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Agitação infantil em serviços de saúde mental e escolas de Santos e Campinas-SP:
demandas de cuidado, encaminhamentos e agência
Tatiana de Andrade BarbariniPós-doutoranda – UNIFESP
Eunice NakamuraProfessora Adjunta – [email protected]
Introdução
Agitação é um termo associado a diferentes conceitos do senso comum — tais
como atividade extrema, turbulência, inquietação, entre outros — e a categorias
psiquiátricas como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o
Transtorno de Conduta ou o Transtorno Opositor Desafiador. Podendo indicar
diferentes representações de comportamentos infantis ditos problemáticos, o uso do
termo “agitação” nos meios clínicos e nas relações cotidianas coloca um problema de
pesquisa a ser enfrentado: configurações de diferentes modos de circulação de pessoas,
práticas, discursos, saberes e objetos em torno de demandas por cuidado em contextos
socioculturais particulares. Articula-se a essa problemática uma rede de
interdependência viabilizada pela fluidez ou “borramento” dos limites entre o normal, o
anormal e o patológico, que se processa em diferentes planos da realidade social, seja no
nível léxico, seja no nível da responsabilidade pelo cuidado com a criança.
No âmbito da clínica psiquiátrica, de orientação biomédica e fundada no Manual
diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais (DSM), o esforço de definição do
conceito de transtorno mental esbarra na maleabilidade das categorias psiquiátricas, que
estão pautadas na identificação e elucidação de problemas que causam prejuízos ou
impactos negativos nas atividades cotidianas dos indivíduos concernidos. Nessa
perspectiva, o transtorno mental define-se como uma síndrome caracterizada por uma
perturbação clínica significativa na cognição, na regulação emocional e no
comportamento individual. Trata-se de uma disfunção que afeta processos psicológicos,
biológicos ou do desenvolvimento estruturantes do funcionamento mental,
desencadeando o sofrimento ou a deficiência em atividades sociais e ocupacionais
(APA, 2013, p. 20). Essa definição almeja alcançar a distinção entre uma disfunção
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biológico-patológicaeas expectativas ou respostas socioculturais a determinadas
condutas. Contudo, os próprios psiquiatras colocam em dúvida a possibilidade de se
distinguir categoricamente os prejuízos e sintomas dos transtornos mentais e os modelos
socioculturais de comportamentos infantis ditos adequados. Segundo um médico
psiquiatra entrevistado, a psiquiatria passou a adotar, a partir dos anos 1980, a noção de
transtorno mental como uma alternativa ao conceito biomédico de doença, associado à
identificação de alterações físicas no corpo do paciente. A primeira é mais “frouxa”,
pois se refere a “algo que não está funcionando bem”, isto é, a um sofrimento que
independe de disfunções anatômicas e fisiológicas (BARBARINI, 2011, p. 67). Ela se
sustenta sobre uma definição arbitrária do normal e do patológico e, consequentemente,
sobre a delimitação insatisfatória e fluida dos limites de certos conceitos psiquiátricos.
A fluidez dos limites conceituais referentes às categorias psiquiátricas introduz a
problematização abordada no presente texto. Trata-se de uma análise realizada a partir
de dados coletados em duas realidades distintas: em Santos e em Campinas, municípios
do estado de São Paulo. As informações reunidas em Santos referem-se à primeira
demanda de cuidados apresentada a um serviço de saúde mental infantil, na qual a
agitação aparece como um elemento de menção ao problema a ser solucionado. Já em
Campinas, os dados resultam de trabalhos de campo conduzidos em um ambulatório
universitário de psiquiatria infantil e em estabelecimentos públicos de ensino. É preciso
considerar que informações sobre saúde mental, agitação e o TDAH, entre outras
categorias, facilmente acessadas por meio da internet, da mídia ou de cursos de
orientação específica, oferecidos principalmente aos profissionais de educação, circulam
entre os diferentes atores sociais dessas instituições, também entre familiares e as
próprias crianças. A circulação de informações, conceitos e categorias reflete-se nas
primeiras queixas, que incorporam tanto termos técnicos quanto termos populares.
Apesar das particularidades territoriais, ambos os estudos lidam com categorias
empregadas por diferentes indivíduos para compreender, classificar e organizar certa
realidade, assim como para resolver comportamentos infantis considerados
problemáticos ou anormais, a fim de restituí-los a um padrão social e culturalmente
constituído de normalidade (NAKAMURA, 2016, p. 53). Partimos do entendimento da
“agitação” como uma categoria polissêmica e multidimensional, por meio da qual é
possível descrever e analisar diferentes aspectos dos contextos sociais, incluindo os
atores e instituições envolvidas, bem como a circulação — ou o fluxo — de objetos,
técnicas, discursos, saberes e práticas que compõem as redes de demanda e de
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encaminhamento em saúde mental infantil. Buscamos ampliar a ideia de circulação
territorial adotando as noções de fluxo e de rede, que abrangem não apenas o
deslocamento de pessoas, mas também de objetos, conceitos científicos e do senso
comum e práticas (LATOUR, 2016). Isso implica, igualmente, a consideração da
criança, incluída nessa rede como agente da criação da sociedade. Desse modo,
organizou-se a apresentação do texto de acordo com a sequência: delimitação contextual
e metodológica das pesquisas que subsidiam este estudo; a fluidez da categoria
“agitação”, correlata a termos científicos e populares, como condição de constituição de
redes de demandas e encaminhamentos, nas quais circulam pessoas, discursos, saberes,
práticas e também objetos; e a emergência da criança agitada como um ator social.
