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Seminário Lusófono de Capacitação e Consulta da Bíblia Hotel VIP, Maputo, 1 de Agosto de 2016 A Batalha das Línguas nos PALOPs e a Tradução da Bíblia Armando Jorge Lopes Professor Catedrático, Universidade Eduardo Mondlane Vice-Reitor, Universidade Politécnica de Moçambique Na sequência de um primeiro contacto do meu amigo Doutor Edouard Kitoko-Nsiku que me dizia que as suas notícias eram indicação da “volta do pródigo” e me convidava para abrir este seminário, recebi um convite formal que me foi endereçado pelo Reverendo Valente Tseco, Director-Executivo da Sociedade Bíblica de Moçambique (SBM) e ao qual respondi positivamente. É um prazer colaborar com a SBM uma associação interconfessional de natureza religiosa, cultural e de acção social com fins não lucrativos, que inclui na sua acção projectos de tradução da Bíblia para várias línguas, como por exemplo, o Gitonga, Emakhuwa, Elomwe, Xirhonga e Cicopi. Para este seminário lusófono de capacitação e consulta da Bíblia foi-me proposto como título para a comunicação “A Batalha das Línguas nos PALOPs e a Tradução da Bíblia”. Assim, vou percorrer alguns meandros da Batalha das Línguas e sobretudo por caminhos relacionados com a tradução que possam ser úteis para este seminário de formação, incluindo questões de terminologia e metodologia. Na comunicação sobre o caso da língua portuguesa na SADC que em 2012 apresentei em Luanda à conferência da CPLP tive a oportunidade de recordar a difícil coabitação, no período colonial, da língua portuguesa com as línguas bantu e com outras línguas de diversas origens, incluindo as de origem asiática, resultando, assim, na hegemonia do Português e na desvalorização das outras línguas. Argumentei então que, nestes novos tempos, o

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Seminário Lusófono de Capacitação e Consulta da BíbliaHotel VIP, Maputo, 1 de Agosto de 2016

A Batalha das Línguas nos PALOPs e a Tradução da Bíblia

Armando Jorge LopesProfessor Catedrático, Universidade Eduardo MondlaneVice-Reitor, Universidade Politécnica de Moçambique

Na sequência de um primeiro contacto do meu amigo Doutor Edouard Kitoko-Nsiku que me dizia que as suas notícias eram indicação da “volta do pródigo” e me convidava para abrir este seminário, recebi um convite formal que me foi endereçado pelo Reverendo Valente Tseco, Director-Executivo da Sociedade Bíblica de Moçambique (SBM) e ao qual respondi positivamente. É um prazer colaborar com a SBM uma associação interconfessional de natureza religiosa, cultural e de acção social com fins não lucrativos, que inclui na sua acção projectos de tradução da Bíblia para várias línguas, como por exemplo, o Gitonga, Emakhuwa, Elomwe, Xirhonga e Cicopi.

Para este seminário lusófono de capacitação e consulta da Bíblia foi-me proposto como título para a comunicação “A Batalha das Línguas nos PALOPs e a Tradução da Bíblia”.

Assim, vou percorrer alguns meandros da Batalha das Línguas e sobretudo por caminhos relacionados com a tradução que possam ser úteis para este seminário de formação, incluindo questões de terminologia e metodologia.

Na comunicação sobre o caso da língua portuguesa na SADC que em 2012 apresentei em Luanda à conferência da CPLP tive a oportunidade de recordar a difícil coabitação, no período colonial, da língua portuguesa com as línguas bantu e com outras línguas de diversas origens, incluindo as de origem asiática, resultando, assim, na hegemonia do Português e na desvalorização das outras línguas. Argumentei então que, nestes novos tempos, o tratamento do Português em Portugal e nos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOPs) deveria prever, em programas de língua e de cultura, a inclusão de acções conducentes à protecção e promoção das línguas indígenas com que o Português, língua oficial, coexiste. Tratar-se-ia, afinal, de um acto dos direitos humanos linguísticos, um acto de justiça para com as línguas que transitam para uma situação real de coabitação, partindo de um passado de negação. Ou como analogamente wa Thiong’o, num contexto da língua inglesa, expressava em Junho de 2012, ao receber um prémio literário num dos países da SADC:

…o direito à língua é um direito humano, tal como todos os outros direitos. (…) A classe média africana está a fugir das suas línguas…e neste processo perpetuam o abuso infantil, à escala nacional. Porque negar a uma criança, qualquer criança que seja, o seu direito à língua materna, educar uma criança como falante monolingue do Inglês numa sociedade em que a maioria fala línguas africanas, alienar essa criança do público a que poderá ser chamada a servir está muito próximo do que se considera ser abuso infantil. 1

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Como é que o conceito de ‘lusofonia’, e cujo termo vem associado ao título deste evento, enquadra o que acaba de ser dito? Como já o referira nas reflexões de 1997 (p.29), de que modo é que a esmagadora maioria de crianças e adultos moçambicanos, falantes de línguas bantu como língua materna (L1), se constitui numa população lusófona? Sabendo o que luso significa etimologicamente, e mesmo considerando novas hipóteses de releitura, reformulação e ampliação do conceito, integrando as novas realidades, defendo a necessidade de repensar e talvez re-designar o termo. A lusofonia é a formulação de uma ideia, um conceito que julgo transdisciplinar e poder ser melhor tratado através de contribuições que a transdisciplina da Linguística Aplicada pode oferecer. A meu ver, a Linguística Aplicada funciona como interface entre a planificação linguística, que é a teoria científica e a política linguística, que é a teoria indigenizada, ou dito de outra forma, a teoria da prática. A lusofonia que é, em minha opinião, um conceito transdisciplinar, em construção, deveria incluir na agenda da Linguística Aplicada temas de reflexão e investigação como os da custódia de língua, usos de língua, substituição de uma língua por outra, revitalização linguística, morte de uma língua, entre outros.

