa visita divina. Quando essa graça te faltar hás de cair, e qualquer bem que possuas cairá contigo". Parece então que, segundo a doutrina dos santos, esses favores espirituais — falo de consolações e doçuras ■— não são ornamentos e coroas, mas devem ser contados entre as forças vitais necessárias à vida espiritual.

Em quarto lugar, consideraremos os sinais que acompanham os favores espirituais. Uns são adver-tências precursoras da vinda de Deus, outros, indícios da sua presença atual na alma. Os primeiros sinais são em número de cinco. Por vezes, sem motivo justificável, desperta-se na alma um instinto que nos leva a aguardar a chegada de Deus, que nos impele a aprontar-nos para recebê-lo. Não nos perturba interiormente, embora seja surpresa, nem nos lança na confusão, ainda que o primeiro efeito seja inspirar-nos um receio mais profundo e impregnado de respeito. Noutras ocasiões, sem que nada, nem nas disposições interiores, nem nas ocupações exteriores, o justifique, certas admoestações se fazem ouvir interiormente, exortando-nos a santificar-nos, a fazer atos de contrição, a confessar-nos ou a voltar a atenção de repente e com vivacidade, sobre certos e determinados pecados veniais. Sentimos e agimos como se estivéssemos em vésperas de uma grande festa, ou como se nos envolvesse deliciosa paz. Esta talvez se fizesse de súbito, como acontece na aula colegial, quando os pas-;sos do mestre se fazem ouvir, ou talvez se entra-

nhasse gradualmente em nós até se tornar sensível. Ou, quais apetites repentinos que nos sobrevêm, sentimos uma súbita sede ardente de justiça e de santidade, como se existisse na alma algum espaço vazio que ansiamos por encher. Ou, 'então, apodera-se de nós um desejo sensivel, intenso, muito humilde, e ao mesmo tempo muito eficaz, de tornar-nos mais puros, afim de fazer com que Deus desça até nós, pois sabemos que a alma pura é o imã que o atrai. Este ultimo indício é considerado, as mais das vezes, como o precursor imediato de nosso Senhor. Ele então não demora, vindo como a Maria no momento em que pronunciou o seu belo Fiat. Vem para exortar, ensinar, consolar, repreender, mas fala com tanta suavidade, que uma censura divina é mil vezes mais doce que as melhores consolações terrenas.

Há também cinco sinais de presença atual de Deus na alma, cujo fim é dispensar favores espirituais. O primeiro é uma súbita dilatação do espírito, como se fossem derrubadas as paredes e a nossa vida alcançasse paisagens longínquas, imensas e variadas, todas douradas pelos reflexos brilhantes do sol. O segundo consiste numa torrente de pensamentos e de afetos, que nos brotam do coração como se as portas do céu se abrissem e as fontes do abismo irrompessem como outrora no dilúvio. O terceiro é uma idéa clara das coisas do céu, como se nos fosse dado ver as

disposições da corte celeste e as eternas ocupações dos bem-aventurados, e gozar momentaneamente dos seus sentimentos a respeito da terra e das coisas terrenas. O quarto é a sensação de que a piedade é para nós ali-mento substancial, tão sólido nos parece, e tanto vigor e força infunde às faculdades da alma e talvez mesmo aos membros fatigados do corpo. O quinto é o desprezo, cheio de tédio, pelo mundo, que nos faz volver, com corações desgostosos e olhos enfastiados, de toda manifestação e desenvolvimento que apresenta. E' como se nos chegasse ao conhecimento alguma traição, ou mesquinharia, de - um amigo. Daquele momento em diante novas afeições parecem-nos impossíveis. Um, ou mais, desses sinais é-nos uma prova da visita divina.

Convém também observar que Deus penetra na. alma por dois modos. Âs vezes atinge a parte superior da alma, e daí, qual orvalho, infiltra gradualmente a doçura em todo o nosso ser. Outras vezes atinge as partes mais recônditas da alma e brota qual viva fonte cristalina, que nos inunda rapidamente, até transbordarmos. O primeiro' método parece concentrar-nos nele; o segundo, dispersar-nos no amor ao próximo e nas obras de misericórdia. Este é antes o método da doçura, aquele o da consolação, embora Deus venha quando o deseja e sem sujeitar-se a sistema algum.

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Em quinto lugar, seguindo sempre o rumo dos antigos mestres espirituais, consideremos as razões que podemos respeitosamente assinalar para explicar o motivo pelo qual Deus nega, adia, ou susta os favores espirituais. E', diz são Gregório, para não pensarmos que tais dons pertencem à nossa natureza, que nos cabem por herança, ou nos são devidos por qualquer título de justiça. Devemos estar numa completa dependência de Deus, e as abstrações ocasionais dos favores divinos preenchem admiravelmente este fim. Outras vezes ele assim fará para que apreciemos ainda mais os seus favores, ou no-los fazer apreciar de modo mais espiritual e ansiar pela sua volta com maior fervor, tratando-nos, diz são Clímaco, como a mãe ao filho que amamenta. Ou então quer que nos humilhemos a nós mesmos e atribuamos a sua ausência aos nossos pecados, à nossa ingratidão, à falta de humildade, e sobretudo à nossa pouca reverência ao recebê-lo quando vem a nós; ou talvez nos queira prevenir contra a vaidade e demasiada complacência em nós mesmos, como se os seus favores nos fossem atestados de santidade em vez de serem sobras da sua misericórdia. Por vezes a fraqueza da nossa constituição física obriga-o a retirar os favores durante certo tempo, para que a saúde não se altere em virtude da nossa aplicação às coisas divinas, de onde resultaria perda de sono e de apetite, inhabilitando-nos a desempenhar nossos encargos ou nossos deveres de estado. Às vezes ele prevê que a doçura sensível dos seus favores nos seduzirá de tal forma se continuar a no-los dispensar, que havemos de cometer excessos indiscretos, a exemplo das crianças que adoecem pelos muitos doces que comem, provocando uma inevitável reação. Então a languidez espiritual, a náusea e a ociosidade inútil apoderam-se de nós. Por vezes ele susta os favores, porque começamos a sentir repugnância pelo trabalho exterior e pelos serviços que prestamos ao próximo, desempenhando as obrigações de modo perfuntório, porque nos afeiçoamos às doçuras e à quietude desse comércio divino. Pois os favores espirituais, enquanto duram, afastam a alma de tudo o mais, absorvendo-a inteiramente.

Deus retira-se de nós para habilitar-nos a praticar as virtudes reais e sólidas, aproveitando para tal fim as visitas passadas, pois as virtudes devem descansar somente em Deus e não nas suas doçuras e consolações. De forma que, se a doçura se prolongasse, não teríamos o devido conhecimento de nós mesmos, e poderíamos tomar por atividade pessoal aquilo que, na verdade, era uma energia proveniente da doçura divina. Deus se compraz também em ver-nos lutar sem os socorros dos favores sensíveis, porque lhe lembra a sua bendita Paixão e porque é então que ganhamos as mais brilhantes coroas. Ele deseja ver-nos destros na vida espiritual e passar por provações diversas, para aprendermos a inclinar-nos sobre os remos na calmaria e a desdobrar as velas quando sopra o vento. Às vezes Deus deseja fazer-nos progredir de uma vez na humildade heróica, ou dar-nos, por causa de alguma infidelidade, o purgatório na terra, ou queimar e apagar os vestígios dos pecados por meio dum abandono cruel,

semelhante ao de Jó, quando clamou: "Vós me tomareis como uma leoa e em troca me atormentareis amargamente". Outras vezes descobre em nós o erro comum'da falta de estima pela graça e então vai e vem, para que, comparando os dois estados, possamos avaliar, a um tempo, i a nossa própria fraqueza e a eficácia da graça. Não preciso penetrar nos mistérios ainda mais profundos da aridez e da desolação. Não seriam práticos para aqueles a quem me dirijo.

Falando de modo geral, a abundância dos favores divinos depende do progresso na vida espiritual. Gerson, na Montanha da Contemplação, observa que há tres estações para estes favores, semelhantes às estações do ano. O estado dos principiantes é o inverno, quando as nuvens e a neblina escondem o sol, o frio é intenso e a chuva frequente, embora o sol brilhe algumas vezes e os dias de vez em quando sejam risonhos. Os principiantes estão sujeitos a grandes obscuridades; cercam-nos os restos da vida passada e as contradições das paixões ainda não mortificadas; Deus se Fáber, O progresso — 29 digna, no entanto, algumas vezes visitá-los e mostrar-lhes o seu semblante feliz e benfazejo. Longe estava, portanto, aquele grande mestre da teologia mística de considerar a doçura espiritual como atrativo para os principiantes na santidade. Aqueles que progrediram um tanto na oração vivem numa espécie de primavera prematura. Gozam de maior variedade. Ora o céu está claro e sereno, ora o tempo está nublado e chuvoso. O sol, todavia, aparece com frequência. Assim também o Sol da justiça visita a miúdo os proficientes, anima-os e dá-lhes provas sensíveis da sua presença, deixan-do-lhes as flores perfumadas dos desejos fervorosos. Retira-se, não obstante, deles, de modo que o vêem durante algum tempo, e passado esse tempo não o vêem mais, afim de que a variedade lhes aumente o desejo de possui-lo e faça com que se disponham a retê-lo quando os visitar. As almas perfeitas vivem no verão, quando os raios solares são mais intensos, e as nuvens que - lhes ocultam a face são mais raras, apesar de haver de vez em quando tempestades, trovoadas, rajadas de granizo e chuvas torrenciais, que o inverno desconhece. E assim os perfeitos gozam de tranquilidade mais firme e mais durável, e Deus os visita com maior frequência. Afim de fazê-los progredir na humildade, ele, todavia, os prova às vezes pelos combates interiores e desolações cruéis. No meio de tais tempestades, envia-lhes raios dispersos de sua luz, e tantos são os clarões divinos que as noites lhes parecem quasi dias.

Em sexto lugar, consideremos o modo de obter esses favores. Os livros de espiritualidade antiga ensinam-nos que devemos, a exemplo da viuva do Evangelho, assediar a Deus para que no-los conceda. Se quisermos saber, diz um deles, como os.devemos desejar, vejamos como os antigos patriarcas desejavam a Cristo. Que sejam os nossos modelos. Assim como suspiravam por ele na carne, assim também suspiraremos pelos seus favores, pois na verdade a ele procuramos neles. Sicut an-tiqui patres! é difícil possuir um exemplo de mais intenso desejo. Recebê-los com humildade e ao mesmo tempo com gratidão, é o melhor meio de atraí-los em maior abundância e com mais exuberante doçura. Quando nosso Senhor percebe que

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desejamos recebê-lo, que não queremos deixá-lo partir, como Jacó reteve o anjo até ao romper do dia, ele favorece-nos, e, se nos deixa, é para voltar era breve. Se procuramos retribuir-lhe os favores com virtudes sólidas, e um acréscimo de mortificações, com orações multiplicadas e uma santidade prática, asseguramo-nos por esse modo o seu breve retorno e visitas mais frequentes. Há também duas cir-cunstâncias em que ele se apraz em ouvir-nos dizer: Fuge, dilecte mi, Fugi, meu amado, e em que nos procura com maior instância. Uma é quando a discrição nos adverte que a devoção exuberante se nos torna prejudicial à saúde e nos invade o trabalho, e a outra é quando a obediência e o dever nos afastam das carícias secretas do seu amor. Aprendamos, como diz são Felipe Neri, a deixar Cristo por Cristo. E se quisermos gozar em sua plenitude desses favores divinos tão frequentes, guardemo-nos de desejá-los com ânsia e desordenadamente, evitando qualquer complacência própria ao possui-los. Luiz de Blois cita o caso de uma pessoa piedosa, castigada por uma aridez de quinze anos em virtude da vã complacência nos favores espirituais que recebia. Evitemos também, cuidadosamente, toda distração voluntária na oração, pois, diz são Bernardo, citando o milagre de Eliseu 29* e do azeite, "Deus só enche as almas vazias" (9). Quando todas as vasilhas estavam cheias, disse ao filho: "Traga-me mais uma vasilha". E o filho respondeu: "Não tenho mais". E o azeite deixou de correr.

