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Linhas cruzadas e uma plataforma de observação. Das Conversações entre História, Cultura Visual e Filosofia. Márcio Pizarro Noronha 1 I. Conversações entre cultura visual e história. Os anos 1980 viram a ascensão de uma nova disciplina e campo de estudos acadêmicos nos países de língua inglesa e, posteriormente, no correr da década e com mais ênfase para os anos 1990 (segunda metade), a geração de seus efeitos e desdobramentos em países de língua espanhola e portuguesa 2 . Esta disciplina veio a ser a Cultura Visual 3 e sua fundamentação encontra-se nos mais variados modos como o entroncamento entre o termo cultura e o termo imagem – desdobrado em visual e visualidade – pode ser decisivo para o entendimento da organização das formas simbólicas – e das práticas teóricas - e vividas – a dimensão das práticas sociais - do mundo contemporâneo 4 . 1 Dr. em Antropologia – USP; Dr. em História – PUCRS; Professor e pesquisador do PPG Música (EMAC) e PPG História (FCHF) – UFG; Coordenador do Gupo Pesquisa Diretóriao CNPq – INTERARTES: PROCESSOS E SISTEMAS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE; Pesquisador FUNAPE – UFG. Professor das disciplinas: Análise da Criação Contemporânea (Mestrado em Música), História e Teoria Interartes: do romantismo ao pós-modernismo (Mestrado e Doutorado em História) e do Seminário de Pesquisa: Arte e Psicanálise. Escreve regularmente para o jornal O Popular (Goiânia) sobre artes, mídia e psicanálise. 2 James Elkins, em sua abordagem do quadro institucional da Cultura Visual (Estudos Visuais) reconhece as matrizes deste campo de estudos no campo dos Estudos Culturais. A produção dos Estudos Culturais teve início na segunda metade do século XX na Inglaterra reunindo teoria da ideologia, estudos marxistas e abordagem dos bens culturais e simbólicos do ponto de vista ampliado do circuito da produção, da circulação, distribuição e consumo. 3 Durante os anos de 2003 a 2005, ministrei a disciplina Teorias da Cultura e Cultura Visual, junto ao Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual (FAV-UFG). Este é o primeiro programa de estudos nesta nova área dos estudos acadêmicos e, em seu projeto original, enfatizou as três grandes vertentes deste campo de pesquisa: os estudos da produção do sentido no campo das imagens e os estudos do visual e da visualidade; as poéticas visuais e suas interfaces; e os estudos no campo da educação visual. Este trabalho resultou na organização posterior de um cd-rom e na gravação de algumas aulas em dvd. Esta é uma atividade que se vincula atualmente ao Projeto de Estudos e ao Grupo de Pesquisa CNPq INTERARTES: SISTEMAS E PROCESSOS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE, vinculado ao Programa de Pós-Graduação Artes – Música e ao Programa de Pós-Graduação em História, ambos da UFG. 4 Para uma revisão do surgimento do campo de estudos da Cultura Visual, ler o trabalho de Paulo Knauss. Nele, o autor mostra as relações entre este campo e os estudos culturais e interdisciplinares, de cunho interdepartamental, ou seja, para além da formação de um objeto e de uma teoria e um método híbridos, o reconhecimento de que, no âmbito do capital simbólico (Bourdieu), a cultura visual representa uma articulação entre diferentes departamentos e associações de ordem institucional nos meios acadêmicos universitários. Ele sinaliza os Programas de Rochester e de Irvine, os cursos de W. J. T. 1

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Linhas cruzadas e uma plataforma de observação.Das Conversações entre História, Cultura Visual e Filosofia.

Márcio Pizarro Noronha1

I. Conversações entre cultura visual e história.Os anos 1980 viram a ascensão de uma nova disciplina e campo de estudos acadêmicos

nos países de língua inglesa e, posteriormente, no correr da década e com mais ênfase para os

anos 1990 (segunda metade), a geração de seus efeitos e desdobramentos em países de língua

espanhola e portuguesa2. Esta disciplina veio a ser a Cultura Visual3 e sua fundamentação

encontra-se nos mais variados modos como o entroncamento entre o termo cultura e o termo

imagem – desdobrado em visual e visualidade – pode ser decisivo para o entendimento da

organização das formas simbólicas – e das práticas teóricas - e vividas – a dimensão das práticas

sociais - do mundo contemporâneo4.

A disciplina e o campo de pesquisa da Cultura Visual devem, em grande parte, suas

matrizes aos estudos da (Nova) História da Arte e aos Estudos Culturais – a forma “pós-moderna”

do marxismo de língua inglesa – e aos desenvolvimentos norte-americanos das teses e das

políticas sociais multiculturalistas. Aqui, algumas vertentes dos estudos antropológicos, as leituras

pós-coloniais e o marxismo se combinam para a reconceituação do termo identidade.

1 Dr. em Antropologia – USP; Dr. em História – PUCRS; Professor e pesquisador do PPG Música (EMAC) e PPG História (FCHF) – UFG; Coordenador do Gupo Pesquisa Diretóriao CNPq – INTERARTES: PROCESSOS E SISTEMAS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE; Pesquisador FUNAPE – UFG. Professor das disciplinas: Análise da Criação Contemporânea (Mestrado em Música), História e Teoria Interartes: do romantismo ao pós-modernismo (Mestrado e Doutorado em História) e do Seminário de Pesquisa: Arte e Psicanálise. Escreve regularmente para o jornal O Popular (Goiânia) sobre artes, mídia e psicanálise.2 James Elkins, em sua abordagem do quadro institucional da Cultura Visual (Estudos Visuais) reconhece as matrizes deste campo de estudos no campo dos Estudos Culturais. A produção dos Estudos Culturais teve início na segunda metade do século XX na Inglaterra reunindo teoria da ideologia, estudos marxistas e abordagem dos bens culturais e simbólicos do ponto de vista ampliado do circuito da produção, da circulação, distribuição e consumo.3 Durante os anos de 2003 a 2005, ministrei a disciplina Teorias da Cultura e Cultura Visual, junto ao Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual (FAV-UFG). Este é o primeiro programa de estudos nesta nova área dos estudos acadêmicos e, em seu projeto original, enfatizou as três grandes vertentes deste campo de pesquisa: os estudos da produção do sentido no campo das imagens e os estudos do visual e da visualidade; as poéticas visuais e suas interfaces; e os estudos no campo da educação visual. Este trabalho resultou na organização posterior de um cd-rom e na gravação de algumas aulas em dvd. Esta é uma atividade que se vincula atualmente ao Projeto de Estudos e ao Grupo de Pesquisa CNPq INTERARTES: SISTEMAS E PROCESSOS INTERARTÍSTICOS E ESTUDOS DE PERFORMANCE, vinculado ao Programa de Pós-Graduação Artes – Música e ao Programa de Pós-Graduação em História, ambos da UFG.4 Para uma revisão do surgimento do campo de estudos da Cultura Visual, ler o trabalho de Paulo Knauss. Nele, o autor mostra as relações entre este campo e os estudos culturais e interdisciplinares, de cunho interdepartamental, ou seja, para além da formação de um objeto e de uma teoria e um método híbridos, o reconhecimento de que, no âmbito do capital simbólico (Bourdieu), a cultura visual representa uma articulação entre diferentes departamentos e associações de ordem institucional nos meios acadêmicos universitários. Ele sinaliza os Programas de Rochester e de Irvine, os cursos de W. J. T. Mitchell(Universidade de Chicago) e de Nicholas Mirzoeff (Universidade do Estado de New York) e as Revistas Journal of Visual Culture e Visual Studies. Knauss também levanta as fontes de publicação de coletâneas de língua inglesa da segunda metade da década de 1990 e identifica os principais temas, as relações com a história da arte e as questões teórico-metodológicas. Nos termos de Knauss, o embate encontra-se no cerne da definição do próprio termo CULTURA VISUAL. Para ele, os cultores do assunto têm suas (in-)definições nas fronteiras dos estudos da História da Arte (W. J. T. Mitchell) e na reflexão dos Estudos Culturais (Martin Jay), desdobrando-se em outros campos que vão dos estudos de matriz semiótica e de matriz culturalista, de fonte antropológica, com raízes nos estudos feministas e em teorias da etnicidade, queer theory, gay and lesbian studies, dentre outras áreas de atuação. Em minha leitura, o que ocorre, macro-teoricamente, é uma afinação em torno de um conceito antropológico, de língua inglesa, de cultura. Assim, temos autores afins aos debates do marxismo (com matrizes no clássico Raymond Williams), estudos vinculados às teorias políticas da cultura (como etnicidade, gênero, multiculturalismo) e uma leitura de cunho interpretativista que oscila entre a adoção de uma semiótica da cultura e uma abordagem hermenêutica.

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Numa projeção para o mundo visual, esta denominação entende que as identidades

contemporâneas, flutuantes, são constructos mediados pela visualidade, ela própria como uma

rede de significação reconhecidamente instável5. Ao que parece, um pouco da idéia de que uma

imagem vale mil palavras, encontra-se integrado ao saber desta ordenação denominada de

Cultura Visual, como sendo o seu sujeito oculto.

Assim, a terminologia revela as amplas combinações entre os termos imagem, figuração,

arte, cultura, mídia, cotidiano, representação, visualização, visualidade, ocularcentrismo e teoria

do olhar, espectador, experiência visual, construção social do visual, construção visual do social,

novas tecnologias, mundo virtual, interface, contemporaneidade globalizada.

O visual é identificado a uma fonte documental historicizada ou a um paradigma e a uma

matriz mais ampla para o pensamento do mundo contemporâneo – tomado como um mundo de

superfícies e tecnologias de imagens digitais.

O visual pode ser um modo de consumo ou uma forma de representação cultural.

O visual pode ser a dimensão oculta da epistemologia do Ocidente.

O visual pode também ser a construção de novos modos de ver – aos moldes de Crary, ou

de Berger, ou de Wollheim.

O que mais me chama a atenção no atual momento é o modo como este campo de

pesquisa e de atuação acadêmica, dentro do seu processo de institucionalização e

reconhecimento em nichos nas diferentes áreas do conhecimento consideradas tradicionais –

História, Artes, Antropologia, dentre outras -, acaba por produzir não apenas um debate teórico e

metodológico, fundante das diferentes linhas de pesquisa que vão das mídias e tecnologias ao

cotidiano e voltam-se para os objetos historicizáveis, como as obras de arte (questionadas no seu

estatuto), mas também uma formulação epistemológica abrangente, questionando a noção de

objeto de conhecimento, de determinação histórica das próprias fontes de pesquisa, do status da

imagem na cultura.

Por outro lado, um direcionamento mais específico, faz contar uma certa origem do debate

na (Nova) História da Arte.

Na reconcepção do campo de pesquisa da História da Arte, Mitchell desenvolve a Picture

Theory e a expressão pictorial turn, uma virada que enfatiza o pictórico e uma noção complexa da

figura. Nestes termos, o autor nos convoca a uma leitura figural do mundo, mostrando como os

modelos dos discursos e das práticas textuais – a leitura hermenêutica da cultura como um texto,

aos moldes de Geertz e uma boa parcela da Nova História Cultural (Darnton, dentre outros) –

deve ser apreendida sob uma nova forma paradigmática: a da visualidade. O mundo olhado como

figura e dado ao visível, marcando uma experiência cultural do ver (Berger).

