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Alternativa ao desespero Richard Shaull Alternativa ao desespero – 2ª edição M. Richard Shaull 1963 Publicação do setor da mocidade da Confederação Evangélica do Brasil e da União Cristá de Estudantes do Brasil Capa de Derli Barroso Composto e impresso na Imprensa Metodista – 1963 Alternativa ao desespero O fruto da inquietação Introdução A situação do homem contemporâneo Jesus Cristo e a nossa situação A nova ordem de relações com Deus A nova ordem de perdão e justificação A nova ordem de relações comunitárias Richard Shaull – Alternativa ao desespero

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Alternativa ao desespero

Richard ShaullAlternativa ao desespero – 2ª ediçãoM. Richard Shaull1963Publicação do setor da mocidade da Confederação Evangélica do Brasil e da União Cristá de Estudantes do Brasil

Capa de Derli BarrosoComposto e impresso na Imprensa Metodista – 1963

Alternativa ao desesperoO fruto da inquietaçãoIntroduçãoA situação do homem contemporâneoJesus Cristo e a nossa situaçãoA nova ordem de relações com DeusA nova ordem de perdão e justificaçãoA nova ordem de relações comunitáriasA nossa participação na obra de Deus no mundo

Prefácio à segunda ediçãoNos primeiros dias de 1960, recebemos o pedido de que proferíssemos, no terceiro “Encontro de Líderes” da mocidade evangélica, uma série de palestras sobra as realidades básicas da fé cristã. Não nos foi fácil arranjar o tempo e a tranqüilidade necessários para prepará-las. Estávamos procurando estabelecer-nos em Governador Valadares e dar aulas em o Novo Seminário de Presidente Soares; e quase todas as semanas viajávamos entre os dois pontos, de ônibus, na Rio-Bahia. Chegou a Semana Santa, e passamos aqueles dias agradáveis em Curitiba, em diálogo constante sobre estas realidades com certo grupo extraordinário de moços. Ficamos surpreendidos, porém, quando o Departamento da Mocidade resolveu publicar as Palestras; mais surpreendidos ainda quando soubemos que a edição já se tinha esgotado.

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Agora vem o pedido de nova impressão. Mas estamos vivendo no Brasil de 1963, e nestes três anos muitas coisas aconteceram. Estamos vivendo outro momento, chamado de PRÉ-REVOLUCIONÁRIO por alguns escritores, em que temos novas preocupações, enxergamos novas angústias e decepções. Poderão as palestras, escritas em situação assaz diferente, servir para comunicar a fé cristã a alguém que vive no presente momento?Ficamos cada vez mais impressionados pela maneira como os profetas do Antigo Testamento situam sua mensagem no Contexto Concreto em que vivem; quase sempre eles citam a situação Política exata em que receberam a Palavra do Senhor. Os Evangelhos anunciam o nascimento do Salvador da mesma sorte.Para levar a sério este fato, teríamos de reescrever este livrinho, tentando expressar a realidade do Evangelho para esta nova situação. Na impossibilidade de fazê-lo, pediremos ao leitor o seu esforço de tradução e reinterpretação, porque só assim poderá encontrar aqui algum estímulo para buscar e receber a “Boa Nova” que Cristo nos oferece para a situação em que estamos vivendoRio de Janeiro, abril de 1963.RICHARD SHAULL

O FRUTO DA INQUIETAÇÃOUma apresentaçãoEste livro surgiu de uma inquietação. Inquietação da liderança da mocidade evangélica que, desde 1956, vem-se reunindo em “Encontro de Líderes”, visando ao aproveitamento de conhecimento da verdade cristã e da resposta desta verdade ao problema atual do jovem brasileiro. Preocupação urgente de uma juventude que acorda assutada, junto ao gigante brasileiro, para a vida espavorida do século XX.Ninguém que esteve no “encontro de Líderes” de Curitiba, que reuniu 80 jovens de 11 denominações evangélicas distintas, esquecerá a presença de Richard Shaull naquela semana de estudos e debates. “Roga-te” - a aprazível casa de retiros que foi o lugar de encontro destes jovens – transformou-se de início, pela oportunidade de expressão que foi dada a todos, em verdadeiro ambiente para desafogo das angústias que cercam os jovens inteligentes e preparados de hoje, diante de um mundo de valores em mutação e desintegração. Shaull ouviu a todos. Depois projetou estas angústias verde-amarelas sobre o cenário mundial. E começou a aplicar a terapêutica do Evangelho. A experiência de Curitiba foi de tal vitalidade, que a mocidade ali reunida rogou a Richard Shaull que colocasse em letras de fôrma as suas palestras e as tornasse acessíveis a todos que sentem a pressão da época em que vivemos e os recursos de Deus para esta situação. Foi esta a gênese deste livro, escrito nos interstícios do tempo da vida agitada deste teólogo profundo, mas simples e amigo, que a graça de Deus concedeu ao Brasil em tão boa hora. Que estas páginas façam tanto bem aos seus leitores de hoje quanto nos fizeram bem as palavras de ontem.William Schisler Filho

INTRODUÇÃOEscreve um psiquiatra moderno muito conhecido:“No século XIX, Deus estava morto. No século XX, o homem está morto.”Nestas palavras exprime ele o que a arte e a literatura, o cinema e o teatro de nossos dias declaram incessantemente: o homem se encontra em situação sumamente precária, ameaçado por forças que não consegue entender nem controlar, vítima de um processo de desintegração que se expressa na ansiedade e no desespero; e, muitas vezes, no

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desequilíbrio mental e no suicídio.Esta crise é mais evidente na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, países estes que têm sentido mais o impacto das forças desintegradoras de nosso tempo. Mas não se limita ela a essas terras. O mundo de hoje é um só; as filosofias que surgem em uma parte do globo fazem logo sentir a sua influência em outras regiões longínquas, e os fatores que desencadeiam a crise humana em a Europa e nos Estados Unidos estão presentes também, embora em menor grau, na Ásia e na América Latina. Aqui no Brasil lemos a literatura existencialista, vemos filmes norte-americanos e europeus, sentimos o impacto da técnica, e reconhecimentos que a crise do homem moderno é a nossa crise também, e que os seus problemas são igualmente nossos.Além disso, compreendemos hoje que essa crise não atinge somente o não-cristão. Nós vivemos dentro do círculo da fé cristã, porém vivemos no mesmo mundo, e sofremos o impacto das mesmas forças. A nossa fé em Cristo não nos tira do mundo, não nos imuniza contra suas influências, não nos permite fugir aos problemas atuais. Jesus Cristo é o nosso Salvador e Senhor; nEle encontramos recursos abundantes para enfrentar o mundo moderno e vencer suas ameaças. Mas esta vitória será nossa na medida em que consigamos entender claramente a situação em que estamos, as ansiedades que nos atormentam, e a relação que existe entre o Evangelho de Cristo e os problemas específicos que enfrentamos em nossa época. Isto exige conhecimento profundo da situação humana, conhecimento mais profundo ainda das grandes realidades do Evangelho, e também esforço constante de relacionar estas duas coisas de modo criativo. Se deixarmos que o Espírito Santo nos lembre esse caminho, poderemos não somente viver a fé que vence o mundo, como também ser testemunhas mais fiéis do Evangelho de Cristo em todas as nossas relações diárias no lugar onde Deus nos coloca. É exatamente para nos ajudar a progredir nesse sentido que apresentamos esta série de estudos.

IA SITUAÇÃO DO HOMEM CONTEMPORÂNEOIA SITUAÇÃO DO HOMEM CONTEMPORÂNEOpara começar, seria muito interessante se cada leitor parasse aqui e procurasse analisar a sua própria situação, mais ou menos nesses termos:

V. concorda com a afirmação de que o homem moderno está em crise?V. sente, na sua própria vida, essa crise? Como se manifesta ela?Quais são os principais problemas, preocupações e ansiedades que V. Tem como homem do século XX?

Recentemente, alguns líderes da mocidade de várias igrejas evangélicas se reuniram para estudar esta questão. No primeiro encontro procuraram responder a estas mesmas perguntas. Daí resultou um interessante intercâmbio entre os membros do grupo.O que foi especialmente digno de nota nesta conversa é que esses moços revelaram o mesmo tipo de preocupação que encontramos nos melhores estudos da situação humana que nos têm chegado da Europa. Tivemos ali a mesma experiência do impacto de grandes poderes econômicos e políticos que nos deixam inseguros em face de forças que não podemos entender nem controlar; o mesmo domínio da técnica, que parece destruir os mais altos valores humanos; a mesma desorientação perante um mundo em que não nos sentimos “em casa”; o mesmo isolamento individual; o mesmo problema de nos relacionarmos criativamente com nosso próximo, e também a mesma insegurança e crise no mais íntimo do nosso ser. Tudo isto é o a que os escritores modernos chamam de alienação: o fato de o homem estar separado de Deus, sem poder entender as forças do

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universo ou relacionar-se com elas, de estar separado do seu próximo e de estar em conflito consigo mesmo.A expressão mais radical e terrível desta alienação se encontra numa peça de Jean-Paul Sartre, Huit Closs (Entre Quatro Paredes). Esta obra conta a história de três pessoas que morrem e vão para o inferno, que é símbolo para Sartre do mundo em que hoje estamos vivendo. Nesse inferno não há verdugos, nem instrumentos de castigo e tortura. As três pessoas têm simplesmente de passar toda a eternidade juntas, nesse mesmo lugar, o que significa, afinal de contas, o pior castigo que o autor pode imaginar.Nesse inferno sartreano, o homem está completamente alienado da Realidade – de Deus e do universo. A sala não tem janelas. Tem uma só porta, que permanece fechada. Há uma campainha que geralmente não funciona, e, quando funciona, ninguém a atende. Os três ocupantes da sala não sabem por que estão lá; a única explicação que acham é que tiveram este destino por engano de um funcionário de terceira categoria.Eles também estão alienados de si mesmos. Não há espelhos, portanto não podem ver-se como realmente são. Não podem fugir de si mesmos, mas ao mesmo tempo não suportam a sua própria companhia. Mas o que para Sartre é o pior de tudo é que eles estão alienados uns dos outros. Poderiam transformar o inferno num paraíso se conseguissem fazer uma coisa muito simples: estabelecer relações uns com os outros. Mas isso é impossível, e a peça chega a um clímax com a afirmação do autor: “O inferno são as outras pessoas”. Perante o desespero que esse reconhecimento produz, cada qual tentar matar o outro. Quando compreendem que isso não pode acontecer no inferno, cada um tenta matar-se a si mesmo; mas percebem logo que essa solução também lhes está vedada. A peça termina com as palavras: “Vamos continuar”. Para Sartre, a única saída é a aceitação do inferno em que nos encontramos.Como cristãos devemos reconhecer a validez relativa desta como também de outras interpretações da situação do homem contemporâneo. Mas um ponto temos de discordar destes pensadores: na explicação da causa da crise. Para os existencialistas, estamos nesta situação porque o mundo é assim mesmo. Quando esta estranha criatura, o homem, procura entender o mundo em que vive, é forçado a concluir que o universo desafia todas as tentativas de compreensão racional. Tudo o que acontece contraria nossas normas racionais: é portanto absurdo. O universo não revela nenhuma preocupação pelo homem, nem pelos seus ideais mais altos; pelo contrário, tem interesse em destruí-lo. Nestas circunstâncias, o homem não pode ser considerado responsável pela alienação em que se encontra. É antes o resultado inevitável da compreensão da sua verdadeira posição no universo. A alienação de si mesmo e do seu próximo tem de ser entendida nos mesmos termos.Para a fé cristã, porém, a situação é bem diferente. A condição de alienação do homem moderno é resultado do seu pecado, de um ato de rebeldia contra o Senhor do Universo. Por causa de uma decisão voluntária, ele mesmo quebrou suas relações com Deus, e vive alienado da fonte da vida. Daí decorrem também sua alienação com relação ao próximo e a crise interna em que sempre vive. Esta diferença de ponto de vista tem conseqüências tremendas no que diz respeito ao entendimento de nossa verdadeira condição. Os existencialistas podem condenar e julgar o universo sem sentir nenhuma responsabilidade pessoal pelo que acontece. Se para eles houvesse um Deus, poderiam julgá-lo com tremendo senso de superioridade, porque achariam que nas suas obras, Ele se revela inferior ao homem. Mas o cristão não pode ter esta satisfação. Pelo contrário, quanto mais se aprofunda no conhecimento da sua condição, mais convencido fica da sua própria responsabilidade e culpa. Não apenas a sua crise interna, como também a situação total do homem no mundo moderno têm de ser vistas sob esta perspectiva. Afinal de contas, a técnica, as grandes forças econômicas e políticas que nos ameaçam são

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obra deste homem autônomo, que se revoltou contra Deus e quis governar a sua própria vida.Agora, isto quer dizer que a situação do homem influenciado pelo cristianismo pode ser ainda mais desesperadora do que a dos existencialistas. Tem ele uma convicção profunda da sua própria responsabilidade pelo que está acontecendo; é, porém, importante para mudar a situação, e todos os seus esforços neste sentido só fazem aumentar o seu desespero. Pode procurar vencer sua alienação de Deus e do universo, mas os poderes do mundo continuam hostis às suas ambições, e seus esforços de se aproximar do Deus de santidade e justiça aumentam ainda o seu senso de culpa. Pode lutar tremendamente para criar comunidade com seu próximo, para descobrir logo que os resultados são muito diferentes dos que ele esperava. E, com relação à sua insegurança íntima, pode tentar dominar seus sentimentos e temores; isso, porém, só contribui para tornar maior sua crise interna.Tudo isso é inevitável – a não ser que haja uma saída que o homem desconhece; uma possibilidade que vá além das possibilidades humanas; uma obra de redenção que venha de fora, mudando radicalmente a situação em que o homem se encontra preso. Existirá, para o homem de hoje, esta possibilidade? Aqui precisamos ter muito cuidado. Quando em desespero, o homem pode facilmente entregar-se a qualquer Messias – para descobrir depois que as suas promessas eram falsas, ficando ainda mais desiludido. Tem sido extraordinária a capacidade que o homem tem revelado através dos séculos em criar mitos e deuses que o salvem, e o fracasso desses ídolos tem produzido tragédias horríveis. Igualmente impressionante é a facilidade com que o homem do século XX se tem deixado levar, sem raciocínio, por líderes religiosos e políticos que conseguem impressioná-lo com suas promessas, descobrindo depois que tudo foi em vão. Tantas pessoas de nossa época já passaram por esta experiência, que muitas delas já perderam todas as ilusões e não querem submeter-se de novo ao mesmo processo. Existirá, acaso, alguma saída para nossa ocorrência de alienação que seja realmente saída, uma nova possibilidade de vida para o homem e para o mundo, e não mais uma ilusão apenas? Esta é a questão que nos há de preocupar neste breve estudo.