Consideremos em sétimo lugar, o bom emprego dos favores espirituais. Depois do que foi dito, bastam poucas palavras para encerrar esta parte do assunto. Já vimos que devemos prezar e pedir tais favores, sem, no entanto, desejá-los com avidez. Devemos desejá-los, não por sua própria causa, mas pelos seus efeitos divinos e seus frutos sólidos e virtuosos, e, à medida que chegam, substituir a doçura pelo acréscimo de piedade prática e a consolação pelo aumento de força. Devemos recebê-los com a mais profunda humildade e com fervor sempre crescente. Devem tornar-se o âma-go das nossas mortificações e ser derramados abun-dante e generosamente em benevolência para. com os outros, em zelo pelas almas e em socorro aos pobres. Evitemos, com santa superstição, divulgá-los, guardando-os como se fossem segredos de rei. Dissipam-se, pela sua própria natureza, ao serem conhecidos. Quando Deus quiser dar a conhecer qualquer um desses dons, ele nos dará uma luz tal que não nos poderemos iludir a respeito da sua vontade, e um impulso tal que não lhe poderemos resistir, mas talvez isto não se dê uma vez sequer em toda a nossa vida. Devemos também possuir a arte de esquecer-nos ou lembrar-nos deles, conforme a presunção ou o desânimo — as duas forças contrárias e sempre agitadas da criação espiritual — tratarem de perturbar-nos o equilíbrio da alma. Devem, finalmente, tornar-nos lânguidos de amor por Deus, pois que nos devem eles mostrar, como seu céu na terra, senão que na verdade não é o céu que é doce, mas o Deus do céu?

Em oitavo lugar, consideremos a divergência entre os livros antigos e os modernos a respeito desses

favores. O que já foi dito demonstra que 'esses dons

têm um lado perigoso e que o seu emprego requer cautela e moderação. Salvo certos exageros, creio que

nenhuma contradição se pode deduzir dessas duas classes de escritores. O gênio dos antigos levou-nos a

exaltar a beleza e a utilidade, digo mais, a necessidade desses favores; enquanto o espírito dos modernos os levou a insistir sobre os perigos que há em desejá-los

sem moderação e empregá-los sem cuidado. Pertence ao fim do escritor espiritual dirigir-se às pessoas do seu

tempo. Se assim não o fizer, suas palavras care-.cem de valor. Ora, penso que aos olhos dos escritores modernos

o mundo parece hoje muito mais efeminado do que nos dias de Gerson, de Ricardo de São Victor, de Ruysbroek,

de Hugo de São Victor, de são Boaventura e de Luiz de Blois, para não falar de são João Clímaco, são Nilo,

Cassiano e são Gregório. A falta de mortificação tornaria mais imoderada a busca da doçura espiritual e o seu em-

prego mais perigoso. A tendência do espírito humano pelo subjetivismo e talvez o enfraquecimento hodierno

dos nervos, tornam as ilusões muito mais comuns do que outrora. Possivelmente, também, ao aproximarem-se os

tempos do Anticristo, as rédeas de Satanaz se estendam; ou então, se as ilusões eram, de fato, mais frequentes antigamente, era porque ainda estava em formação o

escola espiritual moderna, mas hoje em sem número de escritores já espargiram a luz da ciência por todos os

recantos da teologia ascética. Além do mais, os nu-

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merosos santos novos e a publicação das suas vidas divulgaram o conhecimento desses favores e as pessoas imaginam mais facilmente que estão num estado espiritual análogo àquele de que tratam tais vidas. E' possível que a humildade esteja menos florescente no mundo, apesar de nunca ter brilhado muito. As heresias estão repletas de doçuras falsas, que se multiplicam nas matérias referentes à vida ascética. O jansenismo foi não somente um sistema falso do dogma, como também um espiritualismo diabólico; e o quietismo quasi afugentou os homens de um ato de puro amor, sobretudo quando descobriram que esta doutrina não gozava do favor da Santa Sé, apesar de Fénelon ter procurado mitigar o mais possível a heresia. Aventuro-me a fazer estas conjeturas em defesa dos escritores modernos, que mais estão ao alcance da maioria dos leitores e mais livres de perigo, por terem aproveitado de muitas definições da Igreja, vantagem que os seus predecessores não tiveram. Quero mostrar ainda que a tradição da vida espiritual na Igreja foi sempre substancialmente a mesma. Creio, todavia, que os escritores espirituais dos nossos dias são, até certo ponto, dados a exagerar, a ter idéas apertadas, e a desconfiar do poder da graça em se proteger e ajustar a si mesma. Acho que entre as questões por eles debatidas, a dos favores espirituais é uma das que fo-ram tratadas de modo menos satisfatório. Seja-me também permitido acrescentar, sujeito a correção, que não posso deixar de crer que haja, entre os grandes ascetas franceses do décimo-sétimo século, um frágil reflexo do quietismo, que surge cá e lá nos seus sistemas, quais relâmpagos caprichosos do verão, sobretudo quando falam da abnegação própria, do discernimento entre Deus e seus favores, das bênçãos da aridez e do que chamam a nudez da fé, e assuntos análogos. Não nego que haja em tudo isso uma santa verdade; não posso, porém, afastar o preconceito, se preconceito há, de que existe certo exagero no modo de exprimir tais coisas, exagero este que tende ao quietismo. Como diz Alvarez da Paz, quem Deus não levou pela doçura espiritual não deve falar dela. Esta doutrina é digna de nota, pois a generalidade dos escritores modernos falam como se não tivessem seguido tal caminho, muitos até como se não existisse de todo. Em que se baseia, então, a sua autoridade na matéria? Ser levado pelas veredas das doçuras espirituais é, nas palavras de Alvarez da Paz, coisa diversa do simples gozo delas. Creio que Deus conduz não raras vezes hoje em dia as almas por este modo e acho que muitas vocações à perfeição são frustradas pela nossa ignorância a respeito.

Lemos na vida de santa Joana Francisca de Chan-tal o seguinte (10): "Estando ela de passagem numa cidade da França, foi procurá-la uma religiosa, pessoa de virtudes peregrinas, que desejava falar-lhe a respeito de sua alma, ao que a santa acedeu prontamente. As duas grandes servas do Senhor, descobrindo uma a outra, em toda simplicidade, os caminhos pelos quais Deus as conduzira, disse a religiosa à nossa Madre que, por vezes, se achava tão fatigada interiormente, que ficava reduzida a grande fraqueza e extrema languidez, de modo que precisava contentar-se em saber que Deus é Deus, sem ousar chamá-lo seu Deus. A resposta da santa foi a seguinte: Abandonar-vos-ei este ponto, boa madre, e nunca praticarei

10) Vol. II, p. 25. Edição Oratoriana.

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semelhante abnegação. Por mais atormentada e de-primida que estivesse a minha alma, nunea esteve tão desanimada que eu não pudesse dizer: meu Deus, vós sois meu Deus, e o Deus do meu coração! Pois se a fé me ensina que ele é o meu Deus, o batismo que recebi faz-me compreender que, em verdade, ele é o meu Deus. A religiosa respondeu incontinenti que, ao seu ver, estas palavras meu Deus, eram indício de que a alma não tinha alcançado o perfeito espírito de abnegação. Respondeu-lhe a Madre que o nosso sentimento de abandono nunca poderia igualar ao do Filho de Deus, e ele nas suas maiores provações tinha dito: meu Deus! meu Deus! por que me abandonaste? e acrescentou: já disse muitas vezes a nosso Senhor, ao ser provada mais cruelmente, que, se fosse da sua vontade que eu ficasse no inferno, se assim pudesse ser sem que eu o ofendesse e que meu eterno tormento contribuísse à sua glória eterna, estaria satisfeita, mas, apesar de tudo, ele seria sempre o meu Deus. A religiosa agradeceu à boa Madre a luz que lhe comunicara, declaran-do-lhe que ela bem merecia ser sua mestra no amor divino, que nunca esqueceria essas máximas e que não existia na vida espiritual matéria mais delicada do que esta, de saber como seguir o exemplo dado por Dus Padre na pessoa do seu Filho, nosso Senhor. A santa referia-se frequentemente a essa conversa, que lhe deixara viva impressão".

Qual é, por conseguinte, o resultado do nosso inquérito sobre tão delicado assunto? Resume-se no seguinte: Os favores espirituais vêm de Deus e são indícios do seu amor. Ele é quem melhor sabe qual a

ocasião e o tempo propício, bem como os meios e os caminhos que lhes são próprios, e envia-os sempre para o nosso bem, e nunca para nos iludir.Basta saber o conhecimento que Deus tem de nós para dissipar qualquer precaução ou receio exagerado que, porventura, tivermos a respeito. A idéa de que são como doces para seduzir crianças é tão falsa sob o ponto de vista teológico, quanto é intolerável sob o ponto de vista da reverência e do critério. A experiência prova-nos o contrário, pois são os santos que os recebem em maior abundância. Tão pouco os devemos considerar como um dos muitos meios de que Deus dispõe para conduzir as almas. A algumas, ele os concede fartamente, a outras menos. Mas a nenhuma deixa de dá-los de todo. Peçamo-los, portanto, com orações fervorosas.

Por meio desses favores alcançamos um conhe-cimento experimental de Deus, que, embora precise ser corrigido pela teologia, supera qualquer outro que esta nos possa ensinar. Dão-nos forças para vencermos a natureza e as inclinações depravadas, e dominarmos o espírito humano e os demônios. Facilitam-nos o cumprimento da nossa vocação. Avivam-nos o amor, fortificam-nos nas tentações, fazem-nos confiar em Deus, aumentam-nos o dom da fé e tornam-nos consoladores dos nossos irmãos. Não podemos nós dizer, com o povo de Cafarnaum: "Senhor, dai-nos sempre deste pão"? Ou, sem faltar à verdade, repetir a prece da pobre Samaritana: "Senhor, dai-me desta água, afim de que eu não tenha mais sede e não precise vir aqui tirar água do poço"? (11).

CAPITULO XXIV

Das distrações e dos remédios próprios

A oração, é voz corrente, tem quatro inimigos: as distrações, os escrúpulos, a aridez e as desolações. Já tratámos dos escrúpulos; e, para as pessoas a quem me dirijo, já nos ocupámos bastante da aridez e da desolação, ao considerarmos a recusa, a demora ou a suspensão dos favores divinos. Resta-nos agora dizer algumas palavras a respeito das distrações, um dos empecilhos mais tenazes e mais fatigantes que a alma encontra no decurso da vida espiritual. Fatigante, porque tira toda suavidade, doçura e facilidade da devoção; e tenaz, porque, longe de reconhecer o poder dos específicos, irrita-se e peora com eles. Em nada parece haver tanta culpa da nossa parte como nas distrações, e, todavia, estou convencido de que em geral nenhum empecilho à

vida espiritual é muitas vezes tão destituído de culpa como este. Na maioria dos casos é uma mortificação inevitável e a culpa a que nos leva não é a falta de atenção na oração; é a falta de paciência ao ver a nossa oração importunada, amargurada, deshonrada.