Em Wollheim, o ver-em e o ver-como mostram como a experiência do ver é uma fusão

entre as complexas formas representacionais e um estado de visão que envolve um

5 Ver aqui o trabalho de Stuart Hall e, no Brasil, os estudos de Tomaz Tadeu da Silva.

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reconhecimento da performance do artista e do mundo das matérias da arte (mancha, cor, massa,

volume, etc.).

Crary dimensiona esta questão num âmbito da psicologia da percepção e demonstra como

os observadores e os estados da atenção sofrem modificações durante o século XIX,

estabelecendo relações entre as teorias da percepção e o desenvolvimento da psicologia e as

formas da experiência artística – como no seu estudo dos quadros de Manet.

O que fica mais evidente na (Nova) História da Arte é a forte presença da herança de

Warburg e do desenvolvimento panofskiano do método iconográfico e da Iconologia, tomadas

como ciência dos símbolos imagéticos. Esta herança não é tratada com a finalidade de produzir

um repertório ou um vocabulário visual, chegando mesmo a constituir uma gramática das

imagens. Combinada com os trajetos da História Social – de forte inflexão marxista – pretende

não apenas demonstrar como os objetos artísticos integram-se ao conjunto das relações sociais e

sim partir para um duplo enfrentamento, o da organização cultural ou do modo como a percepção

visual enquanto codificada culturalmente afeta nossos modos de consumo das imagens e o da

organização histórica, determinando a historicidade dos objetos e rompendo a linha de separação

entre objetos artísticos e outros objetos visuais e imagéticos dados ao consumo cultural. Desse

modo, o compromisso desta (Nova) História da Arte é o da realização de um tipo de História

Visual ou História Cultural que tem como objetivos: - realizar um estudo das imagens (História das

Imagens); - incluir as imagens artísticas dentro do corpus das imagens produzidas na cultura; -

traçar relações entre as diferentes mídias e tecnologias, indo do desenho e da pintura à fotografia,

ao cinema, ao vídeo e às mídias digitais; - e, interrogar-se acerca da epistemologia da disciplina

da História da Arte, demonstrando as relações históricas entre a constituição dos objetos artísticos

e a produção do jogo do valor, entendido pela maioria destes autores enquanto uma construção

social.

Algumas destas questões serão o alvo central deste artigo. Gostaria de poder pensar

especialmente o quanto esta complexificação do objeto da História da Arte, enquanto uma nova

forma da História Social, denominada de História Visual, História Cultural ou (Nova) História da

Arte, ou, ainda, História das Imagens, pode também ser um disfarce para uma escolha reduzida

no campo estético e das teorias estéticas e uma precária problematização das relações entre

Estética, Filosofia da Arte e Teoria da Arte.

Em primeiro lugar, devemos reconhecer que a tradição eleita – a da Iconografia – não é a

única maneira de enfrentar o objeto artístico. Para ser herdeira da Escola de Warburg, as

estéticas formalistas e as estéticas da vida acabaram por cair num esquecimento por conta de

nossos autores. A concepção de forma entra em desuso, mas ganha grande status a leitura

embasada em estéticas de cunho cognitivista e os objetos visuais, dentre eles os objetos

artísticos, devem ser tratados como meios de conhecimento. O que quer dizer o historiador

quando ressalta o caráter cognitivo de um objeto visual e ou artístico? E. mais ainda, quando esta

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dimensão cognitiva tem fundamentos numa orientação culturalmente situada, dependente e

construída na experiência social?

E, nestes termos, gostaria ainda de problematizar o modo como a Cultura Visual e a

(Nova) História da Arte dão tratamento à questão do valor. O valor é visto programaticamente

enquanto constructo social – tema bastante abordado nos estudos da Ideologia e nos Estudos

Culturais, enfatizando aqui autores marxistas, como Terry Eagleton e Fredric Jameson, para a

contemporaneidade. Este constructo é historicizado e reenviado às redes culturais, combinando

esta dimensão ideológica com um tipo de hermenêutica da cultura. E o que se passa nisto? A

historicização do valor estético e a captura da obra de arte no interior de uma trama cultural

deveriam ser entrelaçadas ao estudo de uma estetização do valor histórico – como nos estudos

da Retórica – e o jogo do valor deveria ser convocado enquanto posicionamento de reflexividade,

pois a historicização do valor não implica no acabamento do seu jogo, já que também este modo

de avaliar está sujeito a uma valoração e a uma avaliação.

Experimentos da arte de vanguarda, da Pop Arte e das formas da desconstrução podem

ser eficazes na geração de uma alteridade e de um enfrentamento de uma nova naturalização

sofrida no campo dos objetos historicizáveis. Pois, ao (novo) historiador, a interrogação de cunho

epistemológico acerca do objeto artístico, deve ser posta uma questão mais ampla em torno do

modo como, para afastar o valor de arte, necessita de realizar a reinscrição do objeto num campo

artefactual e / ou do raciocínio do antiquariado. Isto delata que a produção do valor histórico,

colocada acima do jogo do valor estético e do valor artístico, é dependente do elemento conhecido

como sendo a prova.

Este parece ser o modo e o meio no qual o Historiador e a Teoria da Arte podem fazer

efeito crítico no campo recente da História Visual e da Cultura Visual.

No âmbito da História Visual, ao reunir o raciocínio do artefato, do método do antiquariado

e do raciocínio da prova (das evidências) estamos diante de uma concepção de objeto material e

do modo como esta materialidade pode ser constituída, metodologicamente, em documento

histórico, e, deste modo ser reveladora de um processo social e cultural de produção de sentido.

Para uma História e Teoria da Arte, tal como estas têm sido produzidas após-1945, questões de

sentido e de objetualidade já não passam pela concepção de artefato ou mesmo de objeto.

Estamos a assistir a um reducionismo dos embates entre o artístico e o estético e uma

crescente naturalização da estética na horizontalidade das relações entre artefatos artísticos e

artefatos imagéticos, visuais e midiáticos. No mundo organizado em torno do visual, estamos

aptos – ou deveríamos estar - a realizar leituras de imagens (através de um mix entre métodos

iconográficos e, mais enfaticamente, métodos hermenêutico-interpretativos) e visualização de

textos (no tratamento dos textos da cultura enquanto figura, alegoria, emblema etc.).

Por outro lado, esta abertura tende a se enfrentar com as tradicionais disciplinas que dão

tratamento particular às imagens. Seu modo horizontalizado de integração tem como projeto a

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desidentificação de categorizações tradicionais e uma abrangência da noção de imagem que deve

incluir todo o tipo de fenômeno social visualmente apresentável.

Nesta acepção, a idéia de design seria como uma espécie de termo onisciente da cultura

visual. Toda a cultura estaria submetida agora aos modos de uma visualização e seus padrões,

criando um mundo de figuras eleitas e identificações a figuras, como quando falamos das

identidades de tribos e de segmentos e grupos de consumo nas sociedades contemporâneas.6

De certo modo, uma parcela da sociologia – e das ciências sociais - já vem sendo

comprometida neste tipo de abordagem da realidade social que amalgama formismo com os

estudos de fenômenos como os grupos juvenis, as tribos urbanas, a sociedade de consumo.

De um outro lado e de forma mais recente, a disciplina da História, com suas invocações

teórico-metodológicas e a abordagem de novos objetos, aparece interessada por esta mesma

realidade procurando dar a ela a faceta propriamente histórica, reconhecendo ao historiador o

direito de constituir um objeto visual para a historiografia.

Nos rumos da cultura visual constituiu-se, assim, a problemática da história visual.

Como ressalta Meneses (2003, 2005), não podemos e não devemos falar em um campo

disciplinar autônomo, uma nova “História Especial”, mas sim, de um campo de operações para o

conhecimento das sociedades, em diferentes épocas. O visual passa a ser uma categoria estratégica e um ângulo de penetração ou plataforma de observação da realidade das

sociedades históricas.

Entendemos assim que estamos diante de uma ampliação dos modos do fazer de uma

História Social, agora, uma História Visual do Social7.

Knauss identifica o estudo de uma História com imagens a partir das seguintes

problemáticas: as fontes, a noção de documento e a formação de um objeto de estudo para a

História.

No que tange ao objeto, o historiador entende que o objeto é

“as formas de produção de sentido. O pressuposto de seu tratamento é compreender os processos de produção de sentido como processos sociais. Os significados não são tomados como dados, mas como construção cultural. Isso abre um campo para o estudo

6 Uma boa parcela da sociologia contemporânea em suas inflexões nos estudos da sociabilidade, da efervescência, do imaginário tem desenvolvido trabalhos que evocam esta poética do social, tratando o mundo do social por meio de figuras-chave e de imagens que podem se revelar como exercícios de tipologias. Este tipo de raciocínio tem matrizes em certas formulações estéticas e no modo como esta especialização filosófica pode ser uma matriz para o pensamento do social. Grande parte dos trabalhos que envolvem a pós-modernidade e o pós-estruturalismo encontram-se aqui reunidos. Para citar alguns exemplos, podemos pensar no vasto número de trabalhos de pensadores de língua francesa que reposicionaram este lugar do estético – Foucault, Maffesolli, Deleuze, Guattari, Derrida, dentre outros. Muitas destas pesquisas vieram a constituir campos de estudo, com ênfase para as socialidades e as efervescências de grupos, grupelhos, minorias, segmentos sociais identificados através da persona / máscara, da performance e das interações simbólicas intragrupais e com o entorno.7 A História Social desenvolveu a abordagem do tipo sociológica e categorial dos universos da literatura e da arte. Posteriormente criticada por seu mecanicismo e seu tratamento prioritariamente reflexivo social dos bens da cultura, foi sendo substituída pela voga da História Cultural. A História Visual, desse modo, pretende ser um reposicionamento da História Social, não apenas no modo como eram tratados os objetos da cultura, mas realizando um trânsito da História Social da Arte para uma História Visual do Social, ou seja, dos modos como o visual é uma forma da produção das relações sociais.

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dos diversos textos e práticas culturais, admitindo que a sociedade se organiza, também, a partir do confronto de discursos e leituras de textos de qualquer natureza – verbal escrito, oral ou visual. [...] Dito isso, pode-se compreender a importância do estudo da produção artística como fonte de discursos que se relacionam com a vida em sociedade”. (KNAUSS, 2006: 100).

Neste domínio, o historiador pode fazer a crítica ao essencialismo contido numa parcela

das concepções teóricas de cultura visual e, por outro lado, também critica a perspectiva do

surgimento de uma disciplina nova, apenas mais um novo modo possível de tratamento

documental e de constituição de objetos.

Parece que se quer mais do que isso. Algo que esteja implicado num empreendimento de

retomada e complexificação com bases ou matrizes na História Social.8

Meneses e Knauss, em suas revisões de uma historiografia recente dos conceitos e das

teorias em torno deste campo de estudos do visual e das imagens, acabam por dar o tom da

diferenciação do estatuto da pesquisa histórica em face dos diferentes problemas de pesquisa.