A planificação linguística, outrora conhecida por ‘engenharia linguística’, consiste em actividades que visam mudanças linguísticas numa determinada comunidade, que estudam as forças sociais que influenciam a mudança linguística e os tipos de mudança motivados pelas forças sociais e que, em última instância, assentam na manutenção da ordem civil, na preservação da identidade cultural e no melhoramento da comunicação. A política linguística consiste nas idéias, leis, regulamentos, regras e práticas que visam materializar a pretendida mudança linguística numa determinada comunidade de falantes; ou, também em certa medida, como Honwana (2011) define o conceito para o caso moçambicano, com recurso à ideologia e história:

O estado é simultaneamente o objectivo final do movimento nacionalista e o instrumento para a construção da nação que, consequentemente, deve ter uma natureza multicultural. A política linguística vem assim substituir os processos violentos que levaram à formação das actuais línguas universais e línguas eurásicas. Ela é um elemento fundamental na validação e defesa do multiculturalismo como alternativa nacional.

E o que dizer em relação ao segundo termo que vem no título da minha intervenção? O da designação dos países africanos de língua oficial portuguesa por PALOPs? Como nos referiremos a Moçambique um dia em que a sua política linguística contemplar a oficialização de outras línguas para além da língua portuguesa como acontece com o Inglês e o Afrikaans na África do Sul, que passaram a ser acompanhadas das línguas bantu, como línguas oficiais, na política linguística do país? Nessa altura continuará a ser chamado de PALOP? Como é que designaremos Moçambique nesse espaço dos países africanos que também falam a língua portuguesa e a têm e continuarão a tê-la como língua oficial?

Talvez no âmbito das nossas reflexões a propósito de sermos construtivos e produtivos também nos devamos nortear por caminhos como os que que Said (2005: 40-41) percorre:

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Inspirando-se em Aimé Césaire, Fanon sugere que se trata da necessidade de ‘inventar almas’, não de reproduzir as soluções e fórmulas seja do colonialismo, seja do passado tribal.

Moçambique é considerado um país multilingue, multicultural, multiétnico, multireligioso e de elevada diversidade linguística média. Como línguas maternas dos moçambicanos, falam-se 22 línguas bantu, o Português [6% da população de 23 milhões usam-na como L1 e 40% como língua segunda (L2)], línguas de origem asiática (Guzerati e Memane, entre outras) e o Árabe (Lopes, 1998: 441-449). No passado, classificava-se o nível de diversidade linguística de um país com base no número de línguas nele faladas. Em tempos mais recentes, passou-se a adoptar o critério de Robinson (1993: 52-5) para o tratamento da diversidade linguística, em que uma hierarquização do grau de diversidade linguística não deve ter por base o número total das línguas num dado país, mas sim a percentagem da população que fala uma língua tomada singularmente. Adicionalmente, o autor cria o conceito de elevada diversidade linguística, estabelecendo que a percentagem da população que fala essa língua não pode ser superior a 50%. Em África, cerca de metade dos seus 54 países cabe nesta forma de classificar. A Costa do Marfim é o país africano de maior diversidade linguística. Tem 75 línguas e o Baule, que é a língua com mais falantes, regista cerca de 1 milhão e meio de falantes, representando, assim, 13% da população total do país, que é estimada em cerca de 12 milhões de habitantes. É, pois, o país do continente com a diversidade linguística mais elevada. Na outra extremidade do continuum está o Gana, com 73 línguas, que é o país de elevada diversidade linguística mais baixa. A língua com mais falantes, o Akan (7 milhões), representa 46% da população total do Gana (cerca de 15 milhões). Deste modo, a comparação entre diferentes países revela que o país em que a língua com mais falantes representar a proporção mais baixa em termos numéricos populacionais é considerado o país com maior diversidade linguística.Moçambique, em que o Emakhuwa representa 25% da população total, situa-se sensivelmente a meio da tabela dos países com elevada diversidade linguística em África. Podemos, pois, assim, definir Moçambique como um país de elevada diversidade linguística média. E isto significa que, numa base numérica, nenhuma língua bantu moçambicana pode reivindicar, a nível nacional, o estatuto de língua maioritária. Mas é claro que a língua Emakhuwa é numericamente a língua principal porque nenhuma outra língua se aproxima desta em expressão numérica, nem é tão amplamente falada como o Emakhuwa o é, em pelo menos três das onze Províncias do país. A Guiné Bissau, como Moçambique, também é um país de elevada diversidade linguística média porque a sua principal língua, o Balanta, é falado por 27% da população. Quanto a Angola, trata-se de um país de elevada diversidade linguística alta porque a língua com mais falantes, o Umbundu, é falada por 38% da população.

Compreender o conceito da diversidade linguística é compreender a vivência e prática do multilinguismo e multiculturalismo, o que requer múltiplas reflexões sobre este discurso, em que acredito e que se articula a considerandos em torno da cultura e da linguagem, ideologia, raça, credo, grupo étnico e identidade, entre outros. Naturalmente, estes considerandos têm implicações em termos do uso e da aprendizagem da língua portuguesa em Moçambique, rumo a uma sociedade

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em que pessoas de diferentes origens étnicas e condições sociais, culturais e económicas se sintam representadas, vivam em paz e possam participar na criação da sua riqueza sócio-cultural, económica e espiritual, e em que se privilegie a inclusividade, alargando-se as margens da tolerância, reciprocidade, diálogo e respeito mútuo.