As distrações parecem atacar sobretudo os. prin-cipiantes. Compreendem duas coisas: a divagação, ou afastamento do tema da oração, e as idéas frívolas, alheias e irreverentes, que prendem a imaginação. Daí se segue, em virtude da sua própria definição, que, enquanto prejudicam muitíssimo a oração vocal, não a corrompem de todo, ao passo que impossibilitam a mental, pois na meditação só rezamos, dizem santo Isidoro e Alvarez da Paz, quando prestamos toda a atenção, independente do tempo que lhe dedicamos. Mesmo não havendo pe-cado, santo Tomaz ensina-nos que as distrações nos privam da "refeição espiritual do espírito", pro-veniente da oração. São como os mosquitos que, em noite de estio, mais nos importunam com o zumbido do que nos picam com a tromba. Com os nossos golpes espalham-se, mas vão é o triunfo! As coortes ligeiras formam-se de novo, em fileiras mais espessas, e sussurram de modo ainda mais agudo. Acompanham-nos por toda parte e só o ar rarefeito

11) Jo 6, 24; 4, 15.

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das alturas da mortificação, ou a proximidade da noite profunda da contemplação, podem afastar eficazmente esses insetos irritantes do crepúsculo.

Abramos, por conseguinte, inquérito a respeito, tomando a peito a doutrina do abade Moisés, citado por Cassiano, a saber: que é impossível livrar-se de todas as distrações, inútil tentar consegui-lo e tolice desanimar quando não se alcança semelhante fim. Quem aquiesce plena e premeditadamente às distrações, e nelas se demora, tem culpa, já que pode afastá-las, mas no entanto não está em seu poder impedir que lhe invadam involuntariamente o espírito. Nada pode obstar, diz o abade, que os pensamentos amargos nos perturbem, que os pensamentos maus nos manchem e que os pensamentos vãos nos inquietem e fatiguem. Cognomina de areia à primeira espécie de distrações, de breu à segun-ra, e de palha à terceira. O autor do trabalho sobre o amor de Deus, entre as supostas obras de são Bernardo, parece sustentar a doutrina já enunciada,

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CAPITULO XXIV

de que as distrações nos acompanham ao monte da contemplação e lá nos abandonam, comparando-as aos servos de Abraão, enquanto compara o corpo ao burro e a razão a Isaac, e diz: "Vós, cuidados, ansiedades, lidas, solicitudes, escravidão, todas vós, distrações, ficai aqui com o burro, isto é, com o corpo; e eu e o meu filho iremos apressados até lá, e depois de termos adorado, voltaremos a vós". Existe, portanto, certo paralelo entre as distrações e os pecados veniais. Não podemos evitá-los todos; procuremos evitá-los em separado um por um. Assim, a quem resolveu curar-se radicalmente das distrações, direi: "Nunca conseguireis o vosso fim. Aspirais a um estado transitório, mesmo para os santos, e que pertence à contemplação. A luta aumentará o mal, e a falta de êxito vos vexará e tornará pusilânime. As razões que eu vos dei para encarar tranquilamente as culpas adquirem maior força quando aplicadas às distrações, muito mais inevitáveis que as culpas. A cura completa e radical está fora de questão".

O tentador bem sabe que as distrações são uma das fraquezas da nossa natureza e, ao mesmo tempo, uma das que mais vexam e afligem o espírito humano, e por isso, muitas vezes, trata de iludir pessoas espirituais a medirem o progresso na espiritualidade pela diminuição das distrações, atingindo muitos fins por meio deste único estratagema. Afasta-lhes a atenção das culpas reais, mormente das que provêm da língua e do mau emprego do tempo, afastando-as ao mesmo tempo dos meios de que dispõem para progredir e aos quais poderiam aplicar o espírito com proveito, em vez de fixarem o olhar, ós desígnios e os desejos num objeto não menos desesperado que os trabalhos impossíveis que figuravam entre os castigos do in-X>AS DISTRAÇÕES E DOS REMÉDIOS PRÓPRIOS 461

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ferno pagão. Pois a rolar sempre uma pedra num monte íngreme e a encher sempre d'água um tonel sem fundo se condenaram essas pobres almas. Medindo assim o progresso, por quantas ansiedades, esforços, marchas forçadas, desalentos e profundas tristezas não as levará o meteoro que as seduziu! Resolver livrar-nos inteiramente das distrações é manter um exército permanente delas; e por fim serão elas, e não nós, o soberano. Déspotas mataram os janízaros que não puderam debandar e quebraram 03 turbantes de pedra que lhes cobriam as sepulturas. Igual êxito não nos é reservado nas distrações.

Ao pecorrer as fontes de distrações, devemos ter presente ao espírito a sua definição, bem como as duas operações que implicam: o espírito que se afasta do objeto da oração, e a imaginação, que se entretém com idéas e imagens estranhas. Baseados nesta definição, descobriremos que o grande rio de distrações tem cinco fontes: a saúde alterada, a ação do Espírito Santo, o demônio, a nossa pessoa sem culpa, ou com culpa, da nossa parte.

Pela saúde alterada não me refiro, propriamente, às doenças, porque então os atos jaculatórios de amor, de paciência e de resignação constituem pro-vavelmente toda a oração do doente, cujos olhos se dirigem constantemente ao Crucifixo, ou a outro emblema da Paixão. Refiro-me antes ao estado valetudinário, tão comum hoje em dia, com as fra-

quezas corporais características e a tendência diária a ligeiras dores de cabeça, sobretudo quando o cansaço, como muitas vezes acontece, é mais sensível pela manhã. Para muitas pessoas é um estado tão penoso, que não podem fazer a meditação matutina. Nesses casos, faltando a força física para afastar ou banir as distrações, estas serão tanto mais veementes quanto maior for o esforço em contrário, e o resultado será a completa incapacidade para rezar. Tais pessoas devem conservar-se quietas e tranquilas e procurar lembrar-se da presença de Deus com amor suave e isento de escrúpulos. Parece-lhes que não rezam de todo e que suas tentativas são outros tantos pecados veniais. Na verdade, está longe de ser o caso. Devem aceitar tal desgosto como qualquer outra consequência da má saúde, e praticar a humildade enquanto durar se-melhante estado. Se ficarem tranquilas, encontrarão um lugar no íntimo da alma onde reina a paz, embora ás distrações se agitem no exterior; mas, se fizerem esforços veementes e sem critério, entregarão também às distrações aquele santuário interior.

A ação do Espírito Santo é outra fonte de distrações. Assim como as almas, nas fases mais elevadas da vida espiritual, são provadas e purificadas sobrenaturalmente pela desolação e pela aridez, assim também quem atravessa as fases iniciais e percorre as veredas comuns da perfeição é lançado, por vezes, no crisol das distrações para firmá-lo numa devoção mais sólida, apagar os restos do pecado e subjugar a vivacidade do amor próprio. Não é fácil discernir se as distrações que nos afligem são ou não sobrenaturais, e tal discernimento talvez lhes obstasse a eficácia. Mas é consolador saber que existem casos em que as distrações são uma provação divina; e quando não nos é possível atribuir sua extraordinária incursão, ou per-severança, a qualquer outro motivo, nem a alguma culpa da nossa parte, então ê sinal de que provavel-mente são de origem divina. Há também outra classe de distrações sobrenaturais dignas de nota, que nos molestam quando o Espírito Santo deseja que mudemos de tema de oração, ou passemos a um estado mais elevado quando nos iludimos sobre a vocação, ou lhe resistimos, quer ciente quer inconcientemente. Então não nos deixará descansar até que lhe obedeçamos, enviando-nos essas distrações para forçar-nos à obediência.

As distrações podem, como acontece muitas vezes, provir do demônio. A devoção é fatal ao seu reino na alma, e, por conseguinte, um dos seus principais objetivos é atacá-la. As distrações que suscita manifestam-se, em primeiro lugar, pela abundância impetuosa; em segundo, pelas imagens vívidas que as acompanham; em terceiro, pela inquietação da alma, de modo singular e excessivo; em quarto, pela falta de relação com as ações ordinárias da vida; em quinto, e neste ponto são o oposto dos escrúpulos naturais, pela falta de variedade, e porque atacam sempre da mesma maneira; e, em sexto, quando, em virtude de sua natu-reza, a demora nelas degenere facilmente em pecado. Reguera, na Teologia Mística, recomenda-nos que não persigamos as distrações, mas que as tratemos como tratamos o cão que late à nossa passagem. Este conselho aplica-se sobretudo às distrações que aparentam origem diabólica.

Encontraremos a quarta causa de distrações em nós mesmos, sem culpa da nossa parte, ou, antes, há em nós quatro fontes distintas de distrações. A primeira é

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a imaginação, muito mais viçosa em certas pessoas que noutras, e muito mais suscetível de receber as imagens que lhe são apresentadas. Há exemplos de pessoas que são incapazes de fazer o que chamamos,

na meditação, a composição do lugar, isto é, o quadro que apresenta o mistério, porque se imprime logo de modo tão vívido na.

mente que lhes provoca, enquanto rezam, inúmeras distrações. A paixão dominante é outra fonte. Toda idéa e todo objeto que a ela se referem parecem participar do seu espírito dominador e da sua tenacidade. São sempre vistos como que através de um vidro de aumento e apoderam-se com tamanha força da imaginação, que se torna difícil sacudi-las. Mesmo no momento da oração, isto é, quando conseguimos afastar com ligeiro esforço natural outros objetos exteriores, os que se referem à paixão dominante parecem ter apenas um campo relativamente mais aberto e sujeitar o espírito a uma tirania mais rigorosa. A terceira fonte é o que chamamos o ingenium vagum, o gênio da dissipação de espírito, que leva o homem a estender-se a muitas coisas e a desviar-se com repugnância das interiores. E' o oposto da concentração. Não tem firmeza nem segurança. Gosta de novidades, de mudanças, de ostentação, de barulho, de precipitação, de muitos afazeres, enquanto se dá ao luxo de queixar-se deste mundo. Como toda culpa que se baseia na natureza humana, está repleta de pos-sibilidade para o mal, mas, como pertence à natureza, está isenta de culpa. Falando do espírito humano, citei Scaramelli, para mostrar que existe certo temperamento, profundamente melancólico, que se prende com tal atenção a um objeto qualquer, que pode ser confundido com o dom sobrenatural da contemplação. O ingenium vagum é o oposto disto, e tanto é despido de mérito, quanto o outro de culpa. A quarta fonte é a falta de habilidade do diretor espiritual. Os diretores que arrastam os penitentes, em vez de segui-los e mantê-los no bom caminho, são necessariamente causa de distrações habituais, porque as almas que lhes são confiadas estão sempre num estado fictício e forçado e não se desenvolvem segundo as inspirações do Espírito Santo. Serão, portanto, febris, tomadas de pânico, obstinadas, ora cheias de queixas e de fantasias, ora mudas ou loquazes, acabando por abandonar completamente, depois de alguns anos, a busca da perfeição. As orações de tais pessoas compõem-se de dois terços de distrações e um terço de queixas petulantes a Deus por causa dessas mesmas distrações. Outros diretores terão um método predileto de oração e insistirão junto aos penitentes para que o adotem. Não devem rezar de modo.menos elevado, pois a perfeição, dizem eles, requer tal ou tal grau de oração. Nem tão pouco de modo mais elevado, pois seria ilusão. Tal diretor vê o seu rebanho num nivel inferior ao que ele mesmo ocupa na montanha; domina-o. Não lhe ocorre a idéa de que possa ter penitentes acima dele, para quem teria de virar-se com olhos des-lumbrados e pescoço doído. Considera-os como ovelhas errantes, e manda que os cães os persigam, obrigando-os a descerem precipitadamente e com risco de vida. Outros, baseando-se em Scaramelli, e livros semelhantes, levam os penitentes a passar por doze ou quinze graus sucessivos, como as fases diversas de uma operação, de uma obra, ou de uma cura médica. Declaram onde estão na oração com a mesma facilidade com que mostram num mapa a distância até determinado lugar. Como consequência de semelhante estreiteza e pedantismo, os pobres penitentes serão devorados pelos lobos durante toda a oração. Um estado de oração a que Deus não nos chama é uma

espécie de desolação espiritual. Não estaremos à vontade em posição alguma e todo recolhimento se torna impossível. Tais as quatro fontes que resultam de Fáber, O progresso — 30 nós mesmos, apesar de não haver culpa da nossa parte.