Para ambos, a pesquisa histórica visual e imagética, seja ela com objetos artísticos ou midiáticos

(filmes, vídeos, internet, etc.), deve sempre ter em conta:

O empreendimento historiográfico é sempre macrossocial e deve dar conta de uma

explicação, mesmo quando de cunho narrativo, da realidade social historicamente constituída;

Uma sociedade possui diversos modos de se produzir, em formas discursivas e em

práticas sociais, dentre elas, a configuração das imagens enquanto uma prática e um discurso;

O tratamento das imagens deve ser dado através de uma categoria de pensamento

mais abrangente e historicamente constituída: o visual;

Esta categoria não é um a priori universal, mas um posicionamento estratégico e

um posto de observação das formulações discursivas e das práticas sociais;

Nestes termos categoriais, as imagens são reconhecidas enquanto meios de

conhecer e modos de conhecer (e ver) e qualquer regime de signos visuais deve ser tratado sob a

égide do conhecimento (ou sistema) cultural;

Esta dimensão cognitiva reconhecida na imagem instaura um sistema-valor, valor

cognitivo da imagem e valor cognitivo do tipo histórico, da imagem enquanto fonte transformada,

pelas mediações, em documento visual;

O objeto de valor é um objeto de conhecimento e a valoração só se dá pela via de

uma estética cognitiva, o que cria uma situação paradoxal entre as ciências humanas e sociais e a

estética em seu projeto originário, como meio de introdução aos sentimentos e ao universo do

sentir;

Desse modo, a história das sociedades é a história da produção social e cultural do

sentido, pois este não deve ser entendido apenas como um conjunto codificado (numa

8 Como já afirmado, imagino as tensões emergentes entre a História Social e a História Cultural e os modos como estas novas configurações epistemológicas, como a da História Visual, podem ser o modo de dar a complexidade do tratamento a uma História Social que responde aos novos objetos culturais e não é amealhada nas tramas dos diferentes conceitos e métodos de estudo da cultura.

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semiotização da história), mas ainda mais como sendo uma historicização dos códigos (e,

portanto, numa historicização da semiótica);

Tudo isto se revela, aos olhos do historiador, como sendo uma forma material;

Esta materialidade deve ser observada enquanto fonte no exercício específico da

construção do documento – o documento é também um modo de dar tratamento às diferentes

materialidades do mundo;

Para observar este documento visual, vale-se de uma estética cognitivista

associada ao método iconográfico (do repertório de símbolos), o que permite retomar a temática

do antiquariado e da prova em História;

Ao historiador cabe, portanto, construir um conjunto documental visual. É somente

a partir da constituição deste conjunto documental que se pode produzir uma escrita da História

Visual (do Social).

Aqui, não se faz uma crítica, mas apenas quer se demonstrar o quanto o tratamento

historiográfico da imagem e, atualmente, num estado menor, da arte, quando embasado nas teses

da Cultura e da História Visual, ganham na des-hierarquização entre imagem e imagem artística e

entre senso do cotidiano e senso artístico, mas perdem por reduzir as funções estéticas às

dimensões simbólicas (da iconografia) e cognitivas (arte como modo de conhecer).

Em parte, devemos reconhecer que estas duas dimensões – simbólica e cognitiva – não

são de todo reducionistas e integram uma ampla formulação da educação estética, da educação

visual e do alfabetismo visual, criando uma fissura entre o raciocínio da História e da Teoria da

Arte e o da Educação Visual (e suas matrizes na Cultura Visual).9

Para finalizar, gostaria de trazer alguns exemplos no domínio de uma (Nova) História da

Arte e suas inflexões aos campos dos estudos antropológicos e aos estudos históricos, incluindo

aí o âmbito de uma reflexão acerca dos discursos e das práticas e as relações entre teoria e

prática. Nestes campos, haverá uma forte tendência ao tratamento dado por Geertz, Baxandall e

Foucault, três dos mais importantes teóricos que fornecerão alguns dos fundamentos para este

tipo de análise. No âmbito deste texto, vou traçar as relações entre Geertz, Baxandall e o campo

dos estudos históricos, deixando as questões de caráter foucaultiano para uma abordagem 9 Este texto não irá tratar destas correlações, mas em outros artigos sobre os temas das relações entre Estética e Filosofia da Arte, venho tratando de um ponto de vista da História das Idéias e com grande dívida para com a Estética de Hegel e o pensamento do Romantismo, as distinções entre uma estética geral e as questões voltadas para uma educação estética hoje ampliada para o domínio da educação visual e as questões específicas em torno do objeto artístico e da noção de obra de arte. Parece que esta distinção entre as duas esferas, bastante evidenciada no pensamento do século XIX e em grande parte das teorias da arte do século XX, sofreu um baque sistemático com a ascensão de um campo conhecido como sendo a Arte-Educação. Não é gratuito o relacionamento entre a Arte-Educação e as teses da cultura visual na cultura norte-americana. O alfabetismo visual contemporâneo exige do educador visual uma apreensão ampla da realidade e dos fenômenos visuais e audiovisuais nos quais estamos entronizados. Em minha opinião, o que está em jogo é o apagamento da educação em arte e o surgimento de um novo domínio para o ensino, o da visualidade. A educação para a arte deveria ainda estar referida ao campo problemático da ontologia da obra de arte e deveria manter este direcionamento como sendo o seu horizonte. Na educação visual, outro domínio e outra atividade, os objetos visuais são objetos culturais e midiáticos e exigem um tipo novo de formação do educador: multimidiática, histórico-cultural e um raciocínio mais afeito ao design do que à arte. Este entendimento crítico tem como fundamento as leituras das fontes em Arte-Educação e em Educação Visual mais recentes, tais como as produções de Ana Mae Barbosa e o trabalho de Fernando Hernandez. No meu entendimento historiográfico e em História da Arte discordo da idéia de que há uma passagem e uma continuidade entre a educação em arte e a educação visual. Como indicado nesta nota, numa dimensão epistemológica, estamos diante de uma descontinuidade no campo do saber, uma fissura ou uma dobra do conhecimento.

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posterior das discussões em torno dos regimes de imagens e de textos e da noção de visualidade

propriamente dita.10

I.I. De Geertz a Baxandall: linguagem, cultura e imagem entre a antropologia interpretativa, a história cultural e a (nova) história da arte.

I.I.I. Clifford Geertz, ao analisar a “arte como sistema cultural” trata de estudos

antropológicos e históricos – as monografias de Bohannan, Thompson, Goldwater, Forge,

Baxandall. Em todos eles, o antropólogo-hermeneuta identifica que as abordagens da forma

(formalismo, estruturalismo, semiótica) integram-se ao projeto cultural ocidental de especialização

da esfera artística e propõe, a partir do levantamento de diversos estudos monográficos, uma

retomada da concepção de arte enquanto integrada ao contexto, no modo como os objetos

estéticos fazem parte do curso da vida social. Para Geertz, o problema está em reconhecer que

as definições de caráter intra-estético são reduções lógicas de uma definição ampliada na qual os

objetos artísticos fazem parte de um corpus estético e que este conjunto de artefatos estéticos só

é assim definido por fazer parte de um circuito de bens culturais. Assim, entendendo a cultura

como este todo que inclui uma variedade de sistemas e de processos, vimos à integração da arte

na cultura.

Perpassando por diferentes estudos de cunho etnográfico em culturas não-ocidentais e,

portanto, com diferentes concepções de arte ou na ausência de uma noção de arte tal como a

entendemos, Geertz valoriza o modo como estes artefatos se integram de formas diferentes às

redes da cultura.

Vindo na direção do Ocidente, o autor ressalta o impacto da pesquisa de Baxandall em

torno do Renascimento11. Na sua leitura do texto do historiador, Geertz reconhece novamente esta

via de mão dupla entre visão de mundo e tipo particular de expressão, demonstrando que a

gestalt dos objetos é, não apenas um fato psicológico, mas uma construção cultural da percepção.

Para tanto, demonstra os modos como um “olhar de época” é um modo perceptual integrado a

capacidades compartilhadas entre o artista e o seu público, configuradas enquanto um processo

de educação do olhar para o reconhecimento de certos princípios compositivos, perspectivos, de

ordenação formal. Nestes princípios, enquanto um sistema semiótico, um código visual

compartilhado integra-se a uma configuração cultural que reúne o sistema religioso – que indicava

10 Uma boa parte da linguagem desenvolvida no campo dos Estudos Visuais, Cultura Visual e História Visual tem dívidas para a organização do discurso foucaultiano e o seu campo vocabular. Reconhece-se nas noções de regime, discurso, visualidade, visibilidade, ocularidade, panoptismo a presença das matrizes e dos vocábulos do tipo produzidos por Foucault.11 O trabalho de Baxandall, de 1972, é também comentado nas revisões da (Nova) História da Arte inclusas nos textos já citados de Meneses e de Knauss. Em ambos, reafirma-se esta história social da percepção e o modo como um sistema de produção de sentido (semiótico) e sua codificação são decorrentes de uma experiência geral que dá sustentação aos modelos e aos padrões de imagens resultantes. Para os historiadores, ressalta-se o aspecto cognitivo, entendido como a habilidade compartilhada para uma compreensão das imagens e de seus significados. Partindo da perspectiva de uma gramática histórica e culturalmente situada, tanto artista quanto público, compartilham a codificação e são capazes de remeter a experiència ao campo cultural mais abrangente. Cada época deveria ser enfrentada a partir do seu próprio olhar. Assim, ao historiador dos objetos artísticos – ou, mais amplamente, estéticos – caberia a tarefa de historicizar o quadro de percepção, para entender como se deu a alfabetização e a educação visual de cada época e os modos pelos quais devemos adentrar neste sistema semiótico particular.

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o campo dos conteúdos dos quadros -, um sistema artístico de entretenimento – a dança de salão

-, e, um modo de “avaliação” através do sistema de pesos e medidas, que acabava por gerar

padrões sociais de percepção do mundo e uma capacidade para observar e descrever realidades

complexas em termos geométricos, em formas simples e regulares. Desse modo, o artista e seu

público compartilhavam de crenças que faziam funcionar um sistema representacional.

Mas Geertz não deixa de apontar uma especificidade deste sistema da arte na cultura.

Para ele, o tópico principal é o da formação de uma sensibilidade específica no conjunto de uma

formação social, na qual o objeto estético assume o papel de comentário do próprio sistema social

no qual está imerso. A experiência coletiva oferece as condições para uma experiência, mas não

determina o ponto de chegada desta formação sensível.

A compreensão desta realidade, ou seja, de que estudar arte é explorar uma sensibilidade; de que esta sensibilidade é essencialmente uma formação coletiva; e de que as bases de tal formação são tão amplas e tão profundas como a própria vida social, nos afasta daquela visão que considera a força estética como uma expressão grandiloqüente dos prazeres do artesanato. Afasta-nos também da visão a que chamamos de funcionalista, que, na maioria das vezes, se opôs à anterior, e para a qual obras de arte são mecanismos elaborados para definir relações sociais, manter regras sociais e fortalecer os valores sociais. Nada muito mensurável aconteceria à sociedade ioruba se os escultores deixassem de se interessar pela delicadeza da linha, ou, ouso afirmar, pela própria escultura. Certamente, não entraria em colapso. Apenas algumas coisas sentidas não poderiam mais ser ditas e, talvez, depois de algum tempo, deixassem até de ser sentidas – e, com isso, a vida ficaria um pouco mais cinzenta. É claro que qualquer coisa pode ajudar uma sociedade a funcionar, inclusive a pintura e a escultura; como também qualquer coisa pode ajuda-la a se destruir totalmente. A conexão central entre a arte e a vida coletiva, no entanto, não se encontra neste tipo de plano instrumental e sim em um plano semiótico. A não ser muito indiretamente, os rabiscos coloridos de Matisse (em suas próprias palavras) e as composições de linhas dos ioruba não celebram uma estrutura social nem pregam doutrinas úteis. Apenas materializam uma forma de viver, e trazem um modelo específico de pensar o mundo dos objetos, tornando-o visível. (GEERTZ, 1999: 149-150).