IIJESUS CRISTO E A NOSSA SITUAÇÃOIIJESUS CRISTO E A NOSSA SITUAÇÃOAntes de nos entregarmos ao desespero dos existencialistas diante da crise do homem moderno, desvemos examinar com certo cuidado outra alternativa que se apresenta. Alternativa esta que nós não inventamos, que não se constitui em mais um mito fabricado no esforço louco de sairmos da situação difícil em que nos encontramos, mas que, pelo contrário, tem transformado o pensamento e a vida de muitas pessoas em situações semelhantes no passado e está fazendo a mesma coisa hoje. Se queremos apresentar esta possibilidade, temos de fazê-lo em termos de testemunho pessoal de uma realidade que nos tem dominado. Sentimos que estamos sendo levados por um caminho que nós não escolhemos por gosto, caminho que leva a direção muito diferente daquela que antes conhecíamos, mas no qual já começamos a antever nova possibilidade de vida humana, quaisquer que sejam as limitações da nossa experiência até agora.Nossa participação nesta nova realidade começa com certa pessoa que apareceu na história do mundo, e em nossa história também – Jesus Cristo – de quem não conseguimos escapar. É interessante pensar que esse Jesus tem constituído problema para todos os homens que o levaram a sério e tem exercido estranha influência até sobre pessoas que não puderam acreditar nEle. Um dos exemplos mais extraordinários desta

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influencia é Albert Schweitzer, que, embora não podendo aceitar tudo o que a Bíblia ensina acerca dEle como Filho de Deus, todavia foi levado, pelo poder de Sua Pessoa, a abandonar carreira, posição e conforto na Europa, para dar sua vida pelos homens explorados e necessitados da África.Esta estranha influência de Jesus sobre nós se deve, pelo menos em parte, ao fato de que a pessoa e a vida dEle parecem ter relevância muito especial para a situação do homem em cada nova crise em que se encontra. Através dos séculos, cada vez que o homem, consciente da sua condição, olha para a figura de Cristo, vê nEle alguém que passou pela mesma experiência, porém que precisamente através dela lhe pode mostrar nova possibilidade de vida. E quando nós hoje, em nosso estado de total alienação, olhamos para Jesus, a mesma coisa acontece.Eis aqui o homem que, vivendo há 2000 atrás, experimentou, de forma impressionante, toda a intensidade desta alienação que hoje sentimos – e saiu vitorioso. Jesus conhece toda a precariedade da situação humana, que nós acabamos de analisar – total insegurança, fracasso completo na vida e no trabalho, pobreza, oposição e conflito, sofrimento e morte na mocidade. Parece que todas as forças do universo se uniram contra Ele para destruí-lo, e todas as explicações simplistas do significado do que aconteceu em sua vida já foram completamente desacreditadas. O prof. Tillich captou e expressou muito bem isto quando disse:

“É notável até que ponto a visão que a Bíblia nos dá de Jesus como o Cristo enfatiza sua finitude. Como ser finito, ele está sujeito a tudo que se “intromete” em sua existência. Precisa morrer, e sofre toda a ansiedade de ter de morrer. Esta ansiedade é descrita pelos evangelistas de modo terrível. Não é aliviada nem pela expectativa da ressurreição depois de três dias... Como todo homem, sente a ameaça da vitória do não-ser sobre o ser, por exemplo na limitação do tempo de vida que lhe é dado. Como todos os seres finitos, sente a falta de um lugar definido. Desde o nascimento, parece estranho e avulso no mundo. Sofre insegurança física, social e mental; está sujeito às necessidades; é expulso de sua nação. Com relação às outras pessoas, sua finitude se manifesta em sua solidão, tanto no que diz respeito às massas, como no que concerne a seus parentes e discípulos. Luta para fazê-los compreender, sem que durante a vida o consiga. Seu desejo de solidão, freqüentemente expresso, mostra que muitas horas de sua vida diária eram cheias das diversas preocupações finitas, que o encontro com o mundo produz. Ao mesmo tempo, é profundamente atingido pela miséria das massas e de cada pessoa que se volta para ele. Aceita-os, muito embora haja de ser rejeitado por eles. Sofre todas as tensões resultantes do enclausuramento das pessoas finitas, e aprova a impossibilidade de se penetrar no âmago de outra pessoa.Com relação à realidade como tal, incluindo coisas e pessoas, está sujeito à incerteza de julgamento, risco de erro, limite de poder, todas as vicissitudes da vida.”(Systematic Theology, Vol II, p. 131)

A coisa extraordinária, porém, é que Ele vive e sente profundamente todo esse estado de alienação sem ficar desesperado ou vencido. Pelo contrário, sua vida em meio a todas estas forças que procuram destruí-lo é exemplo notável de vitória. Nele temos o homem que vive em paz dom Deus, e, portanto, com as forças do universo, consigo mesmo e com o seu próximo. Ele aceita todas as limitações impostas pela vida humana – inclusive a insegurança, o fracasso, o sofrimento e a morte – não como tragédias absurdas, mas como acontecimentos relacionados de alguma sorte com a vontade de Deus, e, desta maneira transformados. Ele vive toda a precariedade da vida humana, e a aceita, colocando-a toda no contexto do Reino de Deus, fonte, fundamento e alvo da vida do homem. E quando todo o seu esforço de se relacionar com o próximo e servi-lo termina em fracasso e perseguição, Ele, em vez de se desesperar e abandonar a luta, vê tudo isso como oportunidade de participar, com Deus, no seu amor pela humanidade. Olhando

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para a vida de Jesus a partir de nossa situação desesperadora de alienação, temos de chegar a duas conclusões: 1) Ele conheceu e viveu esta nossa condição muito mais intensa e profundamente do que nós; 2) Ele encarnou a realidade da reconciliação de maneira tal que, até hoje, a sua vida constitui o exemplo ímpar do que todos nós estamos procurando.Mas o fato mais impressionante da vida de Jesus não é este. Se ele fosse apenas exemplo, embora extraordinário, do que nós queremos ser, sem nunca o conseguir, poderíamos ser levados a sentir ainda mais a tragédia da nossa condição. Se olharmos, porém, com cuidado, para a figura de Cristo, descobriremos que este personagem singelo tem outro conceito muito diferente do que a Sua própria vida significa. Ele se considera como o instrumento através do qual esta nova vida de reconciliação se torna realidade no mundo inteiro e se coloca ao dispor de toda a humanidade. O Jesus que aparece nas páginas dos Evangelhos está convencido de que a Sua vida constitui o evento central num grande drama divino em que Deus está agindo a favor do homem, e insiste em que, com a Sua vinda ao mundo, esta ação atinge o seu clímax. Ele foi enviado de Deus e por Deus para compartilhar totalmente o estado de alienação do homem, quebrando, com sua morte e ressurreição, o poder dessa alienação.É neste ponto que se torna central a pergunta: Quem é Jesus Cristo? A resposta que dermos determinará toda a direção de nossa vida. Muitas vezes, esse Jesus nos atrai por causa dos seus ensinos, ou por sua vida, que nos impressionam sempre profundamente. Mas logo descobrimos que esta Pessoa está convencida de que é o Filho de Deus, que Ele é “O caminho, a verdade e a vida”, que nEle Deus está agindo para reconciliar o homem consigo mesmo e os homens entre si. Perante esta Pessoa, encontramo-nos numa encruzilhada: ou temos de concluir que Ele é homem esquisito, com mania de grandeza, ou é realmente o que diz ser. Neste último caso, somos chamados a tomar decisão diante Dele, reconhecer nEle a única fonte de vida, fazer o que Tomé fez quando o reconheceu o Cristo ressurreto, e, caindo de joelhos, exclamou: “Senhor meu e Deus meu”.Insisto nesta tomada de posição em face da pessoa de Cristo porque, nos meus contatos com estudantes cristãos em diferentes partes do mundo, tenho ficado impressionado como o número dos que se converteram ao enfrentar este dilema. Lembro-me muito bem da minha própria experiência neste sentido. Depois de estudar sociologia durante vários anos com professores humanistas, a fraca orientação religiosa que recebi quando criança na Escola Dominical cedeu facilmente lugar à orientação mais “esclarecida” dos meus professores. Abandonei todo o interesse pelas grandes realidades do Evangelho, mantendo ao mesmo tempo profundo respeito pela pessoa de Jesus, especialmente por causa dos seus belos ensinos e do idealismo de sua vida. Foi então que, em Princeton, fui assistir a algumas aulas que o Professor Brunner estava dando no Seminário. Tive um tremendo choque quando Brunner me mostrou que esse belo quadro de Jesus, como simples homem que andava pela Palestina fazendo o bem, existia só na minha mente, sem nenhuma base histórica. O único Jesus de que existe conhecimento histórico, é aquele estava convencido de que era o Messias, Filho de Deus, enviado por Seu Pai como Salvador do mundo: O Cristo que ressuscitou e está presente no mundo. Perante este fato – e esta Pessoa – minha situação mudou completamente. Em vez de ficar admirando a beleza de certa vida e seus ensinos, vi-me confrontado por Alguém, que me forçava a uma tomada de posição. Tive de decidir se realmente acreditava no que Ele dizia de si mesmo ou não, e esta decisão determinaria necessariamente todo o rumo de minha vida.Depois de compreendermos a Pessoa de Jesus nestes termos, estaremos preparados para examinar o ponto central de sua mensagem – o Reino de Deus. Durante séculos o

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povo judaico, espalhado pelo mundo, sem terra, sem vida nacional, perseguido e explorado, alimentou grande esperança: a de que, em algum momento de sua história, Deus interviria, vencendo seus inimigos, reunindo o povo e estabelecendo nova ordem de vida individual e nacional. Neste contexto de esperança messiânica, jesus apareceu e começou Seu ministério, pregando: “O Reino de Deus é chegado”. Afirmava Ele assim que nEle estava acontecendo o que os judeus aguardavam há tanto tempo e tão ansiosamente. As profecias do Antigo Testamento estavam cumpridas. O Reino era vindo. Os judeus, porém, não ficaram satisfeitos, porque continuavam povo fraco e disperso, sob domínio dos romanos. Mas Cristo proclamava que, com Ele, Deus inaugurara a nova ordem de vida no mundo. Esta vida, que Ele encarnava, tornar-se-ia realidade para todos os que viessem a entrar no Reino de que Ele é o Chefe supremo.Temos ouvido falar muito do Reino de Deus, sem sentir talvez tudo o que esta frase quer dizer. O que é mais importante para a compreensão do seu significado é lembrar que um reino é uma estrutura total de vida individual e social. No tempo de Jesus, os reinos, como os governos totalitários de épocas mais recentes, constituíam um tipo de organização política que dominava todas as esferas da vida humana. O poder imperial criava certa atmosfera que pesava sobre todos os cidadãos, que influía sobre todos os seus pensamentos e ações e orientava todos os aspectos de sua existência. Qualquer pessoa que tenha vivido, durante algum tempo, sob uma ditadura, poderá compreender o que isto significa. Como em 1984, de Orwell, o espírito do Grande Irmão paira sobre tudo e sobre todos, o poder opressivo do reino se manifesta em todos os aspectos da vida, e não existe lugar algum onde o homem possa libertar-se desta influência.O ensino de Jesus acerca do Reino pressupõe esta compreensão de sua natureza. Cristo anunciou, pelas Suas palavras e pelos Seus atos, a queda do reino de Satanás e a derrota de todos os poderes que destroem a vida o homem. “Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres anuncia-se-lhes o evangelho” (Lucas 8.22). e nesta esfera, aberta agora pela derrota de todos os poderes hostis, o poder de Deus está abrindo nova ordem de coisas. O Reino de Deus foi estabelecido, dando nova estrutura a todos os aspectos da vida do homem, e a todas as suas relações dentro da sociedade. A pregação do Evangelho, no poder do Espírito, abre os olhos ao homem para ver que é escravo de um poder já derrotado, oferecendo-lhe a possibilidade de entrar em o novo Reino, onde Deus dá nova ordem à sua existência. Como esta nova ordem é a obra do Deus que criou o mundo todo e está agindo para a sua redenção, o Reino é como o grão de mostarda que produz uma árvore que vai sempre crescendo. O Reino vai penetrando em todos os lugares e em todas as esferas da vida humana, até chegar aos confins da terra. É isto que faz de Jesus Cristo e figura central do mundo, aquele que determina o destino eterno de cada homem e de cada sociedade. Aquele que primeiro nos impressionou como exemplo ímpar da vida de reconciliação com Deus, consigo mesmo e com o próximo, torna-se agora o portador e instrumento dessa reconciliação. Aquele que estabeleceu o Seu Reino convida-nos a cada um de nós, e ao mundo inteiro, a nos incorporarmos nele.O que é mais surpreendente ainda é que o Novo Testamento é unânime na apresentação desta concepção do Reino de Deus, mas todas as figuras usadas procuram comunicar o fato de que Deus já criou, no mundo, a nova ordem total de vida, e os homens são convidados a participar dela. O que é assim demonstrado nos Evangelhos é mais claramente expresso nas Epístolas: Jesus Cristo é a fonte desta nova vida porque se identificou conosco, a ponto de nos dar o que Ele tem. Vemos nossa fraqueza, insegurança, medo e ansiedade; somos vítimas das forças de desintegração que atingem nossa vida. Olhamos para Jesus e vemos nEle tudo que nos falta. Segundo o Novo Testamento, a relação que Cristo estabeleceu conosco eternamente é tal que tudo isso