A quinta e última causa de distrações provém da nossa própria culpa. Toda distração, venha donde vier, torna-se em culpa quando for percebida claramente e conservada cientemente. Torna-se culpa, da mesma forma que as tentações se tornam pecados, pela advertência e pelo consentimento. Mas,, além disso, há outra classe de distrações que provêm diretamente de nós mesmos, e que têm sempre culpa. Provêm de duas fontes: do corpo e do espírito. O corpo é culpado quando não praticamos mortificação alguma e prevemos que hão de resultar distrações dessa negligência. Posturas ir reverentes na oração, contínuas mudanças de posição, toda falta de modéstia e decoro no exterior, também dão lugar a tais distrações. E o remédio é tão óbvio como a causa. A inteligência é outra fonte prolífica de várias classes de distrações, e só nos podemos culpar a nós mesmos. Pervertemo-la. Desarmamos o nosso espírito e abandonamo-lo, qual presa sem defesa, àquelas distrações implacáveis.

Entre as nossas muitas culpas há sete que sobretudo provocam distrações, não só indireta, mas também diretamente. A primeira é a indiferença a respeito de pecados leves, que, à semelhança das moscas mortas nos bálsamos do farmacêutico, embora sejam minúsculas, corrompem a pureza de intenção de tudo quanto fizermos. Dissipam o espírito, causam uma ou outra forma de indolência espiritual, envolvem os objetos sobrenaturais numa espécie de neblina e enfraquecem a graça a todo momento. A segunda culpa é a tibieza, de que tratarei no próximo capítulo. A ter-ceira é a curiosidade, mormente a sede de notícias, seja porque nos interessa tudo quanto se passa no mundo, no campo, ou na cidade longínqua, seja porque desejamos saber minuciosamente o que dizem, ou fazem, ou sofrem os nossos vizinhos, seja porque gostamos desordenadamente de escrever e de receber cartas, ou seja ainda porque a vida e o amor doméstico estão cheios de exaltações e de idolatrias pueris. As inexoráveis distrações nos farão pagar até ao último vintém este desejo de tudo saber. A quarta culpa é a falta de preparação com que nos chegamos à oração. Apresentamo-nos diante de Deus e dele nos afastamos sem prestar-lhe homenagem e reverência, ou sem observar os ceremoniais da augusta corte celestial. Talvez não haja ninguém com quem sejamos tão grosseiros como com o Deus incompreensível; e, na verdade, nunca temos verdadeira intimidade com aquele a quem faltamos à civilidade. Daí resultam as distrações que podem viver em qualquer atmosfera, me-nos na atmosfera da santa intimidade com Deus. Uma quinta culpa é a pouca vigilância sobre os sentidos, não só durante a oração, como fora dela. Sendo as distrações uma enfermidade da nossa natureza, não podemos adquirir, não digo a imunidade, mas uma jurisdição bastante ampla sobre elas, sem que haja sacrifício da nossa parte. Não podemos gozar completa liberdade de olhar cá e lá, e prestar ouvido a tudo, mesmo que não haja pecado, sem aceitarmos as consequências naturais da lei que rege o espírito. O

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modo de exercer vigilância sobre os sentidos, bem como o grau, varia segundo os casos, mas quem não empregar tais meios não terá poder sobre as distrações. A sexta culpa está em negligenciar a prática das orações jaculatórias. Estas, por assim dizer, são o lado celestial das distrações, os pensamentos de Deus que nos distraem do mundo e se opõem a que este

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se aposse tranquilamente da alma. Nas jaculatórias fazemos por Deus o que as distrações fazem contra ele. Elas gozam da faculdade de vencer as distrações, e não há melhor prática para dominar a estas. A sétima e última é a falta de zelo em descobrir qual a fonte mais abundante de distrações para então mortificarmo-nos nessas mesmas coisas. Apesar de ser dever evidente, é dever de que muito nos descuidamos. Os homens encaram as distrações, como as pessoas alheias à ciência encaram um fenômeno. Não lhes diz nada. Não lhes proporciona um fim. Não perguntam donde vem, nem aonde vai. E' simplesmente um fenômeno. Assim também com as distrações; não importa donde vêm, a questão é saber o que fazer delas. Não há dúvida, mas é precisamente para saber isto que devemos descobrir donde vêm. Se a imaginação está prestes a submergir num mar de distrações, durante a oração, é urgente recorrer às bombas, mas é ainda mais importante descobrir o rombo. A vigilância em torno destas sete culpas nos levará com o correr do tempo a dominar até certo ponto as distrações, mas nunca iremos muito além enquanto não alcançarmos um estado mais elevado e sobrenatural. E' um dos defeitos essenciais e incuráveis da proficiência comparado ao estado dos que já atingiram a perfeição, assim como há defeitos essenciais e incuráveis nos principiantes, que desaparecem gradualmente nos proficientes. Tudo quanto contribue para a pureza de intenção, contribue igualmente para sujeitar as distrações.

Mas importa lembrar que o tempo da oração não é o momento de combater efetivamente as distrações. Quem espera até então, verá as suas mesmas vitórias impregnadas de melancolia, pois só serão alcançadas em detrimento da oração.Quantas pessoas se queixam das distrações, e aguar-dam a hora da oração com certa angústia, pelo sofrimento mental que a acompanha, e no entanto quão poucas consideram como um dever, fora da oração, impedir a volta dessas mesmas distrações! Já disse, e repito: quem, fora da oração, não dirigir seriamente a atenção sobre essas fontes de distrações, verificará que a hora da oração será forçosamente a hora em que as terá com maior afluência. Porque então o coração se esvazia de muita coisa e as distrações precipitam-se para encher o vácuo. Nunca nos livraremos das distrações, nem conseguiremos dominá-las razoavelmente, se as combatermos diretamente. E' preciso lutar contra outra coisa, contra a fonte ou causa de distrações, e a luta deve estender-se a todos os momentos da vida.

Há duas práticas de espiritualidade interior que preenchem otimamente este fim, e nos ocupam todo o tempo. Uma é a regra de vida, e a outra consiste em dedicar inteira afeição ao aperfeiçoamento das nossas ações ordinárias. Quanto à regra de vida, é uma questão que depende tão exclusivamente de cada caso, que não entrarei no assunto. Dá à santidade no mundo algo de semelhante à santidade do claustro, o que é ora bom ora mau. Para certas pessoas tal cativeiro é o jugo que as impele

rapidamente no caminho da virtude; para outras destrói a delicadeza de conciencia. Afasta-lhes a atenção das culpas reais e mesmo das imperfeições patentes, e firma-se de tal maneira na regra que a conciencia acaba por sentir agudamente aquilo que é de pouca importância, enquanto se vai tornando insensivel sobre outros pontos em que pode haver pecado. Certas pessoas se acusam com verdadeiro pesar de uma infração ao horário e se esquecem de mencionar que falaram asperamente com os inferiores, ou discutiram o caráter do próximo em sua ausência. De todos os meios de que dispõe a vida espiritual, nenhum há cuja aplicação indiscriminada seja mais imprudente e menos segura. Em resumo, poucos lhe podem suportar o jugo, comparados aos que não o podem; é uma forma de espiritualidade que prejudica pelo menos tantas vezes quantas beneficia. Mas, quando provar bem, o êxito será completo. No caso de pessoas que vivem no mundo, creio que o regulamento tantas vezes tolheu como auxiliou o progresso.

Mas a devoção que se modela na de nossa Senhora, isto é, no seu gênero de vida espiritual, esta se aplica a todas as almas com bênçãos especiais. Refiro-me ao esforço em fazer com perfeição os atos simples da vida. E' a mais excelente das práticas e mantém-se numa atmosfera pura, que as ilusões raramente obscurecem. O domínio que exercemos sobre as distrações cresce em proporção à perseverança e habilidade de que damos prova nesse exercício.

Encontramos nos mais autorizados escritores es-pirituais abundantes métodos para praticar esta de-voção. Escolherei um entre muitos pela sua sim-plicidade, clareza e espiritualidade. Há dois fatores a considerar em cada ação ordinária, o exterior e o interior. O exterior é para a ação o que o corpo é para a alma, indispensável, mas subordinado. Quando a falta de disciplina exterior se faz sentir, a perfeição interior não pode ser observada, diz Guilherme de Paris. A religião do exterior, diz são Boaventura, move o afeto do interior. O aperfeiçoamento da parte exterior das nossas ações depende da presença de tres virtudes: fidelidade, pontualidade, modéstia. A fidelidade leva-nos a nada omitir; a pontualidade a nada retardar, e a modéstia a fazer todas as coisas com graça e edifica-ção. O aperfeiçoamento interior das nossas ações requer igualmente tres coisas: fazer tudo por Deus, na presença de Deus e à vista de Jesus.

Fazer as ações por Deus é referi-las a ele por um ato da intenção. Agimos muitas vezes em virtude de uma intenção má, como seja o desejo do louvor, e isto vicia o ato. Outras vezes as intenções são puramente humanas, como seja agir pelo prazer que nos dá a obra, e então não há mérito. Mas, infelizmente, grande parte das ações de grande parte dos homens são feitas sem intenção alguma e a rotina, a precipitação e a negligência devoram o que poderia ter constituído um puro alimento à maior glória de Deus. Quantos anos fe-cundos da vida humana são desperdiçados por causa desta ausência inconsiderada de toda intenção, e julgavamo-nos bons porque afinal não éramos maus! Agora lágrimas de sangue não no-los poderiam

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restituir! Ao fazer qualquer coisa por Deus, reco-lhamo-nos momentaneamente antes de começá-la e tratemos de tocar de leve, com a reta intenção, o princípio, o meio e o fim de cada ação importante, guardando-nos de desprezar, por insignificantes, os atos triviais do dia.

