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“A cidade”: uma leitura dos processos de transformação na Idade Média em termos de economia, território e relações sociais
RG1 e João Aguiar2
RESUMO
Este artigo traz uma compreensão da análise weberiana sobre o processo de surgimento da
cidade, desde a Idade Média até o período da modernidade e a implantação do capitalismo. A
cidade em Weber é um tipo ideal da dominação não-legítima, caracterizado pelo seu
intrínseco pluralismo e pelo (re)ajuste nas formas de organização da sociedade com a
economia, o direito e o território. A leitura que se vislumbra com as características da cidade
medieval moderna é a da transformação de uma paisagem social, na qual essa estrutura tão
pluralista abriu a possibilidade para que diferentes ordens legais configurassem, a um mesmo
tempo, um contexto positivo, rompendo pouco a pouco com a ordem feudal e instaurando não
só um racionalismo de dominação do mundo, mas, fundamentalmente, um ethos racional de
produção capitalista.
Palavras-chave: Cidade, Sociedade, Território, Dominação.
INTRODUÇÃO
A formação das cidades enquanto centros político-administrativos é um elemento
próprio da história da Humanidade, remontando à Antiguidade e aos primeiros séculos da Era
Cristã. Mesmo em territórios barbarizados, cristianizados tardiamente, as cidades constituíam
um prolongamento das aldeias primitivas. No mundo romano as cidades eram centros
político, administrativo, militar e, em segundo plano, econômico. No Oriente – em territórios
como a Babilônia, Prússia, China e Índia -, a cidade era um povoado nascido pela afluência de
pessoas vindas de fora e mantido pelo continuo trabalho de pessoas no campo, além de haver,
1 Socióloga, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR/IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).2 Advogado, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR/IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
por toda a parte, elementos de posições estamentais diversas. Membros de linhagens
organizados à maneira de clãs; indivíduos libertos, servos e escravos, ao lado de senhores
territoriais nobres e seus criados, funcionários das cortes; mercenários, sacerdotes e monges.
Todo o território urbano dessa época fazia parte de um senhorio territorial.
Durante a Alta Idade Média, circunscritas às suas antigas muralhas, as cidades foram
reduzidas quase que exclusivamente à função política e administrativa – ela própria atrofiada,
uma vez que a atividade agrícola e a posse de terras constituíam-se a base das relações. O
feudo era a unidade de produção do mundo medieval e onde acontecia a maior parte das
relações sociais. O senhor do feudo possuía, além da terra, riquezas em espécie e tinha direito
de cobrar impostos e taxas em seu território. A religião foi o elemento que preservou,
especialmente no Ocidente, a continuidade de um contexto “urbano”. As cidades consideradas
mais “prósperas” deviam sua relativa importância à presença de um soberano religioso – um
bispo episcopal, um brâmane ou qualquer outra realeza carismática.
A partir do século XI percebemos as primeiras tentativas de mudança contra a ordem
das coisas. O caráter auto-sustentável dos feudos perde espaço para uma economia mais
integrada às trocas comerciais. Essa fase de instabilidade envolvendo as relações servis trouxe
à tona um duplo movimento: a crise agrícola dos feudos, a ampliação do consumo de gêneros
manufaturados e especiarias, e o conseqüente desequilíbrio no acordo estabelecido entre
servos e senhores feudais.
No século XII, o comércio e as cidades passaram a ocupar a posição significativa
enquanto fenômeno dirigente nas relações sociais. A cidade se converteu num lugar ideal para
desenvolver trabalhos manuais e comercializar os produtos fabricados. Nas cidades, a
população encontrava proteção contra os abusos do senhor feudal, além de uma diversidade
de serviços concentrados num só local. Com o aumento da população ampliaram-se as
muralhas das cidades antigas, e novas cidades também foram criadas. As ruas estreitas e casas
acopladas davam abrigo a uma população numerosa, que se autogovernava por meio dos
conselhos municipais ou prefeituras. Neste sentido, as cidades passam a ser a base da
economia européia, depois de vários séculos de supremacia do mundo rural.