Dentro de poucas gerações, o bilinguismo e o multilinguismo serão certamente práticas generalizadas e indispensáveis em praticamente todo o mundo. Os sofisticados meios electrónicos de tradução do futuro, que não serão mais extraordinários que os óculos ou os meios de apoio auditivo do século passado nem mais extraordinários que o telefone celular dos dias de hoje, proporcionarão às pessoas do terceiro milénio a possibilidade de compreender de modo instantâneo o que está a ser dito em potencialmente qualquer língua. Dizem os cientistas que não serão precisos intérpretes humanos porque um minúsculo engenho-intérprete implantado num dente da pessoa tornará possível a inter-comunicação face a face ou mesmo à distância. Um verdadeiro desafio para a profissão da interpretação, tal como a conhecemos hoje! Quanto à tradução, esta reforçará a unidade num milénio destinado a fazer singrar a diversidade, proporcionando a oportunidade de nos vermos envolvidos em futuras Batalhas da Tradução, incluindo na frente investigativa, como assumi na página 238 do volume da Batalha das Línguas, que escrevi no início da década passada.

Para Halliday (1985), cientista importante no que toca ao impacto da linguística e do discurso na tradução, existem sempre no tratamento científico de um texto dois níveis possíveis de análise. Um é o nível da contribuição para a compreensão do texto: a análise linguística permite mostrar como e porque é que o texto significa o que realmente significa. Este é o nível inferior de análise.O outro nível, o nível superior de análise, consiste na contribuição para a avaliação do texto: a análise linguística permite dizer porque é que um texto é ou não é um texto efectivo para os seus propósitos, isto é, em que aspectos é bem sucedido ou falha. Este objectivo é mais difícil de alcançar. Porquê? Porque assume a interpretação não só do contexto do texto, isto é, o cotexto, do contexto de situação e do contexto de cultura, mas também o modo como os traços linguísticos de um texto se relacionam sistematicamente com os traços do seu contexto, incluindo as intenções dos envolvidos na sua produção.

Ao desenvolver a sua actividade, o tradutor tem mais possibilidade de sucesso quando detém bons conhecimentos sobre os códigos linguísticos em questão, bons conhecimentos sobre as culturas dessas línguas e sobre as convenções retóricas e discursivas, com especial enfoque para a idiomaticidade, assim como bom conhecimento de outras dimensões não-linguísticas e não-discursivas da experiência, incluindo conhecimentos literários e a visão do mundo, instanciada por estruturas cognitivas também referidas na linguagem piagetiana por schemata.

Ter sensibilidade para a área da cultura é fundamental para o exercício da tradução linguístico-discursiva, o que requer adequado domínio de técnicas que permitam comparar e contrastar as línguas tanto translinguística como transculturalmente.

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E ao relacionar o mundo da língua com o da cultura, qual é a área que é de tradução mais difícil? Precisamente, a área da idiomaticidade. E porquê? Porque é a área da linguagem que está mais próxima da cultura.

Partindo destes pressupostos, a cultura e a idiomaticidade tornam-se, assim, riqueza de que o tradutor não pode prescindir.

A cultura é um fenómeno humano complexo e, em muitos aspectos, um fenómeno que se presta a equívocos. A cultura está, muitas vezes, associada a bens materiais e artefactos, à alimentação, indumentária e às artes. Digamos que a cultura é um conjunto complexo que inclui o conhecimento, a linguagem (i.é, a língua, os padrões não-verbais de comunicação e o estilo de comunicação), as crenças, as percepções, as atitudes, os valores (como a dignidade humana, igualdade, justiça), a arte, a moral, a lei, os costumes e outras capacidades e habilidades que o ser humano adquire como membro de uma sociedade. Por outro lado, o conceito de multiculturalismo tem-se prestado a interpretações variadas, acontecendo até que em algumas sociedades do mundo pós-colonial, a sociedade multicultural tem significado a manutenção de uma cultura dominante sobre as outras culturas, regra geral culturas das ‘minorias’, e a aceitação dessas mesmas culturas. Esta aceitação das outras culturas é por vezes, e em contraposição, questionada, reivindicando-se, pois, um projecto cultural plural assente no princípio de que nenhuma cultura é superior a outra, nenhuma cultura é mais verdadeira nem tem mais valor do que outra e que, por isso, nos devemos esforçar por pôr juntas, num todo heterogéneo, formas culturais diversas sem grande perdas e sem grande conflito.

Em Moçambique, e talvez de modo semelhante noutros PALOPs, a construção da nação e da moçambicanidade, que tem sido um processo complexo e difícil, vem incluindo o debate sobre esta questão. Algumas vozes, com mais propriedade do que a minha, têm intervindo e opinado sobre o que o multiculturalismo pode significar no contexto histórico particular de Moçambique. O que parece ficar claro para já é que a abordagem multicultural na educação, em geral, e na formação de tradutores, em particular, deve fornecer competências translinguísticas e transculturais que visem a aquisição por parte de aprendentes e profissionais de conhecimento e habilidades que permitam o funcionamento na sua própria língua e cultura, aquilo a que tentativamente chamaria de intraculturalismo, e o funcionamento na língua e cultura dos outros, aquilo que é habitualmente chamado de interculturalismo. Para mim, metodologicamente, não existe um enfoque sem o outro, podendo a abordagem de integração ser mais efectiva na cultura e sociedade mainstream enquanto noutras situações a abordagem poderá ser mais no sentido de educação e formação para a acção social, que requer que os aprendentes e profissionais actuem de molde a influenciar a mudança social. Obviamente, abordagens diferentes materializam objectivos diferentes. É pois importante que se saiba o que se pretende com a abordagem multicultural e, a partir daí, trabalhar em direcção aos objectivos estabelecidos.