O que acabo de dizer talvez suscitasse escrúpulos em certos espíritos, se eu não acrescentasse uns sinais pelos quais, sem exagerada introspecção, é-nos lícito saber se, em resumo, fazemos as nossas obras por Deus. Aqui temos o primeiro: se alguém nos perguntar de súbito se a ação a que estamos entregues é feita por Deus, e pudermos responder no afirmativo. Outro: se não nos inquietamos ou perturbamos com o juizo que outros formarão a respeito das nossas ações; no entanto, isto depende muito do temperamento da pessoa. O terceiro: se confiamos sem indiferença, mas tranquilamente no êxito do que fazemos. O quarto sinal é se nos aplicamos igualmente, quer em particular, quer em publico. Um quinto: se a inveja não nos impede de associar outros à nossa obra, nem de alegrar-nos quando o seu êxito, em obras análogas, iguala ou sobrepuja o nosso.

Obrar em presença de Deus — segunda graça que a perfeição das ações ordinárias requer — quando, ao mesmo tempo, praticamos a presença de Deus. Os livros ensinam-nos que há seis modos de praticá-la e a alma pode escolher o que mais lhe convier, sem no entanto empregar mais de um de cada vez. O primeiro é tratar de imaginar a Deus como ele é no céu. O segundo é considerar-nos a nós nele e na sua imensidade. O terceiro é ver em cada criatura como que um sacramento que encobre a Deus. O quarto é

pensar nele e vê-lo pela fé pura. O quinto é considerá-lo como em nós mesmos de preferência a fora de nós, apesar de estar dentro e fora. O sexto é tender a ele com uma atenção amorosa do coração, uma espécie de instinto, que é indício de raro progresso na oração e que se faz sentir antes cedo que tarde, quando a alma procura servir a Deus pelo simples impulso de um santo amor.

O terceiro requisito para o aperfeiçoamento das ações ordinárias é fazê-las à vista de Jesus, isto é, para empregar as palavras do missal: por Cristo, com Cristo e em Cristo. Fazer as ações por Cristo é fazê-las subordinadas a ele, como ele tudo fez em dependência do Pai, impelido pelos movimentos do seu Espírito. Fazer as ações com Cristo é praticar as mesmas virtudes de nosso Senhor, revestir-nos das mesmas disposições e proceder conforme as mesmas intenções, tudo na medida do pouco que nos é possível fazer. Fazer as ações em Cristo é unir as nossas às suas, para que, juntas, sejam aceitas pelo Altíssimo.

E' este um método antigo e bom para aperfeiçoar as nossas ações ordinárias e não é tão difícil quanto parece à primeira vista. Tratar de combater as distrações no momento da oração é querer impor a razão à multidão sediciosa. Talvez o que acabo de dizer não satisfaça. E' duro saber que não podemos sacudir de todo um jugo tão degradante e tão fatigante. Mas, se eu fizesse outras promessas, receio que os fatos não as confirmassem. Ninguém, exceto a alma verdadeiramente contemplativa, jamais reinará qual déspota, sobre a vasta horda de distrações. E' feliz, e já conseguiu muito, quem estabeleceu uma monarquia constitucional entre elas; evita, como os monarcas constitucionais, catástrofes ocasionais pelo perpétuo desassossego.

CAPITULO XXV

Da tibieza

Bellecio coloca a tibieza quasi no princípio do Tratado sobre a Virtude Sólida. Isto não me parece muito acertado, porque a tibieza não é de modo algum um começo. Podemos ser frios ao começar, nunca tíbios. A tibieza significa que muito já fora feito e galgada certa altura, donde descemos devido à cobardia, ao respeito humano, ou à fadiga. E' como certos fenômenos da geologia que provam, a um tempo, um estado de coisas já passado e a ca-tástrofe que o derribou. Quem nunca foi fervoroso jamais será tíbio. Talvez seja frio e de sentimentos pouco elevados, isto é, mesquinho, pouco generoso e cobarde, não tíbio.

Prefiro, por conseguinte, só agora tratar da ti-bieza, porque, em virtude do conhecimento que adquirimos sobre a vida espiritual, estamos aptos a compreender-lhe melhor a verdadeira natureza.

Este lugar compete-lhe também, porque todas as partes componentes da vida espiritual constituem, ao serem corrompidas, as partes componentes da tibieza. Com efeito, tudo quanto já estudamos, a luta, a fadiga e o repouso, com os respetivos auxílios, em-pecilhos e fenômenos, tudo se reduz simplesmente a um ou outro estado, a tibieza ou o fervor. Somos tíbios, ou somos fervorosos, eis os dois fins da nossa viagem como proficientes. Ou encalhamos no banco de areia e somos despedaçados na própria base do farol, ou entramos na baía e ancoramos tranquilamente em suas águas profundas, cercados de" lado a lado pelas montanhas de Deus. O leme da vida espiritual, essa força, aparentemente tão fraca, e, na realidade, tão forte, que governa todo o navio, é a discrição. Afasta-nos do baixio traiçoeiro, guarda-nos num canal profundo e dirige-nos suavemente ao porto. Os tres últimos i capítulos deste tratado versarão, portanto, sobre a tibieza, o fervor e a discrição.

Nada, na vida espiritual, nos prende tão eficaz-mente a atenção como a tibieza, não só pela lin-guagem extraordinária com que aprouve a Deus ex-primir a terrível aversão que lhe inspira, como pela doutrina assustadora que acompanha a declaração do seu ódio, isto é, de que a frieza lhe é menos

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ofensiva do que a tibieza. Quem, por conseguinte, terá desagradado a Deus ao ponto de desgostar-se ele da própria criatura remida? A resposta faz-nos tremer. E' quem é paciente quando nada o faz sofrer, dócil quando não é contrariado, humilde, quando não lhe tocamos na honra; quem deseja tornar-se santo sem esforço, quem procura adquirir virtudes sem mortificação, e está disposto, a fazer muita coisa, não a arrebatar o reino dos céus. Ah! Aqui se verificam as palavras terríveis do príncipe dos apóstolos: "Eis chegado o tempo em que começará o julgamento pela casa de Deus; e se for por nós, qual será o fim daqueles que não crêem no Evangelho de Deus? E se o justo dificilmente se salvará, que sorte espera o ímpio e o pecador?" (1).

As moléstias e os males corporais, como é lícito crer, conquanto sejam consequências imediatas do

pecado, são em grande parte características das misérias e das desgraças da alma. Se procuramos o correlativo da tibieza, encontrá-lo-emos na ceguei-ra. E' uma cegueira que não se conhece a si mesma, não desconfia do seu estado, nem admite que outros enxafg~uem bem. E' uma cegueira judicial, porque dia houve em que viu melhor, e agora não se lembra mais do que viu, nem mesmo se tinha olhos. Em geral, esta cegueira é atribuida a tres causas principais: aos pecados veniais muito fre-quentes, à dissipação habitual do espírito, e à pai-xão dominante. Cair repetidas vezes no pecado ve-nial equivale a viajar no deserto, onde o mesmo ar está imperceptivelmente impregnado de areia fina. Entreter o espírito na dissipação habitual é como fixar a vista no sol e viver numa luz forte demais. A paixão dominante é uma violência externa que nos ameaça, e nos faz fechar os olhos, e assim os conservar, afim de não vermos o que nos quer ocultar. Ao abri-los, depois de acostumados às trevas, é a própria luz que nos cega.

Os resultados. imediatos desta cegueira são tam-bém em número de tres. Em primeiro lugar, a conciencia torna-se falsa. Assim como o corpo não pode mover-se com firmeza na escuridão, nem em linha reta, assim também a conciencia precisa ver

para poder equilibrar-se. Mas se falsificarmos o oráculo e continuarmos a nele confiar, qual será a consequência senão o erro e a cerração por toda a parte? Se a luz que está em nós, diz nosso Senhor, for trevas, quão espessas serão essas! Temos, pois, primeiro a conciencia falsa. Mas, à medida que a conciencia se torna escura, depois fria, e por fim muda, os maus instintos do espírito humano, quais aves noturnas, se tornam previdentes, animados e ativos. Estes instintos levam-nos com raro tato a evitar tudo que serviria para reanimar-nos a con-ciencia. ! Convém-lhe que esta permaneça sempre anestesiada. Fazem-nos fugir de qualquer direção espiritual rigorosa. Receamos ser despertados, im-pelidos e obrigados a tornar-nos bons demais. A discrição, isto é, a discrição da conciencia cega, diz-nos que isto é sabedoria e sagacidade e que devemos ser,moderados em tudo, mas sobretudo extra-ordinariamente moderados no amor de Deus. Assim, ao ouvir sermões, ao ler livros, ao cultivar amizades, ao patrocinar obras de caridade, retrai-se de tudo quanto possa tocá-la mais de perto, ou feri-la com demasiado rigor. E' a história do jarro de bronze que se repete. Eis, pois, o segundo resultado desta cegueira, que lhe torna a cura menos provável. Com efeito, um dos característicos da tibieza é que tudo aquilo que praticamos, enquanto estamos em semelhante estado, tende a tornar-nos incuráveis. Destes dois estados da tibieza decorre o terceiro, que consiste no emprego profano dos sacramentos. Aproximar-nos da sagrada comunhão quando bocejamos, estamos fisicamente sonolentos, e meio adormecidos, ou fazer a confissão geral quando estamos meio entorpecidos pelo láudano, ilustram bem o modo pelo qual nos chegamos moralmente aos sacramentos. Assim a comunhão frequente, e mesmo quotidiana, parece produzir efeito negativo. Apenas ignoramos quão maus seríamos sem tal socorro. A confissão hebdomadária não nos aumenta as forças para vencermos as mais triviais imperfeições. Parece que fizemos alta, se é que haja semelhante fase na vida espiritual. Quais cegos, fi-zemos meia volta sem o saber e agora caminhamos em sentido inverso. Admira-nos que, ao descer a colina, a facilidade da tarefa não nos leve, pelo contrário, a desconfiar do engano. Ai de nós!

além de cegos, estamos adormecidos, e o que faze-mos de melhor atualmente não passa de façanhas sonâmbulas.

Claro¡k. que, à vista desta descrição, em se tra-tándole tibieza, nada nos será mais util do que um profundo conhecimento dos sintomas que revelam tão insidioso mal. São em número de sete, e, conforme percebemos que os reunimos em nós, quer em número, quer em grau, então temos razão para desconfiar dolorosamente de que nossa vida espiritual se está enfraquecendo. O primeiro sintoma da tibieza é uma grande facilidade em omitir os exercícios de piedade, o contrário do fervor. Todos nós temos determinadas práticas de devoção e poucos são os dias em que estas não nos causam

ligeiro incómodo. Talvez seja isto uma das suas principais vantagens, sobretudo se as distrações habituais diminuem o valor do exercício em si. Ora, esses ligeiros incômodos sugerem-nos a idea da dispensa ou pelo menos do adiamento que, como prevemos, confusamente resultará em dispensa. Evidentemente há casos em que deveres contrários, ou obrigações de caridade, venham a impedir tais práticas, sendo mais perfeito então desistir, em seu favor, da leitura ou da meditação. As mais das vezes, porém, os incômodos só nos tocam a nós. Está em nosso poder conceder-nos dispensas, e concedemo-las, quer raramente e com aversão, quer frequentemente e com facilidade. Neste último caso, temos o primeiro sinal da tibieza. Não digo que seja

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1) Ped 4, 17.

