Métricas que os grandes vendedores seguem para mensurar seus resultados
· Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o...
-
Upload
nguyenhuong -
Category
Documents
-
view
216 -
download
0
Transcript of · Web viewQuantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém o...
As edições de Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX de Samuel Schwarz
“Minerar o passado dos coirmãos na judiaria portuguesa” (Schwarz, 1993: 9) foi a
expressão usada por Ricardo Jorge para descrever o acérrimo trabalho de pesquisa levado a
cabo por Samuel Schwarz. De forma semelhante, pretendemos com este pequeno estudo
“minerar” a obra de Samuel Schwarz, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX, de modo
a compreender a sua génese, bem como o contexto e as circunstâncias da sua publicação. Para
tal, passaremos em revista as diversas edições, traduções e versões da primeira obra de
referência sobre criptojudaísmo em Portugal, começando pelas publicações portuguesas não
sem, em primeiro lugar, proceder a algumas notas de cariz biográfico.
Samuel Schwarz, engenheiro de minas polaco que trabalhou e viveu em Portugal, foi o
precursor do estudo sobre criptojudaísmo, em virtude de ter descoberto, em pleno século XX,
vestígios de judaísmo nas tradições religiosas das Beiras e de Trás-os-Montes, o que o levou a
expor ao mundo uma comunidade de criptojudeus, que se mantinha fiel às suas tradições
desde a implementação da Inquisição.
Na verdade, houve, antes da publicação do seu estudo, referências a resquícios de
criptojudaísmo, mas até então, ninguém tinha compilado de forma tão séria e exaustiva os
rituais, tradições e orações dos criptojudeus em Portugal. Segundo Lívia Parnes, (Schwarz,
2015: 26-27), Israel Salomon publicou uma brochura em Nova-Iorque em 1887, dando conta
da existência de criptojudeus em Trás-os-Montes (1887). Igualmente, em 1903, na Revista
Jewish Quarterly Review, Leão João Cardozo de Bethencourt, descendente de cristãos-novos,
descreveu rituais e costumes criptojudaicos, referindo-se aos “abafadores” e revelando
excertos de orações (1903: 251-274).
Por sua vez, Nahum Slouschz recolheu informações sobre os cristãos-novos
portugueses e publicou-as na imprensa hebraica da época, tendo sido objeto de uma leitura
atenta da parte de Samuel Schwarz, assim como o foram as obras que iam acabar por dissipar
toda e qualquer dúvida quanto à existência de criptojudeus no século XX em Portugal: A
Invasão dos Judeus de Mário Saa (Saa, 1925) e Memórias Arqueológico-históricas do
Distrito de Bragança do Abade de Baçal (Alves, 1925), que, descrevem costumes e
cerimónias dos criptojudeus, sendo o primeiro fundado em teorias antissemitas, antiliberais e
antirrepublicanas, e o segundo, uma obra marcada pela defesa da tolerância religiosa.
Nascido a 12 de fevereiro de 1880, em Zgierz, Polonha, Samuel Schwarz, oriundo de
uma família judaica numerosa, estudou no ‘heder’ e no liceu judeu de Łódź. Seu pai, Isucher
Moshe Schwarz, autodidata, estudioso das línguas orientais e da História judaica, possuía uma
biblioteca digna de referência, que constituiu, segundo Lívia Parnes, o centro da Intelligentsia
judaica, numa altura em que a Polónia era um território russo (2015:28).
Como dissemos, Samuel Schwarz formou-se em engenharia de minas e o seu trabalho
levou-o a viajar a África e a Ásia, mas é em Espanha que nasceu o seu interesse pela história
peculiar dos judeus conversos na Península Ibérica, em particular quando tomou
conhecimento da existência dos chuetas (descendentes de cristãos-novos, estigmatizados e
segregados, mas sem tradições religiosas judaicas).
Nessa época, o movimento sionista começou a despontar e sucederam-se vários
congressos, tendo Samuel Schwarz assistido ao décimo primeiro, durante o qual seu pai e seu
futuro sogro, Samuel Barbasch, rico banqueiro sionista, aproveitaram para lhe preparar o
casamento com Agatha.
Agatha e Samuel casaram e mudaram-se para Lisboa em 1914 por Samuel ter aceitado
um posto de trabalho nas minas de volfrâmio e de estanho, respetivamente, perto de Vilar
Formoso e Belmonte. No decorrer do ano seguinte, nasceu a sua única descendente, Clara e,
já nessa altura, Samuel Schwarz era um dos membros mais ativos da Comunidade Israelita de
Lisboa.
Residir em Lisboa permitiu-lhe conhecer personagens de relevo como Carolina de
Michaelis, que estudou a obra de Uriel da Costa, ou António Baião, diretor do Arquivo
Nacional de Portugal, que o terão influenciado no desenvolvimento da sua própria pesquisa,
que germinou quando encetou as suas pesquisas epigráficas no terreno, que merecerão vários
artigos, inquestionavelmente vanguardistas, na revista Arqueologia e História.
Entretanto, durante uma visita à cidade de Tomar em 1921, indicaram-lhe a antiga
sinagoga, uma das últimas em atividade no século XV e, sensivelmente, dois anos depois,
comprou-a e doou-a, em 1939, ao Estado Português com a condição de que aí se estabelecesse
um Museu Luso-hebraico.
Ademais do estudo epigráfico, Samuel Schwarz, aquando da descoberta, em
Belmonte, de uma comunidade cujo criptojudaísmo ainda era tangível, começou a interessar-
se pelas suas tradições, mas não foi fácil ganhar a sua confiança. Com efeito, estava em
presença de uma comunidade, que tinha recebido dos seus antepassados perseguidos pela
Inquisição, não só rituais e orações, como também o próprio culto do segredo.