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A linguagem idiomática tem a ver com as formulações que são peculiares a uma determinada língua, que são mais ou menos fixas e que são normalmente reconhecidas por falantes e/ou escreventes nativos ou quase-nativos dessa língua. Exemplos de formulações idiomáticas são o ditado popular, o provérbio, o idiomatismo, as figuras de estilo, o cliché, a símile, a alusão, as co-ocorrências gémeas, o eufemismo, o bordão retórico, o slogan, o lugar-comum e a frase feita, a muleta retórica, a pergunta retórica, rotinas pré-fabricadas e ritualizadas, etc. É claro que há, por vezes, sobreposições entre algumas destas categorias, sendo, por exemplo, possível que um sintagma ou expressão seja, ao mesmo tempo, idiomatismo, ditado, slogan e cliché. A idiomaticidade é transdisciplinar porque nela intervêm múltiplas disciplinas que a balizam e que a enriquecem, como são os casos, entre outras, da Análise do Discurso e da Retórica (Retórica Contrastiva, quando envolve duas ou mais línguas), da Psicologia Cognitiva e da Teoria da Literatura.

Recorri ao trabalho de Austin (1962)—e especialmente à sua definição de infelicidade e à doutrina das Infelicidades (p.14), criadas nos domínios da filosofia da linguagem e da pragmática—para formular o conceito de discourse infelicity [‘infelicidade discursiva’] (Lopes, 1986: 2-3) e, mais tarde, o termo infelicidade idiomática (Lopes, 2004: 177; 2016: 26-32). Julgo também ser útil considerar duas abordagens ao conceito de infelicidade—a interdiscursiva e a intradiscursiva—e procurar defini-las do seguinte modo: a infelicidade interdiscursiva é uma infelicidade que resulta de uma transferência discursiva, transferência esta que é causada no discurso de uma língua segunda ou qualquer outra pelo discurso nativo do falante/escrevente. A infelicidade intradiscursiva é uma infelicidade que resulta de uma aprendizagem imperfeita ou parcial do discurso na língua-alvo e não de uma transferência discursiva.

Segundo o meu ponto de vista, as infelicidades intradiscursivas podem ser causadas pela influência de uma formulação discursiva da língua-alvo numa outra formulação da mesma língua-alvo. A investigação mostrou que é reduzida a capacidade macrolinguística que, em geral, aprendentes e utentes de língua tendem a revelar e que esta reduzida capacidade não deve ser vista apenas como sub-desempenho linguístico mas sim como problema básico a nível do discurso e da retórica. Os aprendentes ou utentes de uma língua, qualquer que esta seja, devem pois aprender a usar as necessárias convenções e preferências discursivas e retóricas, sobretudo no âmbito da idiomaticidade, para que os seus processamentos linguístico-discursivos sejam cada vez mais determinados por práticas da coesão textual e da coerência discursiva. Foi exactamente devido à constatação de infelicidades discursivas, e sobretudo das infelicidades idiomáticas ocorrendo na escrita de alunos moçambicanos universitários que eu e dois colegas—inicialmente informantes e posteriormente já co-autores da obra—realizámos um estudo discursivo translinguístico e transcultural que resultou num Léxico de Usos Idiomáticos Português-Inglês-Xichangana, volume este que está neste momento a ser processado para publicação em breve (Lopes et al., no prelo). O seu título? Com Todos os Efes e Erres/With All the Bells and Whistles/Kudlaya Nsuna ni Bawa.

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Os efes (ff) e os erres (rr) no idiomatismo em Português, que significa ‘com toda a minúcia’, ‘com todos os ingredientes’, têm a ver com o ‘f’ de fidelidade e o ‘r’ de realidade, isto é, referência, respectivamente, a tudo o que é fiel, certo, direito e correcto e em simultâneo, adequado ao contexto de situação, apropriado à realidade.

Em relação à formulação idiomática em Inglês, que significa ‘com todos os extras incluidos’, ‘perfeito nos detalhes’, a sua origem remonta às campainhas (bells) e apitos (whistles), agregados aos órgãos usados em parques de diversões, que tornavam e tornam o som mais forte, envolvente e variado. Há também um elemento comum na campainha e no apito que é o metal (brass) sempre muito polido e brilhante na tradição anglo-saxónica.

Quanto à formulação em Xichangana kudlaya nsuna ni bawa [literalmente: matar o mosquito e a mosca tsé-tsé], proposta pelo linguista Salvador Sitoe, este homem de cultura diz-nos resumidamente o seguinte a esse respeito: o mosquito molesta à noite, a mosca tsé-tsé molesta durante o dia. É preciso eliminá-los, acabar com este problema apoquentador para podermos ter sossego durante 24 horas, para melhorar a nossa produtividade, os cuidados de saúde e o bem-estar, em geral, para termos vivências e convivências mais perfeitas, para sermos felizes. Sitoe vê analogias entre a satisfação de ver os problemas da vida resolvidos a contento e a satisfação linguístico-discursiva de compor um parágrafo correcto, gramaticalmente e, ao mesmo tempo, adequado, retórica e discursivamente.

