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II

A JUSTIÇA

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Seis concepções de justiça

Chaïm Perelman1

§ 1. Da justiça2

1. Colocação do problema

O presente estudo tem por objeto a análise da noção de justiça. Ele não se propõe, de modo algum, a apelar à generosidade inata do leitor, ao seu bom coração, à parte nobre de sua alma, para levá-lo, de modo direto ou dissimulado, a conceber um ideal de justiça que se deva venerar mais do que todos.

Não se deseja em absoluto convencê-lo de que determinada concepção da justiça é a única boa, a única que corresponde ao ideal de justiça perseguido pelo coração dos homens, sendo todas as outras apenas embustes, representações insuficientes que fornecem da justiça uma imagem falsa e se servem de uma justiça aparente que abusa da palavra “justiça” para fazer que se admitam concepções real e profundamente injustas. Não, este estudo não pretende apelar para os bons sentimentos do público;

1 Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011.2 Publicado na coleção das Actualités Sociales, Nova série, Universidade Livre de Bruxelas, Institut de Sociologie Solvay, Bruxelas, Office de Publicité, 1945.

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não quer nem elevar, nem moralizar, nem indicar ao leitor os valores que dão à vida todo o seu valor.

Uma análise lógica da noção de justiça parece constituir uma verdadeira aposta. Isso porque, dentre todas as noções prestigiosas, a de justiça parece uma das mais eminentes e a mais irremediavelmente confusa.

A justiça é considerada por muitos a principal virtude, a fonte de todas as outras.

“O pensamento e a terminologia”, diz E. Dupréel3, “desde sempre incitaram a confundir com o valor da justiça o da moralidade inteira. A literatura moral e religiosa reconhece no justo o homem integralmente honesto e benfazejo; a justiça é o nome comum de todas as formas de mérito, e os clássicos expressariam sua ideia fundamental dizendo que a ciência moral não tem outro objeto senão ensinar o que é justo fazer e ao que é justo renunciar. Ela diria também que a razão deve ensinar-nos a distinção entre o justo e o injusto, em que consiste toda a ciência do bem e do mal. Assim, a justiça que, de um lado, é uma virtude entre as outras, envolve, do outro, toda a moralidade.”

É tomada neste último sentido que a justiça contrabalança todos os outros valores. Pereat mundus, fiat justitia.

É ilusório querer enumerar todos os sentidos possíveis da noção de justiça. Vamos dar, porém, alguns exemplos deles, que constituem as concepções mais correntes da justiça, cujo caráter inconciliável veremos imediatamente:

1. A cada qual a mesma coisa. 3 E. DUPRÉEL, Traité de morale, Bruxelas, 1932, t. n, p. 483.

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2. A cada qual segundo seus méritos. 3. A cada qual segundo suas obras. 4. A cada qual segundo suas necessidades. 5. A cada qual segundo sua posição. 6. A cada qual segundo o que a lei lhe

atribui. Precisemos o sentido de cada uma dessas

concepções.

1º. A cada qual a mesma coisa.

Segundo essa concepção, todos os seres considerados devem ser tratados da mesma forma, sem levar em conta nenhuma das particularidades que os distinguem. Seja-se jovem ou velho, doente ou saudável, rico ou pobre, virtuoso ou criminoso, nobre ou rústico, branco ou negro, culpado ou inocente, é justo que todos sejam tratados da mesma forma, sem discriminação alguma, sem discernimento algum. No imaginário popular, o ser perfeitamente justo é a morte que vem atingir todos os homens, sem levar em consideração nenhum de seus privilégios.

2º. A cada qual segundo seus méritos.

Eis uma concepção da justiça que já não exige a igualdade de todos, mas um tratamento proporcional a uma qualidade intrínseca, ao mérito da pessoa humana. Como definir esse mérito? Qual medida comum encontrar entre os méritos e deméritos de diferentes seres? Haverá, em geral, semelhante medida comum? Quais serão os critérios que se deve levar em conta para a determinação

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desse mérito? Cumprirá levar em conta o resultado da ação, a intenção, o sacrifício realizado, e em que medida? Habitualmente, não só não respondemos a todas essas perguntas, mas nem sequer as formulamos. Se estamos embaraçados, dizemo-nos que será depois da morte que os seres serão tratados segundo seus méritos, que se determinará, com a ajuda de uma balança, seu “peso” de mérito e de demérito e que o resultado dessa “pesagem” indicará, por assim dizer automaticamente, a sorte que lhes será reservada. A vida do além, o paraíso e o inferno, constituem a justa recompensa ou o justo castigo da vida terrestre. Apenas o valor moral intrínseco do indivíduo será o critério do juiz, cego a todas as outras considerações.

