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As edições de Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX de Samuel Schwarz “Minerar o passado dos coirmãos na judiaria portuguesa” (Schwarz, 1993: 9) foi a expressão usada por Ricardo Jorge para descrever o acérrimo trabalho de pesquisa levado a cabo por Samuel Schwarz. De forma semelhante, pretendemos com este pequeno estudo “minerar” a obra de Samuel Schwarz, Os Cristãos- Novos em Portugal no Século XX, de modo a compreender a sua génese, bem como o contexto e as circunstâncias da sua publicação. Para tal, passaremos em revista as diversas edições, traduções e versões da primeira obra de referência sobre criptojudaísmo em Portugal, começando pelas publicações portuguesas não sem, em primeiro lugar, proceder a algumas notas de cariz biográfico. Samuel Schwarz, engenheiro de minas polaco que trabalhou e viveu em Portugal, foi o precursor do estudo sobre criptojudaísmo, em virtude de ter descoberto, em pleno século XX, vestígios de judaísmo nas tradições religiosas das Beiras e de Trás-os-Montes, o que o levou a expor ao mundo uma comunidade de criptojudeus, que se mantinha fiel às suas tradições desde a implementação da Inquisição. Na verdade, houve, antes da publicação do seu estudo, referências a resquícios de criptojudaísmo, mas até então, ninguém tinha compilado de forma tão séria e exaustiva os rituais, tradições e orações dos criptojudeus em Portugal. Segundo Lívia Parnes, (Schwarz, 2015: 26-27), Israel Salomon publicou uma brochura em Nova-Iorque em 1887, dando conta da

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As edições de Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX de Samuel Schwarz

“Minerar o passado dos coirmãos na judiaria portuguesa” (Schwarz, 1993: 9) foi a

expressão usada por Ricardo Jorge para descrever o acérrimo trabalho de pesquisa levado a

cabo por Samuel Schwarz. De forma semelhante, pretendemos com este pequeno estudo

“minerar” a obra de Samuel Schwarz, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX, de modo

a compreender a sua génese, bem como o contexto e as circunstâncias da sua publicação. Para

tal, passaremos em revista as diversas edições, traduções e versões da primeira obra de

referência sobre criptojudaísmo em Portugal, começando pelas publicações portuguesas não

sem, em primeiro lugar, proceder a algumas notas de cariz biográfico.

Samuel Schwarz, engenheiro de minas polaco que trabalhou e viveu em Portugal, foi o

precursor do estudo sobre criptojudaísmo, em virtude de ter descoberto, em pleno século XX,

vestígios de judaísmo nas tradições religiosas das Beiras e de Trás-os-Montes, o que o levou a

expor ao mundo uma comunidade de criptojudeus, que se mantinha fiel às suas tradições

desde a implementação da Inquisição.

Na verdade, houve, antes da publicação do seu estudo, referências a resquícios de

criptojudaísmo, mas até então, ninguém tinha compilado de forma tão séria e exaustiva os

rituais, tradições e orações dos criptojudeus em Portugal. Segundo Lívia Parnes, (Schwarz,

2015: 26-27), Israel Salomon publicou uma brochura em Nova-Iorque em 1887, dando conta

da existência de criptojudeus em Trás-os-Montes (1887). Igualmente, em 1903, na Revista

Jewish Quarterly Review, Leão João Cardozo de Bethencourt, descendente de cristãos-novos,

descreveu rituais e costumes criptojudaicos, referindo-se aos “abafadores” e revelando

excertos de orações (1903: 251-274).

Por sua vez, Nahum Slouschz recolheu informações sobre os cristãos-novos

portugueses e publicou-as na imprensa hebraica da época, tendo sido objeto de uma leitura

atenta da parte de Samuel Schwarz, assim como o foram as obras que iam acabar por dissipar

toda e qualquer dúvida quanto à existência de criptojudeus no século XX em Portugal: A

Invasão dos Judeus de Mário Saa (Saa, 1925) e Memórias Arqueológico-históricas do

Distrito de Bragança do Abade de Baçal (Alves, 1925), que, descrevem costumes e

cerimónias dos criptojudeus, sendo o primeiro fundado em teorias antissemitas, antiliberais e

antirrepublicanas, e o segundo, uma obra marcada pela defesa da tolerância religiosa.

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Nascido a 12 de fevereiro de 1880, em Zgierz, Polonha, Samuel Schwarz, oriundo de

uma família judaica numerosa, estudou no ‘heder’ e no liceu judeu de Łódź. Seu pai, Isucher

Moshe Schwarz, autodidata, estudioso das línguas orientais e da História judaica, possuía uma

biblioteca digna de referência, que constituiu, segundo Lívia Parnes, o centro da Intelligentsia

judaica, numa altura em que a Polónia era um território russo (2015:28).

Como dissemos, Samuel Schwarz formou-se em engenharia de minas e o seu trabalho

levou-o a viajar a África e a Ásia, mas é em Espanha que nasceu o seu interesse pela história

peculiar dos judeus conversos na Península Ibérica, em particular quando tomou

conhecimento da existência dos chuetas (descendentes de cristãos-novos, estigmatizados e

segregados, mas sem tradições religiosas judaicas).

Nessa época, o movimento sionista começou a despontar e sucederam-se vários

congressos, tendo Samuel Schwarz assistido ao décimo primeiro, durante o qual seu pai e seu

futuro sogro, Samuel Barbasch, rico banqueiro sionista, aproveitaram para lhe preparar o

casamento com Agatha.

Agatha e Samuel casaram e mudaram-se para Lisboa em 1914 por Samuel ter aceitado

um posto de trabalho nas minas de volfrâmio e de estanho, respetivamente, perto de Vilar

Formoso e Belmonte. No decorrer do ano seguinte, nasceu a sua única descendente, Clara e,

já nessa altura, Samuel Schwarz era um dos membros mais ativos da Comunidade Israelita de

Lisboa.