Uma breve delimitação contextual e metodológica
O presente trabalho resulta da comparação de dados coletados por meio de
diferentes estratégias: acesso a prontuários médicos e entrevistas realizadas com
profissionais de um serviço de saúde mental infantil, em Santos; observação participante
em um serviço de psiquiatria infantil e escolas públicas e entrevistas semiestruturadas
realizadas com profissionais de saúde e educação, pais e crianças, em Campinas.
Os resultados obtidos em Santos provêm de pesquisa de pós-doutorado
desenvolvida pela Prof.ª Dr.ª Eunice Nakamura. Trata-se de um estudo qualitativo que
partiu das experiências de adultos e de crianças para compreender os significados dos
comportamentos infantis ditos problemáticos e as representações contemporâneas da
criança e da infância. A pesquisa de campo foi conduzida em um serviço de saúde
mental infantil localizado na zona noroeste de Santos, uma região de baixa renda.
Dentre os doze bairros que compõem a região, encontra-se o Jardim Rádio Clube, com
26.000 habitantes vivendo em barracos, muitos deles erigidos sobre o mangue. Os casos
de saúde mental infantil que afetam essa população são atendidos no referido serviço
por uma equipe de psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas,
assistentes sociais e assistentes terapêuticos.
Foram analisados os prontuários médicos de 112 pacientes,de três a onze anos de
idade, que receberam atendimento em 2012, dentre os quais 68,8% eram meninos e
62,5% encontravam-se na faixa de seis a onze anos de idade, representativa do período
de escolarização infantil (primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental). O objetivo
dessa etapa foi verificar quais eram as primeiras queixas que conduziam as famílias ao
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serviço. A “agitação” foi mencionada em 7,1% dos prontuários. Porém, quando
associada à dificuldade de concentração e à atenção, somaram-se 14,3% das queixas.
Ademais, buscamos compreender a relação estabelecida entre o comportamento infantil
dito problemático, com destaque à agitação, e as representações adultas sobre a criança.
As etapas seguintes constituíram-se de entrevistas aprofundadas com alguns
profissionais de saúde e, posteriormente, análise das informações coletadas.
Já em Campinas, o estudo foi realizado em três diferentes ocasiões. De 2009 a
2010, visitamosum ambulatório universitário de psiquiatria infantil, um serviço público
altamente especializado e de referência, onde foi possível observar as atividades
médicas dos profissionais do serviço e as atividades lúdicas das crianças atendidas,
assim como entrevistar psiquiatras, psicólogos, familiares e pacientes, de seis a doze
anos de idade, a maioria proveniente de cidades vizinhas. Vale notar que, naquele
período, a maior parte dos casos atendidos referia-se ao diagnóstico e tratamento de
TDAH, dentre os quais 68,9% eram meninos.
O segundo momento de pesquisa refere-se ao período entre 2013 e 2015 e aos
trabalhos de campo conduzidos em duas escolas públicas e em um programa de
educação não formal. Foram aplicadas as técnicas de observação participante, em sala
de aula e espaços de recreação, e de entrevista semiestruturada com profissionais da
educação, familiares e crianças, de cinco a treze anos de idade. Os dois principais
estabelecimentos de ensino visitados localizam-se no interior da Unicamp e atendem
majoritariamente os filhos de funcionários da universidade. Portanto, a população
concernida é heterogênea, compreendendo tanto as famílias de professores ou
funcionários ocupando cargos de destaque na instituição quantoas famílias vivendo nas
regiões mais periféricas de Campinas. Finalmente, desde novembro de 2016
desenvolvemos um estudo empírico em um Centro de Atenção Psicossocial Infantil
(CAPSi), responsável pelo acolhimento e atendimento de crianças e adolescentes
afligidos por casos médios e graves de sofrimento psíquico e social. A população
atendida no serviço também é heterogênea, em razão da localização central da
instituição. Contudo, observa-se que uma parcela significativa dos pacientes vive em
abrigos provisórios e é tutelada por ações de assistência social.