3º. A cada qual segundo suas obras.

Essa concepção da justiça tampouco requer um tratamento igual, mas um tratamento proporcional. Só que o critério já não é moral, pois já não leva em conta a intenção, nem os sacrifícios realizados, mas unicamente o resultado da ação.

O critério, ao abandonar as exigências relativas ao agente, satisfaz-nos menos do ponto de vista moral, mas se toma de uma aplicação infinitamente mais fácil e, em vez de constituir um ideal quase irrealizável, essa fórmula da justiça permite só levar em conta, o mais das vezes, elementos sujeitos ao cálculo, ao peso ou à medida. É nessa concepção, que aliás admite muitas variantes, que se inspira o pagamento do salário dos operários, por hora ou por peça, que se inspiram os exames e os

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concursos em que, sem se preocupar com o esforço fornecido, levam-se em conta apenas o resultado, a resposta do candidato, o trabalho que apresentou.

4º. A cada qual segundo suas necessidades.

Essa fórmula da justiça, em vez de levar em conta méritos do homem ou de sua produção, tenta sobretudo diminuir os sofrimentos que resultam da impossibilidade em que ele se encontra de satisfazer suas necessidades essenciais. É nisso que essa fórmula da justiça se aproxima mais de nossa concepção de caridade.

É óbvio que, para ser socialmente aplicável, essa fórmula deve basear-se em critérios formais das necessidades de cada qual, pois as divergências entre tais critérios ocasionam diversas variantes dessa fórmula. Assim, levar-se-á em conta um mínimo vital que cumprirá assegurar a cada homem, seus encargos familiares, sua saúde mais ou menos precária, os cuidados requeridos por sua pouca idade ou por sua velhice, etc.

Foi essa fórmula da justiça que, impondo-se cada vez mais na legislação social contemporânea, pôs em xeque a economia liberal em que o trabalho, assimilado a uma mercadoria, estava sujeito às flutuações resultantes da lei da oferta e da procura. A proteção do trabalho e do trabalhador, todas as leis sobre o salário mínimo, a limitação das horas de trabalho, o seguro-desemprego, doença e velhice, o salário-família etc., inspiram-se no desejo de assegurar a cada ser humano a possibilidade de satisfazer suas necessidades mais essenciais.

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5º. A cada qual segundo sua posição.

Eis uma fórmula aristocrática da justiça. Consiste ela em tratar os seres não conforme critérios intrínsecos ao indivíduo, mas conforme pertença a uma ou outra determinada categoria de seres. Quod licet Jovi non licet bovi, diz um velho adágio latino. As mesmas regras de justiça não se aplicam a seres pertencentes a categorias por demais diferentes. Assim é que a fórmula “a cada qual segundo sua posição” difere das outras fórmulas da justiça no fato de ela, em vez de ser universalista, repartir os homens em categorias diversas que serão tratadas de forma diferente.

Na Antiguidade reservava-se um tratamento diferente aos indígenas e aos estrangeiros, aos homens livres e aos escravos; no início da Idade Média, trataram-se diferentemente os senhores francos e os autóctones galo-romanos; mais tarde, distinguiram-se os nobres, os burgueses, os clérigos e os servos ligados à gleba.

Atualmente, trata-se de forma diferente, nas colônias, os brancos e os negros; no exército há regulamentos diferentes para os oficiais, os suboficiais e os soldados. Conhecem-se distinções baseadas nos critérios de raça, de religião, de fortuna, etc., etc. O caráter que serve de critério é de natureza social e, a maior parte do tempo, hereditário, portanto independente da vontade do indivíduo.

Se consideramos essa fórmula da justiça aristocrática é porque é sempre preconizada e

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energicamente defendida pelos beneficiários dessa concepção, que exigem ou impõem um tratamento deferente para as categorias de seres por eles apresentadas como superiores. E tal reivindicação é habitualmente apoiada pela força conferida quer pelas armas, quer pelo fato de ser uma maioria defrontada com uma minoria sem defesa.

6º. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.

Esta fórmula é a paráfrase do célebre cuique suum dos romanos. Se ser justo é atribuir a cada qual o que lhe cabe, cumpre, para evitar um círculo vicioso, poder determinar o que cabe a cada homem. Se atribuímos à expressão “o que cabe a cada homem” um sentido jurídico, chegamos à conclusão de que ser justo é conceder a cada ser o que a lei lhe atribui.