Aí começou o périplo de Samuel Schwarz ao coração mesmo de um criptojudaísmo,
difícil de acesso e de tradição oral, e, adotando uma perspetiva comparatista, confrontando
orações oriundas de um processo inquisitorial de uma cristã nova do século XVII com orações
da comunidade de Belmonte e com as recolhidas pelos seus predecessores, provou a origem e
a subsistência do criptojudaísmo até ao século XX, demonstrando a evolução do sincretismo
religioso, inelutavelmente dependente das influências externas mais imediatas, neste caso, do
catolicismo.
As edições portuguesas
Foi nessa altura, em 1925, que Samuel Schwarz resolveu partilhar o resultado das suas
pesquisas e publicou o artigo “Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX”, na Revista
Arqueologia e História, em que descreveu pormenorizadamente as tradições e os rituais dos
criptojudeus de Belmonte e revelou ao público as suas orações, transmitidas de geração em
geração.
No decorrer do mesmo ano, é publicada a separata homónima da referida revista
igualmente sob a égide da Associação dos Arqueólogos Portugueses, tendo tido dois
depositários distintos: a Livraria Universal de Armando J. Tavares e a Empresa Portuguesa de
Livros, ambos radicados em Lisboa.
Apesar de ter sido impressa com base no artigo já mencionado, a referida edição
contém elementos paratextuais que não existiam anteriormente. De facto, antes da página de
título, é mencionado um excerto de uma carta recebida de Max Nordau (cofundador com
Herzl do Congresso Sionista Mundial), em que expressa a confiança que tem na pesquisa de
Schwarz e a certeza de que esta terá um bom fim. É patente, seguidamente, uma dedicatória à
memória do seu sogro, Samuel Barbasch, orlada de negro, acompanhada da oração “Deus vos
salve lá passado”, parte integrante da liturgia fúnebre criptojudaica.
Ainda surge outra dedicatória, desta vez à memória de todos os que foram perseguidos
pela Inquisição, evocando alguns mártires e elogiando a sua veemente fé judaica, que nem a
ameaça das chamas fez abjurar. Aí refere a visão alegórica da “sarça ardente” que teve Moisés
junto do Monte Horeb, comparando-a com a fé judaica que, à sua semelhança, não é
consumida pelo fogo, remetendo para a revivescência da fé dos cristãos-novos portugueses,
herdada dos seus antepassados como se os mesmos tivessem sido “ressuscitados das fogueiras
da Inquisição” (1993: 4).
A referida edição teve o contributo do Dr. Ricardo Jorge (1858-1939), personalidade
influente da época, médico, professor e investigador, que desempenhou funções de relevo na
Administração Pública. Ricardo Jorge escreveu o prefácio “Pro Israel”, cujo objetivo era
contextualizar a obra, começando por referir-se à maior visibilidade do judaísmo em Portugal,
evocando, também ele, a sarça ardente do Monte Horeb e o “Leão de Judá” que nunca “alçou
tanto as falcadas garras e sacudiu com tanta altivez a juba (…)” (Schwarz, 1993: 5), como
símbolos desse ressurgimento.
Igualmente, recorda a preponderância do judaísmo na economia e nas ciências,
explicada não só pela história, mas pelo “dom da mentalidade, como se o judeu medisse o
estalão mais avançado da capacidade cerebral” (Schwarz, 1993: 5). De facto, afirma que, em
proporção, existem mais homens de talento entre os judeus do que entre qualquer outro povo,
fundindo e confundindo conceitos tão diferentes como o podem ser a religião e a
nacionalidade.
Do mesmo modo, recorda o recrudescimento da “judiofilia” nas literaturas europeias e
americanas, especificando o caso da “escassa” literatura portuguesa, que devido ao seu
passado obscuro, “tem os judeus que merece” (1993: 7). Desta forma, Ricardo Jorge relembra
que, apesar de os cristãos-novos terem sido perseguidos e muitos deles terem sido obrigados a
fugir, “na judiaria peninsular luziram a sabedoria e o génio” (1993: 8), que inevitavelmente
foram transferidos para outros países, designadamente, para a Holanda onde foi erigida a
notável Sinagoga de Amsterdão de rito sefardita.
Terminando o seu raciocínio respeitante à distinção do povo judeu, acaba por referir
alguns portugueses ilustres, que abordaram nas suas obras a temática do judaísmo: Mendes
dos Remédios, António Baião, Lúcio de Azevedo, Carolina de Michaelis e Camilo Castelo
Branco, entre outros.
Quanto à questão “racial” Ricardo Jorge continua, dizendo que ele próprio “a l’air
d’un rabbin” (1993: 8), referindo o seu “aspecto judaico” e insistindo no facto de que em
Portugal “raro falha costela de judeu ou de frade” (1993: 9). Por isso, acrescenta, o
antissemitismo, particularmente em Portugal, “é simplesmente uma idiotia” (1993: 9).
No que respeita à obra de Samuel Schwarz, como vimos, Ricardo Jorge, faz uso do
verbo “minerar”, estabelecendo assim um paralelo entre a sua atividade profissional de
engenheiro de minas e a sua descoberta, comparando-a com o “descobrimento de veios
ignorados de minério rico” e qualificando-a de “fóssil velho de Portugal ressurgido em carne
e espírito” (1993: 9). De facto, apesar de estigmatizado, segregado e confinado à
domesticidade, o criptojudaísmo permaneceu, comprovadamente desde a Inquisição, e
desenvolveu-se, absorvendo práticas populares cristãs, emergindo do ostracismo a que tinha
sido votado, graças a Samuel Schwarz.
Para terminar, Ricardo Jorge adota um tom conciliador, criticando os diferendos entre
credos religiosos e relembrando que o Judaísmo é a mãe das restantes religiões abraâmicas,
destacando a conexão que inelutavelmente existe entre judaísmo e cristianismo pela figura de
Jesus Cristo, “educado na adoração do livro santo” (1993: 11). E se todos procedem da
mesma mãe, é tempo que, por um lado, os irmãos dos cristãos- novos os tragam de volta para
“o redil da comunidade de que a força e o terror os apartaram” (1993:12) e que, por outro
lado, o sincretismo religioso existente entre as diferentes religiões coloque um ponto final nos
conflitos.