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prova cabal, mas é prova bastante. Seja como for, este sintoma acompanha sempre a tibieza. Não só omitimos com prontidão os exercícios de piedade, mas somos negligentes em relação aos que praticamos. Ligamos maior importância à sua execução do que ao modo com que os fazemos, ou ao espírito que nos anima. Nossas orações sobem ao céu cercadas de pecados veniais e os anjos são testemunhas relutantes das nossas confissões e comunhões. E' este o segundo sintoma. Aqui temos o terceiro. A alma não se sente inteiramente à vontade com Deus. Não sabe precisar onde está o mal, mas sabe que nem tudo está em ordem. Procura descobrir o que há, analisando tudo que faz e interrogando-se a cada ato, e no entanto o mal ilude-a. Irrita-se contra suas confissões, sem ver como as remediar. Parece que há sempre algo de não declarado, de omitido, que deveria ter sido mencionado e não o foi. Que será? As comunhões também são examinadas à mesma luz, os exames de conciência são torturados, as meditações censura-das, os livros espirituais repelidos, junto a uma resolução de reforma total. O cérebro emite ordens gerais fortes, mas ambíguas. Tudo parece estar contaminado. A culpa está por toda a parte. E no entanto é tudo em vão. Por fim, já tendo desistido, descobrimos repentinamente o mal, assim como, depois de termos procurado, esfalfados, um objeto perdido, vamos descobri-lo de repente, bem à vista, num lugar onde já tínhamos dado busca quatro ou cinco vezes. Ora, quando sentimos que não estamos de todo à vontade com Deus e que todavia não queremos nos sujeitar a rigoroso inquérito, nem revolver aquilo que acabo de descrever, nem nos aplicar à tríplice tarefa da descoberta, do castigo e da reforma, é outro sintoma de tibieza.

O quarto sintoma é proceder sem intenção algu-ma, boa, má, ou indiferente, de que já falei no ca-pítulo precedente. O quinto é a negligência em for-mar hábitos de virtude. E' o oposto do desejo imo-derado de aperfeiçoamento próprio, que já consi

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déramos. A verdade aqui, como em quasi toda matéria espiritual, está no meio termo. O sexto sintoma é o

desprezo pelas coisas pequenas e pelas ocasiões que se apresentam diariamente. E' o resultado lógico da

nossa cegueira. Só desprezamos as coisas pequenas porque não discernimos as possibilidades que nos

oferecem de glorificar a Deus e melhorar os nossos interesses espirituais. O sétimo e último sintoma é

pensar no bem que fizemos e não no que deixamos de fazer, descansando no passado, sem nos esforçar pelo futuro, gostando de olhar para os que estão abaixo de

nós, em vez de considerar os que nos ficam acima. Essa atitude da alma agrada à nossa sem ceremônia e compla-ciência própria. E' assim que a tibieza ataca os

religiosos nos conventos. Quando estes se tornam tí-bios, antes gostam de comparar-se aos pobres ci-

dadãos do mundo, do que aos grandes santos da sua Ordem. Estão sempre a calcular os sacrifícios que

fizeram e idealizam carinhosamente a glória da sua abnegação. Ao observar semelhantes sinais, os

superiores reconhecem os sintomas alarmantes da tibieza. Tudo se resume numa palavra. Tais religiosos

fazem o que são Paulo diz que não fazia. Julgam o prêmio ganho. "Irmãos, não considero que ganhei o prêmio, mas uma coisa faço: esquecendo o que está

atrás de mim, e esforçando-me por alcançar o que está na frente, prossigo até o alvo, para obter o prêmio para

o qual Deus me chamou do alto por Jesus Cristo". Tenhamos nós, que queremos ser perfeitos, o mesmo

espírito (2).Dos sintomas fatais, passemos ao ódio extraordinário

que esse estado inspira a Deus. Eis o que diz Aquele que é a testemunha fiel e verídica, o princípio da

criação de Deus: "Conheço as tuas obras, tu não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente. Mas porque és tíbio, não és nem frio nem quente, e vomitar-te-ei da minha boca" (3). Esta passagem é sem igual na Escritura. Deus não só prefere a frieza, mas rejeita a tibieza. Desgosta-o, porque ele é o amor eterno. A caridade do Coração de Jesus, nosso único refúgio, não nos pode reter. Sua aversão é forte demais para que lhe possa resistir. Rejeita-nos com invencível náusea, que o mesmo amor, com que nos remiu, não pode mitigar nem abrandar. Imagem terrível, que nunca ousaria-mos mencionar com a mesma reflexão com que a pronunciou a sua adorável Majestade, se não fosse uma expressão sua. Quanto nos deve ter ele querido ensinar pela singularidade daquela linguagem terrível! Ora, Deus é infinitamente justo. O ódio, pois, que tem a este estado não pode ser demasiado grande. Sua Majestade não exagera. Mas ele é também infinitamente indulgente, de modo que o castigo que inflige é antes menor do que o pecado merece. Grande, pois, é o horror desse estado.

Mas por que razão Deus o odeia tanto? Aven-íuremo-nos a responder. E' porque a tibieza prefere, deliberada e tranquilamente, outras coisas a Deus. Barateia, por assim dizer, a Deus e desfaz-se dele por uma bagatela. Não sendo, entretanto, perversidade patente, pois antes faz profissão aberta de servi-lo, aparenta amizade e coloca-se no mundo entre os amigos de Deus. Une, portanto, a dupla culpa da traição e da hipo-crisia. Tem uma aptidão toda especial para ofender a glória de Deus pelo escândalo que dá. Traz a honra de Deus em suas mãos e trata-a de

modo vergonhoso e cruel. Profana a graça pela indiferença com que dela abusa. Toma-a como de direito e aplica-a mal, qual homem deshonesto que gasta em fins alheios o dinheiro que lhe fora confiado. Ser tíbio significa tomar liberdade com a excessiva bondade da Majestade divina, e isto é coisa terrível. Melhor seria brincar com seus raios fulminantes, que zombar da sua compaixão. Além do mais, tudo é feito com conhecimento, conhecimento duplo de Deus e do mal. Não nos admira se revolve todo o Ser de Deus e amarga até a doçura do Sagrado Coração!

Antes de pôr fim a este assunto odioso, direi algumas palavras acerca dos remédios a empregar. A cura é dificílima, e são Bernardo faz-nos quasi desesperar de jamais consegui-la. Mas resolvemos de início sustentar a tese de que nada é incurável, ainda que muita coisa na vida espiritual o seja quasi; e nenhum doutor, nem padre, nem santo, mas só o Papa, nos afastará desta doutrina. Basta, por conseguinte, a são Bernardo dizermos que a cura é dificílima. Todos os santos assim o afirmaram, não só porque o mal passa despercebido,

mas porque o próprio bem lhe está tão entremeado e. porque os homens não se lembram de que quando-desprezam os conselhos incorrem no risco de perder até a graça necessária para guardar os preceitos, e, enfim, porque, como nos ensina san1$L Teresa, a perfeição é acidentalmente necessária, a certas almas, mesmo para se salvarem.

Parece absurdo falar nos fracos remédios existentes para combater este mal! O primeiro é avivar a fé, meditando nas verdades eternas, para impregnar-nos o espírito permanentemente com a sua importância capital e pureza infalível. O segundo é não ter tanto que fazer. Por que empreender tanta coisa? De nada adianta. Vivemos num século atarefado, e não podemos salvar a nossa alma se nos ocupamos de tudo. Qual será então o remédio? Ah! alma piedosa! na vida há nós que não se podem desatar; só resta cortá-los, sem cuidar do que vier. Se não puderdes cumprir bem com todos os deveres, porque são demasiados, deveis corajosamente desistir de alguns. Se tiverdes fé, Deus dissipará as consequências, de tal forma que não

233) Filip 3, 13.

3) Apoc 3, 14-15-16. Fáber, O progresso — 81

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mais as vereis. O terceiro remédio é a prática do silên-cio, não de modo ofensivo, ou singular, mas de acordo com o estado de vida. O quarto é a perseverança nos exercícios espirituais, apesar da aridez e das distrações. O quinto — é antes um específico — é o hábito da mortificação exterior. A interior cuidará de si quando chegar a hora. Primeiro é mister que a carne padeça. Se vos desviardes deste meio, eu vos abandono. E' o quinino que corta a febre. Ai de mim! não equivale tudo isto a admitir que o único remédio infalível contra a tibieza é nunca ser tíbio? E' um oráculo de comédia e no entanto contém grande verdade.

Receio que a tibieza seja um mal muito comum e que esteja atualmente corroendo a vida de muitas almas que nem sequer lhe suspeitam a presença. Descobrir que somos tíbios é uma grande graça, o presságio de uma cura milagrosa; mas estamos perdidos, se não agirmos com vigor ao fazer tão assustadora descoberta. A alma tíbia assemelha-se ao homem que adormece na neve. A princípio experimenta uma sensação aguda e quasi agradável. Depois . . . perdido para sempre!

234) Filip 3, 13.

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DO FERVOR

CAPITULO XXVI

Do fervor

O fervor é o estado dos santos na terra e, em certo sentido, o dos bem-aventurados no céu; em graus diversos, deve também ser o estado normal de toda alma que aspira à perfeição. E', ao mesmo tempo, a seiva da santidade e a força que a desenvolve. Cada capítulo deste tratado visou este fim. Agora, para evitar a recapitulação, limitar-me-ei a dar uma nítida idéa do fervor genuíno, por me parecer mais necessário. Quão pouca gente poderia defini-lo, se isto lhe fosse solicitado!

O fervor, considerado como estado, é a semelhança com Deus. Como Deus, é igual, moderado; como Deus, encoberto; como Deus, só se manifesta pela sua própria e irreprimível excelência; como Deus, é silencioso. Não se alimenta de louvor, que lhe seria, pelo contrário, funesto. Reflete muito antes de agir, assim como Deus, que parece dignar-se fazer o mesmo. Não se inquieta a respeito dos resultados, e isto é uma das maravilhas de Deus. E' ardente como Deus, consumindo todos os obstáculos, consumindo-os em silêncio pela força de sua própria intensidade. Meditemos separadamente cada uma destas cláusulas, para adquirir uma noção clara do fervor.

Pela descrição Icima, vemos como o fervor opera na prática da vida espiritual. Não tem caprichos nem sobressaltos. Não se deixa levar por idéas novas. Não transborda, à força de ferver, apagando assim o fogo, isto é, não destrói a ação do Espírito Santo pela indiscrição. Não suspira pelas ocasiões heróicas, apesar de nelas se dilatar grandiosamente quando se apresentam. E' uma força vital e estável na alma, abrindo caminho com poder uniforme e pressão silenciosa. A perseverança nas coisas comuns e triviais, animadas pela atenção incansável, constituem as suas delícias e são as provas infalíveis da sua presença e força. Assim como uma pessoa graciosa anda, move-se, ou estaciona sempre e em tudo com graça, assim também a caridade pura é a graça do fervor. Sua pontualidade é como que espontânea e natural. Nada omite, nada antecipa, nada difere. Recupera o tempo perdido, sem precipitação, e sem prejudicar outros deveres. Sua conduta é um espelho, cujo cristal imaculada retrata para sempre a eternida-de, o paraíso e a imagem de Deus, com beleza inalterável. E' comum como o mais 'trivial dos fatos

diários, e todavia encantadora e como um conto de fadas, heróica como os tempos apostólicos. Seu sorriso é suave e sereno como o do anjo. Pode irritar-se, mas de modo belo, divino, atraente. Não sabe, porém, tomar olhar severo, pois está tão inundado pela paz interior, que perdeu a energia para tal. Não pode cismar com tristeza ou melancolia, pois sua natureza é como uma ondulação de luz. E' doce ao paladar e brilhante ao olhar, suas ondulações criam melodias e o seu aroma é o das flores do Eden. E' tal como se o sabor da Queda nunca tivesse passado sobre ele, qual odor do fogo que respeitou as vestes dos tres jovens na fornalha. E' a única coisa neste mundo que goza de perfeito equilíbrio, pois sua conduta se relaciona aos di-Faber, O progresso

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CAPITULO XXVI

reitos de Deus sobre a alma, e nisto reside a sua austera beleza. O fervor é uma relíquia do passado, dos desertos cristãos, dos velhos mosteiros, dos palácios cujos reis traziam cilícios sob os arminhos. Poderíamos adorá-lo, é tão belo e tão divino, se não nos dissesse como o Anjo no Apocalipse: "Guarda-te de fazê-lo, pois eu sou teu companheiro e um dos teus irmãos que dão testemunho a Jesus" (1).

