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A SOBERANIA JURÍDICA RESSIGNIFICADA NA

SOCIEDADE CONTEMPORÂNEAEraldo Accioly Ferreira Filho1

RESUMO

Pretende-se pesquisar o novo significado que a ideia de soberania adquiriu na sociedade

contemporânea. A extrema globalização, o estreitamento das relações internacionais, a

evolução de entes supranacionais, o avanço científico-tecnológico, os conflitos político-

jurídicos de ordem global, o diálogo entre cortes estatais, internacionais, supranacionais e

transnacionais, entre outros fatores, fazem com que a ideia clássica de soberania, inicialmente

aplicada somente aos entes estatais, seja reorientada para as exigências da sociedade mundial.

Diante dessa insuficiência teórico-conceitual, pretende-se explicar o instituto da soberania,

sobretudo da soberania jurídica, a partir da teoria dos sistemas do sociólogo alemão Niklas

Luhmann. Será ressaltada a proposta do transconstitucionalismo como um instituto que

denuncia, mais que uma necessidade de um diálogo, uma relação horizontalizada entre

soberanias, com a apresentação de casos concretos. Desse modo, demonstrar-se-á que

soberania jurídica foi ressignificada na sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Soberania jurídica. Transconstitucionalismo. Teoria dos sistemas.

INTRODUÇÃO

Em outubro de 2006, União do Ciclista Internacional (UCI) condenou um ciclista

espanhol após a constatação de exame antidoping positivo em prova realizada em junho de

2005, determinando que a Real Federação Espanhola de Ciclismo (RFEC) seguisse o

respectivo processo disciplinar contra o atleta. A RFEC, por intermédio do Comitê Nacional

de Competição e Disciplina Desportiva (CNCDD), não só descumpriu o que foi decidido,

como absolveu o ciclista, utilizando argumentos pertinentes ao sistema jurídico-desportivo

espanhol. Em 19 de dezembro de 2006, após recurso da UCI, o Tribunal Arbitral do Esporte

(TAS2) confirmou a decisão da UCI, condenando o ciclista espanhol e ressaltando, inclusive,

a autonomia do direito esportivo transnacional em face de ordens estatais (LOQUIM, 2008, p.

234-58 e NEVES, 2009, p. 198-201).

1 Graduando em Direito pela Faculdade 7 de Setembro (Fa7). Estagiário da instituição Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional no Ceará. E-mail: [email protected] Tribunal Arbitral du Sport.

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É essencial destacar que a lei espanhola proibia sustentar recurso à arbitragem em

matéria de doping, e o atleta alegava violação do seu direito ao acesso à Justiça, previsto em

sua Constituição. No entanto, o TAS justificou sua decisão e a eficácia de sua ordem jurídica

a partir do princípio constitucional da igualdade, de modo que somente uma ordem jurídico-

esportiva transnacional poderia assegurar um tratamento igualitário entre atletas, afastando

decisões de outras ordens jurídicas (ainda que decorrentes de entes estatais). Nesse contexto,

como entender a significação da soberania na sociedade contemporânea?

Jean Bodin, primeiro autor a desenvolver um conceito teórico sobre soberania, no

século XVI, faz uma análise da França de sua época, conceitua soberania como “o poder

absoluto e perpétuo de uma República”, sendo este o reflexo do poder divino e, assim, todas

as pessoas deveriam obediência ao seu soberano (BODIN, 2011, p.179).

A partir desse momento, são realizadas diversas pretensões conceituais acerca do instituto da soberania. John Locke e Jean-Jacques Rousseau demonstram seus anseios por um Estado dotado de legitimidade e argumentam que há limites para o “poder soberano”, ligando a ideia de soberania de um governo à legitimação de seu povo, remetendo à ideia de “soberania popular”(ROUSSEAU, 2005, p. 42 e LOCKE, 2005, p. 519). Hans Kelsen, na modernidade, define soberania como qualidade de uma ordem normativa dotada de unidade, realizando um embate acerca da primazia do direito internacional e do direito nacional (2005, p. 544-548).

Ressalte-se que será utilizado o método de investigação descritivo, abordando elementos teórico-conceituais de institutos jurídicos, posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais pertinentes à presente pesquisa. Deste modo, permite-se obter o conhecimento necessário à formulação de conclusões oriundas das hipóteses e situações estudadas.

Buscar-se-á conhecer, pesquisar e analisar a teorias clássicas e modernas acerca do conceito de soberania, bem como do novo significado que se defende acerca deste conceito, com a intenção de entender melhor os conflitos entre ordens no âmbito global e o próprio instituto da soberania, gerando um diálogo capaz de esclarecer os rumos da resolução de conflitos de ordem global através de uma nova perspectiva.

A ideia tradicional de soberania, tendo em vista a inserção cada vez maior do Estado na ordem internacional, bem como o pluralismo de ordens transnacionais, está superada. Marcelo Neves destaca ser essencial a delimitação do sentido da expressão “soberania” (e não somente sua atribuição como poder do Estado), “seja na perspectiva interna dos sistemas político e jurídico, seja a partir do ponto de vista externo da esfera pública pluralista ou das esferas sociais autônomas” (NEVES, 2012, p. 159).

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A extrema globalização, o estreitamento das relações internacionais, a evolução

de entes supranacionais, o avanço científico-tecnológico, os conflitos político-jurídicos de

ordem global, o diálogo entre cortes estatais, internacionais, supranacionais e transnacionais

(NEVES, 2009, p. 115), entre outros fatores, fazem com que a ideia clássica de soberania,

inicialmente aplicada somente aos entes estatais, seja reorientada para as exigências da

sociedade mundial.

1 TEORIA DOS SISTEMAS COMO INOVAÇÃO TEÓRICO-SOCIOLÓGICA

O conceito de soberania formulado tradicionalmente pela maioria dos cientistas

políticos não é suficiente para explicar fenômenos político-jurídicos da sociedade atual, global

e complexa. Diante desse cenário, pretende-se realizar pesquisas aprofundadas acerca da

ressignificação do conceito de soberania na sociedade contemporânea, à luz da Teoria dos

Sistemas do sociólogo alemão Niklas Luhmann, tendo em vista que as teorias sociológicas

clássicas desenvolvidas por, v.g., Parsons, Marx, Weber, Simmel, Durkheim e outros são

inadequadas para realizar uma tarefa tão difícil quanto a de explicar a sociedade atual

(LUHMANN, 2005, p. 23-38).