Quanto ao livro em si, na introdução, em jeito de nota prévia, Samuel Schwarz explica
brevemente a origem da palavra “marrano”. Mas, a sua teoria será refutada entretanto por
vários estudiosos, que atribuirão a origem da palavra a ‘mar-anuss’, isto é “convertido à
força”, e não a ‘mareh-ain’, como o afirma o autor, “para a vista”, conforme a teoria de
Isucher Schwarz, seu pai.
Nas “Considerações Gerais”, Samuel Schwarz tece uma retrospetiva da situação dos
judeus e cristãos-novos em Portugal, referindo o ‘pogrom’ de 1506, o estabelecimento da
Inquisição e o seu término, sempre com uma grande carga emocional, recordando as
atrocidades de que foram vítimas ao longo do tempo. Porém, sabemos com certeza que os
cristãos-novos não pereceram, na medida em que o seu número aumentava de ano para ano
graças aos casamentos com cristãos velhos, mas também devido à estigmatização de que
sofriam. De facto, eram “catalogados” como filhos, netos, bisnetos de cristãos-novos, etc.,
tendo a perseguição tido um efeito inverso ao esperado (ou não).
Por isso, o encontro de Samuel Schwarz em pleno século XX com cristãos-novos, que
ainda conservavam “intacto o sentimento da religião e da nacionalidade israelita” (1993: 19),
apesar de saber-se que muitos não tinham a noção de que existia uma Terra de Israel, foi
completamente inesperado.
Se existe um aspeto que marcou Samuel Schwarz foi com certeza a persistência da
memória destes cristãos-novos de Belmonte, mantida ao longo dos séculos graças ao
secretismo, inerente às suas práticas religiosas e vida quotidiana, como se ainda pudessem ser
perseguidos pela Inquisição.
Na segunda parte, “Shema Israel”, Samuel Shwarz recorda as circunstâncias em que
começou a relacionar-se com os cristãos-novos e refere-se a Belmonte como sendo o “centro
judaico ‘par excellence’” (1993: 21), dado a sua comunidade já existir no século XIII,
apontando como prova tangível da sua longevidade uma inscrição hebraica encontrada numa
lápide de granito, no Museu Municipal de Castelo Branco, que terá pertencido à antiga
sinagoga, tal como o relata no seu livro Inscrições Hebraicas (1923). Assim, conta como foi
difícil ganhar paulatinamente a confiança dos membros da comunidade, na medida em que a
ortodoxia religiosa de Schwarz pouco ou nada se coadunava com as práticas criptojudaicas,
cujas orações eram rezadas em português, pois o hebraico já tinha sido esquecido há muito,
devido às perseguições a que os cristãos-novos eram sujeitos.
Samuel Schwarz recorda ternamente o dia em que o reconheceram oficialmente como
um dos seus, numa passagem de cunho romântico, equiparando a Serra da Estrela, qual Monte
Sinai, banhada de luz, ao ‘locus amoenus’. Nesse dia, anuindo ao pedido de uma das anciãs de
Belmonte, recitou a oração ‘Shemah Israel’ (Ouve Israel..), profissão de fé do monoteísmo
judaico, e, ao pronunciar a palavra ‘Adonai’, as mulheres taparam os olhos com as mãos,
mostrando inequivocamente que a reconheciam. Foi nesse momento que os criptojudeus de
Belmonte lhe abriram as suas portas e o aceitaram como correligionário, autorizando-o a
assistir às suas cerimónias e a recolher as suas orações, que lhe facilitariam o contacto com
criptojudeus de outras povoações da Beira Interior e de Trás-os-Montes. De facto, foi a
recolha de orações que deu o mote à prossecução dos seus estudos, que demonstrariam que a
Nação Judaica é “imperecível”, que o Judaísmo é “imortal” e os criptojudeus são disso a
prova viva.
Na terceira parte, consagrada aos ritos e costumes judaicos dos cristãos-novos, o autor
aborda brevemente questões inerentes à onomástica judaica, assim como refere práticas do
judaísmo que tiveram que ser abandonadas ou substituídas por outras como o degolamento
ritual dos animais e a circuncisão, devido ao facto de serem difíceis de dissimular.
Paralelamente, evoca rituais e cerimónias que se mantiveram: o ‘Shabat’, o ‘Pessah’ e o
‘Kippur’, assim como as cerimónias respeitantes ao casamento, ao luto, ao enterro, aludindo
também às orações e a algumas regras de alimentação.
Do mesmo modo, com o intuito de valorizar o alto nível intelectual dos cristãos-novos,
enumera alguns intelectuais que contribuíram para o desenvolvimento da ciência em Portugal
e no estrangeiro, assim como deita por terra as alegações dos “detratores” que afirmam que os
judeus “não servem para a nobre arte da guerra, nem para a pacífica labuta agrícola…” (1993:
35).
No que diz respeito às orações, às quais consagra um subcapítulo, Samuel Schwarz
recorda que algumas derivam diretamente da liturgia judaica, tendo sido traduzidas
posteriormente e tendo, por esse motivo, várias versões devido à especificidade de cada
tradutor. Do mesmo modo, existe um segundo tipo de orações, cuja origem já não é a liturgia
hebraica, mas as composições poéticas peninsulares muito semelhantes aos ‘piutim’ (poesias
litúrgicas hebraicas). Aliás, Samuel Schwarz assevera que, como prova disso, subsistem
algumas palavras hebraicas nas orações recolhidas, apesar de surgirem muitas vezes
adulteradas e de a comunidade criptojudaica não conhecer o seu significado. Tomemos como
exemplo disso, uma frase de um dos manuscritos recolhidos por Schwarz: “Adunai Sabaat
Malcolares; Cobrado…”. Na verdade, a frase transliterada como segue “Adonai Sebaot, Male
col haares quebodo”, é oriunda da liturgia hebraica e significa: “Deus Omnipotente, cuja
honra enche toda a terra” (1991:38).