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que vemos em Sua vida se torna nosso; podemos, portanto, viver diariamente a vida de reconciliação que se tornou visível na pessoa de Jesus, morrendo com Cristo a todo momento. O Reino de Deus é esta nova estrutura em que Cristo, como o cabeça, dá a Sua vida ao homem e ao mundo.Em Cristo, esta nova vida tomou forma, tornou-se visível nas Suas palavras, nos Seus atos e na Sua personalidade. Da mesma sorte, a vida que Cristo nos dá no Seu Reino consiste em nova relação do homem com Deus e com o seu próximo, que precisa tomar forma visível neste mundo, numa comunidade de pessoas que expressem esta nova realidade através de todos os seus atos, atitudes e relações. É com a evolução desta forma na comunidade cristã que os escritores do Novo Testamento se preocupam, chegando o Apóstolo Paulo ao ponto de dizer: “Meus filhos, por quem de novo sofro as dores de parto até ser Cristo formado em vós”. (Gál. 4.19).Nenhum outro escritor bíblico dá tanta atenção a este assunto como São Paulo, especialmente na Epístola aos Efésios. O tema central desta carta é O Corpo de Cristo. Esta é a figura que ele usa para interpretar a nova ordem de existência criada pela vida, morte e ressurreição de Cristo. Esta nova vida se expressa através de novo organismo, em que já o homem se encontra em nova relação com Cristo e com o próximo. A formação deste corpo não é resultado do esforço humano, porque exprime algo que o homem é totalmente incapaz de realizar. É antes a obra de Deus que muda completamente a situação humana e cria a nova realidade em que o homem é convidado a participar. Incorporado nesta estrutura de vida divina, o homem vai crescendo até a “estatura da plenitude de Cristo”. Este processo de edificação do Corpo de Cristo é expresso por Paulo da seguinte maneira:

“E ele mesmo (Cristo) concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos levados como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor.” (4.11-16)

Nestes termos, ser cristão não significa apenas ter certas idéias teológicas ortodoxas, nem apenas seguir certas regras de moral ou ter experiência religiosa especial. Todas estas coisas são aspectos de uma realidade total – a nossa incorporação em a nova ordem de vida divina – vida em Cristo que Deus Criou. Tornarmo-nos crentes significa ser incluídos, pelo batismo, no Corpo de Cristo, e, já dentro dessa nova estrutura, descobrir como apropriar para nós todos os aspectos dessa realidade.O Evangelho surgiu no tempo da desintegração do Império Romano, em que o homem passava pela mesma crise de alienação que nós conhecemos hoje. Os cristãos eram também filhos de sua época, pessoas que conheciam todos os problemas e dilemas da vida, e que, todavia, foram apreendidos por esta vida divina que o Evangelho lhes ofereceu. Dentro desta nova realidade, puderam compreender que a vida de alienação que eles tão bem conheciam já pertencia ao passado, fora substituída pela nova ordem do Reino de Deus, em que já estavam vivendo. Participando dela, descobriram a vitória em face dos problemas que antes os angustiavam, e um poder que foi transformando todos os aspectos de sua vida pessoas e comunitária, dando a tudo novo significado e valor.A missão da Igreja Primitiva tinha à base este fato. Os homens que tinham sido

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incorporados neste novo organismo, e que lhe tinham recebido os benefícios, tornavam-se agora evangelistas, convidando a todos os homens a aceitar este mesmo dom e a viver a realidade do Reino. A experiência dos cristãos era tão profunda e tal a atração da nova forma de vida que eles pregavam, que esta nova religião, embora perseguida com todo o poder do Império Romano, conquistou esse mesmo Império.A época em que estamos vivendo hoje é muito parecida, como o é também o processo de desintegração da vida humana que vimos analisando. O Evangelho de Cristo é o mesmo, porque proclama a existência desta nova estrutura de vida divina em nosso meio.Nossa tarefa é a de compreender e fazer cada vez mais real nossa incorporação nesse Reino, encontrando nele base para uma vida missionária dinâmica.

IIA NOVA ORDEM DE RELAÇÕES COM DEUS

IIA NOVA ORDEM DE RELAÇÕES COM DEUSAtravés de Jesus Cristo, Deus criou e desenvolve no mundo nova ordem para vida do homem – para a sua vida particular e comunitária. Nas palavras de Jesus, esta nova ordem é chamada O Reino de Deus; para Paulo, o Corpo de Cristo. A preocupação central do cristão quando percebe que Cristo o incorporou nessa ordem de vida, é descobrir a forma que esta vida “em Cristo” deve tomar em todos os aspectos de sua existência como homem que vive no mundo. O resto deste estudo procura definir isso, analisando os quatro pontos seguintes:

1. A relação do homem com Deus e com o universo.2. O perdão e a justificação3. A relação com o próximo na vida comunitária.4. A participação na obra de Deus no mundo.

Para facilitar o exame destes pontos, teremos de estudar cada um em separado. Devemos lembrar-, porém, que estamos falando de quatro aspectos da vida de um Reino; cada elemento tem, portanto, significação e somente pode ser entendido em relação íntima com os outros três. São os quatro elementos juntos que formam a estrutura da vida do crente e da vida comunitária na Igreja. Em unidade viva constituem a forma do Corpo de Cristo, através do qual Ele se torna visível no mundo.

Comecemos com o primeiro – a nova ordem de relações do homem com Deus e com o universo, oferecida pelo Evangelho. Se é correta a análise que antes fizemos do homem contemporâneo, temos aqui o nosso problema principal. A situação do homem no universo sempre foi precária. Ele é tão pequeno; encontra-se num mundo tão grande, que não lhe revela facilmente os seus segredos, povoado de forças que ameaçam destruí-lo. Para o homem primitivo, a causa principal de preocupação eram as forças da natureza. Durante os seus dias, o homem viva exposto a doença e fome, tempestades, enchentes e acidentes. A natureza era a sua grande inimiga, que acabava sempre ganhando a batalha. Nestas circunstâncias, seu grande afã era achar maneira de controlar essas forças hostis, ou pelo menos de viver em paz com elas. Para as religiões antigas, todas as forças da natureza eram deuses, que o homem procurava controlar através de ritos, cerimônias, e, em muitos casos, de artes mágicas.Hoje, embora tenha menos medo da natureza, o homem enfrenta o mesmo problema, porque de novo está à mercê de terríveis poderes incompreensíveis e aparentemente implacáveis. São estas forças que o próprio homem criou: a técnica e sua filha mais

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velha, a máquina; a sociedade, que se agita em meio às rápidas transformações sociais; grandes concentrações de poder em movimentos econômicos e políticos. Especialmente o homem que vivem sem raízes nos grandes centros industriais do mundo moderno sente toda a angústia de sua alienação. A máquina industrial parece indiferente ao indivíduo e às suas necessidades e problemas. Rouba-lhe ao trabalho a significação que outrora tinha, tira-lhe, e à família toda, a segurança econômica, larga-o na massa anônima da grande cidade onde vive completamente à mercê de forças econômicas incontroláveis. Esta nova ameaça, aliada ao medo tradicional em face da natureza que nunca desapareceu, e mais o problema perene da morte, deixam o homem moderno totalmente insegura e frustrado, sem nenhuma possibilidade de se sentir “em casa” no mundo em que tem de viver.Esta crise se expressa de modos diversos. Entre muitos jovens e universitários, toma a forma de preocupação intensa com coisas materiais, da fuga através das diversões, ou do desespero que se encarna em movimentos como “Os desagregados”, cujo lema é: “Somos o erro derradeiro de um deus fracassado”. Entre as massas das grandes cidades industriais, toma a forma de um novo interesse por certas religiões esotéricas como umbanda e outras formas de baixo espiritismo, em que um povo tradicionalmente supersticioso se refugia num retorno às práticas mágicas das religiões mais primitivas.Nestas circunstâncias, temos de enfrentar os problemas religiosos mais elementares: existe um Deus que dirige os destinos do mundo? Em Ele algum propósito para a vida do homem? Tem algum sentido a história e os acontecimentos do mundo moderno? Existe algum poder no universo que esteja operando em favor do homem e que garanta o futuro da humanidade neste planeta? Há algum poder que torne possível a vitória do homem sobre todas as forças que lhe ameaçam a existência?Procurando responder a estas perguntas na situação contemporânea, o cristianismo descobre que sua tarefa é mais difícil do que em épocas anteriores. No passado, quase todo o mundo estava disposto a admitira a existência de um Deus que controlava todos os processos da natureza e da história, e que agia e a favor do homem. O problema da alienação consistia no fato de o homem ter-se afastado desses Deus e sentir toda a angústia que isso provocava. Agostinho deu expressão clássica a esta condição nas famosas palavras: “Vós nos criastes para Vós, e o nosso coração está inquieto até descansar em Vós”. A pressuposição desta situação já ultrapassada tem sido a base de quase toda a nossa pregação e de nossa obra missionária. Procuramos levar o homem que já aceita a existência do Deus de amor a se entregar a esse Deus, e servi-lo.Hoje, porém, para muita gente, o problema é muito outro. Algumas das pessoas mais sinceras e genuínas, que sentem mais profundamente a angústia de nossa situação, não estão dispostas a admitir a existência de um Deus que se preocupe com o homem. Ou Ele não existe (“Deus está morto”) ou Ele não nos permite saber coisa alguma dos mistérios de Sua ação no mundo (“O silêncio de Deus”). Se Deus existe, Ele nada tem a ver conosco, e assim continuamos num mundo hostil, sem nenhuma esperança.O resultado de tudo isto é o estranho paradoxo em que se vê o homem moderno. Não quer, muitas vezes, perder tempo com preocupações religiosas, achando que não adianta mesmo interessar-se por essas coisas. Por outro lado, ao mesmo que se considera mais emancipado nesse sentido, entrega-se com extraordinária facilidade a novos ídolos, cai presa de novas superstições. Assim, muitos dos que se declaram ateus não conseguem libertar-se duma preocupação constante com as coisas transcendentais. Um dos mais violentos desses pensadores escreveu recentemente uma peça teatral que começa com estas palavras: “Esta peça trata exclusivamente da relação entre o homem e Deus, ou, se quiser usar outros termos, da relação entre o homem e o Absoluto”.Qual é a posição do cristianismo em face desta atitude moderna? Não podemos negar a

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seriedade da crise de alienação em que o homem se encontra. Temos de reconhecer a sua situação precária no universo, a sua angústia perante as vicissitudes da vida e da morte, e todo o poder da técnica e suas conseqüências funestas.Para o cristianismo, porém, um pergunta precisa ser considerada com toda a seriedade: Como é que devemos interpretar esses fatos? Quando chegamos a este ponto, a fé cristã tem várias coisas a dizer:1. Nunca devemos esquecer que esta alienação do homem moderno é conseqüência, em parte, do seu pecado. Deus revela sua presença e sua preocupação pelo homem em a natureza, na história e nas experiências de nossas vidas, mas nós não conseguimos enxergar corretamente o que Ele está fazendo. Muitas das coisas que acontecem no mundo e na história são realmente absurdas, precisamente porque resultam da ação do homem que, sendo pecador, cria e desencadeia terríveis forças de destruição. O homem é criatura finita; seu senso de alienação vem do fato de ele não estar disposto a aceitar esta condição, reconhecimento que sua vida tão precária está nas mãos de um Deus absolutamente fiel.2. Precisamos ter muito cuidado para não tomar nossa experiência, que se limita a um momento da história e a uma situação muito restrita, e sobre esta base tirar conclusões gerais acerca da realidade do universo e da vida. Estamos aprendendo hoje que são muito limitadas todas as perspectivas de que nos valemos. A mesma realidade, olhada de diferentes pontos de vista, pode parecer muito diferente a diversas pessoas; além disso, de um dia para outro, de acordo com nossas experiências, nossa visão da realidade pode mudar-se. Podemos estar convencidos da falta de significação na vida e na história, mas não devemos falar dogmaticamente sobre a natureza do universo e da história.3. A palavra principal do cristianismo, porém, vai muito além destas advertências. Sabemos que nosso estado de alienação no mundo moderno não é a última palavra, porque fomos apreendidos por Jesus Cristo, e nEle encontramos outra visão do mundo e da história. Aceitamos esta nova visão pela fé, e vemos que ela se vai firmando em nossa experiência, convencendo-nos de sua autenticidade. O Apóstolo Paulo expressou, nestas palavras, a nova visão do mundo, da história e da vida:

Jesus Cristo é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois nEle foram criadas todas as cousas, nos céus e sobre terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dEle e para Ele. E Ele é cabeça do Corpo, da Igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as cousas ter a primazia, porque aprouve a Deus que nEle residisse toda a plenitude, e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dEle reconciliasse consigo mesmo todas as cousas, quer sobre a terra quer nos céus.” (Col. 1.15, 16, 18-20)

Para Paulo, que também vivem em situação de alienação, a última palavra acerca do universo é que tudo neste mundo foi criado, e é hoje sustentado e dirigido atravavés de Jesus Cristo; isto é, que tudo está nas mãos do Deus que, em Cristo, se revela como Amor, disposto a dar de si mesmo ao homem. Estamos tão acostumados a falar nestes termos que não sentimos mais o caráter revolucionário desta afirmação, não compreendendo que foi precisamente esta visão do universo que libertou os cristãos daquela época de todas as forças que os escravizavam, dando-lhes nova base de pensamento e de ação no mundo.O pastor Gollwitzer, que passou cinco anos num acampamento de trabalhos forçados na Rússia, conta certa experiência que teve nele quando chamado a atender a um moço que estava morrendo de tuberculose. Encontrou o moço completamente desesperado e

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revoltado, dizendo: “Estou morrendo aqui e ninguém se preocupa comigo. Sou apenas um número numa ficha”. O pastor Gollwitzer respondeu: “Há uma pessoa que se preocupa com você – Deus”. O moço disse imediatamente: “Que absurdo! O grande Senhor deste enorme universo nada tem que ver com minha situação angustiosa aqui”. Então Gollwitzer lhe perguntou: “E se esse Deus se preocupasse com você, que é que isso significaria?”. O moço replicou: “Significaria que, além de minha mãe, haveria mais alguém para quem eu sou imporante”. Gollwitzer então lhe disse: “Você acaba de expressar a grande verdade do Evangelho. Esse grande Deus do universo dá tanta importância a você como Ele dá a si mesmo. É isso o significado da cruz de Cristo”.Assim como esta visão da realidade libertou, no passado, o homem do domínio das forças da natureza e do destino, também hoje nos oferece ela a mesma possibilidade de libertação do medo, da frustração e da insegurança perante as forças da técnica e os outros poderes que nos ameaçam. Se Jesus Cristo foi o agente da criação deste mundo, se Ele o sustenta e lhe dirige a evolução de acordo com o Seu plano eterno para a redenção do homem, podemos então viver neste mundo com calma, participar nas diversas responsabilidades que temos, e descobrir significação e valor em todos os esforços.No texto citado, São Paulo vai ainda mais longe, afirmando que o mesmo Cristo que é o Senhor do universo é também a cabeça da Igreja, que é o Seu Corpo. A fé em Cristo não nos dá apenas visão diferente da nossa posição no universo. Por ela descobrimos que, neste mundo em que vivemos, Deus criou nova ordem de vida em que já estamos incorporados e em que todos os benefícios de Cristo passam a nos pertencer. É, portanto, dentro desta nova estrutura que compreendemos nossa verdadeira posição no mundo.Em Efésios 2.11 a 22, encontramos a seguinte descrição do estado de alienação do homem e da nova estrutura em que ele se encontra em Cristo:

“Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis gentios na carne, sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos aos concertos da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora em Cristo Jesus, vós que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. Porque Ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz... Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; edificados sobre o fundamente dos apóstolos e dos profestas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina; no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor, no qual, também vós juntamente sois edificados para morada de Deus em Espírito”.

Nesta nova estrutura de vida em Cristo, há três grandes realidades que determinam a nossa vida: 1) podemos conhecer a verdade acerca da vida e do universo; 2) temos a experiência de viver em comunhão com Cristo; e 3) encontramos segurança e significação para a nossa vida finita e precária.1º) A fé cristã se fundamenta na revelação de Deus. Revelar significa tirar i véu de alguma coisa que antes estava escondida. Em Cristo, Deus se revela; Deus nos mostra o que Ele é, o que Ele está fazendo no mundo, e, portanto, o que significa a vida do homem e do mundo. Por esta razão os Evangelhos falam tanto de Cristo como Verdade e como Luz. Por esta razão, tudo na Igreja Cristã gira em torno da Palavra de Deus. Em face da situação humana do nosso tempo, não temos como cristãos nenhuma teoria ou filosofia para explicar o que está acontecendo. Não temos idéias interessantes a expor sobre a situação. Toda a vida e proclamação da Igreja descansam em sua fé no Deus que se revela, e em cuja revelação encontramos a Verdade acerca de Deus, do mundo, do homem e da vida.Agora, esta revelação de Deus possui caráter todo especial. Não se trata simplesmente de uma doutrina ou dogma, de um sistema intelectual para explicar alguma coisa. Na fé

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cristã a pessoa de Jesus Cristo é a Verdade, a suprema revelação de Deus. Isto é, a revelação de Deus é a manifestação de Sua presença, agindo no mundo. Esta presença e ação de Deus constituem a realidade suprema, que determina toda a história do mundo e toda a existência do homem. Conhecer a Verdade da revelação significa, portanto, entender esta ação de Deus em favor do homem, e, desta maneira, receber de Deus a chave para entender o que está acontecendo no mundo na minha vida em cada momento. O amor de Deus e seu plano eterno para a redenção da humanidade nos permitem entender o que somos, o que somos chamados a fazer, e nos fornecem nova perspectiva divina na qual poderemos ver todos os acontecimentos de outro ponto de vista. Temos problemas pessoas, mas essas problemas não destroem a nossa vida. Pelo contrário, compreendemos que, através deles, Deus nos oferece novas possibilidades de vida. Vivemos inseguros e ameaçados, porém compreendemos o que somos à luz do propósito de Deus para o qual fomos criados e que indica o nosso destino eterno. Em cada problema que enfrentamos dentro das estruturas de nossa sociedade moderno, podemos ver sempre esta mesma presença de Deus, que a cada passo abre novas possibilidades. Até os grandes eventos do nosso tempo, que parecem tão terríveis e ameaçadores, podem ser vistos nesta perspectiva.Para a pessoa que vive pela fé – isto é, que aceita esta revelação divina acerca da vida e do universo como base de todos os seus pensamentos e atos – a vida diária se torna experiência tremendamente interessante. Se a revelação divina é a revelação precisamente do que está acontecendo no mundo e na vida, então o crente é a pessoa que procura viver de acordo com esta realidade, encontrando diariamente confirmações extraordinárias e inesperadas da verdade que orienta a sua vida. Daí decorre também que o esforço intelectual do cristão tenha fundamento inabalável porque se baseia no que Deus está fazendo entre nós. Por este motivo o pensamento cristão tem novas possibilidades de compreensão da realidade, exatamente quando se esgotam as possibilidades filosóficas humanas. Quando o pensamento humano chega ao que parece ser um beco sem saída, a Palavra de Deus indica novos rumos ao que crê. É interessante notar que através da história do mundo ocidental, isso tem acontecido repetidas vezes, dando novos impulsos à filosofia e introduzindo idéias novas e revolucionárias no pensamento e na vida da civilização. Agora, o caráter especial da revelação determina também a natureza do conhecimento. Geralmente, pensamos em conhecimento como um ato racional, pelo qual conseguimos dominar intelectualmente uma coisa antes desconhecida. Mas, no cristianismo, conhecer é coisa bem diferente. Conhecer a Verdade de Deus presente em Cristo significa amar a Pessoa de Cristo e responder à Verdade que Ele encarna, acompanhando-o em Sua Obra no mundo. Crio que foi isso que levou Jesus a dizer aos homens que discutiam com Ele no templo: “Se alguém quiser fazer a vontade de Deus, conhecerá a respeito da doutrina se ela é de Deus ou se eu falo por mim mesmo”.2º) Nossa participação no corpo de Cristo nos oferece experiência da presença real de Cristo nossas vidas. Sobre isso Paulo fala repetidas vezes na epístola aos Efésios: “Que Cristo habite em vossos corações”, “Que conheçais o amor de Cristo”, “Sejais tomados de toda a plenitude de Deus”. Não existe aqui sombra de dúvida. Para São Paulo, esta experiência constitui o centro da vida. Mas tem caráter especial. E vida “em Cristo”, no “ Corpo de Cristo”, é a realização do que já temos dentro da nova estrutura de vida que Cristo criou e na qual fomos incorporados. Este é o grande mistério de que Paulo fala, “a saber, que os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho” (Efésios 3.6). “Fomos predestinados para adoção de filhos” (Ef. 1.5), “escolhidos antes da fundação do mundo” (Ef. 1.4). Já Cristo nos deu vida, já ressuscitamos com Cristo. O Evangelho não diz que o homem

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pode fazer alguma coisa para ganhar o favor de Deus; afirma antes que Deus já fez tudo por nós. Nós nos encontramos já dentro da nova ordem que Cristo estabeleceu. Fomos reconciliados com Ele; nossa responsabilidade é de abrir os olhos e ver o que realmente está acontecendo em nosso meio e receber o que Cristo já colocou ao nosso dispor.Tudo isso tem tremendas conseqüências para a nossa vida espiritual e a nossa experiência religiosa. O fato de nós nos encontrarmos dentro da nova estrutura de vida, como membros do Corpo de Cristo, significa que não temos de buscar ansiosamente a Deus, porque Ele já nos buscou. Não precisamos procurar chegar até Deus através de disciplinas, de mortificações, etc., porque Deus já veio a nós. Nós não podemos fazer nada par convencer a Deus de que nos deve salvar, mas Ele mesmo já agiu para nos dar tudo o de que precisamos.É nestes termos que precisamos encarar o problema da experiência religiosa. É legítima a ênfase neste ponto de certos movimentos de avivamento, especialmente quando temos a tendência de nos despreocupar destas coisas. Mas esta ênfase pode facilmente tornar-se numa coisa perigosa, fazendo de nossa relação com Deus carga pesada ou motivo de insegurança, se insistimos em que o homem precisa fazer ou sentir alguma coisa para ter a certeza da presença real de Cristo em sua vida. Toda gente, em sua preocupação com a vida pessoa, tem de começar com esta grande afirmação de São Paulo: Deus já tomou a iniciativa para a nossa salvação e nós já nos encontramos dentro da esfera de sua graça. Podemos começar todas as nossas orações dizendo: “Ó Deus, não preciso sentir a tua presença, basta saber que Tu estás aqui”. Não precisamos jejuar e agonizar para receber o Espírito Santo em nossas vidas. O Espírito Santo já está presente, querendo agir em nosso meio. Basta reconhecer a Sua presença e responder à Sua iniciativa. Em todos os aspectos da nossa vida espiritual precisamos lembrar-nos sempre de que Deus nos colocou dentro da nova ordem de Seu Reino; nossa vida foi enxertada no Corpo de Cristo e sobre este fundamento podemos desenvolver vida dinâmica e segura.3º) Temos, nesta nova situação, base para vida segura e cheia de sentido em meio a todas as forças da natureza e da história que nos ameaçam, e podemos dizer com Paulo: “Todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que ama a Deus” (Romanos 8.28). “Em todas estas coisas somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou” (romanos 8.37). Jesus Cristo viveu esta vida de vitória e, como primogênito dentre os mortos, que venceu todos os poderes do mundo, Ele nos oferece esta mesma possibilidade. Somos membros do seu corpo, no qual a vitória de Jesus se torna em nossa vitória.Podemos aceitar a nossa condição e ficar livres para ver, em cada instante, novas possibilidades de vida. Podemos viver para Deus e para o seu Reino e deixar tudo nas suas mãos. Nem a doença, nem as limitações de nossa vida no mundo moderno, nem o fracasso, nem a morte podem vencer-nos, porque Cristo os venceu e nos oferece a mesma oportunidade. Mais do que isto, no meio de todas estas coisas, somos constantemente surpreendidos pela vida que Cristo nos oferece.Esta tem sido a experiência dos crentes através de vinte séculos, em todas as circunstância, e é ainda hoje em uma porta que Jesus abre diante de nós. Nestes dias recebi uma carta de certo amigo e colega, moço que foi missionário durante alguns anos na China e depois se dedicou ao trabalho do Movimento de Estudantes nos Estados Unidos. Agora, vítima do câncer, está num hospital, passando por sofrimentos horríveis, e sabendo que a qualquer momento chegará ao fim desta vida. Deixará esposa e quatro filhos pequenos, e um trabalho novo com estudantes, em que estava fazendo experiências sumamente interessantes e necessárias para descobrir como o Evangelho de Cristo pode tornar-se realidade na vida da nova geração. Faz poucos dias, escreveu ele uma carta para seus amigos e colegas mais íntimos, carta esta que é uma das

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afirmações mais extraordinárias que jamais vi desta realidade de que estamos falando. A carta começa assim: “Saudações no Espírito!... Como vocês sabem, sou vítima dos sofrimentos do câncer, que é do anticristo, porém abençoado nestes sofrimentos com novas dimensões de gozo em Deus, que é de Cristo”. Passa daí a contar dos seus sonhos e esforços para descobrir novas formas de vida mais dinâmica para a comunidade cristã. Fala depois da sua grande satisfação com o que nós outros estamos fazendo no mesmo sentido, criticando-nos porque tendemos a ser teóricos demais, porque não estamos orando bastante e nem pondo suficiente confiança em Deus. E termina a exposição do seu gozo e confiança no Senhor com estas palavras: “Eu os verei algum dia – neste ou no outro lado da cortina, que já perdeu para mim todo o seu terror. Mas nunca deixarei de orar por vocês. Com saudações para todos os membros da família, e em nome do nosso Chefe vitorioso, subscrevo-me...”.