Com objetivo de superar a velha tradição europeia, caracterizada por conceitos

clássicos que não mais respondiam aos anseios de compreensão da sociedade, Luhmann

propôs uma teoria dos sistemas sociais em busca de descrever e entender a sociedade

moderna, caracterizada pela extrema complexidade, trazendo um aporte teórico-conceitual

inovador, de modo que sua teoria se apresenta como um novo paradigma para as ciências

sociais, sendo essencial para demonstrar a proposta desde trabalho.

Luhmann denomina esta tradicional visão humanista de "teoria da ação", que tem

por base a ação do ser humano como elemento fundamental da sociedade. Diante disso, a

sociologia estaria com uma deficiência teórico-conceitual, pois partia do pressuposto

humanista de que haveria um continuum entre os homens e a própria sociedade. Desse modo,

somente seria possível falar-se em sistemas sociais vinculados à ideia de ações humanas, que

serviriam como os únicos elementos de conexão entre os sistemas sociais.

Orlando Villas Bôas Filho reforça a ideia combatida por Luhmann nesse sentido:

Portanto, nessa perspectiva, a ação, ao assegurar a simbiose entre ser humano e

sociedade, passaria a ser entendida como o elemento último que articularia essas duas

realidades, reciprocamente referidas e necessariamente vinculadas, o que, em última instância,

implica remeter o homem, enquanto ente do qual emanam as ações, para uma posição central

no interior dos sistemas sociais (2009, p. 2 e 3).

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A partir dessa concepção, percebe-se que o ser humano está ligado de tal maneira

à sociedade que, somente a partir de suas ações, seria possível a realização plena da própria

natureza dessa. Remete-se, pois, a uma ideia de que a sociedade estaria fadada à realização

dos fins humanos, o que, para Luhmann, torna-se um problema.

Este sociólogo alemão idealiza o indivíduo como um sistema psíquico, podendo

também ser caracterizado pela união sintética de sistema psíquico e sistema orgânico, bem

como concebe a sociedade enquanto uma divisão de subsistemas sociais funcionalmente

diferenciados. Desse modo, compreende-se que o sistema psíquico (ser humano) e os sistemas

sociais funcionam como ambiente (Umwelt)3 um em relação ao outro,ou seja, de forma

recíproca.

Luhmann enumera alguns obstáculos básicos que impossibilitam a real cognição

da ideia de sociedade vista a partir do prisma da "teoria da ação", e, consequentemente, aqui

residem algumas deficiências na descrição da sociedade a partir desse ponto de vista.

Inicialmente, critica-se a ideia de uma sociedade constituída eminentemente por seres

humanos e pelas relações desenvolvidas principalmente a partir de suas ações. Por

conseguinte, a sociedade estaria estabelecida a partir de um consenso entre os homens, da

concordância de suas opiniões e da complementaridade de seus objetivos.

Este ideal de consenso, para este sociólogo, não é possível em uma sociedade

contemporânea, caracterizada pelo pluralismo, pelo alto grau de complexidade, pela

multilateralidade, entre outros fatores. Rejeita-se também a ideia de que as sociedades seriam

constituídas de unidades regionais, territorialmente delimitadas, logo o Brasil seria uma

sociedade diferente da Argentina, que, por sua vez, seria uma sociedade diversa da sociedade

alemã, e assim por diante. Logo, as sociedades poderiam ser observadas a partir de um ponto

de vista exterior como grupos de seres humanos ou como territórios (RODRÍGUEZ apud

LUHMANN, 2007, p. 12-13).

Ressalte-se que a proposta deste trabalho somente é possível com a adoção do

instrumental teórico luhmanniano, e não mais do pressuposto de conceber a comunicação

como uma forma de ação humana, mas deve-se considerar a comunicação como a síntese de

três operações seletivas: mensagem (Mitteilung), informação (Information) e compreensão

(Verstehen) (LUHMANN, 2007, p. 49). A comunicação, portanto, é elemento essencial para a 3 O termo Umwelt pode ser traduzido para o português como "entorno" ou "ambiente". A maior parte da doutrina, e há uma preferência neste trabalho, por esta última denominação, tendo em vista que se aproxima mais da ideia de diferenciação entre sistema e ambiente (Umweltdifferenzieung) proposta por Luhmann. Deve-se ter em mente que o termo "ambiente", em português, deve direcionar para uma dimensão referente ao que seja essencialmente diferente de um sistema, e não a algo que lhe seja interno.

usuario, 10/11/14,
Original: “por ser multilateral”
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autorreprodução dos sistemas sociais, bem como se trata de uma conceituação basilar na obra

deste autor (VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 34).

Somente a comunicação pode ser considerada uma operação eminentemente

social. A partir dela, podemos entender a existência e o relacionamento entre dois seres

humanos, entendidos como a união de dois sistemas psíquico e orgânico, no âmbito da

consciência (VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 35). Bem como se torna possível entender que

a comunicação entre dois subsistemas sociais, como direito e economia, dá-se a partir de uma

operação de mensagem, informação e compreensão, e somente este processo é capaz de

garantir a autopoiese do subsistema social e sua autorreferência.

Percebe-se que esta é uma diferenciação fundamental para Luhmann, de modo

que, apesar de o ambiente ser um pressuposto para a existência do sistema, ambos se

comunicam sem que haja uma determinação ou imposição de cognição do ambiente para o

sistema e vice-versa. Desse modo, resta claro que o sistema não pode operar fora dos seus

limites, bem como o ambiente também não pode intervir diretamente nas operações internas

do sistema, mas tão somente "irritá-lo", de modo a criar influências recíprocas (LUHMANN,

2007, p. 40-44).

