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“A cidade”: uma leitura dos processos de transformação na Idade Média em termos de economia, território e relações sociais RG 1 e João Aguiar 2 RESUMO Este artigo traz uma compreensão da análise weberiana sobre o processo de surgimento da cidade, desde a Idade Média até o período da modernidade e a implantação do capitalismo. A cidade em Weber é um tipo ideal da dominação não-legítima, caracterizado pelo seu intrínseco pluralismo e pelo (re)ajuste nas formas de organização da sociedade com a economia, o direito e o território. A leitura que se vislumbra com as características da cidade medieval moderna é a da transformação de uma paisagem social, na qual essa estrutura tão pluralista abriu a possibilidade para que diferentes ordens legais configurassem, a um mesmo tempo, um contexto positivo, rompendo pouco a pouco com a ordem feudal e instaurando não só um racionalismo de dominação do mundo, mas, fundamentalmente, um ethos racional de produção capitalista. Palavras-chave: Cidade, Sociedade, Território, Dominação. 1 Socióloga, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR/IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 2 Advogado, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR/IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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“A cidade”: uma leitura dos processos de transformação na Idade Média em termos de economia, território e relações sociais

RG1 e João Aguiar2

RESUMO

Este artigo traz uma compreensão da análise weberiana sobre o processo de surgimento da

cidade, desde a Idade Média até o período da modernidade e a implantação do capitalismo. A

cidade em Weber é um tipo ideal da dominação não-legítima, caracterizado pelo seu

intrínseco pluralismo e pelo (re)ajuste nas formas de organização da sociedade com a

economia, o direito e o território. A leitura que se vislumbra com as características da cidade

medieval moderna é a da transformação de uma paisagem social, na qual essa estrutura tão

pluralista abriu a possibilidade para que diferentes ordens legais configurassem, a um mesmo

tempo, um contexto positivo, rompendo pouco a pouco com a ordem feudal e instaurando não

só um racionalismo de dominação do mundo, mas, fundamentalmente, um ethos racional de

produção capitalista.

Palavras-chave: Cidade, Sociedade, Território, Dominação.

INTRODUÇÃO

A formação das cidades enquanto centros político-administrativos é um elemento

próprio da história da Humanidade, remontando à Antiguidade e aos primeiros séculos da Era

Cristã. Mesmo em territórios barbarizados, cristianizados tardiamente, as cidades constituíam

um prolongamento das aldeias primitivas. No mundo romano as cidades eram centros

político, administrativo, militar e, em segundo plano, econômico. No Oriente – em territórios

como a Babilônia, Prússia, China e Índia -, a cidade era um povoado nascido pela afluência de

pessoas vindas de fora e mantido pelo continuo trabalho de pessoas no campo, além de haver,

1 Socióloga, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR/IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).2 Advogado, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR/IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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por toda a parte, elementos de posições estamentais diversas. Membros de linhagens

organizados à maneira de clãs; indivíduos libertos, servos e escravos, ao lado de senhores

territoriais nobres e seus criados, funcionários das cortes; mercenários, sacerdotes e monges.

Todo o território urbano dessa época fazia parte de um senhorio territorial.

Durante a Alta Idade Média, circunscritas às suas antigas muralhas, as cidades foram

reduzidas quase que exclusivamente à função política e administrativa – ela própria atrofiada,

uma vez que a atividade agrícola e a posse de terras constituíam-se a base das relações. O

feudo era a unidade de produção do mundo medieval e onde acontecia a maior parte das

relações sociais. O senhor do feudo possuía, além da terra, riquezas em espécie e tinha direito

de cobrar impostos e taxas em seu território. A religião foi o elemento que preservou,

especialmente no Ocidente, a continuidade de um contexto “urbano”. As cidades consideradas

mais “prósperas” deviam sua relativa importância à presença de um soberano religioso – um

bispo episcopal, um brâmane ou qualquer outra realeza carismática.