No que respeita aos vestígios dos cânticos litúrgicos judaicos, os mesmos terão
desaparecido por completo à exceção de uma oração cantada, inspirada no Cântico de Moisés,
cuja música é transcrita na íntegra no livro.
Por fim, existem orações “que denotam vestígios duma certa influência do ambiente
católico” (1993: 40), estando em causa, na verdade, mais do que meros vestígios. De facto,
existe um verdadeiro sincretismo religioso, dado a forte presença do catolicismo na vida da
comunidade, que, durante anos, foi obrigada a cumprir o rito católico por medo de levantar
suspeitas. Mas, é provável que o autor, adotando um tom mais apologista, não quisesse que os
criptojudeus parecessem demasiado católicos, já que esse fator poderia condicionar a sua
aceitação junto dos seus irmãos judeus e, por conseguinte, dificultar o seu regresso à fé
judaica. Como exemplo disso, Schwarz, referindo-se à Páscoa, assegura que, apesar de alguns
ritos dos cristãos-novos não existirem nas cerimónias judaicas, as suas tradições pascais são, à
semelhança dos judeus ortodoxos, uma comemoração da “fundação da raça hebreia” (1993:
47).
De igual modo, refere, num segundo subcapítulo, algumas festividades e jejuns dos
cristãos-novos, que já indicámos acima, e evoca certas práticas intimamente cristãs-novas
como a preparação do pão ázimo, no terceiro dia da Páscoa, a abstenção de carne durante a
totalidade dessa festividade, a recitação da “Oração da Água”, junto de um riacho,
reminiscência do episódio da travessia do Mar Vermelho, assim como outras que se perderam
no tempo: a “festa das cabanas”, o rigor do ‘Shabat’ e a festa do ‘Purim’ (substituída pelo
jejum da rainha Ester).
Para terminar o estudo relativo aos ritos e costumes dos cristãos-novos, Samuel
Schwarz, num terceiro e último subcapítulo, menciona as tradições matrimoniais e fúnebres
dos criptojudeus, referindo a sua tendência endogâmica, vestígio da segregação imposta aos
cristãos-novos; a simplicidade inerente às suas celebrações fúnebres, herdada da tradição
judaica e a beneficência, por ocasião dos funerais e durante o primeiro ano de luto. A esse
respeito, Schwarz considera que a solidariedade judaica, sendo uma das “virtudes dos
cristãos-novos” (1993: 49), terá sido o fator que lhes permitiu resistir a séculos de Inquisição.
E alguns dos cristãos-novos, na sua “simplicidade rústica” crêem que são judeus porque se
“ajudam” mutuamente (1993: 49).
Ainda antes dos anexos, numa pequena “Nota Final”, Samuel Schwarz refere-se à
lenda dos “abafadores”, porque, inverosimilmente, se deparou com alusões à mesma por
“certos autores de crédito”, na imprensa da especialidade, conferindo-lhe assim certa
“aparência de verdade” e sente que não pode terminar o seu livro sem restabelecer a verdade
(1993: 50).
De facto, segundo a lenda, os “abafadores” ou “afogadores” eram homens
encarregados de sufocar os moribundos, antes da chegada do padre, de maneira a que não
confessassem “in articulo mortis” o seu judaísmo. Mas Schwarz, após consultar António
Baião e o livro Sentinela Contra Judeus de Torrejoncillo, chegou à conclusão de que essa
lenda era relativamente recente, pois não encontrou qualquer vestígio da mesma nem no
referido livro nem nos processos da Inquisição. Provavelmente, serão responsáveis pela sua
propagação tanto o antissemitismo como o culto do segredo dos criptojudeus, que na hora da
morte, para que pudessem ser praticados os rituais fúnebres longe dos olhares inquisidores,
expulsavam de casa quem não pertencia à sua comunidade.
Os anexos são constituídos por três apêndices: o primeiro contendo a documentação
gráfica (várias fotografias de cristãos-novos, em particular do Cap. Artur Carlos de Barros
Basto; imagens de Belmonte; uma fotografia da inscrição hebraica pertencente à antiga
sinagoga de Belmonte e uma oração manuscrita). No segundo apêndice, são transcritas as 76
orações recolhidas pelo autor, com as respetivas variantes, divididas em orações quotidianas,
orações de festas judaicas e orações diversas. Segue uma adenda composta por orações
recolhidas em Trás-os-Montes por Mário Saa, que Schwarz compara com as que recolheu nas
Beiras. No último apêndice, o autor agrupa uma série de documentos oriundos do Processo
nº4427 de Brites Henriques na Inquisição de Lisboa, em 1674, de modo a poder, aqui
também, tecer uma comparação com as orações que ele próprio recolheu. É notável a
preocupação etnográfica no tratamento das orações, que o leva a comparar as diversas versões
entre si, provando, assim, pela desconstrução dos textos, e reconstrução da própria história
dos criptojudeus, a sua incontestável ascendência judaica.
No que concerne à segunda edição do livro, da responsabilidade do instituto de
Sociologia e Etnologia das Religiões da Universidade Nova de Lisboa em 1993, pelo qual nos
temos regido (já que só conseguimos ter acesso à primeira edição do livro em microfilme ou
em suporte digital), apesar de o livro ser uma “reprodução exata da edição original datada de
1925”, na verdade, trata-se de uma cópia e não de um fac-simile. Com efeito, são patentes
algumas divergências tipográficas quanto à ordem dos paratextos: a dedicatória a Samuel
Barbasch aparece anteposta à citação de Max Nordau; à pontuação: embora quase idêntica na
transcrição das orações, nem sempre é fiel ao original; à configuração do próprio texto, em
virtude de a paginação ser totalmente distinta e de existir um cabeçalho na edição de 1993
inexistente na anterior.