Para Geertz, a arte não é um sistema superior às formas artesanais e tampouco é um

mecanismo com uma função social pré-determinada. O comentário da arte diz respeito ao modo

como este sistema semiótico das paixões é uma materialização de um modo de viver e seu

aparecimento-desaparecimento é intimamente relacionado à dinâmica dos símbolos no interior da

vida cultural.

Mesmo rechaçando em grande parte os formalismos, estruturalismos e uma certa

semiótica, Geertz acaba entendendo que a tarefa histórico-antropológica é a do desvelamento do

sentido no interior de cada sistema cultural. A aprendizagem implica numa constante

tradutibilidade entre um sistema e outro, no interior do mesmo sistema, e, comparativamente,

entre sistemas de locais e de épocas distintas. Assim, traduz-se dança e sistemas de medição em

formas de organização do espaço perspectivo, no interior do sistema cultural renascentista. Mas

também se traduz, comparativamente, o lugar que a arte ou as formas estéticas ocupam em

diferentes culturas e em temporalidades distintas.

I.I.II. Michael Baxandall tornou-se um dos principais expoentes desta configuração arte e

cultura apontada por Geertz – no comentário à obra de 1972 – e, posteriormente, traduzido para o

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português, reafirmado entre os historiadores sociais da arte e da imagem brasileiros, como

Meneses, Mauad, Knauss, Salgueiro12.

O problema central desta obra composta por uma série numerosa de publicações diz

respeito às relações culturais entre as palavras (a linguagem, a escrita) e os objetos materiais (as

obras de arte). Para este autor, estamos submetidos a regimes descritivos das obras – como

disse Geertz, de modo simples e direto, há um veto ao silêncio diante da arte na cultura ocidental,

somos postos a falar e a falar tecnicamente, falar acerca da linguagem, das semioses, dos signos.

Entre as palavras e as coisas, parafraseando Foucault, existe um abismo preenchido por

comentários, social e culturalmente situados. Desse modo, a representação visual encontra-se

representada não apenas pelo que vemos nas obras – dimensão de análise de conteúdo e de

análise simbólica, aos moldes da leitura iconográfica -, mas no que pensamos sobre uma obra,

enquanto procedimento de extensão da obra num outro suporte de linguagem, de fundamentos

descricionais, tornando-a um suporte para um outro tipo de representação de ordem lingüística.

Não é do conteúdo da obra que se fala, mas da incapacidade de falar de uma imagem que nos faz

falar ainda mais acerca dela. Parece que, quanto mais uma imagem é opaca à explicação mais

ela sofre da multiplicação de descrições, que seriam capazes por extensão e por golpe extenuante

e esforço – coletivo – de obter algum domínio e um efeito explicativo contido no interior do

conjunto das descrições.

Assim como indicamos acima, esta forma da História Social procura abrigo e constituição

fora do circuito da História “Marxista” das Artes e ao entendimento da “arte como reflexo”, “arte

como espelho”, “arte como meio de expressão”. Para ele, como para os historiadores culturais e

visuais, a arte é uma linguagem, uma representação e uma prática. Como linguagem, exige o

acesso a sua gramática particular e aos meios de sua realização. Como representação, não

apenas preenche de conteúdos simbólicos a imagem produzida – fazendo da arte um lugar

privilegiado para falar de temas como identidade, sexo, relações. E como prática e representação

social, a arte, ela própria, ocupa um lugar temporal e espacial na dinâmica de uma cultura – e de

uma época. Assim, cada época teria produzido seu próprio olhar – “o olhar de um período, de uma

época”, em expressão do próprio Baxandall.

Este olhar seria estruturante dos princípios estéticos e dos modos compositivos.

Este olhar seria uma resultante cultural compartilhada por produtores, espectadores,

consumidores e conhecedores, no interior de uma fenda temporal.

12 Na Introdução à Edição Brasileira de Padrões de Intenção, Heliana Salgueiro descreve o autor: “Padrões de intenção é o oitavo livro de um autor que se impôs nos estudos críticos e renovadores da história da arte, nos últimos decênios. Publicado há vinte anos, em 1985, em Londres, com edição francesa apresentada por Yves Michaud em 1991, pode-se dizer que este livro se inscreve em plena época de formulação de postulados da new cultural history.[...]. Do lugar e da repercussão de sua obra na história da disciplina assinalo aqui alguns textos a título de informação, e, à guisa de situá-lo na sua geração, lembro autores como Pierre Francastel, que desde os anos 1960 desenvolvia uma ‘sociologia histórica comparativa’ oferecendo alternativas de reflexão à ignorância das condições históricas do objeto, à sua redução a enfoques da descrição formalística e ao trabalho puro e simples do inventário e classificação do connaisseur que dominavam a história acadêmica da arte. [...] De outra geração, Baxandall foi mais longe, ciente de que finalmente a narrativa é mediada pelo presente e de que acabamos colocando às obras as questões que nos interessam hoje, explicando-as nos nossos termos atuais [...].” (SALGUEIRO apud: BAXANDALL, 2006: 11-12)

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Novamente, voltamos ao ponto já tratado da valoração da arte – e das imagens em geral -

enquanto sistema de cognição. Para aceder à obra, num circuito amplo de recepção e consumo,

precisamos estar situados sócio-historicamente no quadro do sistema perceptual da época.

Assim, a obra suscita um consumo intelectual, um debate, um exercício de retórica ou uma

estrutura de comentários afeitos ao domínio do senso comum.

Esta (Nova) História da Arte está a se deslocar do objeto para o contexto cultural e para o

mapa mental necessário para o entendimento.13

Estamos diante de um tipo de sócio-semiótica historicamente posicionada.

O sensível, no qual insiste Geertz, ou, a singularidade do objeto quadro, na qual insiste

Baxandall, não deixam de remeter ao comentário social (Geertz) ou ao posicionamento das obras

num circuito mental e social de recepção (Baxandall).

Apesar da relevância das considerações de ordem historiográfica em relação ao saber

produzido pela disciplina da História da Arte, o eixo configurado para a História Cultural ou Nova

História (Social) da Arte, através de Ginzburg e Baxandall, deve ser questionado e enfrentado,

paralelamente, a outras configurações em Teoria da Arte, tais como as linhagens do pensamento

analítico e pós-analítico de língua inglesa, com o pensamento expoente de Arthur Danto, e, a

Teoria da Arte francesa, com Damisch, Daniel Arasse e Didi-Huberman. Leve-se em conta que,

autores como Danto e Arasse, são estudiosos não apenas da História, da Teoria e da

Filosofia da Arte, mas estão implicados em reflexões postas pela arte no e ao tempo presente e

afiliados às obras e aos estudos críticos de determinados artistas para a compreensão filosófica e

teórica da arte, como é o caso de Arthur Danto - Andy Warhol e Daniel Arasse - Anselm Kiefer.

Para uma compreensão ampla e minuciosa do debate que se inaugura já na década de

1970 e chega à língua portuguesa com quase trinta anos de atraso, a ascensão das abordagens

estruturalistas entre os anos sessenta e setenta do século XX, mantiveram seu impacto, agora

diluído, nos grupos da história cultural, declinando do tratamento às redes de significação dos

objetos para uma rede estrutural do pensamento, o que se combina ao entendimento do modo

como uma sociologia da arte do tipo da de Pierre Bourdieu mantém dívidas para com seus

estudos etnográficos e monográficos do início de sua carreira.

No trânsito entre marxismo e weberianismo e entre estrutura e relações de poder, os novos

equipamentos intelectuais desenvolvidos para a análise das obras de arte acabam por remeter,

13 Como já afirmei acima, estas correlações entre mapa cognitivo e História, apesar de ainda não tratadas, devem-se, em grande parte, a uma produção de respostas, de saberes do século XIX, às novas organizações do saber da segunda metade do século XX. Um historicismo e um sociologismo do tipo complexo vem buscando, pós-Foucault e após os “pós-modernismos” (Boaventura de Sousa Santos, por exemplo), dar um tratamento próprio das ciências humanas ao estudo da Mente. Disciplinas científicas, no campo das Neurociências e das Teorias Cognitivistas, desenvolvem teses acerca do desenvolvimento do cérebro, dos sistemas perceptivos e de um pensamento-corpo. Ao historiador, no tempo presente, após as filiações da Ego-História e da Psicologia Histórica, que chegam aos termos tratados pela Psicanálise, cabe o estudo de uma História dos Sentimentos, dos Afetos, das Afecções e dos Sentidos. Para este campo, a premissa encontra-se na perspectiva da antropologia cultural de que sentimentos são acima de tudo convenções sociais e que os esquemas perceptivos e os modos de ver são dependentes de transformações culturais. Crary fala das relações entre estas mudanças e as teorias psicológicas no século XIX. Baxandall, aqui identificado, promove uma leitura mais sociologizante, demarcando a importância da experiência social – compartilhada – na determinação dos aparatos sensíveis. Em outras palavras, há um inteligível social que perpassa a constituição do equipamento sensível.

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por caminhos diferentes, aos problemas já enunciados para os estudos da Cultura Visual. A obra,

agora não olhada apenas como uma estrutura ou um objeto produtor de sentido, isoladamente, é

reiteradamente remetido às séries, não mais de outras obras, mas às séries tipológicas do

pensamento de uma determinada época, num efeito da re-historicização (e da retomada

hermenêutica, na segunda metade do século XX, na disciplina histórica).

Assim como pensadores da Cultura Visual, historiadores da arte devem posicionar as

obras num enquadre de categorias visuais. Dar historicidade ao objeto artístico significa aqui um

pensamento que se vincula a um tipo de Sociologia do Conhecimento.

Se a obra é uma materialização de formas culturais do pensamento (estruturalismo que

retorna), dentro de uma dinâmica cultural (interpretativismo que retorna), não estamos diante de

um amálgama que pretende idealizar as relações entre obra e equipamentos perceptuais e sócio-

culturais de recepção (retomada de teorias da recepção, advindas do campo da Teoria Literária)?

Não estamos aqui apenas para afirmar um posicionamento crítico sob a forma que toma

esta Nova História. Há o reconhecimento de que estes estudos, destinados ao campo da

Intencionalidade (Searle), a cada dia que passa, desenvolvem sua metodologia em torno de uma

sofisticação de linguagem e no reconhecimento de que questões filosóficas, como os embates da

filosofia inglesa da linguagem, entre correntes analíticas e pós-analíticas e os pragmatismos,

tomam conta da produção do discurso histórico.

O que quero problematizar nesta produção diz respeito aos seguintes aspectos. Se a

História da Arte deve atender ao campo maior das intenções e das ações, como o queria também

Alfred Gell, saindo do campo semiótico da significação, para colocar a significação enquanto

embate cultural, no limite, como podemos afirmar que os resultados formais produzidos, serão

eles as resultantes do jogo de forças cognitivas de uma certa época?

Não seria este tipo de história uma versão um tanto mais sofisticada da Teoria Institucional

da Arte?

Como se pode afirmar que há mais contexto no objeto do que forma?

Parece-me, claramente, que o mal-estar provocado pelas análises estruturalistas e pelo

hiper-formalismo, não apenas foram admitidos nas disciplinas culturais – Antropologia, Cultura

Visual, Estudos Visuais, Educação Visual, dentre outras -, mas foram absorvidas pela produção

historiográfica da cultura. O objeto de arte, antes fonte enigmática de sentido, forma que resiste à

interpretação, volta a ser resumido, de um modo muito mais sofisticado, às considerações dadas

aos objetos culturais e, contemporaneamente, midiáticos.