Residir em Lisboa permitiu-lhe conhecer personagens de relevo como Carolina de

Michaelis, que estudou a obra de Uriel da Costa, ou António Baião, diretor do Arquivo

Nacional de Portugal, que o terão influenciado no desenvolvimento da sua própria pesquisa,

que germinou quando encetou as suas pesquisas epigráficas no terreno, que merecerão vários

artigos, inquestionavelmente vanguardistas, na revista Arqueologia e História.

Entretanto, durante uma visita à cidade de Tomar em 1921, indicaram-lhe a antiga

sinagoga, uma das últimas em atividade no século XV e, sensivelmente, dois anos depois,

comprou-a e doou-a, em 1939, ao Estado Português com a condição de que aí se estabelecesse

um Museu Luso-hebraico.

Ademais do estudo epigráfico, Samuel Schwarz, aquando da descoberta, em

Belmonte, de uma comunidade cujo criptojudaísmo ainda era tangível, começou a interessar-

se pelas suas tradições, mas não foi fácil ganhar a sua confiança. Com efeito, estava em

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presença de uma comunidade, que tinha recebido dos seus antepassados perseguidos pela

Inquisição, não só rituais e orações, como também o próprio culto do segredo.

Aí começou o périplo de Samuel Schwarz ao coração mesmo de um criptojudaísmo,

difícil de acesso e de tradição oral, e, adotando uma perspetiva comparatista, confrontando

orações oriundas de um processo inquisitorial de uma cristã nova do século XVII com orações

da comunidade de Belmonte e com as recolhidas pelos seus predecessores, provou a origem e

a subsistência do criptojudaísmo até ao século XX, demonstrando a evolução do sincretismo

religioso, inelutavelmente dependente das influências externas mais imediatas, neste caso, do

catolicismo.

As edições portuguesas

Foi nessa altura, em 1925, que Samuel Schwarz resolveu partilhar o resultado das suas

pesquisas e publicou o artigo “Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX”, na Revista

Arqueologia e História, em que descreveu pormenorizadamente as tradições e os rituais dos

criptojudeus de Belmonte e revelou ao público as suas orações, transmitidas de geração em

geração.

No decorrer do mesmo ano, é publicada a separata homónima da referida revista

igualmente sob a égide da Associação dos Arqueólogos Portugueses, tendo tido dois

depositários distintos: a Livraria Universal de Armando J. Tavares e a Empresa Portuguesa de

Livros, ambos radicados em Lisboa.

Apesar de ter sido impressa com base no artigo já mencionado, a referida edição

contém elementos paratextuais que não existiam anteriormente. De facto, antes da página de

título, é mencionado um excerto de uma carta recebida de Max Nordau (cofundador com

Herzl do Congresso Sionista Mundial), em que expressa a confiança que tem na pesquisa de

Schwarz e a certeza de que esta terá um bom fim. É patente, seguidamente, uma dedicatória à

memória do seu sogro, Samuel Barbasch, orlada de negro, acompanhada da oração “Deus vos

salve lá passado”, parte integrante da liturgia fúnebre criptojudaica.

Ainda surge outra dedicatória, desta vez à memória de todos os que foram perseguidos

pela Inquisição, evocando alguns mártires e elogiando a sua veemente fé judaica, que nem a

ameaça das chamas fez abjurar. Aí refere a visão alegórica da “sarça ardente” que teve Moisés

junto do Monte Horeb, comparando-a com a fé judaica que, à sua semelhança, não é

consumida pelo fogo, remetendo para a revivescência da fé dos cristãos-novos portugueses,

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herdada dos seus antepassados como se os mesmos tivessem sido “ressuscitados das fogueiras

da Inquisição” (1993: 4).

A referida edição teve o contributo do Dr. Ricardo Jorge (1858-1939), personalidade

influente da época, médico, professor e investigador, que desempenhou funções de relevo na

Administração Pública. Ricardo Jorge escreveu o prefácio “Pro Israel”, cujo objetivo era

contextualizar a obra, começando por referir-se à maior visibilidade do judaísmo em Portugal,

evocando, também ele, a sarça ardente do Monte Horeb e o “Leão de Judá” que nunca “alçou

tanto as falcadas garras e sacudiu com tanta altivez a juba (…)” (Schwarz, 1993: 5), como

símbolos desse ressurgimento.

Igualmente, recorda a preponderância do judaísmo na economia e nas ciências,

explicada não só pela história, mas pelo “dom da mentalidade, como se o judeu medisse o

estalão mais avançado da capacidade cerebral” (Schwarz, 1993: 5). De facto, afirma que, em

proporção, existem mais homens de talento entre os judeus do que entre qualquer outro povo,

fundindo e confundindo conceitos tão diferentes como o podem ser a religião e a

nacionalidade.

Do mesmo modo, recorda o recrudescimento da “judiofilia” nas literaturas europeias e

americanas, especificando o caso da “escassa” literatura portuguesa, que devido ao seu

passado obscuro, “tem os judeus que merece” (1993: 7). Desta forma, Ricardo Jorge relembra

que, apesar de os cristãos-novos terem sido perseguidos e muitos deles terem sido obrigados a

fugir, “na judiaria peninsular luziram a sabedoria e o génio” (1993: 8), que inevitavelmente

foram transferidos para outros países, designadamente, para a Holanda onde foi erigida a

notável Sinagoga de Amsterdão de rito sefardita.

Terminando o seu raciocínio respeitante à distinção do povo judeu, acaba por referir

alguns portugueses ilustres, que abordaram nas suas obras a temática do judaísmo: Mendes

dos Remédios, António Baião, Lúcio de Azevedo, Carolina de Michaelis e Camilo Castelo

Branco, entre outros.