Diante desse contexto, destaca-se que Luhmann não propõe que os sistemas sejam

autossuficientes e independentes do seu ambiente. Pelo contrário, defende-se a ideia de

autopoiese (Autpoiesis)4 sistêmica, ou seja, cada sistema está inserido num ambiente, que é

composto por outros sistemas, e está em um constante processo de comunicação, porém cada

um deles enxerga e entende o outro a partir de seus próprios códigos binários, de modo que

cada sistema produz seus próprios elementos e estruturas a partir de operações recursivas,

possibilitando sua autorreprodução (VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p.46). Desse modo, v.g., o

subsistema direito, ao comunicar-se com a economia, compreende-a a partir de seus próprios

códigos, ou seja, lícito e ilícito 5, e não a partir dos códigos próprios da economia, de modo

que não há uma interferência direta entre dois sistemas, reforçando a característica de

autorreprodução e autorreferência dos sistemas sociais, vivos e psíquicos. 4 Autopoiese é um termo elaborado, durante a década de 70, pelos filósofos e biólogos Francisco Varela e Humberto Maturana para definir a capacidade de seres vivos de produzirem a si mesmos (autorreprodução). Posteriormente, esta terminologia passou a ser adotada por Niklas Luhmann, na sociologia, para a construção conceitual da teoria dos sistemas autopoiéticos.

5 A tradução realizada para o português de Recht e Unrecht pode ser entendida como "direito e não direito" ou "lícito e ilícito", inclusive no próprio idioma alemão haveria ambiguidades terminológicas que poderiam carregar certa carga moral. As traduções iniciais, principalmente de versões espanholas, preferiam aqueles termos. Neste trabalho, porém, far-se-á a opção por traduzir Recht como "lícito" e Unrecht como "ilícito", tendo em vista que se pretende fazer uma análise técnica e desprovida de conteúdos valorativos.

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Logo, cada subsistema reproduz-se a partir de seus próprios códigos, e somente

assim é possível identificar e distinguir um sistema dos demais e de seu ambiente. Desta

forma, em um órgão judicial decisório, ao levar em consideração elementos da ciência em

suas decisões jurídicas – como ocorre recorrentemente no debate do conceito de vida –, o

sistema direito, apesar de considerar elementos do sistema ciência, fá-lo-á a partir de seu

próprio código binário, qual seja, lícito e ilícito, e não a partir dos códigos próprios da ciência.

Isto pode ser caracterizado como uma abertura de cognição do subsistema direito ao

subsistema ciência, que requer o pressuposto autorreferencial do fechamento operacional,

para uma comunicação sem interferência direita de um no outro.

Tal processo comunicativo, que possibilita a abertura cognitiva de um sistema a

partir de seu fechamento operacional, é denominado acoplamento estrutural.

Com os acoplamentos estruturais, um sistema pode relacionar-se com condições

altamente complexas do seu ambiente, sem a necessidade de absorver ou reconstruir sua

complexidade, tendo em vista que se capta apenas uma parte reduzida do ambiente, pois nem

tudo que rodeia o sistema irá irritá-lo ou o estimulá-lo. Somente dessa forma fica assegurada a

autopoiese do sistema, bem como a construção de sua complexidade. Servem como uma

redução da complexidade estrutural (do ambiente) para construção da complexidade operativa

(do sistema) e, por conseguinte, como uma forma para que o acoplamento estrutural entre os

sistemas psíquicos e sociais se adapte permanentemente às condições de mudança da

sociedade (LUHMANN, 2007, p. 78-81).

O conceito de acoplamento estrutural aduz também, finalmente, que, mesmo que

os sistemas sejam autorreferenciais, no entanto, estão normalmente disponíveis num

determinado sentido tolerado pelo ambiente. O lado do acoplamento estrutural que é interno

ao sistema pode apontar para o conceito de "irritação", significando o estímulo sofrido pelo

sistema. Ressalte-se que as irritações surgem de um confronto interno do sistema

(intrassistêmico), de acontecimentos (em um primeiro momento não identificado), com

possibilidades próprias, especialmente com expectativas estabilizadas. Portanto, as irritações

não provêm do ambiente do sistema, mas de dentro do próprio sistema. Trata-se de uma

construção própria, uma autoirritação (obviamente depois de uma influência proveniente do

ambiente), o sistema tem, então, a possibilidade de encontrar em si mesmo a causa da

irritação e de aprender com ela, ou pode atribuir a irritação ao seu ambiente e, assim, tratá-la

como uma causalidade, ou ainda buscar sua origem no ambiente para aproveitá-la ou

descartá-la. Essas possibilidades específicas levam à ideia de própria distinção do sistema,

usuario, 10/11/14,
Não seria “sem”?
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bem como remontam à ideia de autorreferência e heterorreferência (LUHMANN, 2007, p.

87).

Percebe-se, portanto, que Luhmann não defende que cada sistema possa existir

por si mesmo, sem qualquer relação com o ambiente, mas que possa haver uma abertura

cognitiva a partir de um fechamento operacional de cada sistema, desse modo será possível a

comunicação intersistêmica. A partir dessa substituição conceitual, a sociedade moderna

passa a ser definida como "um sistema autorreferencial e autopoético fundado na

comunicação e que se caracteriza por ser funcionalmente diferenciado" (VILLAS BÔAS

FILHO, 2009, p. 96).

Mais uma forma de manutenção da autorreferência e autorreprodução dos

sistemas trata-se de sua fundamentação em um programa próprio. Ou seja, além de se basear

em um código binário próprio, os sistemas sociais, ao considerar seu ambiente (outros

sistemas), também pressupõem a existência de um programa próprio. Para o direito, este

programa se configura no próprio conteúdo jurídico de determinado contexto, ou seja, a

doutrina, a legislação, os princípios e as regras, bem como as teorias jurídicas. Logo, quando

se fala em "direito brasileiro" ou "direito alemão", estamos diante de um programa de

determinado sistema social.

Percebe-se que, apesar de um mesmo sistema possuir vários programas distintos,

todos os sistemas são pautados pelos mesmos códigos binários. Desse modo, uma ordem

jurídica nacional poderá reconhecer e compreender o direito constitucional alemão, tendo em

vista que o direito alemão e o direito brasileiro, apesar de serem compostos por programas

diferentes, são baseados no mesmo código binário, lícito e ilícito, e compõem o mesmo

sistema: direito. Da mesma forma, a ciência, apesar de comportar diferentes programas, está

fundamentada no mesmo código binário, permitindo sua compreensão de modo universal em

qualquer lugar.