Se, para estudar um aspecto do passado, esta metodologia e teoria, permite a apreensão

de discursos e práticas, ou seja, efeitos de linguagem e modos de explicação, que circulam em

torno de dados objetos artísticos e culturais, para a contemporaneidade, a sua produção, se faz

um tanto quanto rarefeita. Como entender o distanciamento produzido, procurado e provocado da

arte contemporânea de vertente conceitual em relação aos artefatos culturais? Como entender o

fino estado filosófico do pop, do minimalismo e das vertentes que encenam uma popularização

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não apenas de conteúdos da arte, mas, ainda mais, que ao se apropriarem de objetos banais para

a constituição de operações artísticas, voltam a problematizar a distância – e não a proximidade –

entre arte e cultura?

Não seria este raciocínio uma certa má popularização ela própria de uma pop filosofia,

parafraseando a expressão de Deleuze / Guattari?

Se nossa época produz uma quantidade imensa de objetos em todas as ordens técnicas,

do mais material ao virtual, o que quer designar, a operação artística, quando, ao tomar certos

objetos da cultura, os reposiciona para o campo artístico? Qual a distância entre as intenções

circulantes no momento da produção de um determinado objeto cultural qualquer – um

computador e sua tecnologia específica, por exemplo – e as formas que irão tomar os objetos, nos

procedimentos de apropriação significativa?

Como venho dizendo neste texto, uma ênfase na estética cognitiva é um mote para o

funcionamento deste tipo de relação entre imagem, arte e história. Não há um “excesso de

cognição” diante da questão originária da estética: o problema do sentir e dos sentimentos14.

As ferramentas de trabalho da arte – e, especialmente aqui, das artes visuais, ligadas ao

reino do imagético – não se restringem a materiais e técnicas e, tampouco, devem ser

reconhecidas, apenas como uma problemática de linguagem ou de conceito artístico. Caso isso

fosse verdadeiro, não haveria nem mesmo história da arte fora do campo das tecnologias ou da

estilística. Por outro lado, o modo como equipamentos culturais perceptuais e cognitivos são

introduzidos no fazer artístico, não dizem respeito, diretamente, a conceitos e sistemas e teorias

da percepção e tampouco aos modos como estamos, todos, submetidos (em teoria) ao mesmo

sistema de educação visual. Se representações culturais estão contidas na obra e são motes para

a produção de obras, formas são meios de manuseio das representações.

Didi-Huberman, teórico da arte ao qual tenho me dedicado nos últimos anos, em suas

leituras de Freud-Lacan-Benjamin, se recusa a um entendimento de cunho exclusivamente

representacional sociológico. Para ele, os efeitos da temporalidade escavada, dizem respeito a

estranhas memórias, num certo princípio de collage e de montagem, para a qual a arte

representaria uma inserção do tempo da “inquietante estranheza” (Freud) e das configurações do

tipo do arcaísmo e do anacronismo.

Se para a Arte isto pode querer dizer que a inserção do artista e da obra não se dá

exatamente no plano de uma temporalidade contextual, para a História, já o conhecemos, e não

será alvo de tratamento aqui, esta acepção do tempo, será atravessada pela força do

esquecimento no tratamento dinâmico da memória.

Em dois estudos acerca de Picasso, Ginzburg e Baxandall, tratam de relações de objeto –

Demoiselles d’Avignon e o Retrato de Kahnweiler - com seu contexto.

14 Mario Perniola lembra que a estética pertence, como requer a etimologia da palavra, ao sentir, pois aísthesis, do grego antigo, significa “sensação”.

13

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FIGURA1. Les Demoiselles d´Avignon, FIGURA 2. Retrato de Daniel-Henry Kahnweiler,

Pablo Picasso, óleo sobre tela, 1907. MOMA, NY. Pablo Picasso, óleo sobre tela, 1910. Art Institute, CHICAGO.

Para relembrar Ginzburg,

Diálogo entre culturas, multiplicidade cultural: o caso analisado aqui recorda-nos uma evidência que está hoje, no geral, esquecida, a saber: nem todas as culturas dispõem do mesmo poder. O que tornou possível a apropriação das culturas figurativas não européias por parte de Picasso foi o colonialismo. O uso e a deformação dos postais eróticos e colonialistas de Fortier por parte de Picasso têm um significado simbólico. Mas Picasso conseguiu decifrar os códigos das imagens africanas (inclusive as que não lhe eram ainda materialmente acessíveis) graças à capacidade inclusiva, real e potencial, da tradição figurativa na qual ele crescera. A justaposição de vestígios clássicos e de elementos inspirados em tradições figurativas não européias em Demoiselles d´Avignon era, certamente, e de forma radical, estranha ao exotismo e ao racismo. Mas, indiretamente, aquela justaposição dava testemunho da força de uma tradição cultural que havia fornecido justificações ideológicas e instrumentos intelectuais para a conquista do mundo pela Europa. O choque entre culturas figurativas e heterogêneas, posto em cena por Picasso, em Demoiselles d’Avignon, recapitulava, simbolicamente, aquele processo histórico.Não menos heterogênea é a associação entre Aby Warburg e Picasso [...]. Em 1920, usara [Warburg] os versos de Goethe, na sua versão autêntica – “do Harz à Grécia, todas são primas” -, como epígrafe do seu grande ensaio sobre Lutero e as profecias astrológicas. Substituindo Harz por Oraibi, o fundador de uma biblioteca dedicada ao estudo do Nachleben da tradição clássica, sublinhava a necessidade de estender a análise dos fenômenos culturais para além dos confins não só do Mediterrâneo, mas de toda a Europa. O choque com os indígenas pueblo permitiu a Warburg analisar o Renascimento italiano, numa perspectiva vigorosa e originalíssima, hoje mais viva do que nunca.As categorias cognitivas, usadas por Warburg para formular a sua abertura cultural, faziam parte, com certeza, de uma tradição específica: basta pensar nas afinidades morfológicas, teorizadas por Goethe, que inspiraram o grandioso projeto intitulado “Mnemósine”. A multiplicidade cultural deve ser formulada numa linguagem específica: se for diluída num esperanto incolor, a própria multiplicidade desaparece. Mas quem vai falar essa linguagem específica? Só uma pequena parte daqueles que, em princípio, teriam o direito de faze-lo. Voltemos, ainda uma vez, às relações de força. A literatura não se faz com bons sentimentos, escreveu Gide; e, tampouco, a pesquisa histórica. (GINZBURG,2002: 134-136)

14

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O documento visual artístico – o quadro – deve ser observado como a resultante de forças

que são de ordem conjuntiva, justapositiva e de agressividade. O quadro de Picasso, enquanto

obra, revela, aos moldes do pensamento de Warburg, um entendimento simbólico, das amplas

relações coloniais, que se iniciam no contexto das primeiras décadas do século XX e nas

fotografias da coleção Picasso e voltam-se para o modo como a tradição pictórica ocidental, na

qual Picasso recebe sua formação, é capaz de absorver, capturar e transformar – por destruição,

por agressão, por abjeção – as formas visuais não-ocidentais. Assim, o colonialismo é uma

relação política e simbólica. A linguagem da criação deveria, portanto, ser capaz de revelar, os

modos simbólicos destas relações políticas (relações de força, como diz Ginzburg), para servir ao

intérprete como modelo. O modelo ou paradigma teria sofrido transformações no correr do tempo.

No passado, o modelo servia para a constituição de uma norma ou de uma moral. No presente, o

modelo serve como paradigma (modo de conhecer algo) e como política (modo de agir).

Assim, um modo de fazer – o modo de realização da pintura – diz respeito não apenas ao

contexto sociológico – produção, circulação, distribuição, consumo, reprodução -, mas ainda mais,

como as estratégias integram figuras helenísticas (da formação de Picasso no desenho e do seu

amplo conhecimento das teorias das proporções e da integração dos elementos grotescos na arte

greco-romana), as figurações oceânicas e africanas (com seu tratamento da cor e das

deformações) e um código cultural: a caricatura.

Baxandall segue um caminho semelhante ao de Ginzburg para analisar, para além da rede

social do objeto, a formação do pintor e daí partir para a crítica da “teoria da influência” na crítica e

na História da Arte. A especificidade da “linguagem específica para fazer falar a multiplicidade

cultural” como diz Ginzburg, culmina nesta tipologia da produção historiográfica que se detém nos

objetos – e nos artefatos – em sua realidade material, examinando os efeitos pictóricos e suas

relações com as teorias da percepção – insisto aqui em Crary e em Baxandall.

Para finalizar, durante muito tempo, as relações entre Filosofia e Teoria da Arte e,

posteriormente, somando-se a elas, a de uma Antropologia da Arte, estiveram centradas nos

problemas da arte e da religião / religiosidade.

Entendo que, a sintomatologia do tempo presente e da história do século XX, promoveu

este afastamento.

Na atualidade, relações “totêmicas” são inauguradas no dizer da arte e das ciências. Se,

de um lado, um artista como David Hockney pode, de modo popular e polêmico, afirmar um

“conhecimento secreto”, grandes teóricos podem relacionar psicologia empirista ou teorias da

gestalt com os modos da representação visual e das cores nos artistas do tempo em que estas

teorias foram produzidas.

O que parece ter se tornado estável até aqui é o modo como a noção de representação

perpassa a maioria de nossos textos e autores.

As imagens são observadas na História como processos ou formas de produção de

sentido (redes semióticas) em contextos culturais determinados e integradas ao amplo campo

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processual social. Assim, uma representação não é apenas o modo como uma realidade se

apresenta enquanto objeto visual. Uma representação é um processo de integração do código na

dinâmica cultural, permitindo deslocar-se do objeto representado e da codificação, para um

entendimento epistemológico, do modo como o que se representa é co-atuante num processo de

formação das redes visuais, entre objetos visíveis e a formulação de uma visualidade. Não é

apenas do código cultural que se está a falar, mas daquilo que se opera quando acedemos ao

código e somos nele alfabetizados, implicando o sistema simbólico e sua abertura, ou, aquilo de

que falava Geertz, das condições nas quais podemos aceder a uma determinada experiência –

social, cultural – em relação ao conjunto das imagens, mas das quais não podemos determinar o

lugar de chegada do sentido do sensível.

Em outros termos, esta abertura quer tornar implicados o inteligível e o sensível. É no

inteligível que aprendemos o acesso a um código cultural e podemos nos tornar íntimos e

experimentar algo, passando aí ao reino do sensível. O sensível é um comentário inteligível da

própria experiência enquanto materializável e traduzível em outra forma-sistema.

Aqui, na leitura de Knauss, uma distinção ganha relevância, tessitura e complexidade.

De um lado, uma Teoria do Objeto, insiste no entendimento de que o sensível se

materializa em sistemas de objetos – como os artefatos e objetos estéticos. Aqui, os elementos

são observáveis do ponto de vista da individualidade.

De outro lado, as teorias dos Estudos Visuais, acha que o sentido é a produção de uma

relação ou uma trama de relações. Assim, as imagens são elementos numa ampla rede social de

significação, que envolve uma ação ou performance – as práticas e modos de olhar e de ver, os

modos expositivos e seus trajetos e percursos.

Neste ponto particular, ao retornar ao campo das Teorias da Arte, vimos como esta

problemática da mútua exclusão entre uma teoria do objeto e uma teoria da relação não deve ser

tratada deste modo. Ambos os regimes convivem e a noção de plataforma pode ser um modo

particular de tecer este relacionamento.