Quanto à questão “racial” Ricardo Jorge continua, dizendo que ele próprio “a l’air

d’un rabbin” (1993: 8), referindo o seu “aspecto judaico” e insistindo no facto de que em

Portugal “raro falha costela de judeu ou de frade” (1993: 9). Por isso, acrescenta, o

antissemitismo, particularmente em Portugal, “é simplesmente uma idiotia” (1993: 9).

No que respeita à obra de Samuel Schwarz, como vimos, Ricardo Jorge, faz uso do

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verbo “minerar”, estabelecendo assim um paralelo entre a sua atividade profissional de

engenheiro de minas e a sua descoberta, comparando-a com o “descobrimento de veios

ignorados de minério rico” e qualificando-a de “fóssil velho de Portugal ressurgido em carne

e espírito” (1993: 9). De facto, apesar de estigmatizado, segregado e confinado à

domesticidade, o criptojudaísmo permaneceu, comprovadamente desde a Inquisição, e

desenvolveu-se, absorvendo práticas populares cristãs, emergindo do ostracismo a que tinha

sido votado, graças a Samuel Schwarz.

Para terminar, Ricardo Jorge adota um tom conciliador, criticando os diferendos entre

credos religiosos e relembrando que o Judaísmo é a mãe das restantes religiões abraâmicas,

destacando a conexão que inelutavelmente existe entre judaísmo e cristianismo pela figura de

Jesus Cristo, “educado na adoração do livro santo” (1993: 11). E se todos procedem da

mesma mãe, é tempo que, por um lado, os irmãos dos cristãos- novos os tragam de volta para

“o redil da comunidade de que a força e o terror os apartaram” (1993:12) e que, por outro

lado, o sincretismo religioso existente entre as diferentes religiões coloque um ponto final nos

conflitos.

Quanto ao livro em si, na introdução, em jeito de nota prévia, Samuel Schwarz explica

brevemente a origem da palavra “marrano”. Mas, a sua teoria será refutada entretanto por

vários estudiosos, que atribuirão a origem da palavra a ‘mar-anuss’, isto é “convertido à

força”, e não a ‘mareh-ain’, como o afirma o autor, “para a vista”, conforme a teoria de

Isucher Schwarz, seu pai.

Nas “Considerações Gerais”, Samuel Schwarz tece uma retrospetiva da situação dos

judeus e cristãos-novos em Portugal, referindo o ‘pogrom’ de 1506, o estabelecimento da

Inquisição e o seu término, sempre com uma grande carga emocional, recordando as

atrocidades de que foram vítimas ao longo do tempo. Porém, sabemos com certeza que os

cristãos-novos não pereceram, na medida em que o seu número aumentava de ano para ano

graças aos casamentos com cristãos velhos, mas também devido à estigmatização de que

sofriam. De facto, eram “catalogados” como filhos, netos, bisnetos de cristãos-novos, etc.,

tendo a perseguição tido um efeito inverso ao esperado (ou não).

Por isso, o encontro de Samuel Schwarz em pleno século XX com cristãos-novos, que

ainda conservavam “intacto o sentimento da religião e da nacionalidade israelita” (1993: 19),

apesar de saber-se que muitos não tinham a noção de que existia uma Terra de Israel, foi

completamente inesperado.

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Se existe um aspeto que marcou Samuel Schwarz foi com certeza a persistência da

memória destes cristãos-novos de Belmonte, mantida ao longo dos séculos graças ao

secretismo, inerente às suas práticas religiosas e vida quotidiana, como se ainda pudessem ser

perseguidos pela Inquisição.

Na segunda parte, “Shema Israel”, Samuel Shwarz recorda as circunstâncias em que

começou a relacionar-se com os cristãos-novos e refere-se a Belmonte como sendo o “centro

judaico ‘par excellence’” (1993: 21), dado a sua comunidade já existir no século XIII,

apontando como prova tangível da sua longevidade uma inscrição hebraica encontrada numa

lápide de granito, no Museu Municipal de Castelo Branco, que terá pertencido à antiga

sinagoga, tal como o relata no seu livro Inscrições Hebraicas (1923). Assim, conta como foi

difícil ganhar paulatinamente a confiança dos membros da comunidade, na medida em que a

ortodoxia religiosa de Schwarz pouco ou nada se coadunava com as práticas criptojudaicas,

cujas orações eram rezadas em português, pois o hebraico já tinha sido esquecido há muito,

devido às perseguições a que os cristãos-novos eram sujeitos.

Samuel Schwarz recorda ternamente o dia em que o reconheceram oficialmente como

um dos seus, numa passagem de cunho romântico, equiparando a Serra da Estrela, qual Monte

Sinai, banhada de luz, ao ‘locus amoenus’. Nesse dia, anuindo ao pedido de uma das anciãs de

Belmonte, recitou a oração ‘Shemah Israel’ (Ouve Israel..), profissão de fé do monoteísmo

judaico, e, ao pronunciar a palavra ‘Adonai’, as mulheres taparam os olhos com as mãos,

mostrando inequivocamente que a reconheciam. Foi nesse momento que os criptojudeus de

Belmonte lhe abriram as suas portas e o aceitaram como correligionário, autorizando-o a

assistir às suas cerimónias e a recolher as suas orações, que lhe facilitariam o contacto com

criptojudeus de outras povoações da Beira Interior e de Trás-os-Montes. De facto, foi a

recolha de orações que deu o mote à prossecução dos seus estudos, que demonstrariam que a

Nação Judaica é “imperecível”, que o Judaísmo é “imortal” e os criptojudeus são disso a

prova viva.

Na terceira parte, consagrada aos ritos e costumes judaicos dos cristãos-novos, o autor

aborda brevemente questões inerentes à onomástica judaica, assim como refere práticas do

judaísmo que tiveram que ser abandonadas ou substituídas por outras como o degolamento

ritual dos animais e a circuncisão, devido ao facto de serem difíceis de dissimular.