Esta concepção nos permite dizer que um juiz é justo, ou seja, íntegro, quando aplica às mesmas situações as mesmas leis (in paribus causis paria jura). Ser justo é aplicar as leis do país. Tal concepção da justiça, contrariamente a todas as precedentes, não se arvora em juiz do direito positivo, mas se contenta em aplicá-la.

É evidente que essa fórmula admite em sua aplicação tantas variantes quantas legislações diferentes houver. Cada sistema de direito admite uma justiça relativa a esse direito. O que pode ser justo numa legislação, pode não o ser numa legislação diferente: com efeito, ser justo é aplicar, ser injusto é distorcer, em sua aplicação, as regras de um determinado sistema jurídico.

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E. Dupréel opõe essa concepção a todas as outras4. Qualifica-a de “justiça estática”, por ser baseada na manutenção da ordem estabelecida, e lhe opõe todas as outras consideradas como as formas da “justiça dinâmica”, por poderem trazer a modificação dessa ordem, das regras que a determinam. “Fator de transformação, a justiça dinâmica se mostra um instrumento do espírito reformador ou progressista, como ele se autodenomina. A justiça estática, propriamente conservadora, é fator de fixidez.”5

A análise sumária das concepções mais correntes da noção de justiça mostrou-nos a existência de pelo menos seis fórmulas da justiça – admitindo a maioria delas com numerosas variantes –, fórmulas que são normalmente inconciliáveis.

Embora seja verdade que, graças a interpretações mais ou menos forçadas, a afirmações mais ou menos arbitrárias, se pode querer relacionar essas diferentes fórmulas umas com as outras, elas não deixam de apresentar aspectos da justiça muito distintos e o mais das vezes opostos.

Ante tal estado de coisas, três atitudes permanecem possíveis.

A primeira consistiria em declarar que essas diversas concepções da justiça não têm absolutamente nada em comum, que é abusivamente que as qualificam da mesma forma criando uma confusão irremediável, que a única análise possível consistiria na distinção desses diferentes sentidos, 4 Ibid., t. II, pp. 485-496.5 Ibid., t. II, p. 489.

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admitindo ao mesmo tempo que não são unidos por nenhum vínculo conceitual.

Se assim for, seremos levados, para evitar qualquer mal-entendido, a qualificar de forma diferente cada uma dessas seis concepções. Ou não reservaremos o nome de justiça a nenhuma delas, ou então consideraremos uma delas como a única que possamos qualificar de justa.

Esta última forma de proceder nos conduziria, por um rodeio, à segunda atitude. Esta consiste na escolha, entre as diversas formas de justiça, de uma só, da qual tentariam convencer-nos que é a única admissível, a única verdadeira, a única real e profundamente justa.

Ora, é exatamente essa forma de raciocinar que queríamos evitar a todo custo, é contra ela que prevenimos o leitor. Às razões que teríamos de escolher uma fórmula, os contraditores poriam razões tão válidas quanto elas para escolher outra: o debate, em vez de levar ao acordo das mentes, só serviria para atritá-las de um modo ainda mais violento, porque cada um defenderia com mais energia a sua própria concepção; de todo modo, a análise da noção de justiça não teria avançado muito mais com isso.

É por esse motivo que damos nossa preferência à terceira atitude, que se imporia a delicadíssima tarefa de pesquisar o que há em comum entre as diferentes concepções da justiça que se poderiam formular; ou, pelo menos, – para não nos impormos a irrealizável condição de pesquisar o elemento comum a uma profusão infinita de concepções diferentes – buscaríamos o que há em

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comum entre as concepções da justiça mais correntes, que são as que distinguimos nas páginas precedentes.

2. A justiça formal

Para que uma análise lógica da noção de justiça possa constituir um progresso incontestável no esclarecimento dessa ideia confusa, é preciso que ela consiga descrever de um modo preciso o que há em comum nas diferentes fórmulas da justiça e mostrar os pontos em que diferem. Essa discriminação prévia permitirá determinar uma fórmula da justiça sobre a qual será possível um acordo unânime, fórmula que levará em consideração tudo quanto há em comum entre as concepções opostas da justiça.

Daí não resulta, em absoluto, que se vá acabar com o desacordo existente entre os defensores das diversas concepções dessa noção. O lógico não é um prestidigitador e sua função não consiste em escamotear o que é. Ao contrário, ele deve fixar o ponto onde o desacordo ocorre, pô-lo em plena luz, mostrar as razões pelas quais, a partir de certa noção comum da justiça, chega-se, porém, a fórmulas não só diferentes, mas mesmo inconciliáveis.