Os meios de graçaPara terminar este estudo precisamos acrescentar uma palavra: Todos esses benefícios de Cristo se tornam visíveis para nós, e nos são oferecidos na comunidade cristã. “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou no meio deles”. Mais ainda, esses benefícios chegam até nós através de certas ordenanças que Deus mesmo estabeleceu como elementos essenciais da vida do Seu povo, e por meio dos quais Ele age de maneira especial. Por isso são chamados, na terminologia clássica do protestantismo, meios de graça. São eles principalmente a oração e o estudo da Bíblia, o culto e os sacramentos. Nestes quatro atos, encontramo-nos com a realidade objetiva da ação de Deus a nosso favor, compreendemos cada vez mais o que isto significa para nós e somos chamados a responder ao chamado divino que nos é comunicado. A vitalidade da Igreja e de nossa vida espiritual, em cada geração, depende da medida em que a Igreja torna reais estes atos e da seriedade com que deles participa o povo de Deus.

IVA NOVA ORDEM DE PERDÃO E JUSTIFICAÇÃO

IVA NOVA ORDEM DE PERDÃO E JUSTIFICAÇÃOComeçamos nosso estudo das grandes realidades da fé cristã, procurando relacionar o Evangelho com o mais angustiante problema do homem moderno – sua posição em face do universo que lhe parece indiferente, e no qual se sente tremendamente inseguro. Mostramos daí como o Evangelho é a Boa Nova de que este universo está nas mãos de Deus que ama o homem, e que já estabeleceu nova ordem de vida. Neste Reino o homem vive orientado pela revelação. Entra em comunhão com Deus, em quem os seus esforços têm significado e valor, e vive vitorioso sobre todas as coisas que ameaçam a sua existência. Dito isso, surge imediatamente um problema: começando com a situação do homem moderno, corremos o risco de dar impressão errada do Evangelho, por não chamarmos a atenção para um aspecto da relação entre o homem e Deus, que ocupa lugar central na Bíblia.Para os grandes homens, tanto do Antigo como do Novo Testamento, é terrível aproximar-se de Deus. Em vez de proporcionar paz e tranqüilidade, essa aproximação produz crise profunda no mais íntimo do ser. A raiz desta crise se encontra na experiência moral, que é comum a quase todos os homens. Sentimos que há sempre grande diferença entre o nosso ideal e o que nós somos; entre o que sabemos que devemos fazer e a nossa capacidade de fazê-lo. Esta tensão moral que todos conhecemos é muito maior na experiência dos homens da Bíblia, porque eles compreendem que foram criados por

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Deus, junto e santo, que exige do homem que siga o caminho da justiça e da santidade. E precisamente isso é o que o homem não é capaz de fazer. Quanto mais íntima a relação do homem com Deus, mais insuportável é sua situação. A experiência de Isaías no templo é típica diante da presença e da majestade de Deus, quando exclama: “Ai de mim, que vou perecendo, porque sou homem de lábios impuros e habito no meio de um podo de impuros lábios e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!” (Isaías 6.5).agora, o aspecto mais sério desta experiência é que ela aflige precisamente as pessoas mais honestas e mais sérias, especialmente aquelas que são sinceramente religiosas. O homem superficial, que olha para Deus e seu próximo com indiferença, pode passar boa parte de sua vida sem sofrer grandes perturbações de espírito. A mesma coisa não acontece com quem tenha senso de responsabilidade moral e espiritual. Para estes, existem só duas alternativas: o desespero ou o fanatismo.É exemplo clássico da primeira atitude o monge Martinho Lutero, no convento de Erfurt. Levado a pensar no seu destinos eterno quando um colega seu foi morto por um raio, Lutero entrou no convento e seguiu todas as disciplinas e regras que lhe deviam garantir a salvação. Mas, pessoa de espírito muito sensível, compreendeu que, a despeito de todos os seus esforços estava ainda longe do que Deus exigia dele. Era orgulhoso e egoísta; não conseguia amar nem a Deus nem ao próximo, e, quanto mais pensava em sua situação, mais convencido ficava de seu pecado. Lutero resolveu então fazer esforço ainda maior. Confessava e comungava todos os dias, jejuava constantemente; mortificava o seu corpo ao extremo; – e descobriu que nada disso alterava a sua verdadeira situação diante de Deus e do seu próximo. Tornou-se então presa do mais terrível desespero.Essa mesma experiência de Lutero se confirma diariamente, em menor grau, em nossas vidas. Queremos realmente fazer a vontade de Deus, mas parece que nunca o conseguimos. Desejamos ardentemente ter vida útil e fazer o bem ais nossos semelhantes, mas a cada momento nossos erros e falhas atrapalham os melhores planos, deixando-nos profundamente decepcionados com nós mesmos.Resta ainda a outra alternativa: o fanatismo. Fanático – tanto na vida moral como na religiosa – é aquele que, consciente ou inconscientemente, procura convencer-se de que é capaz de ganhar o favor de Deus e se justificar perante Ele. A expressão clássica deste tipo é o fariseu, o mais preocupado com a vida espiritual, o mais dedicado à obediência rígida da lei mora. Aos fariseus foi que Cristo chamou de hipócritas, condenando-os violentamente. Foram eles, e não os “publicanos e pecadores”, que mataram Jesus Cristo. Não é difícil descobrir a razão de tudo isto. Quando alguém se dedica à tarefa de se justificar perante Deus, torna-se necessariamente hipócrita; tem de se convencer de que é melhor do que realmente é, e lutar constantemente para preservar esta ilusão. De outro modo ficaria completamente inseguro e desesperado. Não pode nunca ser honesto consigo mesmo, e também não pode permitir que outra pessoa o critique ou indique as suas falhas. Para se convencer de que é bom, precisa considerar-se superior aos outros, o que o leva a condenar constantemente as falhas dos outros. São Paulo que, por experiência própria, conhecia esta mentalidade e suas funestas conseqüências, fala dela como do “Reino da Morte”. Esta tentativa de se justificar perante Deus cria toda uma atmosfera, que permeia por completo as nossas relações e atos, tanto na vida individual como na comunidade. É como um veneno que penetra em tudo e tudo destrói. Assim se manifesta esta frustração nas relações de sua vida. Por esta razão São Paulo termina sua extraordinária exposição do problema em Romanos 7 com estas palavras: “Desventurado homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (v. 24). Ficamos presos no corpo dessa morte, sem nenhuma saída.Sim, presos, sem nenhuma saída, até que Deus nos retire desse corpo e nos enxerte em outro; até que Ele destrua o poder do reino que nos domina e nos coloque em outro onde

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tudo é transformado. A mensagem central do Evangelho de Cristo, o que faz dele verdadeiramente “Boa Nova” sem paralelo em toda a história, é que Deus fez precisamente isso através da vida, morte e ressurreição do seu filho, Jesus Cristo. O Deus santo e justo ama. Este Deus aparece no mundo na pessoa de Cristo, que encarna a sua vontade de perdoar o homem. Ele é o pai do Filho Pródigo: constantemente perdoa o homem, libertando-o assim do pecado e do domínio do passado, para poder servi-lo em amor e alegria.Mas o Evangelho vai mais longe ainda. Este Deus que nos perdoa está disposto a tomar sobre si a nossa condição de pecadores; Cristo se identifica conosco, absorvendo em si esta nossa condição miserável. Ele dá a sua vida por nós, e desta maneira transfere para nós tudo que Ele é. Através da fé passamos a ser membros do corpo de Cristo, em que todos os seus benefícios passam a ser nossos. Numa das páginas mais extraordinárias de “A Liberdade Cristã” de Lutero, encontramos este parágrafo:

A fé não somente liga a alma intimamente à palavra de Deus, dotando-a de graça, liberdade e salvação, mas esta mesma fé também une a alma com Cristo, como a esposa se une ao seu esposo. De tal casamento resulta, segundo o apóstolo Paulo, que Cristo e a alma formam um só corpo, de tal maneira que tudo quanto ambos possuem – bens, felicidade, infelicidade, tudo, enfim – o possuem em comum. Isto é, o que pertence por direito a Cristo passa a ser também propriedade de Cristo. Agora, sendo Cristo dono de todo tipo de bens e de toda bem-aventurança, a alma se torna dona também de todos eles. Por sua vez, a alma não tem mais maldade e pecado, o que passa a ser possessão de Cristo. Aqui começa a gloriosa permuta e a feliz porfia. Cristo é Deus e homem, mas jamais cometeu pecado: a sua justiça é invencível, eterna e onipotente. Ao apropriar-se Cristo do pecado da alma crente em virtude da aliança de bodas, isto é, pela fé, é como se Cristo mesmo tivesse cometido o pecado: daí, que os pecados são absorvidos por Cristo e perecem nEle; não que não há pecado capaz de resistir à justiça invencível de Cristo. Deste modo a alma se vê limpa de todos os seus pecados, em virtude do penhor do casamento; a alma fica libertada pela fé e dotada da justiça eterna do seu Esposo, Jesus Cristo. Não é, porventura, negócio feliz este em que Jesus Cristo, o noivo rico, nobre e justo, se casa com uma insignificante meretriz, pobre, desprezível e má, tirando-a assim de todo mal e adornando-a com toda espécie de bens?

Deus toma a iniciativa de nos dar tudo isso. Mas esta iniciativa não acaba com a nossa responsabilidade. Somos justificados pela fé. Deus nos dá tudo, mas nós temos de aceitá-lo. Ter fé aqui significa precisamente isto: acreditar realmente que Deus fez tudo por nós, confiar inteiramente na promessa de Cristo, e nela fundamentar toda a nossa vida, todos os nossos atos.Podemos aqui de novo compreender o que temos reiterado neste livro: a ação de Deus a favor do homem nos coloca em nova ordem de realidade. Passamos, nas palavras de Paulo, do reino da morte para o reino da vida – nova situação total em que tudo foi transformado pela obra de Deus. Cristo já nos enxertou no Seu Corpo, de que Ele é a cabeça, da qual fluem todos os benefícios de Cristo, que alimentam e orientam a nossa existência. De igual modo como nossa escravidão relativamente ao pecado criava uma atmosfera que destruía tudo e envenena todos as nossas relações humanas, assim também a nossa vida no corpo de Cristo cria atmosfera radicalmente diferente, que em tudo penetra, transformando todas estas relações. Nos diversos pontos da existência, em que antes nos encontrávamos num beco sem saída, agora Cristo nos abre novas possibilidades de vida, dando-nos a liberdade de realizá-las.Esta transformação se opera, antes de tudo, em nossa relação com Deus. Já não precisamos procurar convencer a Deus de que somos bons. Pelo contrário, diante do sacrifício de Cristo por nós, e do Seu desejo de nos perdoar, tal esforço seria claramente ofensivo para com Deus. Agora, assombrados pela grandeza do amor de Deus por nós, só podemos receber o seu perdão e ficar eternamente agradecidos pelo que não nos é