Paralelamente, evoca rituais e cerimónias que se mantiveram: o ‘Shabat’, o ‘Pessah’ e o

‘Kippur’, assim como as cerimónias respeitantes ao casamento, ao luto, ao enterro, aludindo

também às orações e a algumas regras de alimentação.

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Do mesmo modo, com o intuito de valorizar o alto nível intelectual dos cristãos-novos,

enumera alguns intelectuais que contribuíram para o desenvolvimento da ciência em Portugal

e no estrangeiro, assim como deita por terra as alegações dos “detratores” que afirmam que os

judeus “não servem para a nobre arte da guerra, nem para a pacífica labuta agrícola…” (1993:

35).

No que diz respeito às orações, às quais consagra um subcapítulo, Samuel Schwarz

recorda que algumas derivam diretamente da liturgia judaica, tendo sido traduzidas

posteriormente e tendo, por esse motivo, várias versões devido à especificidade de cada

tradutor. Do mesmo modo, existe um segundo tipo de orações, cuja origem já não é a liturgia

hebraica, mas as composições poéticas peninsulares muito semelhantes aos ‘piutim’ (poesias

litúrgicas hebraicas). Aliás, Samuel Schwarz assevera que, como prova disso, subsistem

algumas palavras hebraicas nas orações recolhidas, apesar de surgirem muitas vezes

adulteradas e de a comunidade criptojudaica não conhecer o seu significado. Tomemos como

exemplo disso, uma frase de um dos manuscritos recolhidos por Schwarz: “Adunai Sabaat

Malcolares; Cobrado…”. Na verdade, a frase transliterada como segue “Adonai Sebaot, Male

col haares quebodo”, é oriunda da liturgia hebraica e significa: “Deus Omnipotente, cuja

honra enche toda a terra” (1991:38).

No que respeita aos vestígios dos cânticos litúrgicos judaicos, os mesmos terão

desaparecido por completo à exceção de uma oração cantada, inspirada no Cântico de Moisés,

cuja música é transcrita na íntegra no livro.

Por fim, existem orações “que denotam vestígios duma certa influência do ambiente

católico” (1993: 40), estando em causa, na verdade, mais do que meros vestígios. De facto,

existe um verdadeiro sincretismo religioso, dado a forte presença do catolicismo na vida da

comunidade, que, durante anos, foi obrigada a cumprir o rito católico por medo de levantar

suspeitas. Mas, é provável que o autor, adotando um tom mais apologista, não quisesse que os

criptojudeus parecessem demasiado católicos, já que esse fator poderia condicionar a sua

aceitação junto dos seus irmãos judeus e, por conseguinte, dificultar o seu regresso à fé

judaica. Como exemplo disso, Schwarz, referindo-se à Páscoa, assegura que, apesar de alguns

ritos dos cristãos-novos não existirem nas cerimónias judaicas, as suas tradições pascais são, à

semelhança dos judeus ortodoxos, uma comemoração da “fundação da raça hebreia” (1993:

47).

De igual modo, refere, num segundo subcapítulo, algumas festividades e jejuns dos

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cristãos-novos, que já indicámos acima, e evoca certas práticas intimamente cristãs-novas

como a preparação do pão ázimo, no terceiro dia da Páscoa, a abstenção de carne durante a

totalidade dessa festividade, a recitação da “Oração da Água”, junto de um riacho,

reminiscência do episódio da travessia do Mar Vermelho, assim como outras que se perderam

no tempo: a “festa das cabanas”, o rigor do ‘Shabat’ e a festa do ‘Purim’ (substituída pelo

jejum da rainha Ester).

Para terminar o estudo relativo aos ritos e costumes dos cristãos-novos, Samuel

Schwarz, num terceiro e último subcapítulo, menciona as tradições matrimoniais e fúnebres

dos criptojudeus, referindo a sua tendência endogâmica, vestígio da segregação imposta aos

cristãos-novos; a simplicidade inerente às suas celebrações fúnebres, herdada da tradição

judaica e a beneficência, por ocasião dos funerais e durante o primeiro ano de luto. A esse

respeito, Schwarz considera que a solidariedade judaica, sendo uma das “virtudes dos

cristãos-novos” (1993: 49), terá sido o fator que lhes permitiu resistir a séculos de Inquisição.

E alguns dos cristãos-novos, na sua “simplicidade rústica” crêem que são judeus porque se

“ajudam” mutuamente (1993: 49).

Ainda antes dos anexos, numa pequena “Nota Final”, Samuel Schwarz refere-se à

lenda dos “abafadores”, porque, inverosimilmente, se deparou com alusões à mesma por

“certos autores de crédito”, na imprensa da especialidade, conferindo-lhe assim certa

“aparência de verdade” e sente que não pode terminar o seu livro sem restabelecer a verdade

(1993: 50).

De facto, segundo a lenda, os “abafadores” ou “afogadores” eram homens

encarregados de sufocar os moribundos, antes da chegada do padre, de maneira a que não

confessassem “in articulo mortis” o seu judaísmo. Mas Schwarz, após consultar António

Baião e o livro Sentinela Contra Judeus de Torrejoncillo, chegou à conclusão de que essa

lenda era relativamente recente, pois não encontrou qualquer vestígio da mesma nem no

referido livro nem nos processos da Inquisição. Provavelmente, serão responsáveis pela sua

propagação tanto o antissemitismo como o culto do segredo dos criptojudeus, que na hora da

morte, para que pudessem ser praticados os rituais fúnebres longe dos olhares inquisidores,

expulsavam de casa quem não pertencia à sua comunidade.