Henri Pirenne foi um dos primeiros historiadores a valorizar o papel do mercado como
elemento de fixação urbana. Para ele, o excedente da produção agrícola e o surgimento da
fabricação de produtos manufaturados estimularam o progresso das técnicas e das relações
comerciais. E foi nos burgos – fortificações inicialmente criadas para resistir às invasões de
outros grupos que, posteriormente, transformaram-se em periferias no entorno das muralhas
medievais – que os comerciantes de viagem estabeleceram seus entrepostos. Desta forma,
criam-se pontos de agrupamento urbano atrativos, inclusive, para mercadores estrangeiros.
Enquanto novas aglomerações suburbanas, os burgos trouxeram as idéias de emancipação do
poder senhorial, que impulsionaram a formação de pequenas associações – as comunas –
comerciais, na qual os mercadores pretendiam vencer a resistência dos senhores laicos3 e
eclesiásticos, administrando livremente o ambiente e os frutos das negociações comerciais4.
Com efeito, em todas as comunas, segundo Pirenne, os burgueses (habitantes dos
burgos) “formavam um corpo em que todos os membros, solidários entre si, constituem partes
inseparáveis” (2009, p.146). As comunas eram em si próprias um individuo coletivo, “uma
pessoa jurídica”, preservando a “separação claramente estabelecida entre os direitos do bispo
e os do burguês, e uma evidente preocupação de salvaguardar a condição destes por
intermédio de uma poderosa organização corporativa” (Ibidem). Neste sentido, as
necessidades do comercio compeliram-nos a agruparem-se em confrarias chamadas guildas
ou hansas.
As guildas eram corporações formadas por artesãos e profissionais independentes, em
igualdade de condições. O objetivo principal das guildas era a defesa dos interesses
econômicos e profissionais dos trabalhadores que delas faziam parte. Já as hansas eram
associações de comerciantes que dominavam determinados segmentos do comércio. A mais
conhecida foi a Liga Hanseática, formada por várias cidades mercantis, que dominou o
comércio na região norte do continente europeu no final da Idade Média. Ambas associações
foram as iniciadoras da autonomia urbana e dispunham de recursos para atender as
necessidades coletivas da população burguesa. Com o tempo, os chefes das guildas
preenchem as funções de magistrados comunais. Resulta de tudo isto que, pouco a pouco, a
burguesia aparece como uma classe distinta e privilegiada no meio da população. De simples
grupo social destinado ao exercício do comércio e da industria manufaturada, as guildas e
hansas tornam-se um grupo jurídico reconhecido como tal, e dessa condição jurídica derivará
a condição de uma organização judiciária e racional.
3 Os senhores laicos constituíam-se em membros da nobreza da Idade Média; já os senhores eclesiáticos eram formados por membros da classe clerical. Ocupavam os mais altos cargos da administração do reino e do exército. Exerciam a justiça sobre os domínios do reino (embora a justiça suprema estivesse reservada ao rei) e cobravam impostos dentro dos seus domínios senhoriais. 4 Cf. Pirenne, Henri. As cidades da Idade Média [Les Villes Du Moyen Age]. Sintra (Portugal): Europa-América, 2009.
A CIDADE DO OCIDENTE E O CAPITALISMO EM WEBER
Reunindo uma composição de elementos históricos, urbanísticos e sociológicos, a
cidade medieval foi um componente sui generis nos estudos de Max Weber para compreender
as referências fundamentais que colaboram aos fenômenos urbanos e sociais. Em sua
formação como jurista e economista, Weber empreendia um estudo sociológico distinto dos
outros autores clássicos de seu tempo, pois pretendia livrar a sociologia dos conceitos
coletivos. Enquanto Karl Marx, por exemplo, postula uma idéia de causalidade - a de que os
fenômenos econômicos determinam os outros fenômenos, seja na área social, cultural, na
ideologia -, Weber, por outro lado, aponta que existem fenômenos e eventos não econômicos
(ou não condicionados por fatores econômicos), que, por sua vez, se tornam economicamente
relevantes. Há, então, uma possibilidade de pensar a economia não apenas enquanto agente
influenciador, pois também ela mesma sofre influências. Em seus estudos, o que Weber quis
demonstrar era que havia uma ordem econômica influenciada pelas ordens política, social e
religiosa.