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dado merecer. Assim acaba, para sempre, todo fanatismo, todo orgulho espiritual, e descobrimos o que significa andar humildemente perante o nosso Deus em todos os momentos da vida.Neste ponto, precisamos ver com toda a clareza o perigo de certo tipo de moralismo que às vezes penetra em nossas Igrejas. É como se tivéssemos recebido o perdão de Deus uma só vez, e daí em diante precisamos merecer o favor de Deus. Se pensarmos assim, seremos, de todos os homens, os mais miseráveis, porque a nossa consciência, despertada pelo conhecimento de Cristo – como senso muito mais vivo do que Deus exige de nós – nos levará muito mais rapidamente ao desespero. Teremos visão clara do que Deus quer de nós, mas a cada passo veremos que em todas as esferas da vida – na família, em nossas relações com os irmãos na Igreja e com os colegas no trabalho – estamos mui longe da norma que Cristo estabeleceu. Como São Paulo claramente indica no capítulo 7 de sua Epístola aos Romanos, a experiência de ser pecador, de não fazer o que sabemos que devemos fazer, continua a ser nossa até o fim da vida mortal. Mas o perdão e a justificação de Deus são realidade que experimentamos de novo todos os dias, realidade esta que é fonte de vida.Isto não implica de maneira alguma o descuido de nossa vida moral. Os judeus constantemente acusavam a Paulo de contribuir para isso, e muitas vezes s Igreja Católica condena também a doutrina da justificação pela fé, apanágio do protestantismo. Mas a experiência verdadeiramente evangélica é exatamente o contrário. É quando reconhecemos a grandeza do amor e do sacrifício de Cristo em nosso favor que temos motivação profunda e tremenda para a vida moral. Cristo fez tudo por nós, agora nós, tendo recebido tudo, temos uma só responsabilidade – a de mostrar a nossa gratidão, oferecendo nossas vidas em sacrifício vivo ao serviço de Deus e do próximo. É só assim que o serviço de Deus surge como alguma coisa espontânea, alegre, sem nenhum senso de obrigação ou dever.O escritor francês, Frederico Hoffet, escreveu, há alguns anos, um livro intitulado “O Imperialismo Protestante”, no qual procurou encontrar a causa fundamental do dinamismo que os povos protestantes da Europa revelaram durante vários séculos da história moderna. A conclusão a que ele chega é que a experiência da justificação pela fé constitui a única explicação. Quando alguém procura justificar-se perante Deus, faz tudo com certo senso de dever, procurando naturalmente fazer o mínimo necessário para ter a consciência tranqüila. Mas a compreensão da justificação pela fé cria tensão especial na vida do homem; a tensão de quem recebeu tudo sem o merecer, e se sente impelido a demonstrar a sua gratidão. Este espírito é força vital e dinâmica, que se faz sentir até na evolução cultural, econômica, e política de um povo.Ao mesmo tempo, precisamos compreender que, nesse contexto, o pior pecado é estarmos dispostos a receber tudo facilmente, sem compreender o que a graça custou a Jesus Cristo, sem nos relacionar seriamente com o Deus que nos dá tudo, sem responder ao amor de Deus. Esta é a tentação contínua do protestantismo – e de cada um de nós, – tentação a que só podemos resistir através da participação constante e dinâmica na vida total do Corpo de Cristo.Em a nova ordem de vida em que Cristo nos coloca pelo perdão, opera-se mudança radical no mais íntimo do nosso ser, no tocante à atitude que temos para com nós mesmos. Eu procuro sempre ter boa opinião de mim mesmo, mas, se sou honesto para comigo mesmo, encontro certa dificuldade. De fato, quanto mais sincero sou, maior e tensão que sinto nesse ponto. O resultado é que preciso sempre convencer-me de que sou diferente do que na realidade sou. E, para consegui-lo, tenho de convencer os outros de que sou bom, o que é ainda mais difícil.Mas, se Deus me aceita, pecador como sou, então eu também fico livre para me aceitar a

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mim mesmo. Se Deus está disposto a me perdoar, então também me posso perdoar a mim mesmo. Posso reconhecer que meu pecado me levaria a crucificar o Filho de Deus, e ao mesmo tempo saber que ele me perdoa, me chama e me torna capaz de servi-lO. Quando vivo, momento a momento, dentro desta realidade criada por Jesus Cristo – no Seu Corpo – isto produz revolução no mais íntimo do meu ser. Posso conhecer-me a mim mesmo, e, com toda a honestidade e humildade, sem ilusões, reconhecer o que sou. Isto permite, aliás, renovação da vida que começa nas profundezas da personalidade. Nesta compreensão de mim mesmo posso abandonar todos os meus esforços fúteis de me justificar perante os outros, de defender o que faço. Posso permitir que meus colegas e amigos me indiquem as minhas falhas, sem que isso destrua minha segurança, que se baseia em Cristo e não em meus méritos.O que é mais notável ainda, é que este tipo de conhecimento próprio nos liberta para servir a Jesus Cristo. Quando estamos escravizados pela necessidade de nos justificar, ficamos tão preocupados com nós mesmos que dificilmente podemos fazer a Obra a que Cristo nos chamou. Mas quando compreendemos que nossa vida descansa no amor de Cristo, que Ele nos justifica, ficamos livres desta introspecção excessiva, e podemos então concentrar todo o nosso pensamento, todas as nossas energias, no serviço que Cristo exige de nós. Uma das grandes descobertas de Calvino foi esta, o que lhe permitiu estabelecer um exemplo de espiritualidade viril e de ação dinâmica em todas as esferas da vida.Finalmente, a participação desse novo reino do perdão transforma todas as relações humanas. O homem que é objeto do perdão de Deus, que pode ser honesto consigo mesmo, é capaz de perdoar o seu próximo a todo momento. E, através deste espírito de perdão, ele abre, em todos os lugares em que esteja, nova possibilidade de vida, uma cabeça-de-ponte para a ação reconciliadora de Deus. Sem o perdão, o lar se torna inferno, onde cada membro julga e condena aos outros, e onde dominam ressentimentos e tensões. Mas o perdão cria no lar ambiente novo, nova relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, que refletem o Reino de Deus. Na Igreja sempre surgem mal-entendidos, problemas e conflitos. Mas a Igreja, como o Corpo de Cristo, é o lugar onde aprendemos o que significa o perdão mútuo, que possibilita novo espírito e atitude diferente uns para com outros. E no mundo fora, no lugar onde trabalhamos em em todas as organizações em que participamos, o homem que vive pelo perdão de seus pecados dá testemunho permanente do Evangelho de Cristo.

VA NOVA ORDEM DE RELAÇÕES COMUNITÁRIAS

VA NOVA ORDEM DE RELAÇÕES COMUNITÁRIASTemos falado da nova ordem de vida que temos no Evangelho como sendo vida em comunhão com Deus e em paz com o mundo, e vida perdoada e justificada por Deus. Agora chegamos ao terceiro ponto: a nova ordem de vida que temos em Cristo é vida em comunidade. Cristo nos oferece a possibilidade de viver em nova relação com o próximo. A vida cristã, no sentido prático, consiste principalmente em fazer real esta nova relação com o outro, com a ajuda de Cristo, em todos os aspectos da vida diária, começando assim a receber, aqui e agora, as primícias da vida eterna.Temos a impressão de que esta maneira de entender a vida cristã pode surpreender algumas pessoas, e isto por duas razões. Primeiro, porque nem sempre pensamos em nossa vida diária no mundo como dom de Deus. Se a ênfase principal cai sobre certas regras negativas que precisamos seguir, a vida cristã se torna facilmente em carga

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pesada que temos de levar. Em segundo lugar, muitas vezes as normas que temos para a vida cristã pouco têm que ver com as nossas relações comunitárias. Quase toda a atenção pode focalizar-se em diversos aspectos da vida particular. E nem sempre consideramos nossas relações com outras pessoas como uma das grandes bênçãos do Evangelho. Achamos que a vida seria muito mais fácil se pudéssemos livrar-nos das complicações e problemas que precisamos enfrentar, pelo fato de termos de viver em contato com outras pessoas. A conclusão de Sartre: “O inferno são as outras pessoas” pode ter certa atração para nós também.Estamos convencidos de que esta maneira de pensar representa grave erro, que não devemos cometer, se queremos ser fiéis à revelação de Deus na Bíblia. Nada melhormente o demonstra do que a Epístola aos Efésios. Para São Paulo, a nova vida que Cristo nos dá é vida no corpo de Cristo; isto é, vida comunitária. No Capítulo 2, Paulo afirma que Cristo “vos deu vida” e explica que esta vida consiste na reconciliação dos gentios, não somente com Deus, mas também com os judeus, em nova relação de paz e amor. Quase todas as palavras que ele usa para falar desta obra de Deus expressam esta idéia. Os gentios deixam ser estrangeiros para se tornarem concidadãos dos santos, membros da família de Deus. Desde o Capítulo 4 o Apóstolo trata da vida diária dos cristãos, afirmando que somos membros do corpo de Cristo e membros uns dos outros, e portanto todos os nossos atos precisam dar testemunho deste fato. Toda a longa lista de pecados a serem evitados tem que ver com o nosso modo de tratar o próximo, e a passagem termina com o estudo do que significa 3expressar esta realidade da vida no corpo de Cristo nas três esferas de relações humanas em que o cristão estava envolvido naquela época – de marido e mulher, de pais e filhos, de servos e senhores.O contraste entre o que geralmente pensamos e a palavra do Evangelho indica mais uma vez que o Evangelho é realmente Boa Nova, é notícia extraordinária da modificação radical da situação humana. Fora de Jesus Cristo, todas as nossas relações com outro, ficam envenenadas pelo nosso egoísmo, que faz do próximo um objeto a ser usado. Nestas circunstâncias todos podemos dizer que o inferno são as outras pessoas. Mas o Evangelho é a notícia de que Deus está agindo no mundo para criar nova ordem de relações humanas; mais ainda, que estava nova ordem já foi estabelecida, que o poder do egoísmo foi quebrado. A ação reconciliadora de Deus, cria, a todo momento, certo tipo de vida comunitária que é a experiência mais rica que esta vida nos pode oferecer. É por esta razão que todo o Novo Testamento fala tanto do caráter “político” da ação de Deus, mostra as conseqüências dela para todos os aspectos da vida do homem, falando até da vida eterna em termos de transformação das relações do homem com Deus e com o próximo.Agora, o ponto essencial que precisamos lembrar aqui é o mesmo em que temo insistido através de todo o nosso estudo: esta nova relação comunitária não é ideal que devamos procurar atingir, mas é dom de Deus. O Evangelho anuncia que Deus já criou esta nova ordem de relações humanas neste mundo em que vivemos, no corpo de Cristo, no qual nós já fomos incluídos. Portanto, nossa tarefa é simplesmente receber este presente que Deus nos dá, descobrindo como manifestar esta nova possibilidade em todas as nossas relações com outras pessoas.Só nestes termos pode esta mensagem ser Boa Nova. Hoje, um dos aspectos trágicos da situação humana é o fato de o homem moderno ficar completamente isolado, sem relações íntimas com outros, e sem saber como sair desse isolamento. No seu desespero ele procura uma saída, reunindo-se a outras pessoas que lhe são simpáticas para com elas comer e beber, ou mesmo organizar movimentos com altos ideais e disciplinas. Quase sempre o entusiasmo com que a pessoa se entre a esses movimentos transmuta-se em profunda decepção, porque nossas melhores esforços não conseguem criar nova

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estrutura de comunidade. Até dentro da Igreja, podemos ter esta experiência. Sentimos, também na Igreja, nosso isolamento e necessidade do apelo de uma comunidade. Em face dessa necessidade procuramos reunir um grupo de pessoa com quem nos damos bem, que tenham os mesmos ideais que nós, para assim melhorarmos a vida comunitária. Muitas vezes grupo deste tipo fazem as suas regras e disciplinas, dedicando-se a esta tarefa com bastante entusiasmo. Mas, aqui também, o resultado é quase sempre desanimador.A vida comunitária no Corpo de Cristo é outra coisa. Neste Corpo somos colocados dentro de nova estrutura total de relações em Cristo, em que são transformadas todas as nossas relações com outras pessoas. Neste Corpo, Cristo destruiu todas as barreiras que separam os homens. Em Cristo somos reconciliados uns com os outros, em relação que transcende as barreiras de língua, nacionalidade, posição econômica, social ou intelectual, até mesmo as diferenças políticas e teológicas. Na medida em que vivemos esta realidade de nossa reconciliação em Cristo, todas estas barreiras perdem seu poder divisivo, e descobrimos que estas diferenças em Cristo se tornam bênção que enriquece a nossa vida. Por causa do poder destas barreiras, geralmente restringimos as nossas relações de amizade às pessoas de nossa classe social, de partido político, ou da orientação intelectual que nós temos. Isto é fácil; mas também produz vida superficial e muito restrita. Na reconciliação que Cristo nos dá, temos a coragem de nos relacionar com pessoas cujas idéias, personalidades e orientações políticas ou teológicas são muito diferentes das nossas, e nesta relação no Corpo de Cristo encontramos novas possibilidades de vida, de pensamento e de ação.No Corpo de Cristo, o perdão constitui a atmosfera permanente da vida comunitária. Se Deus me aceita, sendo eu pecador, então posso também aceitar o outro que Deus me dá na situação concreta em que me encontro, perdoando-o diariamente e permitindo que Cristo nos relacione um com o outro nEle. Nestes termos, não dependo de achar pessoas simpáticas para criar comunidade; fico livre para aceitar o irmão que Deus me dá a cada momento. Em cada situação concreta posso relacionar-me com ele em Cristo, e permitir que Cristo manifeste as riquezas da Sua presença e do Seu poder nessa relação. Desta maneira ficarei constantemente surpreendido pelas novas relações que Deus me oferece e pela riqueza de vida que cada uma me proporciona.Agora, com toda esta ênfase no fato de que não podemos criar comunidade mas temos de recebê-la como dom de Deus, não queremos dizer que não nos devamos preocupar com o problema das nossas relações com o próximo. Muito pelo contrário. O que estamos sugerindo é que a iniciativa divina na criação da comunidade cristã determina a natureza das nossas relações comunitárias, e a maneira pela qual nos devemos dedicar ao desenvolvimento da vida comunitária na Igreja. O problema que nos deve preocupar é simplesmente este: que devemos fazer para tornar real, nas nossas relações uns com os outros, estas riquezas de vida que Cristo nos oferece?Neste sentido quero chamar a atenção para vários pontos que me parecem importantes:NOSSA PRIMEIRA RESPONSABILIDADE é a de descobrir como dar forma de fato mais adequada, na vida da igreja local, a esta relação que pode sustentar cada membro do corpo na totalidade de sua vida no mundo de hoje.A desintegração da vida do indivíduo em nosso tempo se deve, em grande parte, à desintegração de todas as comunidades naturais que anteriormente o sustentavam. No passado, cada pessoa fazia parte de uma ou mais comunidades, que orientavam todos os aspectos da sua vida. Era membro da família e da comunidade local onde morava. Em cada um delas havia um tipo de relação pessoal, que dava certa segurança ao indivíduo, que lhe orientava o pensamento e ação, e que lhe oferecia certo refúgio em tempo de crise. Às vezes estas estruturas eram tão rígidas que o escravizavam, mas o homem não