Na essência, e em suma, poderíamos dizer que o idiomatismo nas três línguas tem um significado proposto e aproximado de algo que está bem feito ou que se está a aperfeiçoar o que há para aperfeiçoar.

A capacidade macrolinguística reduzida, a que acima fiz referência, tem a ver com as instâncias de discurso numa dada língua em que as ocorrências gramaticais e lexicais são nativas ou quase-nativas mas que evidenciam que o discurso—incluindo a retórica e as estruturas cognitivas relacionadas com o conteúdo—não está sendo processado adequamente; isto é, que há determinadas ‘coisas’ que não estão mal ou não são incorrectas gramaticalmente mas que soam de forma estranha quando postas a uso na comunicação. É, pois, preciso adquirir regras de uso formal, isto é, regras relacionadas com a gramaticalidade das frases e com a habilidade do falante ou escrevente em não violar regras de organização textual, e também adquirir regras de uso funcional, isto é, regras que indicam quais os enunciados que são apropriados a uma determinada situação comunicativa, na verdade transmitindo o que o falante ou escrevente pretende. Assim, para o tradutor, intérprete ou jornalista é fundamental aprender e manejar regras sobre a utilização cotextual da linguagem idiomática, que são regras que contribuem para a adequação formal e coesão textual e regras sobre a utilização contextual da linguagem idiomática, que são regras que contribuem para a adequação funcional e coerência discursiva. Muitas destas questões encontram enquadramento em Halliday, a que anteriormente aludi.

No passado e até a um presente recente, a investigação incidiu sobretudo nos traços e categorias ao nível da palavra e do sintagma, negligenciando, assim, a organização textual e discursiva, a lógica, o estilo e o registo. Contudo, julgo que é neste nível discursivo que se registam múltiplos

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contrastes subtis e é precisamente aqui que ocorre grande parte de uma aprendizagem aperfeiçoada da língua para uma comunicação mais efectiva. Estou convicto de que o ensino explícito das formulações retóricas e dos diferentes géneros textuais (genre) melhora no profissional de tradução a compreensão e o manejo da linguagem idiomática. Por outro lado, este profissional é informado explicitamente de que há relações entre a língua de partida, que é a língua-fonte, e a língua-alvo que devem ser objecto de aperfeiçoamento nas incursões aos mundos do discurso, do registo, da cognição e da tradução, visto que a fidelidade associada às formulações idiomáticas e a fidelidade associada ao genre que as envolve constituem critérios indispensáveis para avaliarmos a qualidade de uma tradução.

A semelhança de significado do idiomatismo é muitas vezes o critério principal para a execução de uma Análise Contrastiva Discursiva, isto é, a base para a comparação interlingue e intercultural, o tertium comparationis (TC), expressão criada no contexto do passado das análises contrastivas microlinguísticas (da fonologia à semântica). Muito embora o idiomatismo em Português, na ilustração que se segue, partilhe o traço animal (o TC) com o idiomatismo em Inglês, o animal é diferente nas correspondências nem quando as galinhas tiverem dentes!, e when pigs fly! que significam ‘nunca’, ‘nem pensar’. Por outro lado, o Xichangana parece apontar para algo muito diferente a saber, hambi xodzindza xihatima [literalmente: mesmo se trovejar e relampejar].

Comparar e contrastar equivalentes idiomáticos entre línguas—neste caso, entre o Português, Inglês e Xichangana—põe em destaque a peculiaridade (que é uma característica, traço, propriedade ou qualidade essencial) e a idiossincrasia (o modo comportamental ou a maneira de pensar que é peculiar a um indivíduo ou grupo) dessas diferentes línguas como critério-base para a contrastividade. Como vimos, a semelhança no significado do idiomatismo ou de qualquer outra formulação idiomática é o principal critério para o estudo contrastivo, o tertium comparationis ou constante, que é a base para a comparação interlingue e intercultural. O que fazemos é expressar definições de significado que são neutras do ponto de vista das línguas e, por isso, o TC é a qualidade que duas coisas ou entidades que estão a ser comparadas têm em comum. No presente caso, as coisas ou entidades são línguas (e mais especificamente nesta instância, os mundos idiomáticos dessas línguas) e são três o seu número, não as habituais duas. Alargámos, assim, o conceito do TC, como base para comparar três (ou mais, se necessário) coisas ou entidades. Assim, comparamos e contrastamos formulações idiomáticas translinguística e transculturalmente. No presente caso, a semelhança no significado entre o Português, Inglês e Xichangana é, pois, a constante ou TC, que é acompanhada pela diferença nas realizações formais e, por vezes, em manifestações culturais subjacentes.

É claro que há múltiplas variantes para cada caso nas três línguas, mas aqui apenas nos cingimos a mais uma ilustração ou talvez duas, uma em que parto do Português e a outra em que parto do Inglês, e cujas formulações ao nível formal são completamente diferentes nas três línguas:

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No caso de uma pergunta retórica: isso é lá pergunta que se faça! [na variante do Português Brasileiro: pergunta se macaco quer banana!]=is the Pope Catholic?=utshama uvona mbzana yibaleka rhambu? [literalmente: alguma vez viste um cão a fugir do osso?].

Trata-se de uma pergunta que não requer resposta (por isso, dizemos ‘pergunta retórica’] e caso alguém se decida a responder isso significa que o interlocutor entende que pergunta em questão requer uma resposta afirmativa óbvia, e por isso irónica.