No contexto da Idade Média, as cidades estão aproveitando a brecha da crise do
feudalismo para criar novos modos de produção – como o artesanato, que se torna cada vez
mais poderoso -, além do comércio de manufaturas. O artesão é aquele que aprende que para
trabalhar não precisa mais ficar com medo do sol e da chuva (tal como o camponês), porque
ele pode executar seu trabalho dentro de casa todos os dias – faça chuva ou faça sol. Ele,
então, inicia uma ocupação laboral de maneira a aproveitar ao máximo a sua jornada. Novas
formas vão surgindo junto ao pequeno capitalismo urbano, que de alguma maneira vai se
racionalizando. E é neste sentido que vemos nascer os primeiros passos de um capitalismo
moderno tal como entendido por Weber: uma atividade que se realiza pelo caminho do
empreendimento.
Quando a sociedade se organiza para atender necessidades por meio do
empreendimento, essa ação é orientada exclusivamente para produzir e vender. Nesse arranjo,
os homens estão desmanchados de sua personalidade enquanto “indivíduos”, exatamente por
estarem envolvidos no cômputo empresarial. Suas ações são independente dos valores
pessoais dos indivíduos; eles agem, portanto, com uma racionalidade que deve ser buscada de
maneira rotineira. Dessa impessoalidade resulta a burocratização, que nada mais é do que a
destradicionalização dos costumes, um regime onde se remove o poder dos grupos
consaguíneos – e, para Weber, este é um fator que só ocorreu nas formulações urbanas
ocidentais.
nem toda “cidade” no sentido econômico, nem toda fortaleza que, no sentido político-administrativo, supunha um direito particular dos habitantes, constitui uma “comunidade”. A comunidade urbana, no sentido pleno da palavra, existe como fenômeno extenso unicamente no Ocidente5. (Weber, 2000[1967], p.70).
Weber reconhece que na Mesopotâmia, no Egito e outras civilizações do Oriente
Próximo - China, Japão e Índia, por exemplo -, existiram grandes sedes da indústria e do
comércio, cidades fortificadas, algumas até constituindo distritos judiciais especiais. Contudo,
esses territórios se assentavam em privilégios estamentais, especialmente no contexto de
segregação por castas (tal como na Índia), o que impedia a construção da noção de
comunidade urbana. Além desse aspecto, as vinculações mágicas dos clãs que as populações
do Oriente ainda mantinham, assim como a importância decisiva de assuntos religiosos
conduzindo as relações sociais, formavam ambas um obstáculo, segundo Weber, para a
burocracia enquanto elemento administrativo, fundamento econômico-sociológico de
organização das cidades.
Para o autor, a burocracia real é um dado moderno; ela se eleva com a Modernidade e
se fortalece no Estado burocrático - o que parece ser uma contradição, porém, quanto mais o
Estado se democratiza, mais burocrático ele precisa ser. Se todos os homens seguem seus
próprios interesses, eles se tornam vitimas de conveniências pequenas, pessoais. A burocracia,
neste sentido, vê uma lógica racional de buscar o melhor para o bem da comunidade.
Portanto, de acordo com Weber, a passagem do regime estamental e de um pequeno comércio
para o capitalismo moderno só foi possível no Ocidente devido ao alargamento da burocracia
e da racionalização das ações, que se tornam uma força desenvolvimentista (developmental
force).
Uma vez que capitalismo leva a racionalizar a vida, o capitalista medieval – neste
caso, o artesão – desenvolve a lógica da administração e da contabilidade racional (como, por
exemplo, a criação de livros-caixa para regular que entrou e o que saiu na fabricação dos
produtos). Com efeito, o capitalismo passa a formatar indivíduos desvinculados de certos
valores subjetivos e pessoais, estando sumariamente orientados para o trabalho (o que Weber
entende por “desencantamento do mundo”). Este comportamento que refreia os estímulos
5 Cf. Weber, Max. “Conceito e categorias de cidade”. In: Velho, Octavio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 2000[1967].
espontâneos – que Weber nomeia de ascese capitalista – seria o elemento que leva ao
enriquecimento, à idéia da produção associada à “poupança”, acumulação, e não ao gasto,
implicando um duplo caminho: o profissionalismo e o dever do cuidado de si. É neste sentido
que Weber observa a economia na vida das pessoas como uma influencia racionalizadora; o
capitalismo do ponto de vista social e cultural, criando hábitos de vida e personalidades
distintas: a do trabalhador, dirigida pelo acesso a uma renda, e a do empresário, que acumula
objetivando ainda maior acumulação. Tal fenômeno acelera o processo de formação de
agentes capitalistas adaptados a uma nova forma revolucionária, produzindo o começo de uma
nova classe dominante.