Para irmos adiante, vou me ater ao termo utilizado por Meneses, a noção de visual como

plataforma de observação. É daqui que partiremos agora para um entendimento aprofundado

deste termo em específico e o que ele pode trazer ao estudo do historiador e do historiador da

arte.

II. A noção de plataforma: um cruzamento.

Meneses insiste que o visual é uma categoria estratégica e um ângulo de penetração ou

plataforma de observação da realidade das sociedades históricas.

Com isso, será que estaríamos diante de uma nova materialidade, através de uma

aplicação ao estudo dos diferentes sentidos – visão, audição, tato, paladar, olfato – e o modo

16

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como estes se constituem em plataformas para uma realização e para uma observação da

dinâmica do social? Seriam os sentidos os planos ou platôs?

Como diz Salgueiro,

No quadro Uma dama tomando chá, de 1735, tudo gira em torno de psicologia empirista da percepção visual, nas implícitas teorias de Isaac Newton e John Locke – acomodação e acuidade óptica – vulgarizadas por manuais. Baxandall explica detalhadamente como elas modificaram as formas de representação das cores e formas associando aos dois autores outros “personagens intermediários” ligados à ciência e à pintura, dois “universos cuja aproximação é concebível” na época. Baxandall observou na cena de Chardin “uma mudança na concepção clássica da verdade em pintura”, enxergando a nova experiência da percepção conforme o sucesso do lockianismo nas representações particulares dos efeitos de luz, na precisão dos detalhes, nas formas irregulares da perspectiva dos objetos.[...]O Batismo de Cristo, de Piero della Francesca, traz, entre outras, a questão da “verdade e outras culturas” – [...]: diferentes experiências, capacidades visuais outras, estruturas conceituais distintas das nossas, circunstâncias incompatíveis: a bagagem cultural e a vivência do participante (nativo) e do observador estão obviamente marcadas por elementos de estranheza. Um simples gesto para ser entendido demanda uma ampla vivência cultural de práticas sociais e lugares diferentes. Os limites da interpretação histórica estão declarados na tentativa do historiador de “desgeneralizar” conceitos: primeiro passo para a percepção de um quadro na sua cultura específica. Sabendo, contudo, que não se lê um quadro como um texto – [...] -, que os dados visuais não estão no mesmo nível de significação de conceitos nem de códigos simbólicos, embora estes sejam parte da organização interna (percepção, emoção e construção) e “significação” de uma pintura. (SALGUEIRO apud: BAXANDALL, 2006: 21-22)

O quadro é uma plataforma de observação para as transformações dos modos da

percepção, demarcando um novo regime visual. O dado visual não significa um conceito.

Tampouco designa um sistema simbólico na acepção tradicional do signo lingüístico. O dado

visual, representado aqui pela noção de verdade contida no (en)-quadr-[o]-a(mento), tal como na

verdade da pintura de Derrida, designa algo que se passa na interface entre arte e ciência

perceptiva.

De lá para cá, ao historiador da arte contemporânea, cabe prestar atenção nas relações

entre os registros semióticos (de sentido) e as práticas de diferentes campos, num fortuito e

explosivo encontro entre a produção do sentido e a multiplicidade das ciências e tecnologias.

Isto nos implica ou nos pôe cúmplices da integração crescente das afecções de campos,

forças-vetores e práticas, como quando um registro semiótico de subjetivação é interdependente

da produção da vida econômica, nos modos como as relações entre e economia e psiquismo

integram-se à flutuação das bolsas, das eleições, da opinião pública. E, nestes termos, a pesquisa

das plataformas está mais próxima do que imaginamos da estrutura da subjetivação.

“A subjetividade, de fato, é plural, polifônica, para retomar uma expressão cara a Mikhail Bakhtin. E ela não conhece instância dominante de determinação comandando outras instâncias segundo uma causalidade unívoca. (GUATTARI, S/D: 3)”.

Dentro deste espírito, a heterogeneidade faz atentar para novos modos de pensamento do

social.

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É certo que a disciplina da História levou muito tempo para produzir uma fenda no seu

tecido. Em se tratando de um saber com raízes profundas na ciência positivista do século XIX, a

entrada em cena do campo heterogêneo veio, em grande medida, pela figura dos novos objetos e

com eles uma reconcepção de documento que, por vezes, acaba sendo uma reedição dos

saberes do XIX.

Desse modo, a “arquivística” da segunda metade do século XX ampliou-se em novas

direções e enfrentou o problema de como identificar, classificar e promover amplas tipologias para

a produção historiográfica de sua nova documentação, dando condições materiais às reflexões

epistemológicas em torno dos objetos.

Os estudos de Vovelle são exemplares na constituição de séries tipológicas e o modo

como estas revelam as articulações entre modelo, ideologia, imagem e imaginação histórica

(imaginário social).

A História reconhece como pertencente ao seu domínio métodos e técnicas de pesquisa

advindos dos campos das Histórias Especiais e das disciplinas chamadas de Auxiliares aos

estudos históricos e passa a fazer valer para a construção de seu campo de conhecimento

estratégias produzidas em torno de problemas muito particulares – o uso de metáforas

arqueológicas na História Cultural, por exemplo.

Por outro lado, novos objetos acabaram por tomar a si uma parcela de teorizações

sociológico-antropológicas em torno dos problemas da representação social, aos moldes da

Escola Sociológica Francesa e, mais recentemente, com as feições e diálogos com as formas do

culturalismo e do interpretativismo.

Também aqui crescem os estudos em torno da ideologia e da ideologia como cultura

(como já vimos, a História Cultural, interpretativista, aos moldes da antropologia de Clifford

Geertz), e os grupos franceses em torno do imaginário e das mentalidades.

De todo o modo, a marca da heterogeneidade deve ser enfrentada pelo historiador na

apreensão do seu próprio tempo e, a partir desta sensibilidade15, também ela historicizada (e

historicizável), atentar para novos modos de compreensão de outras realidades históricas.

Assim questões abrangentes como as das produções midiáticas, da informática, da

telemática e da robótica acabam por privilegiar uma reconcepção de campos como a memória, a

inteligência, a sensibilidade e os afetos. Tal como vimos afirmando deste os inícios deste texto,

lado a lado aos desenvolvimentos da Neurociência, a História intenta investigar os modos da

historicidade das percepções e uma história dos sentidos. É neste vasto campo que se privilegiou

o vetor da visualidade. Lado a lado às redes de informação e do mundo virtual, ao historiador cabe

a preocupação e a pergunta em torno da promoção de uma avaliação da sociedade

15 A historiadora da performance RoseLee Goldberg comenta que nossa sensibilidade para o estudo da performance está intimamente relacionada à nossa formação sócio-educacional. Somos historiadores mergulhados em novas temporalidades e em novas relações entre meios comunicacionais e produção de artefatos artísticos. Desse modo, passamos a olhar como arte para objetos até então impensados como tal.

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contemporânea em sua dinâmica de apropriação (desapropriação e reapropriação) no uso das

(multi)mídias16.

À História cabe reconhecer o modo como a artisticidade toma conta e se ramifica na

contemporaneidade, tanto filosófica – nas matrizes do pensamento – quanto nas práticas sociais e

nas formas da vida cotidiana.

Num sentido muito próximo ao termo platô, amplamente utilizado por Deleuze e Guattari,

as heterogeneidades nos permitem constituir diferentes lugares estratégicos de observação do

mundo – postos de observação.

[...] O projeto é “construtivista. É uma teoria das multiplicidades por elas mesmas, no ponto em que o múltiplo passa ao estado de substantivo [...]. [...] mostrar como as multiplicidades ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, o corpo e a alma. As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a sua relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.A história universal da contingência atinge aí uma variedade maior. [...] (DELEUZE e GUATTARI, 1995: 8).

Como dizem os autores, o projeto é construcionista. A tarefa filosófica é criar conceitos e a

tarefa da arte é criar e sustentar perceptos e afectos. Em cada um dos planos17 da realidade, tal

como afirmam em O que é a filosofia, a criação-construção passa por uma certa dimensão

anímica

“pelo qual se admite que os conceitos criados não sejam entidades inertes, mas ao contrário, sejam capazes de auto-afirmação (“autopoiese”), e portanto dotados de uma vida e uma história (é esta uma circunstância em parte limitadora: o experimentalismo deve sempre fazer as contas com a autonomia das ‘coisas’ de que se ocupa). A última conseqüência é que a emancipação em jogo resulta ser um programa vasto e radical: não é só a emancipação dos seres humanos, mas é também emancipação dos objetos e dos conceitos.” (D’AGOSTINI, 2002: 549-550)

Nesta organização do pensamento, das coisas, dos objetos e dos corpos estamos diante

de um procedimento e um programa de singularização. Em lugar de jogos estruturados de

16 Questões de ordem documental são também questões que atingem o sistema de organização das informações. Entre as lutas contemporâneas da História encontram-se as bandeiras dos bancos de dados, das videotecas, da discussão em torno da produção de novos documentos e dos modos da guarda e do acesso público a estes materiais. Se a filosofia pós-moderna já estava interessada no “fim das metanarrativas”, à História cabe, mais de vinte anos depois das reflexões lyotardianas, pensar os mecanismos sociais nos quais estas redes multiplicadas de informação se integram à constituição das faces do tecnológico no social e de uma tecno-sociedade contemporânea.17 Guattari e Deleuze não se cansam de afirmar que seu projeto é anti-hegeliano. Mas, nos termos de O que é a filosofia, os autores reconhecem os três registros do mundo, a filosofia, a arte e a ciência. Neste sentido, um contra-hegelianismo possui matrizes em Hegel. Em outros trabalhos, voltados para as relações deste pensamento com o âmbito da psicanálise, venho tratando de recuperar a força-motriz de Hegel para Lacan e os três estados associados entre Freud (ciência, religião, arte) e Lacan (ciência, filosofia, arte). Nota-se que a tríade hegeliana da filosofia da história muta para as tópicas da psicanálise e, posteriormente, para os platôs de Deleuze-Guattari.

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relação, os devires, os desenvolvimentos e os desdobramentos. Em lugar de acontecimentos

remetidos a cadeias de causalidade, as hecceidades, ou seja, as individuações, numa realização

rizomática, uma forma não-hierárquica, não-estrutural, não-centrada e não-linear de organização.

E para fazer este pensamento entrar em consonância com as matérias objetivas dadas à

preocupação do historiador, entramos em contato com sua afinidade com a arte. A ruptura

proposta por Deleuze e Guattari é a com os programas de representação, que envolvem e

englobam nossas estruturas de pensar – centro das teorias do conhecimento, no campo filosófico,

e, que adentram o campo do pensamento simbólico, em artes e em antropologia, bem como as

formas adotadas pelo estudo da cultura, nas ciências humanas e sociais.

É da arte que se pode partir para uma saída da lógica representacional. A positividade do

presente está na constante recriação do mundo, na fabricação do mundo.

A arte contemporânea rompeu inegavelmente com essa lógica da representação: apresentando repetições puras, isto é, “duplos” ou “módulos”; objetos deslocados e despedaçados, que hospedam realidades heterogêneas ao próprio interior ou se decompõem, se desconectam e tornam-se tudo ou qualquer coisa; subvertendo, de infinitos modos, a lógica do original e da cópia; rompendo o fechamento da moldura, ultrapassando a cópia dogmática do artista e da obra e qualquer outro dualismo previsível. O que a arte fez na própria “lógica”, seria feito também em filosofia: é necessária uma nova lógica uma nova “imagem do pensamento”, mas sobretudo é necessário rejeitar toda imagem normativa do pensamento, libertar o pensamento da submissão a uma forma-imagem predeterminada. (D’AGOSTINI, 2002: 551)

E a arte é algo mais do que aquilo que foi submetido ao programa da representação. A arte

integra-se ao domínio do natural.