A partir desse ponto de vista, é possível conceber e compreender a ideia de

sociedade mundial proposta por Luhmann. A teoria dos sistemas proposta por este sociólogo

pretende superar a ideia de uma sociedade dividida em diversos territórios, o que sustentaria,

de forma inadequada, o argumento da existência de uma pluralidade de sociedades

(LUHMANN, 2007, p. 11-12). Luhmann propõe a ideia de uma sociedade mundial, de modo

que não haja limites territorialmente definidos, mas uma sociedade como sistema social

abrangente. Nesse sentido,

La precisión de que la sociedad es un sistema social omniabarcador trae como consecuencia que para cada comunicación con capacidad de enlace

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haya sólo un sistema único de sociedad. En el plano meramente fáctico pueden existir diversos sistemas de sociedad, de la misma manera en que antes se hablaba de un gran número de mundos. Pero si existieran estas sociedades, estarían sin relación comunicativa; o bien, en la perspectiva de cada una de ellas, una comunicación con las otras sociedades sería imposible o no tendría consecuencias (LUHMANN, 2007, p.108).

Desse modo, temos uma sociedade mundial que não se delimita territorialmente,

bem como é apresentada a partir de sistemas funcionalmente diferenciados. Logo, apesar de

cada sistema apresentar programas distintos ao redor do mundo, é possível ter uma percepção

universal de cada subsistema social, pois, em qualquer país, teremos a comunicação

intersistêmica ocorrendo a partir dos mesmos códigos binários.

2 O DIREITO COMO SISTEMA SOCIAL FUNCIONALMENTE DIFERENCIADO

O direito, assim como os outros subsistemas funcionais, produz e reproduz suas

próprias estruturas, bem como seus próprios componentes constituintes "a partir de seus

próprios elementos e estruturas e mediante operações recursivamente fechadas" (VILLAS

BÔAS FILHO, 2009, p. 139). Por isso, trata-se de um sistema autorreferencial.

Ademais, é necessário realizar a distinção entre códigos binários e programas,

tendo em vista que a delimitação destes conceitos é essencial para a manutenção da

autopoiese do direito enquanto sistema social, pois, somente a partir dessa diferenciação, será

possível equilibrar rigidez caracterizadora do código binário lícito/ilícito, a partir de

programas condicionais que nos permitem fazer uma atribuição adequada desses códigos.

Ou seja, somente será possível a caracterização de um valor positivo (lícito) ou de

um valor negativo (ilícito), nas operações autorreferenciais da comunicação jurídica, a partir

do preenchimento do conteúdo do direito, ou seja, segundo seu programa. É desta forma que o

código binário é completado pelo programa do direito, ou seja, as leis, as decisões judiciais, a

doutrina e os demais institutos jurídicos são responsáveis por estabelecer quais serão os

valores do código (positivo ou negativo), fixando condições concretas para a atribuição de tais

valores, "permitindo, por exemplo, que num dado litígio se indique quem ostenta expectativas

conforme o direito e quem não as ostenta" (VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 148).

Nesse sentido, os valores que compõem o direito são fundamentais para a

possibilidade de abertura cognitiva do sistema, "pois é ele que determina quais aspectos do

sistema têm que processar cognições e em que ocasiões isso deve acontecer" (VILLAS BÔAS

FILHO, 2009, p. 146).

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Para este sociólogo alemão, a norma não se constitui tão somente a partir das

motivações que levam ao seu cumprimento, este seria um papel secundário do direito.

Primordialmente, busca-se a estabilização das expectativas geradas a partir das normas

jurídicas. Logo, a norma não assegura um comportamento conforme ela mesma, mas busca

proteger os indivíduos que têm essa expectativa (normativa).

Portanto, diante de uma norma que prevê a proibição do avanço de veículos diante

de um semáforo vermelho, pode-se perceber que o principal objetivo desta norma é estabilizar

as expectativas contrafáticas voltadas para esta prescrição abstrata. Trata-se de uma presunção

de que os indivíduos, em regra, não irão ultrapassar o semáforo vermelho e, por conseguinte,

os demais indivíduos poderão agir adequadamente a partir dessa expectativa de cumprimento

da norma, de modo que todos possam se posicionar de acordo com essa norma, ainda que

seja possível o seu descumprimento. Luhmann não pressupõe que as normas nunca serão

descumpridas, mas estabelece que

Por eso el que determinemos la función del derecho como la disposición que estabiliza las expectativas normativas no nos predetermina a que pensemos la relación del derecho con respecto al comportamiento. Con frecuencia se imagina que el derecho limita las posibilidades del comportamiento. Pero, de la misma manera, el derecho puede adoptar la función de habilitar un comportamiento que sin el derecho no tendría posibilidades de existir. Piénsese en las posibilidades que resultan en el derecho privado a partir de la propiedad, del contrato e incluso de la figura jurídica de la responsabilidad limitada. Tampoco el derecho administrativo, aunque "constitucional", se puede comprender adecuadamente como limitación de la arbitrariedad del gobernante soberano. Al contrario, se trata en la actualidad de un derecho que otorga poderes (condicionados) que sin este tipo de derecho ni siquiera existirían. En ambos casos -en el de la limitación y en el del otorgamiento (y la realidad consiste de combinaciones)-, se presupone una estructura de expectativa. La concordancia radica en la certeza de que es posible conformar expectativas acertadas que se mantienen a cierta distancia respecto a lo que sucede fácticamente (LUHMANN, 2005, p. 94).

Resta claro que, para a teoria dos sistemas de Luhmann, a principal função do

direito é de estabilizar expectativas normativas, porém não se resume somente a isso, tendo

em vista que, para a persecução deste fim, o direito necessariamente realiza uma regulação de

condutas generalizada, prevendo sanções, procedimentos e premissas jurídicas que

fundamentam suas decisões.

Diante desse contexto, percebe-se que o direito ocupa uma função

importantíssima na sociedade contemporânea, tendo em vista que se pretende a estabilização

contrafática de as expectativas normativas, bem como a regulação comportamentos com uma

pretensão de imposição, mediante a generalização congruente de tais expectativas nas

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dimensões temporal, social e material. Desse modo, o subsistema direito é capaz de se inter-

relacionar constantemente com diversos outros subsistemas e com a própria sociedade,

enquanto sistema mais abrangente. Logo, o direito assume uma enorme responsabilidade

numa sociedade funcionalmente diferenciada (VILLAS BÔAS FILHO, 2009, p. 153).