A partir do século XI percebemos as primeiras tentativas de mudança contra a ordem

das coisas. O caráter auto-sustentável dos feudos perde espaço para uma economia mais

integrada às trocas comerciais. Essa fase de instabilidade envolvendo as relações servis trouxe

à tona um duplo movimento: a crise agrícola dos feudos, a ampliação do consumo de gêneros

manufaturados e especiarias, e o conseqüente desequilíbrio no acordo estabelecido entre

servos e senhores feudais.

No século XII, o comércio e as cidades passaram a ocupar a posição significativa

enquanto fenômeno dirigente nas relações sociais. A cidade se converteu num lugar ideal para

desenvolver trabalhos manuais e comercializar os produtos fabricados. Nas cidades, a

população encontrava proteção contra os abusos do senhor feudal, além de uma diversidade

de serviços concentrados num só local. Com o aumento da população ampliaram-se as

muralhas das cidades antigas, e novas cidades também foram criadas. As ruas estreitas e casas

acopladas davam abrigo a uma população numerosa, que se autogovernava por meio dos

conselhos municipais ou prefeituras. Neste sentido, as cidades passam a ser a base da

economia européia, depois de vários séculos de supremacia do mundo rural.

Henri Pirenne foi um dos primeiros historiadores a valorizar o papel do mercado como

elemento de fixação urbana. Para ele, o excedente da produção agrícola e o surgimento da

fabricação de produtos manufaturados estimularam o progresso das técnicas e das relações

comerciais. E foi nos burgos – fortificações inicialmente criadas para resistir às invasões de

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outros grupos que, posteriormente, transformaram-se em periferias no entorno das muralhas

medievais – que os comerciantes de viagem estabeleceram seus entrepostos. Desta forma,

criam-se pontos de agrupamento urbano atrativos, inclusive, para mercadores estrangeiros.

Enquanto novas aglomerações suburbanas, os burgos trouxeram as idéias de emancipação do

poder senhorial, que impulsionaram a formação de pequenas associações – as comunas –

comerciais, na qual os mercadores pretendiam vencer a resistência dos senhores laicos3 e

eclesiásticos, administrando livremente o ambiente e os frutos das negociações comerciais4.

Com efeito, em todas as comunas, segundo Pirenne, os burgueses (habitantes dos

burgos) “formavam um corpo em que todos os membros, solidários entre si, constituem partes

inseparáveis” (2009, p.146). As comunas eram em si próprias um individuo coletivo, “uma

pessoa jurídica”, preservando a “separação claramente estabelecida entre os direitos do bispo

e os do burguês, e uma evidente preocupação de salvaguardar a condição destes por

intermédio de uma poderosa organização corporativa” (Ibidem). Neste sentido, as

necessidades do comercio compeliram-nos a agruparem-se em confrarias chamadas guildas

ou hansas.

As guildas eram corporações formadas por artesãos e profissionais independentes, em

igualdade de condições. O objetivo principal das guildas era a defesa dos interesses

econômicos e profissionais dos trabalhadores que delas faziam parte. Já as hansas eram

associações de comerciantes que dominavam determinados segmentos do comércio. A mais

conhecida foi a Liga Hanseática, formada por várias cidades mercantis, que dominou o

comércio na região norte do continente europeu no final da Idade Média. Ambas associações

foram as iniciadoras da autonomia urbana e dispunham de recursos para atender as

necessidades coletivas da população burguesa. Com o tempo, os chefes das guildas

preenchem as funções de magistrados comunais. Resulta de tudo isto que, pouco a pouco, a

burguesia aparece como uma classe distinta e privilegiada no meio da população. De simples

grupo social destinado ao exercício do comércio e da industria manufaturada, as guildas e

hansas tornam-se um grupo jurídico reconhecido como tal, e dessa condição jurídica derivará

a condição de uma organização judiciária e racional.