A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a ideia de certa igualdade. Desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás, até os juristas, moralistas e filósofos contemporâneos, todos estão de acordo sobre este ponto. A ideia de justiça consiste numa certa aplicação da ideia de igualdade. O essencial é definir essa aplicação de tal

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forma que, mesmo constituindo o elemento comum das diversas concepções de justiça, ela possibilite as suas divergências. Isto só é possível se a definição da noção de justiça contém um elemento indeterminado, uma variável, cujas diversas determinações ensejarão as mais opostas fórmulas de justiça.

Aristóteles já observara que é necessário existir certa semelhança entre os seres aos quais se se aplica a justiça. Historicamente, aliás, é um fato plausível que se tenha começado por aplicar a justiça aos membros de uma mesma família, para estendê-la em seguida aos membros da tribo, aos habitantes da cidade, de um território, para chegar, finalmente, à ideia de uma justiça para todos os homens.

“É mister”, diz Tisset num interessante artigo6, “que haja entre os indivíduos algo em comum pelo que seja estabelecida uma identidade parcial, para que se procure realizar entre eles a justiça: quando não há medida comum, e portanto não há identidade, a questão da realização da justiça nem sequer tem de colocar-se. E pode-se notar que atualmente, no intelecto humano, esse princípio não variou: não se pode falar de justiça, por exemplo, nas relações entre homens e vegetais; e se a noção de justiça recebeu hoje maior amplitude, se se aplica a todos os homens, é porque o homem reconheceu semelhantes em todos os seus semelhantes; é porque a noção de humanidade foi ficando pouco a pouco evidente...” 6 P. TISSET, “Les notions de Droit et de Justice”, Revue de Métaphysique et de Morale, 1930, p. 66.

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A priori, a área de aplicação da justiça não é determinada, sendo, pois, suscetível de variação. Todas as vezes que se fala de “cada qual” numa fórmula da justiça, pode-se pensar num grupo diferente de seres. Essa variação do campo de aplicação da noção “cada qual” a grupos variáveis fornecerá variantes não só da fórmula “a cada qual a mesma coisa” mas também de todas as outras fórmulas. Não é dessa forma porém que será possível resolver o problema que nos colocamos. Com efeito, em vez de mostrar a existência de um elemento comum às diversas fórmulas da justiça, as reflexões precedentes provam, ao contrário, que cada uma delas pode ser de novo interpretada de diferentes formas e dar azo a um número imenso de variantes.

Retomemos, portanto, nosso problema inicial. Trata-se de encontrar uma fórmula da justiça que seja comum às diversas concepções que analisamos. Essa fórmula deve conter um elemento indeterminado, o que se chama em matemática de uma variável, cuja determinação fornecerá ora uma, ora outra concepção da justiça. A noção comum constituirá uma definição da justiça formal ou abstrata; cada fórmula particular ou concreta da justiça constituirá um dos inumeráveis valores da justiça formal.

Será possível definir a justiça formal? Haverá um elemento conceitual comum a todas as fórmulas da justiça? Parece que sim. Com efeito, todos estão de acordo sobre o fato de que ser justo é tratar de forma igual. Só que surgem as dificuldades e as controvérsias tão logo se trata de precisar. Cumprirá tratar todos da mesma forma, ou cumprirá

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estabelecer distinções? E se for preciso estabelecer distinções, quais serão as que será necessário levar em conta para a administração da justiça? Cada qual fornece uma resposta diferente a essas perguntas, cada qual preconiza um sistema diferente, para o qual ninguém é capaz de angariar a adesão de todos. Uns dizem que é preciso levar em conta os méritos do indivíduo, outros que é preciso levar em consideração suas necessidades, outros ainda dizem que não se pode fazer abstração das suas origens, da sua posição, etc.

Mas, apesar das divergências, todos eles têm algo em comum na sua atitude. Com efeito, aquele que reclama que se leve em conta o mérito, quererá que se trate da mesma forma as pessoas de mérito igual; o segundo quererá que se reserve um tratamento igual às pessoas com as mesmas necessidades; o terceiro reclamará um tratamento justo, ou seja, igual, para as pessoas de mesma posição social, etc. Seja qual for o desacordo deles sobre outros pontos, todos estão, pois, de acordo sobre o fato de que ser justo é tratar da mesma forma os seres que são iguais em certo ponto de vista, que possuem uma mesma característica, a única que se deva levar em conta na administração da justiça. Qualifiquemos essa característica de essencial. Se a posse de uma característica qualquer sempre permite agrupar os seres numa classe ou numa categoria, definida pelo fato de seus membros possuírem a característica em questão, os seres que têm em comum uma característica essencial farão parte de uma mesma categoria, a mesma categoria essencial.