O interlocutor insinua que a pergunta que ouviu era, no mínimo, desnecessária, pelo facto do contexto ser demasiado óbvio; se necessário, esperar-se-ia apenas por um simples sim da parte do interlocutor. Outro exemplo: Vai uma 2M? [está calor e todos sabem que o interlocutor gosta muito da cerveja local, moçambicana]. Responde, então: Isso é lá pergunta que se faça!

Um dia, o meu estimado amigo Padre Filipe Couto, Professor, matemático, filósofo e ex-Reitor da Universidade Eduardo Mondlane colocou-me a seguinte formulação idiomática em Inglês, que é interessante, incluindo do ponto de vista da lógica: no good deed goes unpunished. Conheço-a nesta língua mas confesso que, na altura, não me ocorria uma possível correspondência na língua portuguesa e esse é o dilema permenente dos tradutores, essa busca incessante de possíveis correspondências interlingues e interculturais, correspondências que poucas vezes existem ou estão imediatamente disponíveis.

O significado de tal formulação é que, por vezes, quando se pratica uma boa acção para com uma pessoa, essa mesma pessoa não mostra apreciação, não reconhece que se trata de uma boa acção e, por isso, faz com que o indivíduo que praticou o bem se sinta infeliz e/ou magoado. Então, qual é a lógica? É como se na tentativa de salvar a vida de uma pessoa em perigo, o salvador fosse criticado, ou ainda mais grave, fosse processado judicialmente por ter acidentalmente ferido a pessoa durante a tentativa de a salvar.

No idiomatismo, em que linguística e discursivamente ocorre uma inesperada negação da negação [literalmente: nenhuma boa acção fica sem punição], há bastante sarcasmo, ironia e até um certo cinismo porque o que é bom deveria logicamente ser alvo de gratidão, não ser alvo de punição, não merecer um fim triste. A busca para o Português encaminhou-nos para a bondade e o perdão só fazem ingratidão; e a reflexão sobre este idiomatismo em Xichangana fez-nos decidir pelo potencial correspondente masasani afela khwatini [literalmente: o filantropo/benfeitor morre no mato].

É claro que a fronteira entre o idiomatismo e a metáfora é imprecisa, não muito nítida. Assim, uma determinada formulação é mais ou menos idiomática numa escala que vai de um ponto de uso normal da língua no seu significado literal a diversos pontos que envolvem graus diferentes de

significado metafórico e estrutura sintáctica e também a um ponto extremo do idiomatismo, na acepção total do conceito. Se me referir ao comportamento de alguém que esteja deslocado, fora do seu elemento como peixe fora de água [like a square peg in a round hole], é óbvio que literalmente esse não é um comportamento que tem a ver com uma pessoa. O meu ouvinte,

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conhecedor, saberá exactamente o que eu quis dizer, embora não lho tenha dito de forma directa. No exemplo anterior registou-se também uma operação de símile, uma figura de retórica que envolve a comparação de uma coisa ou pessoa com outra de espécie diferente, e significando que a primeira é como a segunda; através da símile, que na comparação utiliza marcadores do tipo como, que nem, tal qual, a descrição torna-se mais enfáctica, mais viva, como acontece neste exemplo adicional: estar fresca como uma alface [to look as fresh as a daisy]. O idiomatismo é também ainda definido como uma formulação que transmite um significado metafórico, decorrendo este significado da comparação feita de uma coisa ou pessoa com outra, e em que se especifica que a primeira é a segunda, como no exemplo Ela foi uma fera nos debates.

Parece, pois, importante operar a reconciliação entre o universal e o particular e isto é necessário se queremos perceber a distinção entre o literal e o metafórico.

Em termos metodológicos, a abordagem alegórica, que opera por dicotomização, é a que tem mais tradição e que é mais comum na análise da idiomaticidade. A alegoria que, por vezes, expressa a comparação, a símile, a metáfora, a sátira, a fábula, o apólogo, a ironia, o mito, etc., é muitas vezes acompanhada de uma moral que relaciona o sentido literal com o sentido figurado. A alegoria, que consiste em representar uma ideia abstracta através de símbolos ou imagens poéticas, pode permitir a revelação de um significado escondido, significado este moral ou político; ou dito de outra forma, a revelação de ideias subentendidas ou expressas de modo figurado, em narrativas mitológicas. A diferença entre a alegoria e a metáfora é que a alegoria utiliza a narrativa na sua totalidade para expressar uma ideia ou ensinar uma lição, enquanto que a metáfora usa uma palavra ou sintagma para representar a ideia. Mas é claro que há outras abordagens promissoras como é o caso da abordagem tautegórica que poderá vir a revelar-se importante para o tradutor quando estiver mais desenvolvida e estabelecida. O significado tautegórico expressa a mesma coisa, com recurso a palavras diferentes e sendo habitual na mitologia e religião, esta abordagem significa a representação de apenas a coisa em si mesmo, por oposição à representação de outra coisa. Schelling e, antes, Coleridge, que a partir do grego, cunhou o termo ‘tautegórico’ para enfatizar a diferença entre o símbolo e a alegoria, utilizam-no para expressar o mesmo assunto mas com uma diferença […“express the same subject but with a difference…”], em contraste com as metáforas que são sempre alegóricas e que expressam um assunto diferente mas com uma semelhança […“express a different subject but with a resemblance…”]. A abordagem tautegórica apela para o entendimento dos mitos da cultura para compreender os sentidos de um enunciado metafórico como explica Kitoko-Nsiku (2005: 2-10) ao tratar dos significados extra-linguísticos que, paradoxalmente, sendo diferentes complementam os elementos dos significados intra-linguísticos,tal como, por analogia, acontece no caso do cotexto em relação ao contexto. Sobre as origens do multilinguismo, há quem interprete Babel no Livro de Génesis 11 como uma praga divina, a mãe de toda a confusão, o início da vergonha do multilinguismo! Com o recurso a abordagens mitológicas e religiosas, Kitoko-Nsiku (2007), revisita o mito e a sabedoria constantes de outra passagem da parte inicial do livro de Génesis referente à tentação (Génesis 3)