3 Os senhores laicos constituíam-se em membros da nobreza da Idade Média; já os senhores eclesiáticos eram formados por membros da classe clerical. Ocupavam os mais altos cargos da administração do reino e do exército. Exerciam a justiça sobre os domínios do reino (embora a justiça suprema estivesse reservada ao rei) e cobravam impostos dentro dos seus domínios senhoriais. 4 Cf. Pirenne, Henri. As cidades da Idade Média [Les Villes Du Moyen Age]. Sintra (Portugal): Europa-América, 2009.

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A CIDADE DO OCIDENTE E O CAPITALISMO EM WEBER

Reunindo uma composição de elementos históricos, urbanísticos e sociológicos, a

cidade medieval foi um componente sui generis nos estudos de Max Weber para compreender

as referências fundamentais que colaboram aos fenômenos urbanos e sociais. Em sua

formação como jurista e economista, Weber empreendia um estudo sociológico distinto dos

outros autores clássicos de seu tempo, pois pretendia livrar a sociologia dos conceitos

coletivos. Enquanto Karl Marx, por exemplo, postula uma idéia de causalidade - a de que os

fenômenos econômicos determinam os outros fenômenos, seja na área social, cultural, na

ideologia -, Weber, por outro lado, aponta que existem fenômenos e eventos não econômicos

(ou não condicionados por fatores econômicos), que, por sua vez, se tornam economicamente

relevantes. Há, então, uma possibilidade de pensar a economia não apenas enquanto agente

influenciador, pois também ela mesma sofre influências. Em seus estudos, o que Weber quis

demonstrar era que havia uma ordem econômica influenciada pelas ordens política, social e

religiosa.

No contexto da Idade Média, as cidades estão aproveitando a brecha da crise do

feudalismo para criar novos modos de produção – como o artesanato, que se torna cada vez

mais poderoso -, além do comércio de manufaturas. O artesão é aquele que aprende que para

trabalhar não precisa mais ficar com medo do sol e da chuva (tal como o camponês), porque

ele pode executar seu trabalho dentro de casa todos os dias – faça chuva ou faça sol. Ele,

então, inicia uma ocupação laboral de maneira a aproveitar ao máximo a sua jornada. Novas

formas vão surgindo junto ao pequeno capitalismo urbano, que de alguma maneira vai se

racionalizando. E é neste sentido que vemos nascer os primeiros passos de um capitalismo

moderno tal como entendido por Weber: uma atividade que se realiza pelo caminho do

empreendimento.

Quando a sociedade se organiza para atender necessidades por meio do

empreendimento, essa ação é orientada exclusivamente para produzir e vender. Nesse arranjo,

os homens estão desmanchados de sua personalidade enquanto “indivíduos”, exatamente por

estarem envolvidos no cômputo empresarial. Suas ações são independente dos valores

pessoais dos indivíduos; eles agem, portanto, com uma racionalidade que deve ser buscada de

maneira rotineira. Dessa impessoalidade resulta a burocratização, que nada mais é do que a

destradicionalização dos costumes, um regime onde se remove o poder dos grupos

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consaguíneos – e, para Weber, este é um fator que só ocorreu nas formulações urbanas

ocidentais.

nem toda “cidade” no sentido econômico, nem toda fortaleza que, no sentido político-administrativo, supunha um direito particular dos habitantes, constitui uma “comunidade”. A comunidade urbana, no sentido pleno da palavra, existe como fenômeno extenso unicamente no Ocidente5. (Weber, 2000[1967], p.70).

Weber reconhece que na Mesopotâmia, no Egito e outras civilizações do Oriente

Próximo - China, Japão e Índia, por exemplo -, existiram grandes sedes da indústria e do

comércio, cidades fortificadas, algumas até constituindo distritos judiciais especiais. Contudo,

esses territórios se assentavam em privilégios estamentais, especialmente no contexto de

segregação por castas (tal como na Índia), o que impedia a construção da noção de

comunidade urbana. Além desse aspecto, as vinculações mágicas dos clãs que as populações

do Oriente ainda mantinham, assim como a importância decisiva de assuntos religiosos

conduzindo as relações sociais, formavam ambas um obstáculo, segundo Weber, para a

burocracia enquanto elemento administrativo, fundamento econômico-sociológico de

organização das cidades.