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tinha o tipo de problemas que enfrenta hoje, sentido-se inseguro e sozinho, sem nenhuma relação íntima, confrontado com dilemas morais e com a necessidade de tomar decisões importantes a cada momento. O resultado é a crise de desintegração que todos conhecemos, e que está levando número cada vez maior de pessoas ao psiquiatra, ao manicômio, e, em muitos lugares do mundo, ao suicídio.Em face desta situação, podemos perceber a terrível responsabilidade que tem a Igreja de oferecer profunda experiência de vida comunitária, que possa responder a esta necessidade mais íntima do homem moderno. Esta responsabilidade é também dom que Deus oferece à Sua Igreja hoje, porque torna possível a penetração da fé cristã no mais íntimo da vida do homem moderno, de modo que nem era possível imaginar na época em que todas as suas relações eram mais estruturadas, infelizmente, a Igreja, em muitos lugares, não está preparada para esta tarefa, porque o programa de atividades que ela segue vem de época anterior, em que era possível pressupor a existência das comunidades naturais. Nessa situação, a Igreja podia ter programa de vários cultos e reuniões de sociedades cada semana, e com isto fazer trabalho que transformava muitos aspectos da vida comunitária. Agora, porém, a Igreja precisa descobrir como dar forma às relações comunitárias que temos em Cristo, numa situação em que todas as estruturas, até as mais primárias, perderam a importância, que tinham outrora. Isto quer dizer que, na igreja local, precisamos descobrir de que maneira pessoas que crêem em Cristo e se relacionam na vida diária – na família, no trabalho, no lugar, onde moram, etc. - podem expressar esta riqueza de vida que Cristo lhes oferece em comunhão umas com as outras.É impossível, neste momento, dar fórmula que nos ajude a ter este tipo de comunidade. Mas podemos pelo menos sugerir que, quando procuramos dar expressão a esta relação comunitária que temos em Cristo, iremos a descobrir que há algumas coisas que precisamos fazer juntos:

a) Cultivar nossa relação com Deus, través da oração e do estudo bíblico, da participação no culto e na vida sacramenta da igreja. Isto é o mais importante. Agora, todos nós fazemos estas coisas na Igreja. Será que as fazemos como membros uns dos outros? Participamos juntos em cada um desses atos? Em nossa experiência, os momentos mais significativos de culto, de oração e de comunhão ocorreram quando várias pessoas que se tinham dedicado a uma tarefa concreta de serviço cristão e nessa tarefa tinham aceito com sinceridade sua responsabilidade uma separa com as outras, colocaram-se perante Deus nestes diversos atos. Cremos que assim acontece porque está é a relação que deve haver entre a cabeça e os membros no Corpo de Cristo.

b) Descobrir como dar expressão concreta à nossa responsabilidade de levar as cargas uns dos outros, isto é, como compartilha como o irmão as suas preocupações e os seus problemas; como sustentá-lo e ajudá-lo em face das decisões que tem de fazer diariamente. Isto existe que estejamos dispostos a nos preocupar com o irmão, a dar tempo para ajudá-lo e aconselhá-lo, a aceitar a responsabilidade de solidariedade com ele, inclusive no aspecto econômico.

c) Encontrar formas de trabalhar juntos em nosso testemunho cristão no mundo, compartilhando os problemas e responsabilidades daí decorrentes. Não basta estarmos juntos na Igreja no domingo, se ficarmos totalmente isolados no mundo durante a semana. Para a vida dinâmica de testemunho, precisamos do apoio constante de uma comunidade, de pessoas que estão procurando servir a Jesus Cristo, mais ou menos na mesma situação no mundo.

Podemos não encontrar soluções fáceis para este problema. Mas podemos dedicar-nos a experiências novas neste sentido, com a certeza de que, na medida em que esta relação comunitária se torne realidade, a Igreja será expressão visível da vida de Cristo e da sua significação para o mundo moderno.

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ESTA NOVA POSSIBILIDADE DE VIDA que Deus nos dá na vida comunitária na Igreja deve ser a base para a nossa compreensão da responsabilidade ética do crente. Desta maneira, a norma moral que a fé cristã nos dá, não é em primeiro lugar uma lei a que devemos obedecer, e sim um presente que Deus nos oferece, uma nova possibilidade de vida que não podemos encontrar em nenhum outro lugar e que se realiza na relação entre os irmãos na comunidade cristã. Esta afirmação, que encontramos constantemente em o Novo Testamento, é manifesta também na relação de Deus com o Povo de Israel. Deus criou um povo que antes não existia; levou este povo à terra da promissão, deu-lhe nova ordem de vida e o escolheu para participar na Sua obra de redenção. Todos os mandamentos são conseqüência disso e expressão desta nova vida que Deus oferece ao seu povo. A expressão mais interessante disso encontramo-la no capítulo 20 de Êxodo, onde a passagem em que são apresentados os dez mandamentos não começa com uma ordem a cumprir, mas com a lembrança da bênção divina:

“Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor teu Deus que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim...”.

Infelizmente, é fácil mudar tudo e colocar o dever moral em primeiro plano. Quando isso acontece, a vida cristã passa a consistir em cumprir certas regras, que são geralmente uma lista de proibições. O crente não vê facilmente a razão de ser destas regras; a vida cristã, em vez de ser Boa Nova de vida, pode tornar-se carga pesada. Um dos meus colegas contou-me recentemente que um membro de sua Igreja tinha-se afastado da Igreja e das normas por ela estabelecidas para a conduta do cristão. Quando foi advertido, admitiu que não estava cumprindo fielmente tudo o que a Igreja ordenara, e acrescentou: “Mas eu não creio que todas as coisas boas desta vida devam ser só para os católicos” (!).A única possibilidade de acabar com esta trágica perversão da ética cristã está em mostrar claramente que toda preocupação ética no cristianismo parte da convicção de que Deus nos está oferecendo nova visão, e que esta nova vida é essencialmente questão de relações com outras pessoas. As normas de ética estabelecidas pela Igreja representam a estrutura de vida que torna possível a recepção do dom divino.

“Quem ama ao próximo, tem cumprido a lei. Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçaras, e se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. (Romanos 13.8,9).

Se orientarmos nossa vida neste sentido, teremos ainda necessidade de disciplina, de normas negativas, de esforço constante para evitar o mal. Mas tudo isto terá significação diferente e positiva, porque estas disciplinas representam o que temos de fazer para dominar o “velho homem”, permitindo assim a existência do “novo homem”, que está sendo formado em Jesus Cristo.

VIA NOSSA PARTICIPAÇÃO NA OBRA DE DEUS NO MUNDO

VIA NOSSA PARTICIPAÇÃO NA OBRA DE DEUS NO MUNDOQuanto mais real fora a nossa experiência de vida em o novo Reino, mais impressionados ficamos com o contraste entre esse Reino e a velha ordem de coisas que parece dominar todas as esferas deste mundo. Vivemos reconciliados com Deus e com o universo, e experimentamos a segurança e a significação que isso dá à nossa vida; em contraste, vemos a alienação do homem moderno, e toda a insegurança e frustração de que padece. Vivemos justificados pela fé, em nova relação com Deus, com o próximo e com

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nós mesmos; e compreendemos mais claramente o círculo vicioso em que nosso próximo se encontra pelo fato de não conhecer esta realidade. Vivemos em comunhão uns com os outros, em a nova ordem de relações comunitárias que existe no Corpo de Cristo; e percebemos melhor a solidão do indivíduo isolado na sociedade técnica do nosso tempo. Mais ainda, podemos ver como tudo isso contribui para o desenvolvimento de estruturas políticas, econômicas e sociais em que o homem é escravizado, explorado, e miserável, não só economicamente como também moral e espiritualmente. Tudo isso contribui para criar, no crente, uma tensão bastante produtiva, que aumenta na medida em que se torna mais real a sua experiência do amor de Deus.Sendo Cristo quem é, esta nossa preocupação só pode ser intensificada com nossa incorporação nEle. Passamos a formar parte do Corpo dAquele que tomou sobre si a vida humana, deu a sua vida por nós na cruz do Calvário, e continua esta identificação conosco através dos séculos. Como dizia Pascal: “Jesus Cristo está em agonia até o fim dos séculos”. Esse mesmo Cristo ressuscitou vitorioso sobre todas as forças do mundo, estabeleceu o Seu reino e continua a Sua obra até a consumação final. Por causa da Sua presença e ação no mundo, a história tem o seu centro nesse encontro com Cristo e o Seu reino, no qual a cada pessoa e a cada nação se abre a possibilidade de receber e viver a vida que Cristo oferece. Portanto, passarmos a ser membros do Corpo de Cristo significa que somos chamados a participar com Cristo nesta obra, dando testemunho, por nossas palavras e por nossa vida, da realidade desta nova ordem, e sendo o instrumento pelo qual Cristo continua a extensão de Sua obra no mundo. A formação deste Corpo de Cristo implica que Cristo se torna presente e age no mundo através da Igreja, durante a sua vida terreno. Quem viver esta realidade de incorporação em Cristo terá portanto uma só ambição, que orientará todos os seus pensamentos e ações: a de colocar a sua vida inteira ao serviço de Cristo, fazendo de si mesmo um instrumento dócil, disposto a todo momento a servir aos interesses do Reino, na pessoa de seu próximo.O que isto significa foi admiravelmente expresso pelo apóstolo Paulo no capítulo 12 de sua Epístola aos Romanos. Depois de expor, em termos tão majestosos, as profundas riquezas do amor e da ação de Deus em favor do homem, depois de nos colocar dentro do novo Reino que esta obre divina criou, Paulo fala nestes termos de nossa resposta a tudo isso:

“Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”

Para podermos ser instrumentos desta Obra de Deus, uma coisa é necessária: que não nos conformemos com este mundo, e sejamos transformados pela renovação do nosso entendimento. O primeiro verbo usado aqui, conformar-se, dá a idéia de estruturar ou modelar a vida inteira de acordo com os padrões da velha ordem de existência neste mundo. Em contraste com isso, o cristão, por causa da renovação do seu entendimento, pode compreender que já está vivendo dentro de nova ordem de coisas e começar a estruturar a sua vida toda em redor desta nova realidade.O importante a compreender aqui é que a vida cristã é questão de reorientação de toda a existência em redor de novo centro, e que isso significa uma reestruturação dos diversos aspectos da nossa vida, pensamentos, personalidades, objetivos, atos, etc. Podemos compreender mais claramente o que isso significa, tomando o caso de alguém que, acostumado à vida civil, entre para o exército. Descobrirá ele que o objetivo do exército torna necessária mudança total na sua maneira de pensar e de agir, impondo programa completo de vida, e até certa mentalidade. Entrar no Reio de Deus exige mudança mais radical ainda, em todos os aspectos de nossa vida.