No que respeita à capa e à contracapa, as mesmas contêm ilustrações de Laura Cesana
e, também na contracapa, figura uma citação do Livro da Sabedoria (cap. 6, vers. 12-21).
A novidade desta edição consiste no seu desígnio informativo, já que na primeira
orelha, existe uma pequena biobibliografia do autor e, no seguimento da ficha técnica, é
patente uma reprodução a cores do retrato de Samuel Schwarz, da autoria do seu irmão
Marek. Por fim, surgem dois prefácios bastante elucidativos quanto à história dos cristãos-
novos, o primeiro de António Valdemar e o segundo de Moisés Espírito Santo.
António Valdemar (1938), jornalista, investigador e coordenador do Suplemento Artes
e Letras do Diário de Notícias até 2007, refere no seu prefácio “Os Estudos Luso-Judaicos de
Samuel Schwarz” as medidas pombalinas que ditaram o fim da Inquisição em Portugal, e,
assim, possibilitaram a emergência da literatura filossemita dedicada à valorização do legado
filosófico e científico de figuras ilustres do judaísmo como Garcia da Orta, Abraão Zacuto,
Leão Hebreu, entre outros. Segundo Valdemar, o judaísmo como objeto de estudo é uma fonte
“inesgotável” e tem despertado a atenção da comunidade científica, em particular de
historiadores, antropólogos e paleógrafos.
Valdemar evoca ainda brevemente o percurso de Samuel Schwarz, referindo algumas
das suas obras, salientando a sua valiosa contribuição para o estudo do criptojudaísmo,
desmontando preconceitos e clarificando dúvidas, mas também para a dilucidação de alguns
lapsos da História de Portugal. Como exemplo disso, Schwarz contrariou a tese segundo a
qual o casamento de D. Manuel I com D. Isabel de Aragão seria anterior ao decreto de
expulsão. A esse respeito, Valdemar nota “que a emigração dos judeus, ao contrário do que
afirmaram Herculano, Mendes dos Remédios e Lúcio de Azevedo não tem relação direta com
o casamento de D. Manuel com Isabel a Católica” (1993: VII), ao passo que Schwarz
demonstrou que o “moço rei foi, de certo modo, coagido pelos reis católicos de Castela, que
só após a publicação do decreto em questão, consentiram no casamento com sua filha D.
Isabel (…)” (1993: 17).
Valdemar, numa condensada e clarificadora retrospetiva, passa em revista os
contributos dos escritores judaizantes e não judaizantes filossemitas que, ao longo dos
tempos, enriqueceram a investigação na área do marranismo.
Quanto ao caso específico de Belmonte, Valdemar refere que “só com a liberdade
reconquistada, em 25 de Abril, os judeus de Belmonte alcançaram personalidade jurídica para
a sua comunidade” (1993: VII), embora só tenham realmente existido desígnios de fundar a
comunidade a partir do fim dos anos 80.
No seu prefácio, dividido em sete partes (tantas quantos os braços da “menorah”, as
pragas do Egipto ou os dias da criação), Moisés Espirito Santo (1934), sociólogo e etnólogo,
começa uma riquíssima retrospetiva histórica dos primórdios do judaísmo até ao
criptojudaísmo contemporâneo, evocando as tribos hebraicas e a sua fidelidade à religião, que,
na sua opinião, sempre constituiu o fator de coesão do povo, mais do que a identidade étnica.
Na verdade, devido às viagens fenícias, ao Império Cartaginês, ao exílio, decorrente de
expulsões ou deportações, com a subsequente implantação de colónias e fenómenos de
aculturação, a Diáspora, pedra basilar da identidade judaica, teve lugar “em toda a Bacia
Mediterrânica, no Magrebe e na Europa até às Ilhas Britânicas” (1993: XI).
É na altura do exílio de Babilónia que se começa a desenvolver o proselitismo no
sentido de não só “curar os gentios politeístas da sua cegueira”, mas de pregar, como Isaías,
“que ‘Yaweh’ é o único Deus e que Israel tem a missão de o revelar a todas as nações” (1993:
XI).
Moisés Espírito Santo explica o que é na verdade, um judeu, dizendo que, não se
distingue em nada do lisboeta ou do beirão, daí ser imprescindível acabar com os estereótipos,
porquanto um judeu é simplesmente um “aderente ou praticante da religião do Antigo
testamento (…). Mais nada” (1993: XV). E se nós, portugueses, nos assemelhamos a judeus
por termos uma “origem comum, semita e mediterrânica”, “também nos assemelhamos aos
Berberes marroquinos islâmicos, aos Gregos ortodoxos, aos Italianos católicos, aos Libaneses
maronitas, etc.”, sendo a nossa costela judaica, na verdade, uma “costela fenícia (e hebraica),
cartaginesa e berbere” (1993:XVI).
Quanto à cultura judaica, Espírito Santo assevera que “as grandes viragens da
Humanidade e da Ciência têm por autor um judeu” (1993: XVI), especificando que o
Monoteísmo, o Cristianismo, o Capitalismo, a Economia moderna, o Socialismo, a Psicologia
e a Física são obras de judeus porque a criatividade judaica assenta na autonomia individual
para a qual são preparados desde cedo.
Na sétima e última parte do seu prefácio, Moisés Espírito Santo surpreende o leitor
com uma série de exemplos de “judaísmo disfarçado de cristianismo”. Com efeito, desafiando
qualquer teólogo (literalmente), relembra que não existem em Portugal nas tradições
populares festividades ou referências ao “Senhor ressuscitado” (1993: XX), que Jesus Cristo é
visto como se fosse um santo como outro qualquer e não como sendo filho de Deus, prova da
reminiscência do judaísmo secreto. Do mesmo modo, garante que a Quinta-feira de Ascensão,
(celebrada desde o século XII a.C.) alude à ascensão de Moisés ao Monte Sinai e não à
ascensão de Jesus aos céus.