Para o autor, a burocracia real é um dado moderno; ela se eleva com a Modernidade e

se fortalece no Estado burocrático - o que parece ser uma contradição, porém, quanto mais o

Estado se democratiza, mais burocrático ele precisa ser. Se todos os homens seguem seus

próprios interesses, eles se tornam vitimas de conveniências pequenas, pessoais. A burocracia,

neste sentido, vê uma lógica racional de buscar o melhor para o bem da comunidade.

Portanto, de acordo com Weber, a passagem do regime estamental e de um pequeno comércio

para o capitalismo moderno só foi possível no Ocidente devido ao alargamento da burocracia

e da racionalização das ações, que se tornam uma força desenvolvimentista (developmental

force).

Uma vez que capitalismo leva a racionalizar a vida, o capitalista medieval – neste

caso, o artesão – desenvolve a lógica da administração e da contabilidade racional (como, por

exemplo, a criação de livros-caixa para regular que entrou e o que saiu na fabricação dos

produtos). Com efeito, o capitalismo passa a formatar indivíduos desvinculados de certos

valores subjetivos e pessoais, estando sumariamente orientados para o trabalho (o que Weber

entende por “desencantamento do mundo”). Este comportamento que refreia os estímulos

5 Cf. Weber, Max. “Conceito e categorias de cidade”. In: Velho, Octavio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 2000[1967].

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espontâneos – que Weber nomeia de ascese capitalista – seria o elemento que leva ao

enriquecimento, à idéia da produção associada à “poupança”, acumulação, e não ao gasto,

implicando um duplo caminho: o profissionalismo e o dever do cuidado de si. É neste sentido

que Weber observa a economia na vida das pessoas como uma influencia racionalizadora; o

capitalismo do ponto de vista social e cultural, criando hábitos de vida e personalidades

distintas: a do trabalhador, dirigida pelo acesso a uma renda, e a do empresário, que acumula

objetivando ainda maior acumulação. Tal fenômeno acelera o processo de formação de

agentes capitalistas adaptados a uma nova forma revolucionária, produzindo o começo de uma

nova classe dominante.

DAS TIPOLOGIAS DE CIDADE E O “TIPO IDEAL”: UM ESTUDO

COMPARATIVO À RELAÇÃO SOCIEDADE/TERRITÓRIO

Weber era conhecido pela “intensidade da dedicação à pesquisa e à reflexão

metodológica” (Cohn, 2003, p. 7). Sua dedicação o fez ser conhecido como um dos grandes

pensadores das Ciências Sociais modernas. Quanto à postura teórica de Weber, seu nome está

ligado à formulação de um conceito básico para a análise histórico-social: o “tipo ideal”.

Trata-se de parâmetro a fim de “ensejar a orientação do cientista no interior da inesgotável

variedade de fenômenos observáveis na vida social. Consiste em enfatizar determinados

traços da realidade” (op. cit., p. 8)6.

O “tipo ideal” weberiano se constitui num elemento que expressa fenômenos de

múltiplas expressões, os quais estabelecem um sentido de orientação da ação social. No que

se refere ao estudo das cidades, Weber utiliza como recurso metodológico a análise

comparativa, na busca das semelhanças e traços comuns em diferentes cidades do Ocidente e

do mundo oriental. Por esse procedimento ele constrói alguns critérios para definição da

tipologia “ideal”. Tais especificações fazem referência a aspectos da vida urbana relacionados

com as atividades econômicas ou com a institucionalização das atividades político-militares -

cruciais para definir o conceito de cidade. A combinação e ordenação desses traços

conformarão os desdobramentos das tipologias de cidade weberiana. Como resultado, Weber

concebe a cidade medieval ocidental como sendo o tipo ideal de comunidade urbana e

localidade de mercado.