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e sugere que, em vez do método alegórico (que significa outro ou diferente) da polarização (Deus-Diabo, pecado-perdão, homem-mulher) se utilize o método tautegórico para a abordagem e interpretação da tríade Deus, mulher e serpente como símbolos que interagem entre si e que, segundo o académico, representam as mesmas coisas (tauta). Diz a este propósito:

Isto significa, por um lado, que Deus paradoxalmente oculta e revela a sabedoria da mulher e da serpente e que, por outro lado, e pelo mesmo simbolismo, a mulher e a serpente também ocultam e revelam a sabedoria de Deus.2 (Kitoko-Nsiku, 2007)

Assim, utilizando este tipo da abordagem metodológica a que nos habituou Kitoko-Nsiku (Lopes, 2013: 167-171), poder-se-ia fazer uma leitura menos alegórica de Babel. Na sequência do dilúvio, e após Deus ter feito uma aliança com Noé para que os seus descendentes se multiplicassem e repovoassem a terra, a população de Shinar optou por concentrar esses descendentes em torno da cidade, detendo-se na construção de zigurates com os olhos postos no céu e, desta maneira, negligenciando a determinação divina. Entendida deste modo, a dispersão a partir de Babel materializa a determinação de se repovoar a terra para além da planície iraquiana, consequentemente abrindo caminho para a multiplicação de povos e para a fruição de diferentes culturas, em variadas regiões e distintos climas. Assim, a mistura das línguas poderia ser entendida como bênção e não como praga, não como a confusão do multilinguismo, permitindo-se que os herdeiros de Noé se sentissem mais livres para o trabalho e para a veneração do seu criador por meio de múltiplas vozes e diferentes tradições.

A meu ver, o problema com a metodologia tautegórica é que não está suficiente e robustamente estabelecida. Faltam-lhe categorias de análise e os contornos de um quadro científico que as integre. Por isso, continuamos a regressar às metáforas e outras categorias idiomáticas que são utilizadas há séculos. Mas é importante que os tradutores saibam da sua existência e sobre ela reflictam porque poderá acontecer à tautegoria o mesmo que se espera no futuro do engenho-intérprete a instalar no dente de um indivíduo. Precisamos, assim, pelo menos, de aperfeiçoar os nossos pontos de vista e reflexões sobre os conceitos, paradigmas, modelos e ferramentas analíticas, num contexto em que os investigadores chegam ao conhecimento através dos processos de observação e/ou experimentação. Como hábito e tradição, os investigadores tendem a operar uma distinção entre investigação pura, básica ou teórica e investigação aplicada. Mas esta distinção é naturalmente uma idealização—muitas vezes, uma distinção útil— porque a investigação aplicada pode ter e tem implicações teóricas. É verdade que, por vezes, um dos dois tipos de investigação se realiza independentemente do outro, mas não é menos verdade que existe frequentemente uma interacção entre os dois tipos, verificando-se que as descobertas no âmbito de uma categoria influenciam na outra categoria. Qualquer abordagem da realidade não deverá confundir duas metodologias opostas—a experimentação que se pauta por procedimentos rígidos e as histórias que se reconstroem subjectivamente. Por isso, sublinho a ideia de uma actuação em que explicamos um fenómeno ou evento como entidade física, e uma outra, em que procuramos compreender o evento como motivos simbólicos. Mas estas abordagens requerem de nós ajustamentos mentais, porque, sendo a pesquisa experimental e a pesquisa etnográfica tão diferentes, é impossível pensar ou trabalhar de uma só vez nas duas direcções. O que é possível,

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através de cuidadosas mudanças de velocidade, é alternar entre as duas, desenvolvendo uma tensão criativa entre pontos de vista alternativos. Tanto para realizar uma experiência como para fazer uma história precisamos de orientações sobre que tópicos devem ser explicados e que tópicos devem ser interpretados; e, por vezes, pode revelar-se difícil determinar a linha divisória entre ambas, porque pode variar, tal como acontece quando procuramos demarcar a prosa da poesia. As ciências humanas e sociais, quando comparadas com as ciências naturais, técnicas e exactas, foram e são ainda na tradição nomotética consideradas primas afastadas. Esta ténue relação tem a ver com o estatuto das próprias ciências sociais em que apenas a psicologia experimental é, por essa tradição, considerada a ciência social mais nomotética. Nas duas últimas décadas, parte da linguística tem procurado outro espaço para além daquele a que presidiu o modelo da psicologia behaviorista, mas a revolução de Chomsky acabou por não colocar a teoria da linguagem totalmente fora da tradição nomotética. A visão de Platão, tão enraizada nas ciências naturais e exactas, permanece a ponto da teoria puramente formal constituir a preocupação central dos linguistas generativos transformacionalistas. Há, contudo, desenvolvimentos recentes nas ciências sociais em busca de um paradigma que acolha melhor a dimensão hermenêutica e estabeleça um equilíbrio mais satisfatório entre esta dimensão e a nomotética; e a bem do exercício da tradução, o tradutor deve estar sensibilizado para estes desenvolvimentos.