Prossegue dizendo que o culto de Maria, ausente por completo do Antigo Testamento,
não é mais do que uma herança dos cultos pagãos e que o culto do Espírito Santo, assim como
o messianismo português são genuinamente judaicos.
Termina afirmando que “o catolicismo português se judaizou ao longo dos séculos” e
que “permanece semitizante”, portanto, não é de admirar que, no fundo, tenhamos tanto de
“judeu velho” como de cristão-novo (1993: XXI-XXII).
À semelhança da primeira edição, a segunda termina com o índice, verificando-se o
mesmo na terceira edição, publicada na Coleção Judaica (cujas obras são enumeradas no fim
do livro) pela Editora Cotovia em 2010. No que respeita aos paratextos, excetuando o índice,
imediatamente após a página de título, os mesmos seguem a ordem da edição anterior com a
seguinte diferença: na página de guarda existe um pequeno resumo do intuito da referida
coleção e na folha de rosto, o editor contextualiza a pesquisa de Schwarz no âmbito do
filossemitismo emergente entre finais do século XIX e princípios do século XX.
Do mesmo modo, na terceira edição, são referidas na ficha técnica as duas edições de
1925 e 1993, mas, não apresentando nenhuma novidade relativamente às anteriores, diremos
somente que, por ser de capa dura e por ter caracteres maiores, a leitura desta terceira edição
torna-se mais agradável.
As edições estrangeiras
Ainda em 1924, antes da primeira publicação de Os Cristãos-Novos em Portugal no
Século XX, Samuel Schwarz publicou em Varsóvia na revista Illustrirte Woch dois artigos em
Yiddish dando conta da sua descoberta: “Anussim in Portugal” e “Die Farbleibene Anussim”.
Em Florença, em 1925, Schwarz publicou na revista La Rasegna Mensile di Israel,
três artigos em italiano: “I Marrani del Portogallo” que correspondem ao corpo do livro sem
os anexos, porém, pelo que averiguamos, não constituem uma tradução completamente fiel ao
original e o texto termina antes da parte dedicada às orações.
Aludimos também aos onze artigos publicados em hebraico por Schwarz entre 1925 e
1926, em Varsóvia, na revista hebraica Hayom, assim como ao livro Haanoussim Be Portugal
de Nahum Slouschz, no qual foi citado um excerto considerável do livro de Schwarz e foram
traduzidas algumas orações.
Em Nova Iorque, Schwarz publicou os artigos “ The Crypto Jews of Portugal” no
Menorah Journal, em 1926, articulados em 1999 na revista Shofar: an Interdisciplinary
Journal of Jewish Studies, publicada no Estado de Indiana nos Estados Unidos. É de referir
que os artigos seguem a estrutura da obra (sem anexos) e completam-na, patenteando no
corpo do texto exemplos de orações, o que não se verifica na obra original.
Por fim, na revista Judaica editada em Buenos Aires, Schwarz publicou em 1944 o
artigo “La Pascua entre los cristianos nuevos de Portugal”.
No que concerne à tradução hebraica da obra, publicada em 2005 pelo Centro Dinur
para a Investigação da História de Israel, introduzida, anotada, comentada e traduzida pelo
historiador e especialista no fenómeno marrano, Claude Stuczynski (1966) da Universidade
Bar Ilan, podemos dizer, com as limitações intrínsecas a um leitor (ainda) não-hebraizante,
que a configuração do livro é bastante distinta da original. Com efeito, a obra contém duas
reproduções do mapa de Portugal (uma em cada guarda) sinalizando as cidades mencionadas
na obra, seguido da página de título, da ficha técnica, de uma fotografia de Samuel Schwarz,
do índice e do prólogo assinado por Yom Tov Assis, Professor da Universidade de Jerusalém.
Segue-se a introdução de Claude Stuczynski (p.11-75), acompanhada da respetiva
bibliografia, a que sucede o livro objeto do nosso pequeno estudo, obedecendo à ordem
original dos elementos paratextuais, embora com uma grande diferença, que constitui uma
novidade relativamente às restantes edições: a ausência do prefácio do Dr. Ricardo Jorge.
No corpo do texto, pudemos apurar que o tradutor mesclou os seus comentários e
anotações com os de Schwarz, de modo a complementar a informação e a esclarecer as
referências às obras e aos autores citados no texto original. No seguimento do corpo do texto,
surgem os anexos, bem como as orações e a respetiva tradução levada a cabo por Schulamith
Halevy, não tendo sido mencionada devido a “circunstâncias” editoriais, segundo o que a
própria nos revelou.
Após os referidos apêndices, surgem as anotações de Claude Stuczynski relativas aos
anexos, seguidos de uma bibliografia, que, se a tradução não nos falha, atém-se a ensaios de
investigação histórica.
Finalmente, em 2015, João Schwarz da Silva, neto de Samuel Schwarz, transmitiu às
Edições Chandeigne, uma versão francesa de Os Cristãos-Novos no Século XX, do punho do
seu avô, que, infelizmente, nunca teve oportunidade de publicar em vida. Assim, o livro foi
editado na Coleção ‘Péninsules’ com um título de capa divergente do original: La Découverte
des Marranes (A Descoberta dos Marranos). Na página de título, surge um subtítulo mais
próximo da edição original: Les Crypto-juifs au Portugal, no entanto, perdeu-se a referência
temporal, por opção de Schwarz, que substituiu cristãos-novos por “cripto-juifs” (Schwarz,
2015: 21), já que, segundo Lívia Parnes, se os leitores portugueses estavam mais habituados
ao primeiro termo, o público francês deveria familiarizar-se com o segundo. De facto, cremos
que o mesmo é mais adequado à realidade, já que, por um lado, o termo “cristão-novo” foi
abolido no fim do século XVIII, e, por outro, os criptojudeus consideravam-se completamente
judeus.
No que concerne à palavra “marrano” e à relegação do título a subtítulo, a editora
Anne Lima revelou, na conferência de apresentação do livro, que o vocábulo em questão foi
escolhido por ter um caráter mais genericamente abrangente.