6 Cf. Cohn, Gabriel (Org.). Weber – Sociologia. 7 ed. São Paulo: Ática, 2003.

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As três variáveis básicas na concepção tipológica citadina em Weber são: A) uma

cidade é sempre um assentamento (permanente) de mercado; B) uma cidade foi

(historicamente) um recinto fortificado; c) uma cidade foi/é (tipicamente) uma “comuna”. Por

conseguinte, a conjunção do assentamento de mercado, o recinto fortificado e a “comuna”

constituem suas diferenças específicas face a outras formas de assentamento econômico,

militar e político na história7 (Sousa, 2010, p. 115) . Podemos identificar também as variáveis

especificas que compõe as características da cidade “ideal” em weber, quais são:

A cidade depende de um ordenamento jurídico para se constituir como entidade

jurídica autônoma, dotada de autocefalia8 e autonomia afirmada em relação a qualquer

poder extra-urbano;

A cidade tem uma categoria especial de fortaleza e guarnição, um domínio e

delimitação territorial, caracterizando uma morfologia física específica;

Toda cidade abriga a sede da governança como centro que ordene um regime de

especialização para satisfazer necessidades econômicas e políticas dos indivíduos.

Como exemplos, Weber cita a governança dos tempos antigos, conhecidas como

principados; no Irã eram os Gathas; na Índia tinham-se os Vedas; ao norte indiano, o

velho xátria era uma espécie de príncipe desse tipo de aglomeração;

A cidade é uma associação econômica e apresenta um regime de economia de troca e

de produção, com o controle de receitas e despesas. O que a diferencia das aldeias é o

objeto dessa regulamentação e a amplitude das medidas adotadas;

Toda cidade tem um caráter fixo de mercado. A cidade mercantil repousa na venda de

produtos no mercado local; já a cidade industrial repousa na fabricação ou aquisição

de produtos estrangeiros para colocá-los pra fora de suas circunscrições (aqui se

verifica o aspecto da "conquista do mundo", num estímulo mais próximo ao

capitalismo moderno);

A cidade solicita a racionalização jurídica em direção ao direito formal e previsível,

que assegura a possibilidade de um arranjo de sociedade moderna regulada por

7 Cf. Sousa, Antonio M. Lopes. “Para os estudos e práticas urbanas, um olhar sobre Max Weber”. In: Ponto e Vírgula, n. 7, PPGCS/PUC-SP, p.109-126.8 Autocefalia remete à administração da cidade ao cargo de uma autoridade, cuja escolha os indivíduos (ou cidadãos) participassem de alguma forma.

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contratos. Com a cidade é possível a conformação de um direito urbano, uma

distribuição organizada de deveres e tributos, que sistematiza pagamento de

contribuições de diferentes economias para seus fins, demonstrando a participação

ativa dos cidadãos.

Com esses tópicos, Weber destaca a importância da cidade medieval ocidental em sua

forma de sociabilidade e organização jurídica revolucionárias. Em países como a França se

realizou em regra o nascimento das comunidades urbanas, confraternidades e relações

associativistas políticas. As guildas mercantis da Alemanha estavam especializadas por

ramos. Mais tarde, a guilda como forma de organização foi adotada também pelo comércio à

distancia, sendo Veneza e Gênova os principais pontos de origem e de chegada à Europa das

grandes rotas comerciais do Oriente. Se no principio das cidades medievais o acesso aos

direitos dependia da posição privilegiada dos cidadãos, Weber lembra que com as

conjurationes – movimentos de irmandade e liberdade, notadamente os da Itália -, propagou-

se o direito da cidade e o regimento dos serviços prestados a todos os habitantes das

comunidades urbanas. Ainda, na Inglaterra, na França e no norte germânico as guildas

possuíram um papel determinante, editando leis que proibiam a usurpação de poder por parte

dos senhores feudais, em contraponto às guildas da China e da Índia, por exemplo, que

salvaguardavam privilégios econômicos aos nobres, lhes faltando o conceito de comunidade.