Diante da relevância da função do direito na sociedade, Luhmann ressalta, ainda, a

importância dos tribunais como centro do sistema jurídico contemporâneo (LUHMANN,

2005, p. 359).

Nesse sentido, Anne-Marie Slaughter aponta inclusive para a ideia de uma

"comunidade global de cortes", tendo em vista o diálogo entre cortes constitucionais, o

engajamento de juízes nesse sentido; constatam-se, na atualidade, cortes resolvendo disputas

comerciais transnacionais, a comunicação constante entre cortes nacionais e supranacionais,

conforme ocorre na União Europeia, havendo também o encontro de juízes em seminários,

congressos e organizações judiciais. Desse modo, pode-se entender que uma comunidade

global de cortes é uma realidade em progresso, considerando ainda que

Communities may gradually emerge, but they often require conscious construction. As demonstrated above, many constitutional court judges around the world ate actively engaged in this process. Ordinary courts resolving transnational commercial disputes may be less aware of the larger import of many their decisions. Here too, however, signs of self-conscious interaction with their foreign brethren are increasingly evident. Added to this mix are relations between national courts and their supranational counterparts, as well as actual personal meetings of judges through seminars, conferences, and judicial organizations. Yet to become a genuine community, the members must ultimately do more than meet and interact. They must share the common values and principles that constitute the normative understandings of a community. Here the global community of courts is unquestionably a work in progress, and its hallmarks may be conflict as much as cooperation. But the outlines of a more genuine community can be discerned6 (SLAUGHTER, 2003, p. 215).

Percebe-se, portanto, que, para a construção de uma comunidade global de cortes,

é necessário que juízes não somente se encontrem e interajam, mas também que compartilhem

6 Comunidades podem crescer gradualmente, mas que muitas vezes exigem uma construção consciente. Como demonstrado acima, muitos juízes de cortes constitucionais em todo o mundo estão ativamente engajados neste processo. Tribunais comuns resolvendo disputas comerciais transnacionais podem estar menos cientes da maior importação de muitas de suas decisões. Aqui também, no entanto, sinais de interação consciente com entes estrangeiros estão cada vez mais evidentes. Soma-se a esse contexto, relações entre os tribunais nacionais e os seus homólogos supranacionais, bem como encontros pessoais reais de juízes por meio de seminários, conferências e organizações judiciárias. No entanto, para se tornar uma verdadeira comunidade, os membros devem finalmente fazer mais do que conhecer e interagir. Eles devem partilhar os valores e princípios comuns que constituem os entendimentos normativos de uma comunidade. Aqui a comunidade global de cortes é, sem dúvida, um trabalho em andamento, e suas marcas podem ser conflito tanto quanto cooperação. Mas os contornos de uma comunidade mais genuína pode ser discernida. (tradução do autor)

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valores e princípios comuns, de modo a constituir uma compreensão normativa da própria

comunidade. Trata-se de uma elaboração em andamento que já pode ser percebida na

contemporaneidade.

Assim, um órgão judicial brasileiro pode compreender o que é direito em decisões

proferias por um órgão internacional, transnacional7 ou por outros Estados, a partir de uma

diferenciação de lícito/ilícito, sem perder sua autoridade interna ou externa, ou seja, sem que

sua soberania jurídica seja "relativizada". Por esse motivo, neste trabalho preferimos instigar a

ideia de um novo significado que o conceito de soberania jurídica adquire na sociedade

contemporânea, e não somente caracterizá-la como relativizada.

Por conseguinte, o direito pode ser percebido para além de um ente estatal

territorialmente delimitado. A extrema globalização, o estreitamento das relações

internacionais, a evolução de entes supranacionais, o avanço científico-tecnológico, os

conflitos político-jurídicos de ordem global, o diálogo entre cortes estatais, internacionais,

supranacionais e transnacionais, entre outros fatores, fazem com que a ideia clássica de

soberania, inicialmente aplicada somente aos entes estatais, seja reorientada para as

exigências da sociedade mundial.

Desse modo, a ideia de direito enquanto sistema funcionalmente diferenciado,

capaz de produzir e reproduzir seus próprios elementos, a partir de programas e código

próprios, permite o reconhecimento da eficácia de decisões de cortes supranacionais e

transnacionais, notadamente acerca da lex mercatoria e lex sportiva, ainda que estejam em

conflito com normas estatais, como será demonstrado adiante. Leva-se a perceber uma

ressignificação da conceituação de soberania jurídica para além de uma delimitação territorial

estatal, levando em consideração a sociedade mundial, multilateral e hipercomplexa.

3 SOBERANIA JURÍDICA RESSIGNIFICADA: UM REFLEXO

TRANSCONSTITUCIONAL

Diante da emergente evolução de entes transnacionais, da inserção cada vez maior

dos Estados no cenário internacional, do desenvolvimento de ordens jurídicas supranacionais

de âmbito regional, bem como da globalização, percebe-se que o debate tradicional acerca da

soberania do Estado, do ponto de vista normativo-jurídico, de certa maneira, está superado.

Nesse sentido, ressalta Marcelo Neves que

7 "Trans" significa algo que vai "além de", logo entes transnacionais são aqueles que vão além da nação ou de um Estado. Neste trabalho, tal será utilizado eminentemente para indicar cortes cujas decisões podem vincular diferentes entes (estatais e privados), bem como organizações privadas que têm grande influência ao proferir decisões, v. g., a Organização Mundial do Comércio (OMC).

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A inserção cada vez maior do Estado na ordem internacional e, sobretudo, a crescente emergência de ordens jurídicas "supranacionais" de âmbito regional, cujas normas têm validade imediata no âmbito interno de cada Estado-Membro, conduziram a uma crise do conceito de soberania formulado pela Teoria Geral do Estado entre o fim do século XIX e meados do século XX. Essa crise, contudo, não importa necessariamente a impossibilidade de reconstrução do conceito de soberania, conforme uma semântica do Estado Democrático de Direito. Não se trata aqui de considerar a soberania como característica essencial do Estado. O problema é estabelecer o(s) sentido(s) que a expressão "soberania" pode adquirir relativamente à caracterização do Estado Democrático de Direito, seja na perspectiva interna dos sistemas político e jurídico, seja a partir do ponto de vista externo da esfera pública pluralista ou das esferas sociais autônomas (NEVES, 2012, p. 159).