Esta edição francesa, como vimos, bastante diferente da original, a começar pelo título
pertence à ‘Collection Péninsules’, tendo, na primeira orelha, uma referência à coleção, na
segunda, a listagem das respetivas obras e na contracapa, um resumo do livro.
Nathan Wachtel (1935), antropólogo e historiador francês, encarregou-se de redigir o
prólogo, no qual evoca o caráter fenomenal da descoberta de Schwarz cujas conclusões, no
que toca às orações são elucidativas, menos no que concerne à “Oração da Formosura”. De
facto, Schwarz retoma a especulação cabalística do erudito Abraão Ibn Ezra quanto à
proveniência do número 73 patente na primeira frase: “Em honra e louvor dos setenta e três
nomes do Senhor seja…”. Após a soma dos números a que correspondem as letras do
tetragrama ‘Yaweh’, o valor encontrado deveria ser 72 e não 73, deturpação que atribui às
vicissitudes inerentes à transmissão oral. Contudo, como o sublinha Wachtel, seria
improvável que os cripto-judeus tivessem tido conhecimento dessa tradição cabalística.
Ademais, a mesma oração, recitada por Brites Henriques, no decorrer do seu processo, no
século XVII, não a refere. Logo, devido ao sincretismo religioso comprovado pelo autor,
poder-se-ia atribuir a referência aos 73 nomes do Senhor a uma corruptela, assentando numa
interferência cristã relativa à coroa de Jesus (que teria 72 espinhos).
Nathan Wachtel reconhece que existe neste livro uma grande carga emocional paralela
à abordagem científica e etnográfica, herdada do modelo dos países da Europa Central e
Oriental, em que a afirmação da consciência nacional era uma questão de vida ou de morte.
Com efeito, Samuel Schwarz expõe os criptojudeus e rompe com a obrigatoriedade do
segredo com o intuito de salvaguardar o património cultural. Desígnio semelhante existia no
Livro da Memória, o Khurbn Proskurov, orlado de negro, que relatava os massacres
perpetrados na Ucrânia após a primeira guerra mundial. E não é por acaso que a dedicatória a
Samuel Barbasch está igualmente marginada de negro.
Às interessantíssimas reflexões de Nathan Wachtel, sucede a Introdução a cargo de
Lívia Parnes, historiadora, que contextualiza os trabalhos de Schwarz, em plena emergência
do movimento sionista, tece uma comparação entre as duas versões nas notas de edição e
empreende uma biografia esclarecedora e completa de Samuel Schwarz (em que nos
apoiámos nas notas biográficas), recorrendo a documentos gráficos diversos.
Lívia Parnes nota que Schwarz, na versão francesa, não só acentua o caráter urgente da
publicação das orações, como também observa que a assimilação cultural é iminente, fruto do
ceticismo vigente (2015: 37). Do mesmo modo, evoca a razão de Schwarz, cujo objetivo é,
“defender” os marranos, contra toda a sorte de preconceitos porque, desde sempre, deram
valiosos contributos a Portugal, contributos que Schwarz alonga na versão francesa. Lívia
Parnes crê que a abordagem apologética que caracteriza a obra se deve a questões ideológicas
e salienta que certos detalhes das tradições criptojudaicas foram deliberadamente omitidos por
Schwarz para não chocar os leitores: os jogos de cartas entre as diferentes orações do dia
durante o ‘Kippur’ (ausentes de ambas versões) e o uso de valores aproximativos, exagerados
e divergentes, de uma versão para a outra, no que concerne aos números de criptojudeus na
Covilhã (10000 pessoas na versão portuguesa e 10000 famílias na francesa).
Como dissemos, Lívia Parnes elabora uma retrospetiva da vida e obra de Schwarz
(fundamental para a contextualização da obra), como também evoca os estudos anteriores aos
do autor sobre criptojudaísmo, as origens da Comunidade Israelita de Lisboa e dedica uma
parte da sua análise à “Obra do Resgate”, dirigida por Artur Carlos de Barros Basto, referindo
os desentendimentos entre este e Samuel Schwarz por questões ideológicas. Na verdade, o
proselitismo do primeiro acabou por afastar o segundo, o que o levou a abandonar a Obra por
completo e a dedicar-se a trabalhos de pesquisa e de tradução.
Já no corpo do livro, surge o prefácio, solicitado por Schwarz a Israel Levi (1856-
1939), Grão-Rabino de França de 1920 a 1939, no qual sobressai a sua admiração pela
coragem dos criptojudeus e pelo trabalho do autor, que permitiu resgatar “un glorieux passé”
(2015: 60). E é curioso que, já nessa altura, há quase cem anos, o rabino tenha tido uma
antevisão tão profunda da relevância do estudo de Schwarz para as pesquisas futuras.
Ademais, no pequeno prefácio, sem ter noção disso, estabelece um interessantíssimo paralelo
entre o costume criptojudeu de passear à beira-rio durante as festividades de ‘Pessah’, batendo
na água de um riacho com ramos e uma tradição semelhante dos judeus do Magreb,
sustentando, assim, a teoria de Stuczynski, segundo a qual, existe inequivocamente uma
conexão entre a Diáspora e o marranismo. Vínculo, esse, que, segundo Lívia Parnes, Schwarz
sempre minimizou por razões apologéticas e ideológicas (2015: 36).
No final do seu prefácio, Levi demonstra certa preocupação no que respeita ao destino
dos criptojudeus, mas refere que as circunstâncias são favoráveis ao seu regresso ao judaísmo,
graças à preciosa colaboração de Schwarz, e ao facto de poder aplicar-se, nestas
circunstâncias particulares, um proselitismo excecional porque, no fundo, nunca deixaram de
ser judeus.