Portanto, a relação sociedade-território em Weber se assenta num elemento

fundamental que é a cidade. O conjunto das variáveis acima reunidas no âmbito da cidade

medieval ocidental contribui para o desenvolvimento da tecnologia e dos modos de produção

econômica, os quais permitiram a emergência do capitalismo moderno e o desenvolvimento

do Estado racional e centralizado9. O capitalismo moderno que surge com as cidades

medievais não ocorre por si só: ele é uma ação da sociedade que elege impulsionar o mercado

como novo meio de vida. Se antes o individuo satisfazia-se com a produção de subsistência,

agora a dinâmica de mercado ganha importância maior que a necessidade individualista. Com

efeito, estar na cidade é participar efetivamente do mercado, de sua organização, de suas

demandas jurídicas e, sobretudo, dos novos meios de relações sociais, cada vez mais

impessoais e racionalizados.

9 Cf. Comentários de Jessé Souza em Weber, Max : A gênese do capitalismo. São Paulo, Ática, 2006, p.12.

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A CIDADE COMO EXPRESSÃO DE UMA DOMINAÇÃO “NÃO LEGÍTIMA”

A compreensão do poder nas relações sociais sempre se revelou um elemento de

ampla investigação na sociologia, o que impossibilitou a formação de um conceito uníssono.

Ao analisar a diversidade dos conceitos, tradicionalmente observa-se que o poder é

compreendido como algo exercido por um agente capaz de impor sua vontade a outrem,

independentemente da sua anuência. Max Weber, enquanto um dos teóricos que analisaram o

conceito, em Economia e Sociedade10 apresenta uma clássica formulação de poder ao

asseverar que o “poder significa toda probabilidade de impor a vontade numa relação social,

mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade” (2004, p.33).

Em linhas gerais, poder estaria contido em formas puramente autoritárias de exercício

da força. Em algumas ocasiões um sujeito consegue êxito em interpelar outro individuo pelo

uso da força; noutras não. Todavia, a potência de poder, determinada por certa força, se

explicita de uma maneira muito precisa. É o caso de alguém que recebe uma ordem de outrem

e se sente no dever de cumpri-la. Nesse contexto reside um dos principais objetos de interesse

da sociologia weberiana: a Dominação. Weber não está interessado simplesmente nas formas

de poder que existem nos grupos sociais, mas sim em como se estrutura a dominação – uma

forma de poder que vem acompanhada de uma legitimidade, e que se cristaliza por meio de

normas, valores, hábitos comuns, os quais definem identidades e comportamentos a serem

“naturalizados” pelos atores submetidos a eles.

O ensaio “A Cidade” escrito por Max Weber e publicado em 1921 reaparece na obra

Economia e Sociedade no Capítulo 9 (Sociologia da Dominação) sob a forma de subcapítulo,

designado A Dominação Não-Legítima (Tipologia das Cidades)11. Nesse texto Weber

apresenta uma seção de quase cem páginas onde descreve sua larga compreensão sobre as

diferentes características de cidades, desde a Antiguidade, passando pelos povos judeus e

plebeus até a Idade Média. Surge aqui uma questão acerca do título do ensaio, pois constitui a

única referência de Weber a esse tipo “ilegítimo” de poder. Qual seria, portanto, a intenção de

Weber em situar a cidade como contraponto às outras formas legítimas de dominação?

Por dominação entendemos uma relação dialógica, na qual os atores performam os

papéis de alguém que domina e alguém que aceita (portanto, legitima) essa dominação. A

dominação procede de uma capacidade de dominar; só domina quem tem poder, aquele que 10 Cf. Weber, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília/São Paulo: Editora UnB/Imprensa Oficial, 2004.11 Ibidem.