[...] a arte não é o privilégio do homem, mas deixa-se ver, em primeiro lugar, nas impressões territoriais de todo o ser vivo. [...] pensar a natureza é pensar o modo de existência da parte do acontecimento que existe em cada coisa. A pensabilidade da arte em Deleuze implica, pois pensar o agenciamento / acontecimento.[...] a arte é um composto que “existe por si”, suas qualidades são auto-expressivas, são espontaneidades da natureza e não dependem nem necessitam de nenhum sujeito que as revele ou que as valorize. [...] a arte é um agenciamento da natureza que se manifesta na forma de um acontecimento, de um quase-ser ou extra-ser, isto é, de uma hecceidade. (POMBO, 2002: 47)

O que deve ser perguntado à arte é questão do modo como ela faz existir e acontecer algo

artístico, no modo como estamos a pensar o que um objeto artístico qualquer produz no mundo e

faz surtir seus efeitos. Desse modo, a historicidade deste projeto não é a de um raciocínio

convencionalmente estético – daquilo que se pode saber sobre uma obra ou a partir dela, no

caminho das estéticas cognitivas, até aqui anunciadas, ou, da estética do desinteresse-interesse -,

mas a de um raciocínio que toma a obra como um organismo e uma existência corpórea

incorporal. Diante da lógica artefactual – do positivismo que oculta o fato no interior do artefato –

impõe-se um raciocínio que enuncia a obra como multiplicidade de linhas de fuga e, portanto, de

demarcação territorial e de desterritorialização, antes da formação do objeto propriamente dito.

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Então, o estado da arte enquanto aesthésis, estado de plenitude do sentir, bloco de

afectos e perceptos, é o que se configura na produção de um bloco cumulativo que provoca um

estado que fica aquém ou além da representação. De um lado, o sujeito contemplador (kantian)

tornando-se, ele próprio, o objeto da contemplação, recurso ritual e xamanístico. De outro, o

objeto no qual parece estar contido o bloco, como a alma do mundo contida numa pedra de culto

– desde tempos imemoriais -, mas que não se encontra na pedra, pois a pedra é lugar de

contenção – territorialização – da força expressiva. Numa estética como sentir, a matéria

expressiva se amalgama em expansão e contenção, desterritorialização / territorialização. E estas

qualidades acabam por figurar marcas e assinaturas.

Será a arte um platô – uma zona de intensidade atravessada por vetores e constituindo

territórios e seus graus de desterritorialização - de observação do social? É isto que se quer dizer

quando se está falando dos modos como a imagem é a produção de enunciações que são

apreendidas não apenas como estrutura determinante da produção de sentido (como linguagem),

mas muito mais como agenciamentos (modo manifesto de um acontecimento, o que recorta os

corpos em sua extensão, para liberar os acontecimentos, as marcas de uma singularidade)18, nos

quais se faz emergir um território existencial, onde contextos semióticos (de sentido) e sociais (de

ação) estão integrados e individuados numa imagem-acontecimento.

A imagem, não isolada, integra-se a uma rede contextual de ação e acaba por ser uma

posição num conjunto relacional de alteridades. O social, tal como nossos autores estudados

afirmam de modos os mais diferentes, é apreendido, também, com as imagens (acontecimentos),

e, não através delas (tese da História Social da Arte, da Literatura e das Imagens). O social não é

ilustrado, ele é constantemente refeito em vários níveis de platôs. No Visual entendido como platô,

encontra-se a produção do signo, a produção de um objeto material (um conceito de coisa social)

e um agenciamento que provoca a territorialização em objeto ou imagem-acontecimento.

Ao lado do significante há um conjunto de intensidades advindas do social que estarão

implicadas na construção das linguagens e nos modos como estas se revelam em formas

comportamentais, de sensibilidades, de modelos perceptuais. Assim, esta rede material incorpora

a si os universos incorporais – realidade virtual, universos sonoros e hologramáticos, etc.

Desse modo, começamos a reconhecer que, no bojo da História Visual também uma

matriz filosófica estética se apresenta. O visual, como domínio técnico e estético, implica sempre

na produção de uma liberação do trabalho da imagem em face dos outros significantes e das

outras linguagens em disputa no campo social. Novamente remetendo a Bakhtin,

[...] em seu primeiro ensaio teórico de 1924 onde ele, de forma brilhante, põe em relevo a função de apropriação enunciativa da forma estética pela autonomização do conteúdo cognitivo ou ético e a realização deste conteúdo em objeto estético que, de minha parte,

18 Esta é uma questão de suma importância para o pensamento histórico. O acontecimento é, ele próprio, a hecceidade, ou seja, não existe uma rua onde ocorre qualquer coisa, só existe a rua enquanto acontecimento por onde algo se faz aparecer e passar. Há algo que faz a travessia de um espaço homogêneo e vazio, determinando-o como sendo lugar, hora, dia, mês, ano, estado. Portanto, para que a História ocorra é preciso que tenhamos agenciamentos que possam provocar os acontecimentos, recortando o tempo-espaço para encarnar um acontecimento.

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qualificarei como enunciador parcial. Bakhtin descreve uma transferência de subjetivação que se opera entre o autor e o contemplador de uma obra – o regardeur, no sentido de Marcel Duchamp. Nesse mesmo movimento, o “consumidor” torna-se para ele, de algum modo, o co-criador. A forma estética não atinge este resultado senão pelo viés de uma função de isolamento ou separação, de tal modo que a matéria de expressão torna-se formalmente criadora. O conteúdo da obra destaca-se de suas conotações tanto cognitivas quanto éticas: “o isolamento ou a separação não se relacionam nem com o material, nem com a obra, como coisas, mas com seu significado, com seu conteúdo, que se liberta de algumas ligações indispensáveis com a unidade da natureza e com a unidade do evento ético do ser”. É, portanto um certo tipo de fragmento de conteúdo o que “se apodera do autor” que engendra um certo modo de enunciação estética. (GUATTARI, S/D: 11-12).

Cada platô deve ser pensado como sendo um objeto parcial e, no interior do platô, cada

imagem é, também, um objeto parcial, retido num campo de significações em constante atuação.

Assim, quando se fala de uma imagem para uma leitura ou para uma compreensão visual do

social, está se pensando numa dimensão estética que se autonomiza dos seus conteúdos – dos

significados estabilizados, das representações sociais – para ser uma prática social que, em ação,

pode dar abertura a novas significações e à estabilização de representações. Esta ação é um jogo

entre objeto-imagem e pode ser descrita verbalmente como sendo o ato de contemplar – e ao

contemplar integrar-se vividamente ao objeto contemplado - e/ou interagir e/ou intervir.

Portanto, não há término da obra no isolamento e autonomia da linguagem.

É no modo como esta linguagem, enquanto matéria expressiva contamina o mundo deste

seu conteúdo e abertura.

Por exemplo, nesta dimensão estética reconhecível em toda imagem, valoriza-se e

observa-se o aspecto compositivo, a forma-objeto e uma atividade que, parafraseando Guattari,

tem o sentido de uma ação que produz um significante que comporta elementos integrados entre

corpo, gesto, movimento, sensações, percepções.

O autor designou este fenômeno como sendo o ritornelo existencial, módulos de

intensidade que são os marcadores temporais, operando em diferentes registros, indo do sócio-

histórico ao subjetivo. Nesta composição, uma produção constante de ritornelos faz constituir

campos de semantização e de fixação de sentidos – a cultura, propriamente dita.

Assim, quando falamos de cultura visual estamos muitas vezes pensando nos modos

como um ritornelização me fixa diante de um estado imagético.

Por outro lado, como o ritornelo é um marcador de intensidade, há aqui uma implicação de

tempo e de historicidade dos ritornelos, permitindo o cruzamento entre os diferentes marcadores

de tempo, já que não estamos submetidos socialmente a um único registro visual (e audiovisual)

e, portanto, não estamos restritos a uma única temporalidade. A heterogeneidade dos

componentes visuais do mundo se faz acompanhar de uma heterogeneidade de apreensões.

Nestes termos, amplia-se o campo de atuação do visual. Por exemplo, quando estudamos

uma imagem fixa, do tipo de um quadro, de uma pintura, não apenas atentamos para os modos

como este faz para destacar-se do continuum, dos modos como este ganha um modo de

enunciação estética (aos moldes de Bakhtin). É preciso observar que este modo de se destacar

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do objeto o constitui próprio enquanto ritornelo e faz abrir outras formas relacionais – um feixe de

relações.

De que tipo? Uma pintura pode ser um foco luminoso, um modo do pensar visual acerca

da luz e configurar-se assim, em objeto de fascinação. Mas também pode ser uma zona luminosa

ampliada e rarefeita, que envolta em fantasmas, ativa a atenção ao universo fantasmático, das

fantasias. Assim é que objetos visuais são convites a dar-se a ver e, ao mesmo tempo, revelações

do não-visto, convocados a partir do objeto material e fazendo fantasmagoria no campo

imaginário19.

A fixação no campo do objeto designa um território de projeção. Assim, o objeto não é a

correspondência direta de sua forma material – no caso de um quadro, um conjunto, na maioria

das vezes, feito de tela, suporte, tintas, traços e elementos como performance do artista, num

conjunto composto de matéria, sensações e ações -, mas o modo como um certo fragmento de

conteúdo retirado do espaço amplo do mundo se presentifica visual e materialmente no seu

entorno e se torna o leitmotiv (motivo) existencial. Não se fala apenas de uma competência

cognitiva na aprendizagem de significados e conteúdos estáveis e de representações. O que se

quer com um objeto parcelar qualquer – sendo aqui pensado enquanto uma imagem – é designar

algo que se põe a trabalhar no seu contexto, fazendo agir as significações, por meio desta

operação de singularização e isolamento – uma operação estética.

Num vasto território de projeções, aprendemos a reconhecer que formas rituais, danças,

cantos, desenhos, produção de máscaras, indicadores visuais e sonoros, placas, emblemas,

selos, tatuagens, escarificações, bandeiras, etc. não são apenas signos, mas são, numa

processualidade histórica, meios de promover acontecimentos, formalizações de ações. A

imagem, o som, o corpo e o texto são modos de ação que nos conduzem a formas do afeto

coletivo e do afeto massivo, mas também, a um universo de singularização, representado pelo

modo como a imagem – o texto, o som, o corpo - se destaca do coletivo como referência (como

sentido compartilhável) para, por meio da dinâmica temporal (da historicidade), fazer-se não

apenas um símbolo – um sintoma visual de um conteúdo simbólico reconhecível na estrutura -,

mas um objeto singularizado = que remete ao contexto e não um objeto individualizado,

atomizado – e que, ao se destacar da rede semiótica – rede de modelos - pode retornar (reclamar

a si) à função poiética.20

19 As teses de Didi-Huberman ressaltam a importância desta relação fantasmática em torno do objeto visual e visível.20 No dizer de Guattari: Mas cada um de nós conhece tais transposições subjetivas de limiar de estado, pela entrada em atividade de um modelo temporal catalisador subjetivo, que nos fará mergulhar na tristeza ou então em um clima de alegria e animação. Com nosso conceito de ritornelo visamos não apenas tais afetos massivos, mas também problemáticas hipercomplexas. Por exemplo, a introdução nos universos incorporais da música ou das matemáticas. E não se trata aí, segundo nosso modo de pensar, de universos de referência “em geral”, mas de universos singulares, historicamente marcados no cruzamento de diversas linhas de virtualidade. Neste tipo de registro, o tempo cessa de ser passivo; ele é agido, orientado, polarizado, objeto de mutações qualitativas. A análise não é mais interpretação de sintomas em função de um conteúdo latente preexistente, mas invenção de novos focos catalisadores suscetíveis de fazer bifurcar a existência. Uma singularidade, uma ruptura de sentido, um corte, uma fragmentação, o destacamento de um conteúdo semiótico – por exemplo, ao modo dadaísta ou surrealista – podem originar focos mutantes de subjetivação. (GUATTARI, S/D: 14-15).