Portanto, pode-se definir a justiça formal ou

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abstrata como um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma.

Observe-se imediatamente que acabamos de definir uma noção puramente formal que deixa intocadas todas as divergências a propósito da justiça concreta. Essa definição não diz nem quando dois seres fazem parte de uma categoria essencial nem como é preciso tratá-los. Sabemos que cumpre tratar esses seres não desta ou daquela forma, mas de forma igual, de sorte que não se possa dizer que se desfavoreceu um deles em relação ao outro. Sabemos também que um tratamento igual só deve ser reservado aos seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial.

As seis fórmulas de justiça concreta, entre as quais procuramos uma espécie de denominador comum, diferem pelo fato de que cada uma delas considera uma característica diferente como a única que se deva levar em conta na aplicação da justiça, de que elas determinam diferentemente a pertinência à mesma categoria essencial. Fornecem igualmente indicações, de maior ou menor precisão, sobre a maneira pela qual devem ser tratados os membros da mesma categoria essencial.

Nossa definição da justiça é formal porque não determina as categorias que são essenciais para a aplicação da justiça. Ela permite que surjam as divergências no momento de passar de uma fórmula comum da justiça formal para fórmulas diferentes de justiça concreta. O desacordo nasce no momento em que se trata de determinar as características essenciais para a aplicação da justiça.

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A justiça

Chaim Perelman

I. Problema principal: definir a justiça.II. Problemas secundários:

1. Saber se as definições de justiça são compatíveis entre si ou são inconciliáveis.

2. Encontrar uma fórmula de justiça que inclua todas as definições e seja objeto de acordo.

I – Estratégia para encontrar uma definição de justiça que possa ser objeto de acordo universal: examinar as principais noções de justiça.

1. A cada qual a mesma coisa (justiça-equidade)Prescreve a igualdade absoluta, ignorando diferenças específicas.Neste caso, o ser perfeitamente justo é a morte: ela não faz distinções.

As demais noções de justiça preveem algum tipo de proporcionalidade na aplicação do conceito.

2. A cada qual segundo seus méritos (justiça distributiva).Tratamento proporcional ao mérito. Critério moral: a intenção do indivíduo conta. Justiça da ética religiosa.Objeção: o critério é, em alguma medida, subjetivo.

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3. A cada qual segundo suas obras (justiça consequencialista).O resultado da ação define a aplicação do conceito. Justiça que preside concursos, exames, pagamentos de funcionários etc.Objeção: o critério pouco satisfaz do ponto de vista moral.

4. A cada qual segundo suas necessidades (justiça-caridade).A justiça é medida pela diminuição do sofrimento, que visa minimizar perdas.Justiça ligada à proteção do trabalho e do trabalhador. Põe em cheque a submissão do trabalho à lei de oferta e procura da economia liberal. Objeção: o critério “necessidade” é vago e pede critérios formais.

5. A cada qual segundo sua posição (justiça aristocrática).É o caso “a cada um o que lhe pertence”.Objeção: não é universalista. Estabelece distinções que ignoram as raízes das desigualdades sociais. Há dois pesos e duas medidas. O critério pouco depende do indivíduo e de suas escolhas.

6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui (justiça comutativa/legalista).A cada um o que é seu.Em relação ao sistema jurídico: ser justo é aplicar a lei; ser injusto é distorcê-la. Permite afirmar que um juiz é justo. Um contrato não pode enriquecer uma parte e empobrecer outra (um e outro, não um ou outro).

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II – Problemas secundários

1.As definições de justiça são ou não são compatíveis entre si? Hipóteses:a) Só há uma concepção de justiça, diferindo

apenas na possibilidade de realização. b) as concepções são distintas, o que

resultaria em três atitudes possíveis: - as diferentes concepções não têm nada em comum. Logo, apenas uma, ou nenhuma, está de acordo com a noção de justiça. - Defesa intransigente do conceito assumido.

Perelman propõe uma terceira via: procurar o que há de comum nelas.

2. Encontrar uma fórmula de justiça que inclua todas as definições e seja objeto de acordo.Justiça formal/abstrata: princípio da ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma.P. ex.: todos os generais devem receber o mesmo salário, mas diferente do salário dos soldados.

Expressões latinas do texto:- Quo licet Jovi non licet bovi: o que é legítimo para Zeus não é legítimo para o boi- Cuique suum: o que é seu

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- In paribus causis paria jura (aequitas in paribus causis, paria jura desiderato): em causas diferentes, a equidade deseja direitos iguais