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detêm a potencia, a força. Para que haja uma relação autêntica de dominação é necessária uma

mínima obediência às ordens de outrem. Neste sentido, a dominação legítima provêm de uma

relação entre dominados, os quais reconhecem que aquele que domina tem poder e a

capacidade para realizar tal ação. Portanto, é esta “aceitação” que legitima a dominação.

O poder pode vir da razão, dos instintos, dos impulsos, das práticas... É uma potencia

que entra em choque com outras potências. É um universo de luta - sobre outras pessoas e,

também, sobre a natureza. Weber postula que há três tipos de dominação legítima: a

tradicional – vinculada aos laços de fidelidade; a carismática, baseada nas qualidades dos

líderes; e a racional-legal, conformada a regras impessoais, expressas em leis que compelem

os indivíduos ao esforço coletivo de obedecer racionalmente às normas. No entanto, Weber

também reconhece que a dominação perpassa os mais diferentes planos da vida social, e que

essa dominação pode, ela mesma, não ser traduzida em termos de consenso entre dominador e

dominado. Uma vez que o dominado não tem a dimensão dessa ação de dominação ela é,

portanto, não legitima. É um fenômeno que nos invade, que está para além do convencimento

de autoridade pelo dominador. A dominação não legítima é aquela em que não há apenas um

ente dominador, mas sim uma multiplicidade de instâncias que orientam, objetiva e

subjetivamente, a conduta dos indivíduos.

A cidade é um fenômeno que aparece no contexto de desmantelamento das formas de

dominação do feudalismo e de suas instituições políticas próprias. Com a cidade e o mercado

aparecem outras relações econômicas e outras instituições sociais, políticas e jurídicas. É uma

nova forma de dominação, em oposição àquelas que ainda prevalecem no campo. Os sentidos

opostos que aí se empreendem podem ser entendidos pela seguinte representação:

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FIGURA 1 – Relações estruturantes no campo e na cidade da Idade Média.

Fonte: Pirenne, H. (2009).

Essa é uma conexão totalmente diferente daquela que aparece na terra. Na cidade há

uma impessoalidade na relação, diferente daquela que se estrutura no feudo. .Um exemplo

ilustrativo dessa pessoalidade feudal seria: quando o servo se casava, o dono da terra podia

reivindicar passar a noite do casamento com a mulher do servo, tal é a natureza de dominação

pessoal nessa relação – que está amparada num compartilhamento de sentido entre o servo e o

senhor da terra. Quando a cidade se forma, concomitante à emergência dos mercados de

especiarias, nasce com ela a idéia de liberdade, qual seja: um padrão de dominação diferente

do campesino, ancorado no pressuposto mercado x trabalho/troca, aprendiz x artesão. Fora

desse arranjo, o aprendiz não tem nenhuma relação de dominação com o seu artesão. No

exterior do ambiente de trabalho, ele é um cidadão da cidade. Já o camponês, quando sai da

terra, continua sendo camponês.

Por essa razão, a concepção de liberdade que surge com a cidade traz a idéia de um

sujeito independente, isento de uma relação pessoalizada de dominação. A razão de ser que

surge com essas conformações estabelece uma estabilidade nas relações de troca. Na cidade

também vemos nascer a idéia de comunidade, que se reflete quando indivíduos compartilham

o sentido da ação de estarem juntos.

Foi pelo entendimento da coabitação de autoridades plurais associadas aos

assentamentos urbanos, que possibilitam às diferentes “ordens legais” (inerentes às regras ou

CAMPO

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ordens instituídas pelas corporações, guildas ou estamentos) conviverem sobre uma mesma

estrutura de ordenação legal, que Weber considerou a cidade medieval ocidental como

expressão dessa dominação não legitima. O autor configura, desse modo, um cenário em que

estruturas de natureza diversas são aglutinadas, em simultâneo, numa unidade de configuração

que irá gerar importantes efeitos na modernidade e na sua construção.