Os anexos são constituídos por três apêndices: o primeiro contendo a documentação

gráfica (várias fotografias de cristãos-novos, em particular do Cap. Artur Carlos de Barros

Basto; imagens de Belmonte; uma fotografia da inscrição hebraica pertencente à antiga

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sinagoga de Belmonte e uma oração manuscrita). No segundo apêndice, são transcritas as 76

orações recolhidas pelo autor, com as respetivas variantes, divididas em orações quotidianas,

orações de festas judaicas e orações diversas. Segue uma adenda composta por orações

recolhidas em Trás-os-Montes por Mário Saa, que Schwarz compara com as que recolheu nas

Beiras. No último apêndice, o autor agrupa uma série de documentos oriundos do Processo

nº4427 de Brites Henriques na Inquisição de Lisboa, em 1674, de modo a poder, aqui

também, tecer uma comparação com as orações que ele próprio recolheu. É notável a

preocupação etnográfica no tratamento das orações, que o leva a comparar as diversas versões

entre si, provando, assim, pela desconstrução dos textos, e reconstrução da própria história

dos criptojudeus, a sua incontestável ascendência judaica.

No que concerne à segunda edição do livro, da responsabilidade do instituto de

Sociologia e Etnologia das Religiões da Universidade Nova de Lisboa em 1993, pelo qual nos

temos regido (já que só conseguimos ter acesso à primeira edição do livro em microfilme ou

em suporte digital), apesar de o livro ser uma “reprodução exata da edição original datada de

1925”, na verdade, trata-se de uma cópia e não de um fac-simile. Com efeito, são patentes

algumas divergências tipográficas quanto à ordem dos paratextos: a dedicatória a Samuel

Barbasch aparece anteposta à citação de Max Nordau; à pontuação: embora quase idêntica na

transcrição das orações, nem sempre é fiel ao original; à configuração do próprio texto, em

virtude de a paginação ser totalmente distinta e de existir um cabeçalho na edição de 1993

inexistente na anterior.

No que respeita à capa e à contracapa, as mesmas contêm ilustrações de Laura Cesana

e, também na contracapa, figura uma citação do Livro da Sabedoria (cap. 6, vers. 12-21).

A novidade desta edição consiste no seu desígnio informativo, já que na primeira

orelha, existe uma pequena biobibliografia do autor e, no seguimento da ficha técnica, é

patente uma reprodução a cores do retrato de Samuel Schwarz, da autoria do seu irmão

Marek. Por fim, surgem dois prefácios bastante elucidativos quanto à história dos cristãos-

novos, o primeiro de António Valdemar e o segundo de Moisés Espírito Santo.

António Valdemar (1938), jornalista, investigador e coordenador do Suplemento Artes

e Letras do Diário de Notícias até 2007, refere no seu prefácio “Os Estudos Luso-Judaicos de

Samuel Schwarz” as medidas pombalinas que ditaram o fim da Inquisição em Portugal, e,

assim, possibilitaram a emergência da literatura filossemita dedicada à valorização do legado

filosófico e científico de figuras ilustres do judaísmo como Garcia da Orta, Abraão Zacuto,

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Leão Hebreu, entre outros. Segundo Valdemar, o judaísmo como objeto de estudo é uma fonte

“inesgotável” e tem despertado a atenção da comunidade científica, em particular de

historiadores, antropólogos e paleógrafos.

Valdemar evoca ainda brevemente o percurso de Samuel Schwarz, referindo algumas

das suas obras, salientando a sua valiosa contribuição para o estudo do criptojudaísmo,

desmontando preconceitos e clarificando dúvidas, mas também para a dilucidação de alguns

lapsos da História de Portugal. Como exemplo disso, Schwarz contrariou a tese segundo a

qual o casamento de D. Manuel I com D. Isabel de Aragão seria anterior ao decreto de

expulsão. A esse respeito, Valdemar nota “que a emigração dos judeus, ao contrário do que

afirmaram Herculano, Mendes dos Remédios e Lúcio de Azevedo não tem relação direta com

o casamento de D. Manuel com Isabel a Católica” (1993: VII), ao passo que Schwarz

demonstrou que o “moço rei foi, de certo modo, coagido pelos reis católicos de Castela, que

só após a publicação do decreto em questão, consentiram no casamento com sua filha D.

Isabel (…)” (1993: 17).

Valdemar, numa condensada e clarificadora retrospetiva, passa em revista os

contributos dos escritores judaizantes e não judaizantes filossemitas que, ao longo dos

tempos, enriqueceram a investigação na área do marranismo.

Quanto ao caso específico de Belmonte, Valdemar refere que “só com a liberdade

reconquistada, em 25 de Abril, os judeus de Belmonte alcançaram personalidade jurídica para

a sua comunidade” (1993: VII), embora só tenham realmente existido desígnios de fundar a

comunidade a partir do fim dos anos 80.

No seu prefácio, dividido em sete partes (tantas quantos os braços da “menorah”, as

pragas do Egipto ou os dias da criação), Moisés Espirito Santo (1934), sociólogo e etnólogo,

começa uma riquíssima retrospetiva histórica dos primórdios do judaísmo até ao

criptojudaísmo contemporâneo, evocando as tribos hebraicas e a sua fidelidade à religião, que,

na sua opinião, sempre constituiu o fator de coesão do povo, mais do que a identidade étnica.

Na verdade, devido às viagens fenícias, ao Império Cartaginês, ao exílio, decorrente de

expulsões ou deportações, com a subsequente implantação de colónias e fenómenos de

aculturação, a Diáspora, pedra basilar da identidade judaica, teve lugar “em toda a Bacia

Mediterrânica, no Magrebe e na Europa até às Ilhas Britânicas” (1993: XI).

É na altura do exílio de Babilónia que se começa a desenvolver o proselitismo no

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sentido de não só “curar os gentios politeístas da sua cegueira”, mas de pregar, como Isaías,

“que ‘Yaweh’ é o único Deus e que Israel tem a missão de o revelar a todas as nações” (1993:

XI).