Em jeito de conclusão

Como muitos outros cidadãos do mundo, penso que a diversidade linguística constitui um baluarte da liberdade e que a humanidade continuará certamente, e cada vez mais, a querer gozar dos efeitos abençoados—dirão os cristãos e não só—da chamada “confusão” de Babel.

Na Batalha das Línguas, dizia e mantenho que a condição do ser humano unilingue de amanhã poderá vir a ser idêntica à do analfabeto de hoje, visto que este novo milénio é, em minha opinião, a época do multilinguismo. Assim, torna-se imperativo que o tradutor de hoje se prepare, linguística e discursivamente, para as actividades do amanhã. Isto significa que a sua capacitação deve passar pela aquisição de habilidades e conhecimentos transculturais que são imprescindíveis para funcionar na sua própria cultura, aquilo a que tentativamente se chamou de intraculturalismo e para funcionar na cultura dos outros indivíduos, que é geralmente referido por interculturalismo. Interpretar uma passagem no texto-fonte para a compor no texto-alvo é fundamentalmente um acto pessoal e, por isso, é bastante difícil estandardizar o método hermenêutico.

Cada método hermenêutico ajusta-se a um contexto particular, mas a sua não-estandardização não deve ser interpretada como uma licença para fazer tudo e qualquer coisa. Qualquer explicação dada por um investigador nomotético não tem para outra pessoa significados absolutos, pois o ser humano age com um propósito em mente, e perguntar o que causa este propósito lança-nos num círculo hermenêutico: atribuir um propósito a uma ocorrência dá-nos a possibilidade de compreender porque é que algo aconteceu. Por outro lado, uma explicação de causa mostra-nos como a ocorrência se produziu. Não se pode, por exemplo, afirmar que o

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radiador de um automóvel, por acção de um inverno rigoroso com temperaturas negativas, se quebrou porque quis “morrer”. O radiador não tem propósito. Mas já existe propósito no acto de tradução de um texto. Tanto o tradutor como o potencial destinatário, o seu leitor, desenvolvem uma atitude hermenêutica, isto é, cada um participa no esforço de interpretação do fio condutor das palavras e das formulações discursivas do tradutor. Para a compreensão do texto os dois actuantes avaliam o grau de acomodação do texto, e ao compô-lo o produtor do texto precisa de o compreender, precisa de compreender de antemão o assunto e a situação para poder penetrar no espaço do seu significado. Para que o seu produto tenha sucesso e seja reconhecido como bem-sucedido, o tradutor deve possuir um bom conhecimento partilhado (entre ele e o potencial leitor) do código linguístico, um bom conhecimento partilhado de convenções retóricas e formulações discursivas, com especial enfoque para a idiomaticidade, assim como um bom conhecimento partilhado de outras dimensões não-linguísticas e não-discursivas da experiência, que inclui o seu background knowledge.

A execução de Análises Contrastivas Textuais e de Análises Contrastivas Discursivas socorre-se, muitas vezes, do texto traduzido e é claro que o texto traduzido constitui uma base óbvia para essas análises ao nível do contraste interlingue e intercultural. A principal limitação do texto traduzido reside, em minha opinião, no potencial para a distorção, isto é, o texto-alvo pode mostrar sinais de interferência da língua-fonte. Uma vez que o tradutor tem de ter acesso ao texto original, não há maneira de impedir que traços da textura do texto-fonte ocorram durante o processo de composição do texto-alvo. Se isso acontecer, a versão da língua-alvo será inautêntica, i.é, não o que um texto composto originalmente pareceria. Ambas as versões devem idealmente constituir-se em textos equivalentes, isto é, textos produzidos independentemente de La e Lb que são funcionalmente equivalentes.Finalmente, e ao informar-me que a sua carta servia também para indicar que o filho pródigo estava de regresso a casa, como mencionei no início da presente comunicação, Kitoko-Nsiku utiliza a parábola do Evangelho, Lucas 15: 11-32, para que eu compreendesse e aceitasse o facto da ausência ter sido longa e não ter havido muita oportunidade para notícias. Esta é a reconstituição que faço da mensagem que inclui no seu âmago a formulação idiomática bíblica, cujo significado é que passado muito tempo e depois de ter vivido uma vida um tanto ou quanto desregrada, o filho pródigo volta à casa dos pais. Aqui, acho que preferiria a formulação idiomática menos religiosa em Português que é o bom filho à casa torna, porque o Doutor Kitoko-Nsiku não é pródigo! Acho até que o regresso do Édouard tem mais a ver com o estado de origem, com a casa do descanso e,assim sendo, preferiria as versões the hare always returns to her form [o regresso da lebre], marhumbini va vuyela [lit.: regressa-se sempre ao ventre da mãe] ou até mesmo le le lièvre revient toujours à son gîte [a lebre regressa sempre ao seu abrigo/à casa que a acomoda].Bem-vindo, bom filho Kitoko e, mais uma vez, obrigado pelo convite que me endereçou e agradeço a todos os presentes pela paciência que tiveram e pela honra que me deram ao escutar estas palavras.

Notas

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1…the right to language is a human right, like all the other rights. (…) The African middle class is running from their languages. In the process, they perpetrate child abuse on a national scale. For to deny a child, any child, their right to mother tongue, to bring up such a child as a monolingual English speaker in a society where the majority speak African languages, to alienate that child from a public that they may be called to serve, is nothing short of child abuse. 2This means that in one hand, God paradoxically occults and reveals woman and serpent wisdom and by the same token woman and serpent also occult and reveal God’s wisdom.

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