Essa dominação citadina é “não legítima”, nas palavras de Weber, não meramente por

conta da incorporação de uma ordem ou vontade, mas sim devido à adesão dos indivíduos

frente a essas autoridades plurais que pairavam na vida urbana. Em seu trabalho sobre as

cidades, Weber quis chamar a atenção para esse dinâmico aglutinar de vontades coletivas e

pluralidades de expressão social, a qual possibilitou certo tipo de desenvolvimento (o

capitalismo moderno) comparado às realidades urbanas em países orientais e ocidentais. Por

essa razão, a singularidade da cidade medieval ocidental era, para Weber, a estrutura da

dominação presente dentro dela – composta não apenas de um ente, mas de múltiplos

fenômenos: o comércio, as fortalezas, a governança, a fixidez dos mercados, a racionalização

do trabalho e da acumulação, bem como o novo ordenamento jurídico estimulando a

participação ativa dos cidadãos nas questões dirigenciais da comunidade urbana.

Da possibilidade de rompimento à ordem feudal os comerciantes viram-se estimulados

à produção autônoma, favorecidos pelo constante aumento da população dos burgos, gerando

mercado consumidor. O avanço da atividade mercantil demandaria a fabricação de um regime

mais produtivo, e por isso decide-se pela criação de uma ordem laboral racionalizante, que

transborda para diferentes tipos de organizações econômicas, jurídicas e sociais (guildas,

corporações de ofícios, grupos de cidadãos, conjurações, entre outros). Temos aqui um outro

formato weberiano: a dominação não legitima das cidades é, também, uma ação social, na

medida em que se realiza de um agente para outro agente. É uma atitude sobre a qual recai ao

outro um desejo de intercâmbio, de relacionamento, que fabrica o social no tempo. Uma ação

social se constitui como relação quando os indivíduos que interagem compreendem o seu

sentido, posto que a ação empreendida por aqueles que compartilham o sentido tem uma

adesão frente ao poder exercido. Como toda relação social, é determinada não só pelos

resultados para o agente, mas também pelos efeitos (reais ou esperados) que pode causar.

Pode-se concluir que a cidade em Weber é um tipo ideal da dominação não-legítima,

caracterizado pelo seu intrínseco pluralismo e pelo (re)ajuste nas formas de organização da

sociedade com a economia, o direito e o território. A leitura que se vislumbra com as

características da cidade medieval moderna é a da transformação de uma paisagem social, na

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qual essa estrutura tão pluralista abriu a possibilidade para que diferentes ordens legais

configurassem, a um mesmo tempo, um contexto positivo, rompendo pouco a pouco com a

ordem feudal e instaurando não só um racionalismo de dominação do mundo, mas,

fundamentalmente, um ethos racional de produção capitalista.

InteratividadeEcce Homo – A cidade, de Pierre Lawrance.Documentário. Canadá, 1999.

Em “Ecce Homo – A cidade” é abordada a história do surgimento da urbanização desde suas

primeiras manifestações até a diversidade de espaços urbanos do mundo atual. O filme é

composto por múltiplas imagens panorâmicas de cidades com diferentes origens, funções e

aspectos, além de documentos históricos que ilustram cidades antigas. Estão presentes trechos

de entrevistas com especialistas variados, como historiadores, sociólogos e urbanistas que

explicam como se deu a formação de diferentes cidades; a relação entre a área urbana e a área

rural; a especificidade da cidade medieval; a dinâmica das cidades que surgiram em

economias industrializadas e aquelas que surgiram em países pobres; o fenômeno do

subúrbio; a dinâmica entre centro e periferia; a aceleração da urbanização; as megacidades; os

problemas sanitários e a poluição nos centros urbanos.