Moisés Espírito Santo explica o que é na verdade, um judeu, dizendo que, não se

distingue em nada do lisboeta ou do beirão, daí ser imprescindível acabar com os estereótipos,

porquanto um judeu é simplesmente um “aderente ou praticante da religião do Antigo

testamento (…). Mais nada” (1993: XV). E se nós, portugueses, nos assemelhamos a judeus

por termos uma “origem comum, semita e mediterrânica”, “também nos assemelhamos aos

Berberes marroquinos islâmicos, aos Gregos ortodoxos, aos Italianos católicos, aos Libaneses

maronitas, etc.”, sendo a nossa costela judaica, na verdade, uma “costela fenícia (e hebraica),

cartaginesa e berbere” (1993:XVI).

Quanto à cultura judaica, Espírito Santo assevera que “as grandes viragens da

Humanidade e da Ciência têm por autor um judeu” (1993: XVI), especificando que o

Monoteísmo, o Cristianismo, o Capitalismo, a Economia moderna, o Socialismo, a Psicologia

e a Física são obras de judeus porque a criatividade judaica assenta na autonomia individual

para a qual são preparados desde cedo.

Na sétima e última parte do seu prefácio, Moisés Espírito Santo surpreende o leitor

com uma série de exemplos de “judaísmo disfarçado de cristianismo”. Com efeito, desafiando

qualquer teólogo (literalmente), relembra que não existem em Portugal nas tradições

populares festividades ou referências ao “Senhor ressuscitado” (1993: XX), que Jesus Cristo é

visto como se fosse um santo como outro qualquer e não como sendo filho de Deus, prova da

reminiscência do judaísmo secreto. Do mesmo modo, garante que a Quinta-feira de Ascensão,

(celebrada desde o século XII a.C.) alude à ascensão de Moisés ao Monte Sinai e não à

ascensão de Jesus aos céus.

Prossegue dizendo que o culto de Maria, ausente por completo do Antigo Testamento,

não é mais do que uma herança dos cultos pagãos e que o culto do Espírito Santo, assim como

o messianismo português são genuinamente judaicos.

Termina afirmando que “o catolicismo português se judaizou ao longo dos séculos” e

que “permanece semitizante”, portanto, não é de admirar que, no fundo, tenhamos tanto de

“judeu velho” como de cristão-novo (1993: XXI-XXII).

À semelhança da primeira edição, a segunda termina com o índice, verificando-se o

Page 12:  · Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral,

mesmo na terceira edição, publicada na Coleção Judaica (cujas obras são enumeradas no fim

do livro) pela Editora Cotovia em 2010. No que respeita aos paratextos, excetuando o índice,

imediatamente após a página de título, os mesmos seguem a ordem da edição anterior com a

seguinte diferença: na página de guarda existe um pequeno resumo do intuito da referida

coleção e na folha de rosto, o editor contextualiza a pesquisa de Schwarz no âmbito do

filossemitismo emergente entre finais do século XIX e princípios do século XX.

Do mesmo modo, na terceira edição, são referidas na ficha técnica as duas edições de

1925 e 1993, mas, não apresentando nenhuma novidade relativamente às anteriores, diremos

somente que, por ser de capa dura e por ter caracteres maiores, a leitura desta terceira edição

torna-se mais agradável.

As edições estrangeiras

Ainda em 1924, antes da primeira publicação de Os Cristãos-Novos em Portugal no

Século XX, Samuel Schwarz publicou em Varsóvia na revista Illustrirte Woch dois artigos em

Yiddish dando conta da sua descoberta: “Anussim in Portugal” e “Die Farbleibene Anussim”.

Em Florença, em 1925, Schwarz publicou na revista La Rasegna Mensile di Israel,

três artigos em italiano: “I Marrani del Portogallo” que correspondem ao corpo do livro sem

os anexos, porém, pelo que averiguamos, não constituem uma tradução completamente fiel ao

original e o texto termina antes da parte dedicada às orações.

Aludimos também aos onze artigos publicados em hebraico por Schwarz entre 1925 e

1926, em Varsóvia, na revista hebraica Hayom, assim como ao livro Haanoussim Be Portugal

de Nahum Slouschz, no qual foi citado um excerto considerável do livro de Schwarz e foram

traduzidas algumas orações.

Em Nova Iorque, Schwarz publicou os artigos “ The Crypto Jews of Portugal” no

Menorah Journal, em 1926, articulados em 1999 na revista Shofar: an Interdisciplinary

Journal of Jewish Studies, publicada no Estado de Indiana nos Estados Unidos. É de referir

que os artigos seguem a estrutura da obra (sem anexos) e completam-na, patenteando no

corpo do texto exemplos de orações, o que não se verifica na obra original.

Por fim, na revista Judaica editada em Buenos Aires, Schwarz publicou em 1944 o

artigo “La Pascua entre los cristianos nuevos de Portugal”.

No que concerne à tradução hebraica da obra, publicada em 2005 pelo Centro Dinur

para a Investigação da História de Israel, introduzida, anotada, comentada e traduzida pelo

Page 13:  · Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral,

historiador e especialista no fenómeno marrano, Claude Stuczynski (1966) da Universidade

Bar Ilan, podemos dizer, com as limitações intrínsecas a um leitor (ainda) não-hebraizante,

que a configuração do livro é bastante distinta da original. Com efeito, a obra contém duas

reproduções do mapa de Portugal (uma em cada guarda) sinalizando as cidades mencionadas

na obra, seguido da página de título, da ficha técnica, de uma fotografia de Samuel Schwarz,

do índice e do prólogo assinado por Yom Tov Assis, Professor da Universidade de Jerusalém.

Segue-se a introdução de Claude Stuczynski (p.11-75), acompanhada da respetiva

bibliografia, a que sucede o livro objeto do nosso pequeno estudo, obedecendo à ordem

original dos elementos paratextuais, embora com uma grande diferença, que constitui uma

novidade relativamente às restantes edições: a ausência do prefácio do Dr. Ricardo Jorge.