DAS TIPOLOGIAS DE CIDADE E O “TIPO IDEAL”: UM ESTUDO
COMPARATIVO À RELAÇÃO SOCIEDADE/TERRITÓRIO
Weber era conhecido pela “intensidade da dedicação à pesquisa e à reflexão
metodológica” (Cohn, 2003, p. 7). Sua dedicação o fez ser conhecido como um dos grandes
pensadores das Ciências Sociais modernas. Quanto à postura teórica de Weber, seu nome está
ligado à formulação de um conceito básico para a análise histórico-social: o “tipo ideal”.
Trata-se de parâmetro a fim de “ensejar a orientação do cientista no interior da inesgotável
variedade de fenômenos observáveis na vida social. Consiste em enfatizar determinados
traços da realidade” (op. cit., p. 8)6.
O “tipo ideal” weberiano se constitui num elemento que expressa fenômenos de
múltiplas expressões, os quais estabelecem um sentido de orientação da ação social. No que
se refere ao estudo das cidades, Weber utiliza como recurso metodológico a análise
comparativa, na busca das semelhanças e traços comuns em diferentes cidades do Ocidente e
do mundo oriental. Por esse procedimento ele constrói alguns critérios para definição da
tipologia “ideal”. Tais especificações fazem referência a aspectos da vida urbana relacionados
com as atividades econômicas ou com a institucionalização das atividades político-militares -
cruciais para definir o conceito de cidade. A combinação e ordenação desses traços
conformarão os desdobramentos das tipologias de cidade weberiana. Como resultado, Weber
concebe a cidade medieval ocidental como sendo o tipo ideal de comunidade urbana e
localidade de mercado.
6 Cf. Cohn, Gabriel (Org.). Weber – Sociologia. 7 ed. São Paulo: Ática, 2003.
As três variáveis básicas na concepção tipológica citadina em Weber são: A) uma
cidade é sempre um assentamento (permanente) de mercado; B) uma cidade foi
(historicamente) um recinto fortificado; c) uma cidade foi/é (tipicamente) uma “comuna”. Por
conseguinte, a conjunção do assentamento de mercado, o recinto fortificado e a “comuna”
constituem suas diferenças específicas face a outras formas de assentamento econômico,
militar e político na história7 (Sousa, 2010, p. 115) . Podemos identificar também as variáveis
especificas que compõe as características da cidade “ideal” em weber, quais são:
A cidade depende de um ordenamento jurídico para se constituir como entidade
jurídica autônoma, dotada de autocefalia8 e autonomia afirmada em relação a qualquer
poder extra-urbano;
A cidade tem uma categoria especial de fortaleza e guarnição, um domínio e
delimitação territorial, caracterizando uma morfologia física específica;
Toda cidade abriga a sede da governança como centro que ordene um regime de
especialização para satisfazer necessidades econômicas e políticas dos indivíduos.
Como exemplos, Weber cita a governança dos tempos antigos, conhecidas como
principados; no Irã eram os Gathas; na Índia tinham-se os Vedas; ao norte indiano, o
velho xátria era uma espécie de príncipe desse tipo de aglomeração;
A cidade é uma associação econômica e apresenta um regime de economia de troca e
de produção, com o controle de receitas e despesas. O que a diferencia das aldeias é o
objeto dessa regulamentação e a amplitude das medidas adotadas;
Toda cidade tem um caráter fixo de mercado. A cidade mercantil repousa na venda de
produtos no mercado local; já a cidade industrial repousa na fabricação ou aquisição
de produtos estrangeiros para colocá-los pra fora de suas circunscrições (aqui se
verifica o aspecto da "conquista do mundo", num estímulo mais próximo ao
capitalismo moderno);
A cidade solicita a racionalização jurídica em direção ao direito formal e previsível,
que assegura a possibilidade de um arranjo de sociedade moderna regulada por
7 Cf. Sousa, Antonio M. Lopes. “Para os estudos e práticas urbanas, um olhar sobre Max Weber”. In: Ponto e Vírgula, n. 7, PPGCS/PUC-SP, p.109-126.8 Autocefalia remete à administração da cidade ao cargo de uma autoridade, cuja escolha os indivíduos (ou cidadãos) participassem de alguma forma.
contratos. Com a cidade é possível a conformação de um direito urbano, uma
distribuição organizada de deveres e tributos, que sistematiza pagamento de
contribuições de diferentes economias para seus fins, demonstrando a participação
ativa dos cidadãos.