Quais são os frutos do fervor? O olhar não os viu, nem o ouvido os ouviu, nem o coração do homem os

percebeu. Os esplendores variegados do céu, as riquezas do tesouro da Dextra de Deus, são os frutos

dourados do seu eterno outono. Aqui refloresce apenas; suas flores, porém, são mais preciosas que as frutas de outras árvores. A infusão das suas folhas é o

vinho, o medicamento, a nutrição da alma. O fervor dá-nos coragem, coragem para vencer a natureza e sustentar a luta, quando, pelas leis da natureza,

teríamos capitulado, e assim nos assemelhamos ao nosso doce Redentor, que se animou

sobrenaturalmente a sofrer e a prolongar a vida milagrosamente, afim de amar e de sofrer mais,

bebendo até às fezes diversos cálices de amargura, quando menos sofrimento teria bastado, segundo a lei natural, para dar-lhe a morte. O fervor gera a falta de confiança em si, pelo conhecimento profundo que nos

dá, tanto da natureza da graça divina, como de nós mesmos. A mortificação, montanha de esforços para os

frios e os tíbios, é, para os fervorosos, alívio e necessidade. E' a válvula ordinária de segurança donde escapa o fogo que de neutro modo havia de murchar o que deve somente amadurecer. Quando são Francisco

de Sales estava para morrer, a sua última lição, o ápice de sua longa, profunda, ardente e bela sabedoria foi: "Nada pedir, nada recusar". E' uma definição curta, mas sem dúvida inspirada, do fervor. E' a santa indiferença de santo Inácio que se torna em hábito permanente e •majestoso da alma. Não escolhe. Aceita as coisas conforme Deus as manda. E esta é a parte mais primorosa e mais invejável do fervor. E' todavia estranho que, em virtude de um segredo, saiba aliar a essa tranquilidade quasi passiva duas excelências contraditórias, sendo a um tempo imediata e contínua. E' rápido qual raio e atira-se aos deveres qual ave de rapina, ligeira e silenciosa, que aterra e levanta o vôo com tamanha presteza que chegamos quasi a duvidar se de fato desceu e tornou a subir. E, assim, gira suavemente dia e noite, como a terra em torno do eixo invisivei. Aplica-se sem demora e sem fastio aos deveres presentes, não perdendo tempo, em virtude da sua diligência entre uns e outros. Creio que o fervor vê a Deus e está sempre a copiar, na medida das suas sublimes possibilidades, os inefáveis mistérios da Natureza Divina.

Existem rochedos contra os quais o fervor possa naufragar? Não. Antes de ir despedaçar-se contra a rocha, terá deixado de ser fervor, pois de outro modo não lhe escapariam as visíveis, adivinharia as invisíveis e nunca se descuidaria de sua carta náutica. Mas há um falso fervor que está sempre a naufragar e que se dá a conhecer pelos rochedos contra os quais se arremessa. E' uma história de naufrágio de princípio a fim. E' um fervor cuja aparência é bela e que parece navegar bem, mas, apenas começa o vento a impelir-lhe as velas, e logo passa a julgar os outros, tanto em pensamento

1) Apoc 19, 10.como em palavras, imputando motivos e criticando a navegação do próximo. Em dado momento ouve-se o ruido soturno do encontro. Com que ímpeto se lançou contra os recifes! E não se pode de maneira alguma atribuir a culpa do desastre ao mar calmo do estio, ora coberto dos destroços de uma espiritualidade aniquilada e perdida. Há outro fervor, semelhante à oração do fariseu, que consiste antes no desprezo pelo próximo do que num ódio carinhoso para consigo. Este desprezo é, hoje em dia, um hábito de espírito muito comum, e nada é mais incompatível com a vida espiritual. Há um terceiro fervor, a embriaguez da cabeça fraca e da vontade vã, sob a influência de uma ou mais idéas espirituais, e cujo resultado é um ligeiro acréscimo de mortificação, junto a um espírito fecundo em reformas destinadas a coisas, pessoas, lugares, círculos domésticos e instituições. A quarta espécie de fervor é a singularidade de um espírito mui ativo, mas injusto e presunçoso. A quinta é a vida de simples inconstância, com os planos prolíficos, a rapidez superficial, o alarde dos propósitos passageiros e frágeis. São estes, pór vezes, denominados os rochedos contra os quais o fervor se arremessa e naufraga. Mas certamente não faltamos à verdade quando os denominamos falsos fervores, que nada têm a ver com a virtude bela e austera que ora

consideramos, embora o fervor genuíno carregue muito injustamente com o peso desses erros. Daí o escândalo dado pelos fervores indiscretos, que deixariam de ser escandalosos se fossem encarados sob o seu prisma real. Arrogam-se princípios alheios. Vestem roupas emprestadas. Assumem nomes de outras pessoas, e cansam a gente boa da vizinhança com seus caprichos. São falsos fervores que tornam a piedade desestimada, tanto pelo seu intrometimento, como pela sua incoerência e inconstância. Exageram a doutrina, a prática, o ritual e a mortificação. São governados pelo espírito de publicidade. Lidam sempre com princípios largos e asserções francas. Gostam de divergir de tudo quanto os cerca, pois concordar com os outros é sem graça e pouco interessante. Apresentam às criaturas uma imagem de Deus destituída de sua beleza, e haverá algo mais terrível do que isto, o contrário de tudo quanto ele se dignou fazer? Os falsos fervores — e neste ponto diferem do geral das imitações fraudulentas — só copiam do modelo uma coisa: o fogo. Quanto ao resto, estão em franca contradição. Como é triste pensar que o verdadeiro fervor, envolto na armadura celestial, grave, tranquilo, majestoso, sereno, estabelecendo por toda a parte a soberania de Deus na alma humana, teria que suportar o peso das

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CAPITULO XXVI

fúrias, selvagens e pueris, das almas meio convertidas, meio purificadas, mas ainda não meio humildes!

Disse que havia de limitar-me a transmitir uma idéa clara do fervor genuíno. Se retratei também ás caricaturas do fervor, foi para tornar mais nítido o verdadeiro modelo. Farei agora tres observações a que se prende certa importância.

Em primeiro lugar, a idéa geral que o fervor faz parte do nosso adestramento, do nosso noviciado, que é qualquer coisa que nos ajuda a livrar-nos de dadas dificuldades, e que, preenchido o seu fim, passa por sua vez. Todos o têm, ou deveriam tê-lo como as crianças têm sarampo, passa de um a outro, desempenhando, com maior ou menor êxito, a sua missão. Creio que esta é a idéa que se faz em geral do fervor. Tomemos, por conseguinte, como base da doutrina do fervor, que este não é um agente transitório, que desempenha um

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dever, e passa adiante. E' um estado permanente, mais ainda, toda a sua essência está na estabilidade e, de todos os estados próprios da fragilidade e da inconstância humanas, é o menos sujeito a vicissitudes.

Em segundo lugar, o fervor é um estado provado e não deve ser confundido com a efervescência da conversão. Esta última é essencialmente transitória. Vem em comissão e vai-se depois de tê-la cumprido. Não devemos, todavia, 'tratar superficialmente essa efervescência, ou, como às vezes é chamada, o nosso primeiro fervor. Veio de Deus e foi para nós fonte de inúmeras bênçãos. Era inexperiente, talvez, o zelo indiscreto, o gosto duvidoso, a pretensão indiscutivel. Mas, no meio de tudo isso, havia uma doce autoridade de Deus, que nem a reverência, nem a gratidão nos permite desprezar agora. O que Deus uma vez tocou, permanece santificado. Nunca falemos, nem pensemos levianamente naquilo que foi o canal pelo qual Deus nos difundiu as suas graças, ainda mesmo nos dias mais sombrios da nossa existência. Quantos dentre nós têm motivos para lançar um olhar saudoso até na própria inexperiência daqueles princípios, e ansiar por uma pureza de intenção, uma simplicidade dê afeto e uma boa vontade que talvez já estejam longe, sem que nada de melhor as tenha podido substituir! Os primeiros fervores não voltam mais. Se não nos aproveitamos deles, então abusamos deles. Foram-se, deixando a obra por acabar, e agora nada a poderá realizar. Havemos de sofrer-lhes as consequências até ao último dia da nossa vida. E' como se um anjo tivesse vindo a nós e de nós se afastado, sem deixar benção alguma, porque não fomos bastante humildes para solicitá-la. Esse fervor normal difere, no entanto, dos primeiros fervores. E' como comparar a doçura que a dor da idade madura dá à alma cristã à doçura da mocidade generosa e risonha. Nasceu da provação. Aprendeu segredos. Lavou suas vestes no Sangue do Cordeiro.

Em terceiro lugar em virtude de uma perversidade de espírito, os homens sempre se figuram o fervor como coisa prestes a esfriar. Seria mais exato considerá-lo como força sempre crescente. Pois é característico do fervor crescer sempre e dilatar-se com rapidez sensível, mas tranquila,- até à morte, assim como o movimento da pedra em busca do seu centro torna-se mais rápido e impetuoso à medida que dele se aproxima. Por vezes é possível profetizar a morte pelo modo com que o fervor nos absorve e oprime com o amor divino. Oh! seja assim conosco quando o corpo se enfraquecer e as enfermidades se multiplicarem, quando nos abater o peso dos desgostos, e o sofrimento aumentar, para que possamos passar deste mundo ao outro, não frios nem tíbios, não parecendo agarrar-nos a Deus por uns fios de graça passageira, por um sacramento temporal, mas, ao contrário, no ardor da saúde espiritual e do amor; sofrendo um doce purgatório que nos fará voar livremente através do outro, o doloroso de além túmulo, cujas operações sagradas são tão lentas quão penosas.

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DA DISCRIÇÃO 493

CAPITULO XXVII

Da discrição

Mais um post-scriptum, que servirá de leme ao nosso barco espiritual, e estará concluida a minha obra. Numa conferência de frades, nos tempos antigos, após terem diversos religiosos declarado qual a virtude que lhes parecia mais sublime, e as razões que assim os levavam a pensar, o grande santo Antão opinou a favor da discrição, por moderar a todas as outras. E são José é o mais perfeito modelo desta virtude. Os escritores espirituais concordam que seria difícil exagerar-lhe a excelência. Podemos defini-la, em duas palavras: Amor perseverante.