Diante dessa crise conceitual, a ideia de soberania passa a ser reorientada a partir

da teoria dos sistemas, sendo essencial a distinção entre soberania política e soberania

jurídica, tendo em vista que este trabalho tem o enfoque principal na delimitação,

compreensão e perspectivas da soberania jurídica na contemporaneidade.

Assim, a soberania do Estado passa a ser redefinida como a própria autopoiese da

política. Ora, o sistema político diferencia-se funcionalmente na sociedade atual, desta forma,

“reproduz-se autonomamente de acordo com os seus próprios códigos de preferência e

critérios ou programas(fechamento operacional)’’ (NEVES, 2012, p. 160), muito embora seja

irritado por fatores externos e esteja receptivo às exigências do ambiente em que está inserido

(abertura cognitiva). A partir desse contexto, é possível perceber que a soberania política

encontra significado na sua própria autopoiese, tendo em vista sua autorreprodução levando

em consideração elementos próprios, bem como programas e códigos próprios.

Por outro lado, em relação ao Estado de Direito, a soberania (agora jurídica)

também pode ser caracterizada como a autonomia operacional do sistema jurídico. Deve ser

ressaltado que o código binário poder/não poder, caracterizador do sistema político, não pode

se sobrepor ao código lícito/ilícito, e vice-versa. Logo, não pode haver uma imposição do

"poder" em relação ao direito, pois estaria descaracterizada a soberania do Estado enquanto

conceito sistêmico, devendo haver uma reciprocidade da autopoiese dos sistemas jurídico e

político para a delimitação do Estado de Direito.

Ressalte-se, ainda, que a Constituição pode ser entendida como acoplamento

estrutural destes dois sistemas autopoiéticos. Assim, ela pode ser entendida como "mecanismo

sistêmico da soberania do Estado enquanto organização central ou centro de observação de

dois sistemas autopoiéticos estruturalmente acoplados, a política e o direito" (NEVES, 2012,

p. 161). Nesse sentido, Marcelo Neves conclui que

usuario, 10/11/14,
Original: “crise conceitual, o conceito ...”
Page 13: file · Web viewÉ essencial destacar que a lei espanhola proibia sustentar recurso à arbitragem em matéria de doping, e o atleta alegava violação do seu direito ao acesso à

a Constituição como acoplamento estrutural desparadoxiza ou soluciona o paradoxo da soberania política e da soberania jurídica, na medida em que relaciona mutuamente uma à outra, a saber, institucionalizada a condicionalidade política da soberania ou da positividade jurídica (o fato de que o estabelecimento e a alteração permanente e continuada do direito dependem de decisões políticas) e a vinculação da política estatal soberana ao direito ("lícito/ilícito" como segundo código de poder). Essa desparadoxização resulta inclusive em "hierarquias entrelaçadas" na relação entre soberania política e soberania jurídica do Estado (2012, p. 161).

É perceptível que a ideia de soberania jurídica e política deve estar ligada,

sobretudo, a uma relação horizontal, sem a imposição de um sistema sobre o outro,

caracterizando, assim, o Estado de Direito na sociedade contemporânea.

É imprescindível, portanto, destacar que o conceito de soberania, a partir da

Teoria dos Sistemas, está intimamente ligado à caracterização da reprodução dos sistemas

funcionais Política e Direito, de forma autônoma e a partir de seus próprios códigos e

programas.

Remete-se, pois, à diferenciação de "soberania política" e "soberania jurídica",

caracterizadas pela autopoiese de cada subsistema funcional. A partir do que foi formulado,

permite-se atribuir soberania jurídica a entes não estatais8, tendo em vista a existência de

atores privados transnacionais capazes de realizar de forma autônoma a reprodução do

sistema jurídico, baseando-se no código próprio “lícito/ilícito”, a partir de um fechamento

operacional e de uma abertura cognitiva do subsistema Direito.

Se temos a definição de soberania jurídica a partir de sua capacidade de

autorreprodução, baseada em programa e código próprios, de forma autopoiética, garantindo

sua função essencial e sua estabilização de expectativas normativas, pode-se falar na

caracterização de soberania jurídica de cortes transnacionais e supranacionais territorialmente

deslocadas.

Se não podemos conceber o sistema política apartado de uma delimitação

territorial, o mesmo não se pode dizer em relação ao sistema jurídico, que tem uma

capacidade muito maior de autorreprodução e abertura cognitiva.

Percebe-se, pois, uma desvinculação territorial da soberania jurídica na sociedade

contemporânea, diferentemente da soberania política, que tem dificuldades de se reorientar na

sociedade mundial.

8 A título de exemplo, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), que tem capacidade de conferir eficácia a suas decisões, mesmo diante de ordens estatais, reproduzindo seu sistema jurídico (lex sportiva) de forma autônoma e através de programas (lex sportiva) e códigos (lícito/ilícito) próprios.

Page 14: file · Web viewÉ essencial destacar que a lei espanhola proibia sustentar recurso à arbitragem em matéria de doping, e o atleta alegava violação do seu direito ao acesso à

Deve-se destacar que, neste momento, será dado um enfoque eminentemente

direcionado para a ressignificação do conceito e dos limites da soberania jurídica na sociedade

mundial e hipercomplexa, a partir de uma perspectiva transconstitucional.

Em um contexto em que o direito se mostra extremamente fragmentado na

sociedade mundial, percebe-se a emergência de ordens jurídicas (internacionais,

supranacionais e transnacionais) no cenário global com uma alta capacidade de

autorreprodução do sistema jurídico. Nesse sentido, exemplos de decisões jurídicas

envolvendo o diálogo entre cortes arbitrais (lex mercatoria e lex sportiva), supranacionais,

internacionais e estatais desenvolve-se para a ressignificação do conceito de soberania na

contemporaneidade.