Com esses tópicos, Weber destaca a importância da cidade medieval ocidental em sua
forma de sociabilidade e organização jurídica revolucionárias. Em países como a França se
realizou em regra o nascimento das comunidades urbanas, confraternidades e relações
associativistas políticas. As guildas mercantis da Alemanha estavam especializadas por
ramos. Mais tarde, a guilda como forma de organização foi adotada também pelo comércio à
distancia, sendo Veneza e Gênova os principais pontos de origem e de chegada à Europa das
grandes rotas comerciais do Oriente. Se no principio das cidades medievais o acesso aos
direitos dependia da posição privilegiada dos cidadãos, Weber lembra que com as
conjurationes – movimentos de irmandade e liberdade, notadamente os da Itália -, propagou-
se o direito da cidade e o regimento dos serviços prestados a todos os habitantes das
comunidades urbanas. Ainda, na Inglaterra, na França e no norte germânico as guildas
possuíram um papel determinante, editando leis que proibiam a usurpação de poder por parte
dos senhores feudais, em contraponto às guildas da China e da Índia, por exemplo, que
salvaguardavam privilégios econômicos aos nobres, lhes faltando o conceito de comunidade.
Portanto, a relação sociedade-território em Weber se assenta num elemento
fundamental que é a cidade. O conjunto das variáveis acima reunidas no âmbito da cidade
medieval ocidental contribui para o desenvolvimento da tecnologia e dos modos de produção
econômica, os quais permitiram a emergência do capitalismo moderno e o desenvolvimento
do Estado racional e centralizado9. O capitalismo moderno que surge com as cidades
medievais não ocorre por si só: ele é uma ação da sociedade que elege impulsionar o mercado
como novo meio de vida. Se antes o individuo satisfazia-se com a produção de subsistência,
agora a dinâmica de mercado ganha importância maior que a necessidade individualista. Com
efeito, estar na cidade é participar efetivamente do mercado, de sua organização, de suas
demandas jurídicas e, sobretudo, dos novos meios de relações sociais, cada vez mais
impessoais e racionalizados.
9 Cf. Comentários de Jessé Souza em Weber, Max : A gênese do capitalismo. São Paulo, Ática, 2006, p.12.
A CIDADE COMO EXPRESSÃO DE UMA DOMINAÇÃO “NÃO LEGÍTIMA”
A compreensão do poder nas relações sociais sempre se revelou um elemento de
ampla investigação na sociologia, o que impossibilitou a formação de um conceito uníssono.
Ao analisar a diversidade dos conceitos, tradicionalmente observa-se que o poder é
compreendido como algo exercido por um agente capaz de impor sua vontade a outrem,
independentemente da sua anuência. Max Weber, enquanto um dos teóricos que analisaram o
conceito, em Economia e Sociedade10 apresenta uma clássica formulação de poder ao
asseverar que o “poder significa toda probabilidade de impor a vontade numa relação social,
mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade” (2004, p.33).
Em linhas gerais, poder estaria contido em formas puramente autoritárias de exercício
da força. Em algumas ocasiões um sujeito consegue êxito em interpelar outro individuo pelo
uso da força; noutras não. Todavia, a potência de poder, determinada por certa força, se
explicita de uma maneira muito precisa. É o caso de alguém que recebe uma ordem de outrem
e se sente no dever de cumpri-la. Nesse contexto reside um dos principais objetos de interesse
da sociologia weberiana: a Dominação. Weber não está interessado simplesmente nas formas
de poder que existem nos grupos sociais, mas sim em como se estrutura a dominação – uma
forma de poder que vem acompanhada de uma legitimidade, e que se cristaliza por meio de
normas, valores, hábitos comuns, os quais definem identidades e comportamentos a serem
“naturalizados” pelos atores submetidos a eles.