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Ao que parece esta é uma convocação aos termos do pragmatismo e uma teoria da ação

que adentram o campo da pesquisa histórica, numa crescente valorização de categorias como a

da performance.

III. Imagem-acontecimento, corpo-obra.

Corpo-obraTrabalho do corpoCorpo d’obraCorpo obra de arteCorpo/d/obraUm copo de corpo quebraO corpo cobraCorpo-©obra21

Para finalizar, vou traçar um programa para um pensamento artístico da imagem-

acontecimento e de um corpo-obra.

Ao fabricar um trabalho como um lugar existente no mundo e um lugar para se existir, o

artista o faz mais com seus depósitos e seus resíduos, deixando na imagem o rastro, o vestigio.

Assemelhando-se aos ninhos dos pássaros, como diria Deleuze, a obra é um território feito todo

ele de restos coletados no mundo, reunião da dispersão. Esta reflexão – ritual e artefatual – se dá

no seio do mundo visível e tem como alvo, para o artista, constituir algo que se possa oferecer

como evidência (formal) e como vidência (residual).

Num artista como Francis Bacon, o alvo de uma pesquisa pode ser o corpo humano e,

mais especificamente, o rosto. Bacon procura as representações do corpo e do rosto22 e, mais

ainda, procura o que representa, enquanto objeto cultural, o retrato23. Mas onde pára a cognição e

a representação, a arte começa a viver, para inventar algo que não se contenta com o regime

representacional do signo.

21 Texto poético de minha autoria.22 Para sua pesquisa, que se inicia no campo representacional, o pintor procura pranchas coloridas à mão que tratam do corpo enquanto objeto da ciência médica, por exemplo, a sua coleção de pranchas que tematizam as doenças bucais. O retrato e o rosto são olhados segmentariamente enquanto boca e depois enquanto tecido cutâneo interno. Ver as leituras de Deleuze e de Cuir.23 Muitos trabalhos na História da Arte e na História Cultural foram dedicados ao estudo do retrato. O rosto é dado como a condição original do retrato, objeto primário ou referente da produção de um regime de signos que tem como objetivo presentificar uma identificação de um sujeito. Assim, o retrato serve para identificar uma norma, uma figura, um grau de identificação ou um trânsito. Para a norma e para a figura, temos o retrato que identifica um papel social, do cortesão, do nobre e do político. Para o grau de identificação, o retrato produzido para os documentos e as fotografias policiais ou dos laudos periciais. Para o trânsito, temos as sucessivas transformações sofridas pela auto-imagem e as cadeias de retratos, com suas marcas temporais.

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FIGURA 3. Auto-retrato, Francis Bacon, 1976, pastel e óleo sobre tela, Marseille, Musée Cantini.

Francis Bacon começa tomando o retrato enquanto engodo da representação, na

consciência de que o signo delata mais a condição da impossibilidade de se mostrar o sujeito

enquanto se o identifica ao objeto visível oferecido. O objeto visual está no lugar de, é um

substitutivo para uma perda. O retrato, então, começa sendo concebido como sendo um traçado

de uma imagem perdida de si mesmo. Repetir o retratado ou o auto-retrato é encadear esta perda

numa certa linearidade e prolongar o efeito da perda pela via da repetição como diferença. O que

se faz passar no retrato é um vestígio do rosto perdido ou arruinado pela diferença – o rosto como

ruína não significa uma valoração de conteúdo da imagem, não há estado que possa dizer que o

retrato é melhor ou pior do que o original e, talvez, muito antes pelo contrário, na

contemporaneidade, os programas de computador de manipulação da imagem, procuram a ruína

como pura diferença, afastando-nos em definitivo da nossa imagem24.

Para Bacon, esta condição devia ser investigada como ultrapassagem do retrato na

direção da carne. O pintor se opõe ao diferentes modos de raciocinar em arte e busca uma saída

para a produção de um objeto que não seja apenas a visualização resultante de uma observação

(raciocínio do desenho científico, coletado nas pranchas médicas) ou um raciocínio que seja um

comentário de uma observação (lógica ready-made das imagens prontas, desdobrada nas formas

simuladas e irônicas de se fazer retratar como outro – Duchamp, Warhol, Sherman). Para ele,

ultrapassar o retrato deveria nos levar à carne. No domínio artístico, chegar à carne não é um

reencontro com o próprio corpo. É do apagamento do corpo para a ascensão do objeto carnal

pictórico, o corpo-obra, que é justamente este corpo-sem-órgãos ou a máquina abstrata (Deleuze

e Guattari).

24 Nestes termos, Marcel Duchamp, Andy Warhol e Cindy Sherman, com suas brincadeiras teatralizantes e ocultamento da auto-imagem e as mutações físicas sofridas por Orlan, são apenas superfícies integradas e contaminantes dos códigos com os quais nos comunicamos na atualidade. À uma pura diferença como simulacro – Sherman – ou à alteração carniceira – Orlan -, a cultura contemporânea da imagem digital oferece os múltiplos do eu. Não há mais qualquer interesse no mote psíquico do “espelho, espelho meu”, como busca da verdade de si (a interioridade pela superficialidade). Existimos enquanto multiplicação de imagens que são repetição como pura diferença. Somos identificáveis como sendo os mesmos, mas somos apenas uma diferença em relação a nossa própria imagem, como o que ocorre entre os artistas do cenário popular midiático.

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Neste “vitalismo inorgânico” da imagem, um sistema da natureza e uma política se fazem.

Da natureza e da política, combinadas, mostra-se a forma do Horror e o modo como somos

obrigados a reconhecer o belo na e da destruição.

Como se faz isto? Deixando de tratar a pintura como figura e representação e como objeto-

quadro (artefato) e passando a tratá-la como sendo um acidente (imagem-acontecimento).

Se uma pintura-quadro é uma acidente isto implica em pensar que este objeto possui uma

vida inorgânica capaz de provocar uma ruptura na continuidade existencial.

A pintura é um acidente (tecnológico) do desenho e no interior da pintura, o óleo é o

acidente (material) da pintura. E assim, um acidente, um acontecimento, provoca e encadeia

outras séries acidentais.

Aqui, o acidente consiste no encontro entre as imagens médicas e a arte pictórica, mas um

acidente que não servirá para provocar a transformação da pintura por conta da vulgarização das

figuras e das associações promovidas entre a ciência e a arte. Os acidentes são pontos de

descontinuidade, que nos levam não a uma diferente experiência, mas a uma experiência da e na

diferença.

A obra é toda ela feita em desvios e acidentes. Não há continuidade visual na leitura de

uma pintura como essa, é o que nos convida a pensar Deleuze, para Bacon e no seu pensamento

da arte. Há desvio provocado para que a obra-acontecimento seja uma superfície, ela própria

tomada de fatos. Uma memória cumulativa por trechos aciona a dimensão do palimpsesto,

acúmulo e resíduo.

Assim, no exemplo desta imagem do retrato (auto-retrato), não podemos apreender a

superfície como produção de uma representação exterior, articulada enquanto efeito de luz,

camadas de tinta, deformação de perspectiva, ou, como algo resultante de um código

compartilhado, validado por meios culturais de percepção, emoção e construção da obra. A arte

não deve ser tomada tão simples – ou de forma complexa – como sendo uma – ou várias –

forma(s) da representação. Um objeto, como já o dizem nossos historiadores culturais e da arte,

não designa apenas uma representação visível do mundo, como também representa uma relação

e um estado de estar no mundo, um índice de apresentação.

Neste campo da pesquisa histórica, a arte nos convoca a pensar na restituição ao sensível,

não como forma privativa dos sentimentos, mas como algo impessoal e ordenado no plano da

vida inorgânica dos perceptos e dos afectos das obras. Para este sentir, o que conta à História é a

dimensão monumental da arte enquanto um bloco.

[...] eles são o devir não-humano do ser humano. Perceptos e afectos abrem zonas de indiscernibilidade sensível e afectiva entre coisas, animais e pessoas, zonas equatoriais ou glaciais que se subtraem à determinação dos géneros, dos sexos, das ordens e dos reinos. As obras de arte desempenham um papel fundamental na estabilização e na manutenção de tais entidades: elas são, efectivamente, bloqueios de sensações que desafiam a efemeridade da vida e se erguem como monumentos às gerações futuras. (PERNIOLA, 1998:189)

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Ou, como já disse em outro momento, na arte ocorre um pensamento por “sensações”, que

“visa desterritorializar nosso sistema de opiniões estáveis (nosso sistema de representações), unificadas em torno de um determinado contexto (natural, cultural, social, histórico) que se pretende universalizável (e isto se encontra desde já em Deleuze). O artista compõe um plano que reinventa pela reunião estranha das sensações uma nova territorialidade. Cada obra de arte é uma nova casa, uma nova morada para o ser da sensação. O artista [...] desterritorializa o que temos a dizer a respeito do que sentimos, tirando do eixo de significação e de produção de sentido aquilo que, como sentimento (como representação de sentimento), está mediado por conceitos e descrições consentidas (no duplo sentido, de consenso e de ‘com sentimento’, ou seja, envoltas no véu da sensação já transformada em sentimento). Ao fazer isto ele estende um tapete na direção do infinito e propõe, ele próprio, uma composição do mundo, uma estetização, que avança rumo ao infinito criando, adiante, uma nova finitude” (NORONHA, 2004:69-70).

Desse modo, o platô ou plataforma de observação, nos termos sugeridos por Meneses e

investigados aqui pela via deleuziana, nos convoca a pensar a História e o que pode ser a Arte

para a História.

Entre ambas, uma sublime e forte diferença, compreendida cotidianamente no ofício do

historiador da arte, a de que entre a artisticidade da existência e a arte há uma diferença

fundacional.

Ao historiador, o reposicionamento na representação, acaba por implicar no entendimento

cognitivo e das significações que devem conter a ação expressiva (Geertz, Baxandall, Ginzburg).

Ou, nas estéticas da vida, não tratadas particularmente neste texto, reconhecer um fundamento

estético existencial, que preconiza a cotidianeidade e um mundo todo dado como memória

(Maffesoli, Simmel, Elias).

Mas para o pensar a partir da arte, inverte-se o jogo e o vivido é tomado como material

para a expressão, sendo singularizado e fabulado. Assim, numa possível história feita em matrizes

deleuzianas, antes da memória (e até contra ela), o lugar da arte é mesmo o da fabulação.

Diante da evidência material – e da prova -, oferece-se ao históriador a vidência como

prerrogativa.

Não se faz a arte com o passado – com a memória ou com a caixa de ferramentas dos

quadros mentais (Baxandall) -, mas se faz algo do passado, amalgamado e insistente como

presente no presente (Freud, Benjamin), num devir passado como presente (Deleuze, Guattari).

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