No corpo do texto, pudemos apurar que o tradutor mesclou os seus comentários e

anotações com os de Schwarz, de modo a complementar a informação e a esclarecer as

referências às obras e aos autores citados no texto original. No seguimento do corpo do texto,

surgem os anexos, bem como as orações e a respetiva tradução levada a cabo por Schulamith

Halevy, não tendo sido mencionada devido a “circunstâncias” editoriais, segundo o que a

própria nos revelou.

Após os referidos apêndices, surgem as anotações de Claude Stuczynski relativas aos

anexos, seguidos de uma bibliografia, que, se a tradução não nos falha, atém-se a ensaios de

investigação histórica.

Finalmente, em 2015, João Schwarz da Silva, neto de Samuel Schwarz, transmitiu às

Edições Chandeigne, uma versão francesa de Os Cristãos-Novos no Século XX, do punho do

seu avô, que, infelizmente, nunca teve oportunidade de publicar em vida. Assim, o livro foi

editado na Coleção ‘Péninsules’ com um título de capa divergente do original: La Découverte

des Marranes (A Descoberta dos Marranos). Na página de título, surge um subtítulo mais

próximo da edição original: Les Crypto-juifs au Portugal, no entanto, perdeu-se a referência

temporal, por opção de Schwarz, que substituiu cristãos-novos por “cripto-juifs” (Schwarz,

2015: 21), já que, segundo Lívia Parnes, se os leitores portugueses estavam mais habituados

ao primeiro termo, o público francês deveria familiarizar-se com o segundo. De facto, cremos

que o mesmo é mais adequado à realidade, já que, por um lado, o termo “cristão-novo” foi

abolido no fim do século XVIII, e, por outro, os criptojudeus consideravam-se completamente

judeus.

No que concerne à palavra “marrano” e à relegação do título a subtítulo, a editora

Page 14:  · Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral,

Anne Lima revelou, na conferência de apresentação do livro, que o vocábulo em questão foi

escolhido por ter um caráter mais genericamente abrangente.

Esta edição francesa, como vimos, bastante diferente da original, a começar pelo título

pertence à ‘Collection Péninsules’, tendo, na primeira orelha, uma referência à coleção, na

segunda, a listagem das respetivas obras e na contracapa, um resumo do livro.

Nathan Wachtel (1935), antropólogo e historiador francês, encarregou-se de redigir o

prólogo, no qual evoca o caráter fenomenal da descoberta de Schwarz cujas conclusões, no

que toca às orações são elucidativas, menos no que concerne à “Oração da Formosura”. De

facto, Schwarz retoma a especulação cabalística do erudito Abraão Ibn Ezra quanto à

proveniência do número 73 patente na primeira frase: “Em honra e louvor dos setenta e três

nomes do Senhor seja…”. Após a soma dos números a que correspondem as letras do

tetragrama ‘Yaweh’, o valor encontrado deveria ser 72 e não 73, deturpação que atribui às

vicissitudes inerentes à transmissão oral. Contudo, como o sublinha Wachtel, seria

improvável que os cripto-judeus tivessem tido conhecimento dessa tradição cabalística.

Ademais, a mesma oração, recitada por Brites Henriques, no decorrer do seu processo, no

século XVII, não a refere. Logo, devido ao sincretismo religioso comprovado pelo autor,

poder-se-ia atribuir a referência aos 73 nomes do Senhor a uma corruptela, assentando numa

interferência cristã relativa à coroa de Jesus (que teria 72 espinhos).

Nathan Wachtel reconhece que existe neste livro uma grande carga emocional paralela

à abordagem científica e etnográfica, herdada do modelo dos países da Europa Central e

Oriental, em que a afirmação da consciência nacional era uma questão de vida ou de morte.

Com efeito, Samuel Schwarz expõe os criptojudeus e rompe com a obrigatoriedade do

segredo com o intuito de salvaguardar o património cultural. Desígnio semelhante existia no

Livro da Memória, o Khurbn Proskurov, orlado de negro, que relatava os massacres

perpetrados na Ucrânia após a primeira guerra mundial. E não é por acaso que a dedicatória a

Samuel Barbasch está igualmente marginada de negro.

Às interessantíssimas reflexões de Nathan Wachtel, sucede a Introdução a cargo de

Lívia Parnes, historiadora, que contextualiza os trabalhos de Schwarz, em plena emergência

do movimento sionista, tece uma comparação entre as duas versões nas notas de edição e

empreende uma biografia esclarecedora e completa de Samuel Schwarz (em que nos

apoiámos nas notas biográficas), recorrendo a documentos gráficos diversos.

Lívia Parnes nota que Schwarz, na versão francesa, não só acentua o caráter urgente da

Page 15:  · Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral,

publicação das orações, como também observa que a assimilação cultural é iminente, fruto do

ceticismo vigente (2015: 37). Do mesmo modo, evoca a razão de Schwarz, cujo objetivo é,

“defender” os marranos, contra toda a sorte de preconceitos porque, desde sempre, deram

valiosos contributos a Portugal, contributos que Schwarz alonga na versão francesa. Lívia

Parnes crê que a abordagem apologética que caracteriza a obra se deve a questões ideológicas

e salienta que certos detalhes das tradições criptojudaicas foram deliberadamente omitidos por

Schwarz para não chocar os leitores: os jogos de cartas entre as diferentes orações do dia

durante o ‘Kippur’ (ausentes de ambas versões) e o uso de valores aproximativos, exagerados

e divergentes, de uma versão para a outra, no que concerne aos números de criptojudeus na

Covilhã (10000 pessoas na versão portuguesa e 10000 famílias na francesa).