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A base desta transformação está neste fato: na velha ordem de coisas, toda a nossa vida gira em torno de nós mesmos, das nossas ambições e desejos; em o novo Reino, toda a nossa vida gira em torno de Cristo e de sua Obra no mundo. Em ambos os casos o centro da vida determina totalmente a nossa existência e, a nossa tarefa de crentes é descobrir o que esta transformação pode significar em todas as esferas de nossa existência. Nesta tarefa, precisamos compreender claramente as formas que o egocentrismo do homem toma em nosso tempo, e em nosso meio. De outra maneira, será muito superficial a transformação de nossas vidas. Aceitaremos uma lista de regras negativas de moral, deixando de fazer certas coisas, mas isto poderá não passar de capa superficial de moralidade em cima de uma vida egocêntrica, estruturada como a vida de qualquer pessoa que nada tenha a ver com a fé cristã.Como podemos caracterizar o padrão de vida do homem moderno, a que nos devemos conformar? Naturalmente, o egoísmo humano pode tomar muitas formas. Para uma pessoa, a paixão pelo dinheiro domina a vida; para outra, o álcool ou o sexo; para outra ainda, é simplesmente questão de viver sem pensar, aceitando e seguindo tudo que os outros estão fazendo no momento.Estamos convencidos, porém, de que, no mundo de hoje, aqui no Brasil como nos Estados Unidos ou na Europa, domina certa mentalidade que inconscientemente controla e determina quase por completo a orientação da vida, a maneira de pensar e de agir. É o que podemos chamar de vida burguesa ou mentalidade burguesa. A palavra burguês em sido tão explorada pelos comunistas, que temo certo receio de usá-la. É fato, porém, que a palavra foi usada por muitos pensadores antes de se tornar termo predileto dos marxistas. Expressa uma realidade do mundo ocidental que temos de enfrentar seriamente. Neste estudo usamos a frase mentalidade burguesa para designar a atitude que parece dominar cada vez mais a sociedade industrializada de nosso tempo, em que o egoísmo humano toma uma forma concreta. Desejamos ter vida boa, concebida principalmente em termos de segurança e progresso econômicos, e posição de certo prestígio e autoridade na sociedade. Tudo que fazemos visa a este objetivo. Escolhemos a nossa profissão pensando nela como o melhor meio de conseguir estas coisas. Julgamos o êxito de nossa vida pela rapidez com que conseguimos melhorar a nossa situação econômica e conseguir as coisas que são sinais desse progresso. Coisas que oferecem um avanço material, como casa própria, carro do último modelo, filiação num clube de campo para passar os fins de semana, etc. Ficamos satisfeitos com nós mesmos na medida em que este progresso material é acompanhado de modificações de nossa posição e prestígio na sociedade. Assim, ficamos contentes se podemos mudar de uma cidade do interior para a capital, de uma posição inferior para uma superior, e conseguimos que nosso nome e pessoa sejam conhecidos e admirados. Na medida em que nos domina, esta mentalidade vai determinando as nossas atitudes em todas as esferas de atividades. Somos envolvidos por tantas atividades indispensáveis para atingir nosso objetivo, que não temos tempo nem energia para nos preocupar com outras coisas. Ficamos de tal maneira escravizados pelas obrigações sociais e pelas coisas materiais que esta vida proporciona, que dificilmente podemos levar a sério nossa responsabilidade para com a Igreja, o próximo, ou a sociedade em que vivemos. Daí, nosso ideal nos leva a uma conformidade cada vez maior com as normas do grupo em que queremos estar, e a uma preocupação quase exclusive com a nossa pessoa. Quando isso acontece, chegamos ao ponto em que não podemos compreender, muito menos levar a sério outra concepção de vida. Se formos completamente dominados por esta mentalidade, consideraremos perigosos, para nossa posição e tranqüilidade, todos os movimentos que procurem encarnar uma preocupação pela justiça social e pelo homem abandonado e explorado. É assim que nos tornamos conservadores, desejando preservar as coisas

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como são por causa de sua conveniência para nós, e fazendo até da Igreja de Cristo um instrumento para atingir os nossos objetivos.Reconhecemos que este quadro que acabamos de apresentar é um tanto exagerado. Em quase todos nós existe uma luta constante, embora às vezes inconsciente, entre esta mentalidade e nossa fé cristã, que modifica nossas ações. Além disso, nesta tentativa de expor esta mentalidade, contrastando-a com um padrão cristão de vida, não estamos querendo condená-la em sua totalidade. Sem dúvida alguma, a vida burguesa oferece muitas coisas boas, e exerce atração sobre todos nós. É preciso dizer também que esta tentativa de definir a mentalidade dominante de nossos dias não significa que nos coloquemos em posição de superioridade, condenando os outros como se nós estivéssemos livres desse mal. Muito ao contrário, reconhecemos que nós também somos pecadores nesse sentido. Mas não podemos permitir que isso nos cegue os olhos ao fato de ser essa a estrutura que hoje domina o mundo, e que, para sermos instrumentos eficientes da Obra de Cristo no mundo, precisamos compreender o poder que sobre nós tem essa mentalidade, e descobrir como o poder de Deus pode não só libertar-nos dela, como também oferecer-nos outra estrutura de nossa vida no mundo.Ninguém pode estudar verdadeiramente a situação do homem no mundo moderno sem compreender a seriedade destes problema para fé cristã e as conseqüências desastrosas de uma fácil identificação da vida cristã com a mentalidade burguesa. Especialmente na Europa e nos Estados Unidos, onde este padrão de vida está tão desenvolvido e aceito, torna-se cada vez mais evidente que o resultado final é uma vida sempre mais superficial. Alguns poetas de nosso tempo têm falado de nossa geração como “a geração vazia”. É impressionante ver como muitos jovens, produto desse tipo de vida, revelam até no rosto o vazio em que vivem. Nesta situação, a vida perde todo o sentido – o que se sente na literatura, no teatro e nas atividades de nossos contemporâneos. Precisamente no momento em que o homem tem, pela primeira vez na história, a possibilidade de possuir tudo que considera necessário para viver bem, nesse mesmo momento a vida perde todo o seu significado.Há, nos Estados Unidos, uma revista de elite, chamada The New Yorker, que apresenta sempre caricaturas interessantes e de conteúdo profundo. É impressionante ver quantas desas caricaturas têm como tema este problema. Recentemente saiu uma em que vemos um casal que chegava aos 50 anos. Tudo no apartamento indica que são pessoas que têm tudo que a vida burguesa lhes pode oferecer – ótima posição em alguma companhia, ordenado muito bom, segurança econômica e todas as coisas boas que a técnica proporciona. Os dois estão sentados na sala, olhando televisão e tomando um drinque e revelam por suas expressões estarem completamente entediados. A esposa olha para o marido, dizendo: “E eu pensava que havia mais alguma coisa na vida além disso”. Não é inteiramente surpreendente que, dentre a nova geração nos Estados Unidos, tenham aparecido os “beatniks”, moços completamente revoltados contra a vida burguesa, que procuram viver de modo totalmente contrário a todos os seus padrões.Precisamos lembrar mais uma coisa ainda: O comunismo é o movimento no mundo de hoje que mais bem tem conseguido repudir o padrão burguês da vida, estabelecendo outro muito diferente. E o mais extraordinário é que o comunismo tem conseguido fazer isso com grande número de jovens, precisamente da classe média. Nisto está a fonte do seu tremendo poder. O comunismo estabelece uma concepção militante da vida e exige que cada um de seus membros a adote. O revolucionário é alguém que abandona todas as coisas importantes para a concepção burguesa, – carreira, segurança econômica, posição de prestígio na sociedade, – para se tornar militante, que avalia a sua vida toda e todos os seus atos pela contribuição que prestam ao êxito da revolução.Há alguns anos passados, depois da vitória do comunismo na China, certa revista

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evangélica publicou uma série de “confissões” de alguns jovens líderes das Igrejas Cristãs na China. Esses moços contavam como se converteram ao cristianismo nos colégios cristãos e resolveram ser pastores ou professores. Terminaram seus estudos lá e depois foram aos Estados Unidos para fazer cursos de doutorado nas suas esferas de especialização. Voltaram à China para serem professores e diretores de colégios e universidades da Igreja. Mas em tudo isso, diziam eles, identificavam o cristianismo como a vida burguesa. Pensavam principalmente em si mesmos, em conseguir boas posições e fazer carreira. Neste processo, afastaram-se completamente do povo, especialmente dos mais abandonados e necessitados, e perderam todo o desejo de servi-los e lutar a seu favor. Esses jovens líderes cristãos, vendo o ideal marxista e a maneira como ele encarava a preocupação pelo povo em suas necessidades, reconheceram seus erros, tiveram de confessá-los e pedir perdão ao povo.Seria interessante perguntar aqui como é que o marxismo tem podido conseguir isso. Para o marxista pertence ao passado o mundo em que agora vivemos, esta ordem capitalista com todos os seus padrões e ideais de vida. É parte de uma ordem de coisas que logo acabará, e já perdeu portanto todo o seu poder sobre o comunista. Este vive em função de nova ordem, a utopia socialista, que segundo a crença dele, as forças da história estabelecerão inevitavelmente. Com esta convicção, pode ele viver num mundo burguês sem se deixar dominar por suas normas, porque sua vida é orientada e controlada pelas normas da nova ordem que há de vir, e todos os seus atos e sua vida interior têm significado em relação a esta nova realidade.O encontro entre o comunismo e o cristianismo é essencialmente o encontro de duas concepções da nova ordem e do modo como podemos participar no seu estabelecimento. Para o cristão também, todas as normas do mundo em que vivemos perderam seu poder, porque pertencem ao passado, à ordem de coisas que está acabando por causa da presença e poder de Jesus Cristo entre nós. O crente pertence ao Reino de Deus, participa já da nova ordem de coisas que Ele está criando entre nós, e pode portanto orientar por completo sua vida em redor desde objetivo, e encontrar significação para todos os seus esforços de participação nesta grande Obra que Jesus Cristo está realizando entre os homens. Na medida em que aceita e vive esta realidade, o cristão descobrirá o que significa viver como peregrino e estrangeiro na terra, livre para servir a Cristo e a seu próximo, porque o domínio dos padrões deste mundo sobre sua vida foi definitivamente quebrado.Esta liberdade de viver em sociedade burguesa sem ficar preso às normas desta sociedade abre perante nós novas possibilidades. Ficamos livres até do espírito de revolta contra esse tipo de vida. “Os Desagregados”, os “beatniks” afinal de contas, em sua revolta contra tudo que se relaciona com a vida burguesa, são também prisioneiros, os piores prisioneiros desta vida que querem abandonar. O cristão pode ver o valor e a atração de muitas coisas que estava vida lhe oferece, mas sem estar sujeito a elas. Se não as tem, não se desespera; tendo-as, pode usá-las como senão as tivesse. O crente não precisa ir do interior para a capital. Pode antes ver as possibilidades de vida que Deus lhe oferece no interior, e ficar livre para estar onde Deus quiser usá-lo no Seu serviço. E, se acaso tiver de viver na capital por causa de sua missão, pode aí estar com espírito de liberdade. O crente não precisa escolher a sua profissão pensando principalmente na que lhe vai dar mais dinheiro e prestígio; fica livre para ver quais são os dons que Deus lhe deu, quais as necessidades do seu povo na hora presente, e descobrir assim a maneira de usar a sua vida para glória de Deus. Se porventura, ao seguir esse caminho, atingir certa posição de prestígio e segurança econômica, pode viver como se não a tivesse, dedicando-se ao serviço do próximo. Em cada momento, suas decisões acerca do trabalho podem ser determinadas, não apenas pelo desejo de ter uma posição

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mais alta, mas pela vontade de Deus para sua vida.Gozando desta extraordinária liberdade com relação às coisas do mundo, o crente pode compreender toda a sua vida, a cada instante, como um testemunho de Cristo. Participar de nova ordem – nova vida do homem em relação com Deus e com o próximo. Para o crente, esta nova vida é já realidade – dom que recebe diariamente de Deus. Portanto, o crente compreende que sua vida no mundo não tem outra finalidade além de servir como espelho de Cristo e de sua obra. É sua vida total – como conjunto de palavras e atitudes, relações e ações – que tem esta missão.Para falar concretamente, este testemunho consiste em duas coisas: evangelização ou proclamação do amor de Cristo pelo homem, através de palavras; e serviço, ou proclamação do amor de Cristo pelo homem através de atos de amor. Estas duas coisas não podem separar-se, porque são apenas dois aspectos de uma só realidade. Somos chamados a amar e servir ao próximo, e, no meio destes atos de amor, a apontar sempre para a pessoa de Cristo, que é a única motivação deste serviço, e por quem o próximo é servido através dos nossos esforços. Neste contexto, a obra de evangelização não é principalmente a responsabilidade de profissionais, mas de cada crente; não é tanto atividade para uma ou duas horas do domingo, mas ação constante, principalmente no que diz respeito às pessoas que melhor conhecemos e com as quais estamos mais relacionados.Neste contexto, servir não significa principalmente fazer obras de caridade, e sim preocuparmo-nos com outro como Cristo se preocupou por nós. Isto implica nova relação com as pessoas com quem temos contato diário no lar, na Igreja, e no trabalho numa relação em que estamos dispostos a compartilhar a vida e as preocupações do outro, e servi-lo em cada situação concreta de necessidade. Mais ainda, no mundo de hoje, esta preocupação viva pelo próximo tem de levar-nos a participar, com profundo senso de responsabilidade, nas lutas políticas e dentro das organizações diversas que determinam o destino do homem moderno. Hoje, quase todos os problemas que o homem enfrenta dependem, até certo ponto, de ação política para sua solução; daí o precisarmos estar envolvidos nessas lutas, se queremos tomar posição a favor do homem em nosso tempo.Se olharmos para a história do cristianismo, veremos que este ideal de testemunho se tornou realidade poderosa no mundo sempre que se expressou em padrão claro e atraente, – padrão de vida para o crente e para a comunidade cristã. Queremos com isto dizer que a Igreja deu testemunho mais fiel de Cristo quando seus membros encarnaram o tipo de vida que representava claramente esse ideal. Poucas coisas são mais importantes na vida da Igreja de hoje do que esse esforço de encontrar padrões de vida cristã mais adequados para esta época revolucionária em que estamos vivendo.Hoje nada é mais importante do que isso para o nosso testemunho. Somos chamados a viver de tal maneira obedientes à vontade de Deus, que possamos descobrir e expressão, em forma definida e simples, a realidade do amor de Deus pelo homem, em termos significativos para o nosso tempo. No dia em que a mocidade cristã tiver vida comunitária que seja tão dinâmica como a dos comunistas, e revelar preocupação igualmente séria pelos problemas do mundo em que vivemos, poderemos deixar de estar tão preocupados com as forças que ameaçam o homem e confiar mais no Deus que se manifesta através de nossos fracos esforços e de todas as nossas limitações.

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