O ensaio “A Cidade” escrito por Max Weber e publicado em 1921 reaparece na obra
Economia e Sociedade no Capítulo 9 (Sociologia da Dominação) sob a forma de subcapítulo,
designado A Dominação Não-Legítima (Tipologia das Cidades)11. Nesse texto Weber
apresenta uma seção de quase cem páginas onde descreve sua larga compreensão sobre as
diferentes características de cidades, desde a Antiguidade, passando pelos povos judeus e
plebeus até a Idade Média. Surge aqui uma questão acerca do título do ensaio, pois constitui a
única referência de Weber a esse tipo “ilegítimo” de poder. Qual seria, portanto, a intenção de
Weber em situar a cidade como contraponto às outras formas legítimas de dominação?
Por dominação entendemos uma relação dialógica, na qual os atores performam os
papéis de alguém que domina e alguém que aceita (portanto, legitima) essa dominação. A
dominação procede de uma capacidade de dominar; só domina quem tem poder, aquele que 10 Cf. Weber, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília/São Paulo: Editora UnB/Imprensa Oficial, 2004.11 Ibidem.
detêm a potencia, a força. Para que haja uma relação autêntica de dominação é necessária uma
mínima obediência às ordens de outrem. Neste sentido, a dominação legítima provêm de uma
relação entre dominados, os quais reconhecem que aquele que domina tem poder e a
capacidade para realizar tal ação. Portanto, é esta “aceitação” que legitima a dominação.
O poder pode vir da razão, dos instintos, dos impulsos, das práticas... É uma potencia
que entra em choque com outras potências. É um universo de luta - sobre outras pessoas e,
também, sobre a natureza. Weber postula que há três tipos de dominação legítima: a
tradicional – vinculada aos laços de fidelidade; a carismática, baseada nas qualidades dos
líderes; e a racional-legal, conformada a regras impessoais, expressas em leis que compelem
os indivíduos ao esforço coletivo de obedecer racionalmente às normas. No entanto, Weber
também reconhece que a dominação perpassa os mais diferentes planos da vida social, e que
essa dominação pode, ela mesma, não ser traduzida em termos de consenso entre dominador e
dominado. Uma vez que o dominado não tem a dimensão dessa ação de dominação ela é,
portanto, não legitima. É um fenômeno que nos invade, que está para além do convencimento
de autoridade pelo dominador. A dominação não legítima é aquela em que não há apenas um
ente dominador, mas sim uma multiplicidade de instâncias que orientam, objetiva e
subjetivamente, a conduta dos indivíduos.
A cidade é um fenômeno que aparece no contexto de desmantelamento das formas de
dominação do feudalismo e de suas instituições políticas próprias. Com a cidade e o mercado
aparecem outras relações econômicas e outras instituições sociais, políticas e jurídicas. É uma
nova forma de dominação, em oposição àquelas que ainda prevalecem no campo. Os sentidos
opostos que aí se empreendem podem ser entendidos pela seguinte representação:
FIGURA 1 – Relações estruturantes no campo e na cidade da Idade Média.
Fonte: Pirenne, H. (2009).
Essa é uma conexão totalmente diferente daquela que aparece na terra. Na cidade há
uma impessoalidade na relação, diferente daquela que se estrutura no feudo. .Um exemplo
ilustrativo dessa pessoalidade feudal seria: quando o servo se casava, o dono da terra podia
reivindicar passar a noite do casamento com a mulher do servo, tal é a natureza de dominação
pessoal nessa relação – que está amparada num compartilhamento de sentido entre o servo e o
senhor da terra. Quando a cidade se forma, concomitante à emergência dos mercados de
especiarias, nasce com ela a idéia de liberdade, qual seja: um padrão de dominação diferente
do campesino, ancorado no pressuposto mercado x trabalho/troca, aprendiz x artesão. Fora
desse arranjo, o aprendiz não tem nenhuma relação de dominação com o seu artesão. No
exterior do ambiente de trabalho, ele é um cidadão da cidade. Já o camponês, quando sai da
terra, continua sendo camponês.
Por essa razão, a concepção de liberdade que surge com a cidade traz a idéia de um
sujeito independente, isento de uma relação pessoalizada de dominação. A razão de ser que
surge com essas conformações estabelece uma estabilidade nas relações de troca. Na cidade
também vemos nascer a idéia de comunidade, que se reflete quando indivíduos compartilham
o sentido da ação de estarem juntos.