Muitas vezes, o melhor modo de descrever, uma coisa é apresentar o lado negativo da questão. Citarei, pois, exemplos de indiscrição para explicar em parte, ou quasi exclusivamente, a discrição. Falarei, primeiro, de fazer mais do que devemos, em segundo, de fazer menos, e, terceiro, da maneira de fazer as nossas ações.

Primeiro, quanto ao fazer mais do que devemos. Não quero dizer demais para Deus, porém mais do que a graça comporta, ou nos permite a coragem. Nada é demais para Deus, porque não é bastante. Mas a nossa graça é limitada, e Deus chama cada alma a certa altura e não além. E apesar de não nos ser dado conhecer a altura que alcançaremos antes de morrer,

todavia a graça nos é concedida à medida que dela carecemos. Devemos, pois, vigiar para não ultrapassar os limites da graça atual. A graça não nos destrói nem a fraqueza nem a cobardia. Não cedamos a estas, nem façamo-las entrar nos nossos cálculos e façamos-lhes não somente concessões, mas concessões liberais. Será fácil à boa vontade sincera deixar-se levar por motivos meramente naturais e, por exemplo, exceder-se na prática da mortificação, interior ou exterior. A discrição lembra-nos que a mortificação é meio, não é fim. Ensina-nos também que a mortificação interrompida é a ruína da espiritualidade. Ninguém empreende uma coisa por Deus para abandoná-la em seguida, por achá-la acima das suas forças, sem que lhe prejudique seriamente a alma. Colocou-se numa posição desvantajosa? Não é motivo para não tentar prosseguir, mas sim para prosseguir sóbria, discreta e deliberadamente. A discrição quer a mortificação isenta do menor vestígio de singularidade. Deseja que a caridade para com o próximo domine sobremaneira toda abnegação própria e toda austeridade. Dá aos deveres de estado, o oitavo sacramento como os chamei, a precedência sobre estas, e quando a mortificação, esgotando-nos o bom humor, nos torna ásperos e ríspidos, a discrição manda que, depois de uma breve tentativa, sacrifiquemos a penitência de pre-ferência ao bom humor.

A discrição deseja ver-nos moderados e tranquilos nas orações e nos exercícios espirituais, para •que tudo se harmonize com o nosso estado de vida. Não admite avidez nem ansiedade. Condena todo esforço desordenado, ainda mesmo quando o objeto for a aquisição de uma virtude. Proíbe igualmente toda sofreguidão pelos favores espiri-

DA DISCRIÇÃO 495tuais. Afasta-nos das mãos os livros elevados de mais, porque dão origem a escrúpulos e nos perturbam. Vigia uma vocação como se fosse um inimigo, pois tomar um estado de vida em que não podemos perseverar, equivale a fazer uma coisa que nos obrigue a passar de cama o resto dos nossos dias. Depois da discrição nos ter ensinado isso, acrescenta que tudo concorre ^para mostrar-nos que, na vida espiritual, devemos, ou tomar conselho, ou renunciar de todo à devoção, contentando-nos em descansar nas regiões vulgares e nos feitos insignificantes da espiritualidade.

A segunda espécie de indiscrição consiste em fazer menos do que devemos, tanto em relação a Deus como em relação à graça que ele nos concedeu. Certas pessoas declaram por vezes que já alcançaram o ponto almejado na vida espiritual, e que, tendo atingido esse nivel, não pretendem subir mais alto. Esquecem-se de que Deus é o Senhor, e não elas; que a elas só compete seguir as inspirações da graça aonde quer que esta as leve. Além de que, na vida espiritual, não existe nivel e se existisse seria relativamente raro. As mais das vezes, subimos ou descemos, avançamos ou recuamos. Uma ou outra coisa; não há meio termo. A questão não é o que faremos nós, mas o que fará Deus de nós. Haverá indiscrição maior do que desobedecer a Deus ou lhe ditar leis? E, no entanto, a gente do mundo não gosta de ouvir isto. Deleita-se nas admoestações

da discrição, quando esta lhes modera o exagero, tornando-se, então, de bom grado, missionários da ordem de santo Antão, para pregar sua virtude predileta. Mas irrita-se quando os mesmos princípios são aplicados a quem faz demasiado pouco. O simbolismo cristão representa santo Antão seguido de um porco. A figura é instrutiva, embora pouco elegante. Se a indiscrição da inconsiderada generosi-, dade para com Deus lhe é bem patente, não percebe com igual facilidade, nem reconhece tão de pronto a indiscrição que consiste em desobedecer-lhe agindo de modo mesquinho. No seu vocabulário, discrição significa liberdade e indevoção, isto é, o hábito de renunciar a Deus quando o mundo considera o seu serviço importuno. Tais pessoas, em geral, tornam-se surdas às inspirações. Imaginam ouvir os mais sublimes chamados e todavia recusam deliberadamente encará-los ou examiná-los, com receio de que possam vir de Deus.

Basta a simples exposição de semelhante conduta para provar a manifesta indiscrição que há em tudo isso. Irrita a Deus, não só pela falta de generosidade, como pela irreverência, arriscando até a própria salvação, e fazendo com que Deus nos retire socorros necessários à nossa perseverança, mas que ele não está obrigado a conceder-nos. A indiscrição reveste outra forma. Adotamos princípios que mais nos convêm

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e neles perseveramos, mesmo depois de perceber que não são os que mais nós convêm e sentindo distintamente que Deus nos impele a proceder de modo mais elevado. Então, os princípios, por mais seguros que sejam, deixam de nos oferecer garantia. Tornam-se temerários, impetuosos, obstinados, e chegam a participar do caráter repugnante da tibieza. Assim é que no trato social toleramos por vezes certas coisas, não por caridade, mas por amor à .paz, e permitimos que Deus seja um tanto lesado nesse comércio com o mundo. Os princípios elevados capitularam, deixando a Deus como refém em mãos inimigas. Isto em breve nos leva a dar mais um passo, a fazer do nosso próprio conforto e da boa opinião do próximo nossa norma de vida, em vez de seguirmos a vontade de Deus e as máximas do Evangelho. Mas deslizamos de manso e de modo tão imperceptiveí-que, se alguém nos acusasse disso, ficaríamos sen-tidos. Os declives seduzem-nos e mais baixo cada vez descemos. Julgamos os outros, intrometemo-nòs no seu procedimento, e irritamo-nos ao vê-los mais devotos do que nós. Submergimos na tibieza. Atra-vessamo-la para penetrar num abismo mais profundo. As pessoas frias são em geral indiscretas. Não percebem que hesitação não é indiscrição. Co-^ mo se fosse possível hesitar em relação a Deus! Oomo se ele nos conduzisse por caminhos errados! Nada é tão imprudente como essa prudência, nada tão indiscreto como essa discrição!

Tudo isto provém da falta de cautela, de moderação e de discrição ponderada, previdente, calculada. E isto por tres motivos, pois nada lucramos em proceder assim, perdemos muito e corremos o risco de perder tudo. Quão arriscado é por ve-; zes descansarmos nessa aparente tranquilidade! Quão fatal é a moderação que nos deixa aquém do ponto onde Deus nos espera!

Em terceiro lugar, direi umas palavras da pafte que cabe à discrição no nosso método de proceder.. Falando em geral, a discrição reduz-se à obediência, isto é, a não prezarmos as nossas luzes e se-*1 guirmos a nossa vontade. Um eminente .escritor es-* piritual

fala muito da3 duas virtudes como se fossem uma só ou da discrição como se fosse simples função da obediência. Explicitamente a discrição dé maneiras consiste em cinco coisas que exporei com a possível brevidade afim de calarem mais vivamente na memória:

A discrição procede lentamente, e depois de rezar. Desconfia dos impulsos e toma conselho.

A discrição faz pouco, cada coisa por sua vez, calcula as suas forças e persevera nesse pouco. Fica alerta para descobrir o que pode acrescentar, sem, porém, fazer conjeturas. para o futuro.

A discrição cumpre cuidadosamente com os deve-res. Aplica a atenção às circunstâncias que lhe en-volvem as ações, não as destruindo uma vez prontas.

A discrição força-se suavemente a trabalhar e exi-ge um espírito interior, motivos puros e a prática da presença de Deus.

A1 discrição visa sempre agradar a. Deus, como se isto lhe fosse a principal tarefa, digo mais, a única necessária. Aprecia o valor do trabalho que lhe cabe fazer, calcula-lhe as dificuldades, e confia nos resultados, certa1 de lograr êxito.

Não é, porém, discrição, e sim a mais temerária das indiscrições ter medo de Deus e da santidade, querer

estar bem com o mundo e ficar em evidência, num ponto equidistante dos dois extremos, isto é, onde

todos nos possam ver e louvar. E' ter medo de entregar-nos a Deus, medo do entusiasmo, por-qHie

sabemos que, de fato, isto não nos atrai de todo. E', em regra geral, dar a Deus um pouco menos do que lhe é

devido, em vez de um pouco mais, por medida de segurança. Ah! que belo contraste 'nos oferece a vida

de são José. Ele foi provado e assaltado pelas mais graves dúvidas, pelos sonhos, .^pelas mudanças, como

se devesse ser a vítima de todas as inverosimilhanças da graça e de todas as perplexidades dos adoráveis caminhos divinos. E, no entanto, permanece calmo,

dócil, todo entregue a Deus. Leva vida interior, nunca indo ao encontro da luz e da graça, mas recebendo-as, ao chegarem, com submissão infantis e pronta! E qual

foi o prémio de tudo? Como são João, e antes dele r repousa sobre o Sagrado Coração de Jesus, e a discrição morre de amor!

Amável leitor! N

ada mais posso d

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izer para aju-darmos a crescer em santidade. Que Deus vos dê a g

raça, agora que acabastes este livro, de esque-cer toda teoria m

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inha e lembrar-vos somente da sabedoria e da prática dos santos!

E, em vossa caridade, murmurai uma prece à compaixão inex-hauri

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vel do Altíssimo, para que aquele que se aven-turou a pregar aos

outros ■ não seja ele mesmo re-provado.

Í N D I C E

Epístola preliminar ao revmo. padre W. A. ,Hutchinson..................................................... *

Prefácio à 3a edição inglesa ............................• • • 9Cap. I. Dos verdadeiros sinais de progresso na

vida espiritual................................................ HCap. II. Da presunção e do desânimo.................... '21Cap. III. De como aproveitar os sinais de pro-

gresso ........................................................... 354 Cap. IV. Do espírito em que servimos a Deus 48

Cap. V. Dos empecilhos . ..'................................. 63Cap. VI. Da conduta exterior ............................... 77

- Cap. VIJ. Da paixão dominante ............................. 90Cap. VIII. Do estado normal .................................. 102Cap. IX. Da paciência .......................................... 125Çjap. X. Do respeito humano................................. 146

■ J^Cap. XI. Da mortificação, nossa verdadeira

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perseverança................................................. 159J| Cap. XII. Do espírito humano.................................. 182íiTCap. XIII. Do espírito humano vencido ................... 203. "Cap. XIV. Da indolência espiritual.......................... 222

Jajfcap. XV. Da oração ............................................ 242

V " Cap. XVI. Das tentações ......................................... 277Cap. XVII. Dos escrúpulos..................................... 299Cap. XVIII. Do ofício do diretor espiritual.. . 325Cap. XIX. Da dor constante pelos pecados. .. 352Cap. XX. Do modo de encarar as culpas................ 370