Como dissemos, Lívia Parnes elabora uma retrospetiva da vida e obra de Schwarz

(fundamental para a contextualização da obra), como também evoca os estudos anteriores aos

do autor sobre criptojudaísmo, as origens da Comunidade Israelita de Lisboa e dedica uma

parte da sua análise à “Obra do Resgate”, dirigida por Artur Carlos de Barros Basto, referindo

os desentendimentos entre este e Samuel Schwarz por questões ideológicas. Na verdade, o

proselitismo do primeiro acabou por afastar o segundo, o que o levou a abandonar a Obra por

completo e a dedicar-se a trabalhos de pesquisa e de tradução.

Já no corpo do livro, surge o prefácio, solicitado por Schwarz a Israel Levi (1856-

1939), Grão-Rabino de França de 1920 a 1939, no qual sobressai a sua admiração pela

coragem dos criptojudeus e pelo trabalho do autor, que permitiu resgatar “un glorieux passé”

(2015: 60). E é curioso que, já nessa altura, há quase cem anos, o rabino tenha tido uma

antevisão tão profunda da relevância do estudo de Schwarz para as pesquisas futuras.

Ademais, no pequeno prefácio, sem ter noção disso, estabelece um interessantíssimo paralelo

entre o costume criptojudeu de passear à beira-rio durante as festividades de ‘Pessah’, batendo

na água de um riacho com ramos e uma tradição semelhante dos judeus do Magreb,

sustentando, assim, a teoria de Stuczynski, segundo a qual, existe inequivocamente uma

conexão entre a Diáspora e o marranismo. Vínculo, esse, que, segundo Lívia Parnes, Schwarz

sempre minimizou por razões apologéticas e ideológicas (2015: 36).

No final do seu prefácio, Levi demonstra certa preocupação no que respeita ao destino

dos criptojudeus, mas refere que as circunstâncias são favoráveis ao seu regresso ao judaísmo,

graças à preciosa colaboração de Schwarz, e ao facto de poder aplicar-se, nestas

circunstâncias particulares, um proselitismo excecional porque, no fundo, nunca deixaram de

ser judeus.

Page 16:  · Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral,

Quantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém

o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral, mais

completa e detalhada, contém menos anotações do autor e fornece uma informação mais

pormenorizada, parecendo constituir um ‘upgrade’ da versão portuguesa.

Na verdade, podemos referir que Samuel Schwarz, perante um público, que não fala

português e que não domina a História de Portugal demonstra, nesta versão, o firme propósito

de esclarecer o leitor. Por isso, é minucioso na contextualização da história dos cristãos-

novos, bem como na apresentação das suas tradições criptojudaicas, chegando, por exemplo, a

resumir e traduzir os ritos judaicos confessados pela jovem Brites Henriques. Ademais,

cremos que esta versão era destinada a um público conhecedor do judaísmo, a julgar pela

presença de palavras hebraicas e referências a tradições judaicas ortodoxas sem qualquer

tradução.

Por sua vez, a estrutura da obra não é exatamente idêntica, na medida em que foi

incorporado um terceiro capítulo (subdivisão do segundo capítulo original), intitulado “Noms

et professions des nouveaux-chrétiens: aperçu historique”, bem como um mapa sinalizando as

povoações em que existia uma comunidade marrana, no princípio do século XX. Notamos

aqui o regresso à primeira opção no que respeita à terminologia usada para designar os

criptojudeus.

Relativamente às novidades trazidas por esta versão, para além das já indicadas,

podemos referir o acréscimo de um glossário onomástico e topográfico, uma bibliografia

muitíssimo completa, contendo, não só obra de Schwarz, mas também outros livros

consagrados ao estudo do marranismo, as notas de edição, até aí só existentes na tradução

hebraica, e um índice das orações. No que respeita às orações propriamente ditas, a versão

francesa contém não só a tradução integral das mesmas, como também do excerto do processo

inquisitorial de Brites Henriques.

Desta viagem no tempo que empreendemos pelas edições da obra de Samuel Schwarz,

para além do que já foi dito da especificidade, da relevância e do caráter pioneiro deste livro,

único no seu desígnio de reimplantar nos criptojudeus o judaísmo autêntico, herdado dos

antepassados, mártires, heróis ou sábios, é de salientar o uso da antropologia histórica como

ferramenta de recuperação da memória, indispensável, não à construção da sua identidade,

porque existe, de facto, uma identidade criptojudaica plena e complexa, mas ao alcance da sua

completude.

Page 17:  · Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral,

Schwarz, cuja descoberta foi bafejada pela sorte, vivia num contexto sociopolítico

propício ao ressurgimento do marranismo, mas também fatidicamente favorável ao apogeu do

antissemitismo. Cremos veementemente que tinha que ser ele, esse homem fora do vulgar,

visionário, sonhador e erudito, o revelador do criptojudaísmo. Com efeito, quem mais teria a

sensibilidade e o conhecimento adequados ao resgate de uma comunidade perdida no tempo,

incentivando-a a redescobrir-se, num clima de reconstrução da esperança? E a alma do

messianismo é essa mesma esperança (presente em cada oração que recolheu e na ‘Shema

Israel’ que recitou) que nunca morreu, apesar dos obstáculos, apesar de desistir do seu projeto.

Na verdade, foi transferida para Tomar, para a sua biblioteca, para o “seu” museu, num

desejo, tornado utopia, de manter a todo o custo o seu património, templo da sua identidade.

Sandra Fontinha

BIBLIOGRAFIA

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_, 2005, The New-Christians in Portugal in the 20th Century (traduzido, introduzido e anotado por Claude B. Stuczynski), Centro Dinur para a Investigação da História de Israel, Jerusalém. _, 2010, Os Cristãos Novos em Portugal no Século XX, Cotovia, Col. Judaica, Lisboa.

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SLOUSCH, Nahum, 1932, Haanoussim bePortugal, Dvir, Tel-Aviv.