Marcelo Neves ressalta inclusive a força normativa de uma ordem jurídica

regional, como o Tribunal Europeu de Direito Humanos, bem como destaca a proeminência

normativa das decisões da Organização Mundial do Comércio (OMC), in verbis:

Evidentemente, quando se trata de uma ordem regional, como a construída pela Convenção Europeia de Direito Humanos e concretizada pelo respectivo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, é inegável a sua força normativa no âmbito dos Estados envolvidos, especialmente pela presença dos deveres erga omnes e pela aplicação do princípio geral do jus cogens. Também no caso da OMC, embora ainda fundada em um modelo decisório de negociações muito instáveis, facilmente suscetível de bloqueio (modelo intergovernamental), é inegável a força normativa vinculante das decisões em relação aos Estados, organizações e empresas afetadas. (NEVES, 2009, p. 98-99)

Percebe-se que há um crescente desenvolvimentos de ordens jurídicas autônomas

no cenário global, inclusive atores privados, que tem a capacidade de vincular suas decisões a

outras ordens jurídicas, até mesmo a ordens estatais.

Nesse sentido, quando não existe hierarquia entre ordens jurídicas, como resolver

conflitos de caráter constitucional? Com diálogo ou com imposição de normas?

Diante desse paradoxo, o transconstitucionalismo surge como uma proposta de

"conversação" entre ordens jurídicas diversas, tendo em vista que estas se manifestam dentro

de um mesmo sistema funcional (o direito), logo, apesar de haver programas (de decisão) e

critérios (de solução de problemas) distintos, estão vinculadas a um mesmo código binário

(lícito/ilícito), permitindo o diálogo entre cortes, tendo em vista a diferenciação entre a ordem

jurídica estatal, supranacional, internacional e, ainda, ordens transnacionais, desvinculadas,

por sua transterritorialidade, do direito estatal. (NEVES, 2009, p. 116)

Esse contexto evidencia a possibilidade de plena correspondência entre diferentes

níveis de ordens jurídicas dentro do sistema jurídico mundial. Apesar da fragmentação do

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direito, a teoria dos sistemas permite a constatação de um sistema jurídico global, verificando-

se, contudo, uma pluralidade de ordens jurídicas, cada uma com seus programas, critérios,

estruturas, procedimentos e identidade próprios, mas sempre comunicam-se a partir de um

mesmo código: lícito e ilícito.

Com efeito, “essa multiplicidade de ordens diferenciadas no interior do sistema

jurídico não implica isolamento recíproco’’ (NEVES, 2009, p. 116).

De modo cada vez mais frequente, tribunais estatais ao redor do mundo fazem

referência a decisões de cortes de outros Estados, mediante um diálogo constitucional. Muitas

vezes, há uma correspondência entre os problemas que demandam um diálogo constitucional

a nível jurisdicional (NEVES, 2009, p. 166-167).

O transconstitucionalismo entre cortes não se trata tão somente da constatação de

decisões relevantes ou de uma forma de referências recíprocas entre decisões de cortes

estatais. Além disso,

o transconstitucionalismo entre ordens jurídicas importa que, em casos constitucionais, as decisões de cortes constitucionais de outros Estados são invocadas em decisões de tribunal constitucional de um determinado Estado não só como obter dicta, mas como elementos construtores da ratio decidendi (NEVES, 2009, p. 167).

Ou seja, a relação transconstitucional visa à referência a outras ordens jurídicas,

de modo a fundamentar somente aquilo que é realmente necessário para decidir perante a

corte (a partir de outros tribunais). A mera referência de decisões estrangeiras não configuram

ratio decidendi, mas obter dicta.

3.1 Lex sportiva

No sentido de reforçar essa ideia de soberania jurídica, o exemplo a seguir é

elucidativo. A nadadora brasileira profissional Rebeca Gusmão conquistou duas medalhas de

ouro nos Jogos Pan-Americanos de 2007, enquanto aguardava o resultado de uma acusação

por doping devido a um teor anormal de testosterona exógena constatada em uma competição

anterior. Constatada a irregularidade, a atleta foi condenada pela Federação Internacional de

Natação (FINA), resultando na suspensão da atleta por dois anos. Após esse fato, foi

constatada a presença de dois DNA's diferentes na urina coletada nos Jogos Pan-Americanos

de 2007, evidenciando que uma delas não poderia corresponder à urina da atleta. Diante disso,

o Ministério Público propôs uma denúncia contra Rebeca por falsidade ideológica. Nesse

contexto, ainda havia um recurso pendente de julgamento da atleta no Tribunal Arbitral do

Esporte (TAS), última instância esportiva (NEGÓCIO, 2011, p. 1).

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Em 11 de agosto de 2009, a desportista foi absolvida pela ordem jurídica

brasileira da acusação de utilizar urina de outra pessoa. Entretanto, em 13 de novembro de

2009, o TAS considerou a nadadora culpada, banindo-a permanentemente do esporte

(Sentença nº 2008/A/1572; 2008/A/1632; 2008/A/1659, de 13 de novembro de 2009 –

Gusmão c/ FINA).

Assim, a corte arbitral desportiva, apesar da decisão da ordem jurídica brasileira,

proferiu uma decisão dotada de eficácia inclusive para a jurisdição nacional, tendo em vista

que a atleta ficou proibida de exercer sua atividade profissional definitivamente. Assim,

possibilita-se a manutenção da eficácia de decisões proferidas por um ente não estatal,

revelando uma nova visão acerca da soberania jurídica dos Estados, tendo em vista que a

caracterização do poder estatal como "absoluto" não se mostra suficiente para explicar a

realidade social. Nesse sentido, Negócio ressalta que

Atuando de forma mais independente desde 1993, o TAS desenvolveu padrões interpretativos de decisão que vão desde a não-intervenção nas regras do jogo até o banimento de atletas. O crescimento da complexidade nos julgados esportivos é resultado de uma maior complexidade de problemas lá desenvolvidos, como no caso do doping: atletas, independentemente de idade e sexo, podem ser proibidos, por um órgão não-estatal, de exercer sua atividade remuneratória, se recorrentes no uso do doping. Esse fato vai tocar em várias áreas do saber jurídico. Desde já, o fenômeno do direito desportivo transnacional – lex sportiva – merece maiores considerações pelas doutrinas de Teoria Geral de Direito e Direito Internacional, da mesma forma ela merece considerações do Direito Constitucional. Os problemas constitucionais, nesse contexto, emancipam-se do Estado para ganhar novas aplicações de Tribunais fora do plano estatal. O poder de vinculação da lex sportiva – ordem jurídica sem Constituição – aos seus atores traz uma nova visão no que tange à soberania jurídica do Estado, principalmente quando a decisão dela se sobrepõe a algum órgão estatal. De forma dependente, outras situações aparecem, como a limitação ao Poder Judiciário e a nova significação à nacionalidade e à cidadania (NEGÓCIO, 2011, p. 2).