Foi pelo entendimento da coabitação de autoridades plurais associadas aos
assentamentos urbanos, que possibilitam às diferentes “ordens legais” (inerentes às regras ou
CAMPO
ordens instituídas pelas corporações, guildas ou estamentos) conviverem sobre uma mesma
estrutura de ordenação legal, que Weber considerou a cidade medieval ocidental como
expressão dessa dominação não legitima. O autor configura, desse modo, um cenário em que
estruturas de natureza diversas são aglutinadas, em simultâneo, numa unidade de configuração
que irá gerar importantes efeitos na modernidade e na sua construção.
Essa dominação citadina é “não legítima”, nas palavras de Weber, não meramente por
conta da incorporação de uma ordem ou vontade, mas sim devido à adesão dos indivíduos
frente a essas autoridades plurais que pairavam na vida urbana. Em seu trabalho sobre as
cidades, Weber quis chamar a atenção para esse dinâmico aglutinar de vontades coletivas e
pluralidades de expressão social, a qual possibilitou certo tipo de desenvolvimento (o
capitalismo moderno) comparado às realidades urbanas em países orientais e ocidentais. Por
essa razão, a singularidade da cidade medieval ocidental era, para Weber, a estrutura da
dominação presente dentro dela – composta não apenas de um ente, mas de múltiplos
fenômenos: o comércio, as fortalezas, a governança, a fixidez dos mercados, a racionalização
do trabalho e da acumulação, bem como o novo ordenamento jurídico estimulando a
participação ativa dos cidadãos nas questões dirigenciais da comunidade urbana.
Da possibilidade de rompimento à ordem feudal os comerciantes viram-se estimulados
à produção autônoma, favorecidos pelo constante aumento da população dos burgos, gerando
mercado consumidor. O avanço da atividade mercantil demandaria a fabricação de um regime
mais produtivo, e por isso decide-se pela criação de uma ordem laboral racionalizante, que
transborda para diferentes tipos de organizações econômicas, jurídicas e sociais (guildas,
corporações de ofícios, grupos de cidadãos, conjurações, entre outros). Temos aqui um outro
formato weberiano: a dominação não legitima das cidades é, também, uma ação social, na
medida em que se realiza de um agente para outro agente. É uma atitude sobre a qual recai ao
outro um desejo de intercâmbio, de relacionamento, que fabrica o social no tempo. Uma ação
social se constitui como relação quando os indivíduos que interagem compreendem o seu
sentido, posto que a ação empreendida por aqueles que compartilham o sentido tem uma
adesão frente ao poder exercido. Como toda relação social, é determinada não só pelos
resultados para o agente, mas também pelos efeitos (reais ou esperados) que pode causar.
Pode-se concluir que a cidade em Weber é um tipo ideal da dominação não-legítima,
caracterizado pelo seu intrínseco pluralismo e pelo (re)ajuste nas formas de organização da
sociedade com a economia, o direito e o território. A leitura que se vislumbra com as
características da cidade medieval moderna é a da transformação de uma paisagem social, na
qual essa estrutura tão pluralista abriu a possibilidade para que diferentes ordens legais
configurassem, a um mesmo tempo, um contexto positivo, rompendo pouco a pouco com a
ordem feudal e instaurando não só um racionalismo de dominação do mundo, mas,
fundamentalmente, um ethos racional de produção capitalista.
InteratividadeEcce Homo – A cidade, de Pierre Lawrance.Documentário. Canadá, 1999.
Em “Ecce Homo – A cidade” é abordada a história do surgimento da urbanização desde suas
primeiras manifestações até a diversidade de espaços urbanos do mundo atual. O filme é
composto por múltiplas imagens panorâmicas de cidades com diferentes origens, funções e
aspectos, além de documentos históricos que ilustram cidades antigas. Estão presentes trechos
de entrevistas com especialistas variados, como historiadores, sociólogos e urbanistas que
explicam como se deu a formação de diferentes cidades; a relação entre a área urbana e a área
rural; a especificidade da cidade medieval; a dinâmica das cidades que surgiram em
economias industrializadas e aquelas que surgiram em países pobres; o fenômeno do
subúrbio; a dinâmica entre centro e periferia; a aceleração da urbanização; as megacidades; os
problemas sanitários e a poluição nos centros urbanos.