Quantos aos paratextos, pode dizer-se que seguem a ordem da segunda edição, porém
o mesmo não se aplica ao corpo do texto. Com efeito, a versão francesa, em geral, mais
completa e detalhada, contém menos anotações do autor e fornece uma informação mais
pormenorizada, parecendo constituir um ‘upgrade’ da versão portuguesa.
Na verdade, podemos referir que Samuel Schwarz, perante um público, que não fala
português e que não domina a História de Portugal demonstra, nesta versão, o firme propósito
de esclarecer o leitor. Por isso, é minucioso na contextualização da história dos cristãos-
novos, bem como na apresentação das suas tradições criptojudaicas, chegando, por exemplo, a
resumir e traduzir os ritos judaicos confessados pela jovem Brites Henriques. Ademais,
cremos que esta versão era destinada a um público conhecedor do judaísmo, a julgar pela
presença de palavras hebraicas e referências a tradições judaicas ortodoxas sem qualquer
tradução.
Por sua vez, a estrutura da obra não é exatamente idêntica, na medida em que foi
incorporado um terceiro capítulo (subdivisão do segundo capítulo original), intitulado “Noms
et professions des nouveaux-chrétiens: aperçu historique”, bem como um mapa sinalizando as
povoações em que existia uma comunidade marrana, no princípio do século XX. Notamos
aqui o regresso à primeira opção no que respeita à terminologia usada para designar os
criptojudeus.
Relativamente às novidades trazidas por esta versão, para além das já indicadas,
podemos referir o acréscimo de um glossário onomástico e topográfico, uma bibliografia
muitíssimo completa, contendo, não só obra de Schwarz, mas também outros livros
consagrados ao estudo do marranismo, as notas de edição, até aí só existentes na tradução
hebraica, e um índice das orações. No que respeita às orações propriamente ditas, a versão
francesa contém não só a tradução integral das mesmas, como também do excerto do processo
inquisitorial de Brites Henriques.
Desta viagem no tempo que empreendemos pelas edições da obra de Samuel Schwarz,
para além do que já foi dito da especificidade, da relevância e do caráter pioneiro deste livro,
único no seu desígnio de reimplantar nos criptojudeus o judaísmo autêntico, herdado dos
antepassados, mártires, heróis ou sábios, é de salientar o uso da antropologia histórica como
ferramenta de recuperação da memória, indispensável, não à construção da sua identidade,
porque existe, de facto, uma identidade criptojudaica plena e complexa, mas ao alcance da sua
completude.
Schwarz, cuja descoberta foi bafejada pela sorte, vivia num contexto sociopolítico
propício ao ressurgimento do marranismo, mas também fatidicamente favorável ao apogeu do
antissemitismo. Cremos veementemente que tinha que ser ele, esse homem fora do vulgar,
visionário, sonhador e erudito, o revelador do criptojudaísmo. Com efeito, quem mais teria a
sensibilidade e o conhecimento adequados ao resgate de uma comunidade perdida no tempo,
incentivando-a a redescobrir-se, num clima de reconstrução da esperança? E a alma do
messianismo é essa mesma esperança (presente em cada oração que recolheu e na ‘Shema
Israel’ que recitou) que nunca morreu, apesar dos obstáculos, apesar de desistir do seu projeto.
Na verdade, foi transferida para Tomar, para a sua biblioteca, para o “seu” museu, num
desejo, tornado utopia, de manter a todo o custo o seu património, templo da sua identidade.
Sandra Fontinha
BIBLIOGRAFIA
SCHWARZ, Samuel, 1923, Inscrições Hebraicas em Portugal, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa (Separata da revista Arqueologia e História).
_, 1924, “Die Farbleibene Anoussim”, Illustrirte Woch, 22, junho, Varsóvia, p.17.
_, 1924, “Anoussim in Portugal”, Illustrirte Woch, 27, julho, Varsóvia, p.12.
_, 1925, “Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX”, Arqueologia e Historia, Vol. IV, Lisboa, p.5-114.
_, 1925, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX, com um prefácio do Dr. Ricardo Jorge, Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa. (Separata do vol. IV de Arqueologia e História).
_, 1925, “Anoussim in Portugal”, Hayom, Varsóvia, 194, 21 de agosto, p.3; 200, 28 de agosto, p.4; 206, 4 de setembro, p.3-4; 212, 11 de setembro, p.3; 218, 18 de setembro, p.5; 223, 25 de setembro, p.3; 227, 2 de outubro, p.3; 232, 12 de outubro, p.3-4; 237, 16 de outubro, p.4; 243, 23 de outubro, p.3; 249, 30 de outubro, p.3.
_, 1925, “I Marrani del Portogallo”, La Rasegna Mensile, Florença, vol.1, 2, p.85-97; 3, p.155-168; 4-5, p.199-216.
_, 1926, “The Crypto Jews of Portugal”, The Menorah Journal, XII, (April-May), 2, p.138-149; XII (June-July), 3, p.283-297, New-York, Menorah Association.
_, 1944, “La Pascua entre los Cristianos Nuevos de Portugal”, Judaica, vol. CXXVIII-CXXIX, n.1, Buenos Aires, p.111-112.
_, 1993, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX, (Introdução de Moisés Espírito Santo), Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões, Lisboa.
_, 1999, “The Crypto Jews of Portugal”, Shofar: an Interdisciplinary Journal of Jewish
Studies, vol.18, n.1, USA, Indiana, p.40-64.
_, 2005, The New-Christians in Portugal in the 20th Century (traduzido, introduzido e anotado por Claude B. Stuczynski), Centro Dinur para a Investigação da História de Israel, Jerusalém. _, 2010, Os Cristãos Novos em Portugal no Século XX, Cotovia, Col. Judaica, Lisboa.
_, 2015, La Découverte des Marranes, Les crypto-juifs au Portugal, (Préf. Nathan Wachtel, Intro. Livia Parnes), Chandeigne, Col. Péninsules, Paris.
SLOUSCH, Nahum, 1932, Haanoussim bePortugal, Dvir, Tel-Aviv.