Dessa forma, aponta-se para um novo paradigma, não se pretende propor uma

diminuição ou uma relativização da soberania jurídica estatal, mas sua desparadoxização na

sociedade contemporânea, apontando para uma ideia de soberanias jurídicas horizontais a

partir de um diálogo constitucional entre cortes.

Nesse sentido, fala-se de "conversação" ou "diálogo" entre cortes, que podem se desenvolver em vários níveis: por exemplo, entre o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (supranacional) e os tribunais dos Estados-Membros, entre o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (internacional) e as cortes nacionais ou o TJCE, entre cortes nacionais etc. Essa "conversação" (que constitui, a rigor, comunicações transversais perpassando fronteiras entre ordens jurídicas) não deve levar a uma ideia de

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cooperação permanente entre ordens jurídicas, pois são frequentes os conflitos entre perspectivas judiciais diversas. No limiar, toda "conversação" entre cortes carrega em si o potencial de disputa (NEVES, 2009, p. 117).

Resta claro, por conseguinte, a possibilidade de horizontalização das relações

entre ordens jurídicas, afastando-se de disputas com a imposição "top down" nessa

perspectiva (NEVES, 2009, p. 161).

3.2 Lex mercatoria

Em março de 1996, a Câmara de Arbitragem de Paris afasta a aplicação de um

dispositivo legal de um Estado, decidindo a partir de uma regra própria. Utiliza-se o

argumento da proibição do venire contra factum proprium9, que é considerada como uma

regra da lex mercatoria10, ao decidir o caso 9246, de março de 1996 da Câmara de Arbitragem

de Paris. Nesse sentido, a lex mercatoria trata-se de uma realidade que permite, inclusive,

uma corte arbitral afastar normas estatais em detrimento de suas regras (MENDES, 2010, p.

36-40).

Muito embora se afaste o direito estatal em razão de regras próprias, trata-se de

uma decisão com grandes chances de aceitabilidade, pois, de certa forma, garante uma ideia

de previsibilidade pelos atores internacionais, bem como pode ser observada por outras cortes

arbitrais e, até mesmo, servir de precedente para outras decisões, tendo em vista que se

considerou elementos próprios como critério de julgamento (MENDES, 2010, p. 39).

Percebe-se que a lex mercatoria é uma realidade com a qual temos que lidar.

Nesses casos, a ideia de uma soberania absoluta atribuída tão somente a entes estatais não é

capaz de responder à realidade social extremamente plural e complexa. Assim, pode-se

atribuir soberania jurídica a determinadas cortes arbitrais que, a partir de um contexto

específico, decidem casos concretos afastando até mesmo o direito estatal.

Percebe-se que situações como essas se enquadram perfeitamente na ideia de

soberania jurídica reorientada a partir da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, tendo em

vista que há uma clara capacidade de autorreprodução do sistema jurídico no âmbito

transnacional, ou seja, perpassando as fronteiras estatais, utilizando um programa próprio (lex

mercatoria), a partir do mesmo código binário universal do direito (lícito/ilícito), com uma

pretensão de estabilização de expectativas normativas (principal função do direito).

Evidencia-se a caracterização de soberania jurídica a entes privados na ordem

transnacional, assim como ocorre nas decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral do Esporte

9 Vedação de comportamento contraditório10 A lex mercatoria pode ser entendida como um conjunto estruturado de regras do comércio internacional que tem sido desenvolvido pela prática e afirmado pelas cortes nacionais.

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(TAS). Nesse sentido, não se pretende a atribuição de soberania como uma forma de impor

decisões proferidas por órgãos privados a Estados de cima para baixo (top down). Pelo

contrário, objetiva-se ressaltar a autonomia do sistema jurídico numa sociedade mundial

hipercomplexa, atribuindo uma nova significação à definição de soberania (jurídica) diante

dos avanços do direito e da própria realidade social.

Os exemplos dados a título de lex sportiva e lex mercatoria são elucidativos na

caracterização de soberania jurídica a entes privados (cortes arbitrais), tendo em vista o alto

grau de eficácia de suas decisões, contrariando, inclusive, normas estatais. Isso se dá a partir

da capacidade de autorreprodução do sistema jurídico de forma autônoma na sociedade

mundial, a partir de programas e códigos próprios, evidenciando um paradoxo entre teorias

clássicas na pretensão de descrição da soberania na atualidade.

Esse cenário possibilita a reprodução de um programa jurídico próprio e

autônomo, caracterizando inclusive a soberania jurídica de cortes arbitrais deslocadas

territorialmente (NEVES, 2009, p. 26). A autonomia operacional da lex sportiva, nesse sentido,

reforça a ideia de soberania jurídica de ordens transnacionais (NEGÓCIO, 2011, p. 126-128),

bem como sua importância na ressignificação do conceito de soberania na sociedade mundial,

quando constatamos ordens jurídicas privadas que ultrapassam os limites territoriais do

Estado (TEUBNER, 1997, p. 782-784).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma, percebe-se que as ordens jurídicas transnacionais, sem Estado e

territorialmente deslocadas, são igualmente soberanas, demandando horizontalidade diante de

ordens internacionais, nacionais e supranacionais. Reorienta-se, pois, a relação entre

soberanias jurídicas, destacando sua desvinculação territorial na sociedade contemporânea.

Deve ser ressaltado que o transconstitucionalismo é um instituto que denuncia,

mais que uma necessidade de um diálogo, uma relação horizontalizada entre soberanias

jurídicas.

Destaca-se que esse conceito de soberania jurídica é reorientado a partir da teoria

dos sistemas de Luhmann, podendo ser caracterizada como a capacidade de autorreprodução

autônoma do sistema jurídico a partir programas e códigos próprios

Logo, a soberania, nos moldes vistos, não mais é atribuída somente a entes com

Estado, mas percebe-se que ordens jurídicas internacionais, supranacionais e transnacionais

são igualmente soberanas no atual cenário mundial, globalizado e extremamente complexo,

destacando-se a ideia de soberanias horizontais a partir de um diálogo transconstitucional.

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