Em que pesem as particularidades dos estudos desenvolvidos e dos contextos
sociais explorados, a escola (professores, coordenadores e orientadores pedagógicos) é a
principal origem de queixas de agitação e demandas por assistência especializada às
crianças. Nesse sentido, o fluxo de técnicas, saberes e práticas, possibilitado pela
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circulação de relatórios escolares e laudo médicos, de recomendações médico-
psicológicas para pais e professores sobre como lidar com a agitação, entre outras fontes
de informação, constitui uma rede de interdependências que conecta, principalmente,
profissionais de educação, escolas, pais (sobretudo as mães), médicos, psicólogos e
serviços de saúde, em específico de saúde mental.
A fluidez da categoria “agitação” e a construção de redes de demanda
Nos diferentes contextos pesquisados, em Santos e em Campinas, a agitação
apresenta-se de formas diversas, porém sempre relacionada a comportamentos infantis
que incomodam, segundo as queixas apresentadas pelas escolas e famílias, ou que são
compreendidos como sintoma de uma questão psicossocial mais profunda, conforme os
profissionais de serviços de atenção psicossocial ou de outros serviços de saúde
responsáveis pelo atendimento inicial das crianças.
Agitação é o termo utilizado nas primeiras queixas encontradas nos prontuários
médicos de pacientes atendidos em um centro de saúde mental infantil de Santos.
Nesses documentos, as crianças em fase escolar (de seis a onze anos de idade),
sobretudo os meninos, foram majoritariamente identificadas como agitadas. O termo
não se refere a uma simples agitação, mas denota uma graduação comportamental
(“muito agitado”, “bastante agitado”, “extremamente ou demasiadamente agitado”) que
permite aos adultos definir comportamentos como problemáticos e diferenciá-los
daqueles considerados normais. Além disso, a agitação relaciona-seconstantemente com
“inquietação”, “agressividade” e “instabilidade”. É importante notar que, em alguns
prontuários, a queixa de agitação estava associada à dificuldade de concentração e de
atenção (“dispersa”, “não tem concentração”, “pouca concentração”), definida
aparentemente como uma de suas consequências.
Houve poucas menções a categorias biomédicas referentes ao TDAH ou à
hiperatividade, predominando nas primeiras queixas categorias do senso comum
capazes de organizar a compreensão de adultos sobre o que consideram estranho nos
comportamentos infantis, definir os níveis inaceitáveis de agitação, ordenar essa
realidade, dar significados às experiências vivenciadas e oferecer meios de resolver o
problema (NAKAMURA, 2016). Trata-se, enfim, de restabelecer uma normalidade ou,
ainda, uma normatividade, buscando restituir à norma certos desvios de comportamento
observados em relação a padrões social e culturalmente definidos. (CANGUILHEM,
5
2009[1943])
Essa função organizadora, agregada à categoria “agitação”, também pôde ser
percebida nos trabalhos de campo realizados em Campinas. Contudo, o principal
discurso subjacente à definição da agitação, relativa aos comportamentos infantis e aos
problemas de aprendizagem, baseava-se em categorias empregadas pela psiquiatria
biomédica. Entre os professores, o termo “hiperatividade” foi constantemente evocado
para representar um conjunto de elementos, tais como “agitação extrema”,
“indisciplina” e “enfrentamento”. Por vezes, seu significado referia-se às crianças que
haviam recebido um diagnóstico médico para o TDAH. Em outros momentos, tratava-se
de uma referência ao comportamento significativamente agitado.
Já o termo “autocontrole” apresentou menor recorrência entre os profissionais de
educação. Todavia, ele foi enunciado por uma professora para descrever o
comportamento de Luan1 (13 anos) em sala de aula, incluindo sua dificuldade de
concentração e, consequentemente, de desempenho escolar. O autocontrole também se
conecta às ideias de dispersão e de enfrentamento. Este é o caso de Vitório (11 anos),
um aluno ativo e popular, cujo problema foi definido, no ambiente escolar, como
indisciplina, enfrentamento, desrespeito pelas regras e tendência a rapidamente
desorganizar toda uma sala de aula (BARBARINI, 2016). Ele foi identificado como um
menino hiperativo e diagnosticado com TDAH.
É possível perceber, no exemplo supracitado, um deslocamento dos elementos
pedagógicos e infantis (como a desobediência, o mau comportamento, a indisciplina, a
inquietação e os processos escolares) do domínio da escola para um referencial técnico-
científico, submetendo esses elementos ao vocabulário, às práticas e às estratégias de
intervenção psiquiátricas. Tal deslocamento fornece aos professores meios para
demandar uma orientação especializada, dentro e fora da escola, para se lidar com a
agitação infantil, com os problemas de conduta e de aprendizagem de seus alunos e,
também, com os novos dilemas vividos pelos profissionais de educação, sobretudo o
sentimento de impotência de manter a ordem em sala de aula, de dialogar com os alunos
e de garantir sua adequada socialização.
Pais e crianças, por sua vez, expressam uma variedade de explicações e de
definições que, geralmente, mescla categorias populares (“sonhar acordado”, “ser
avoado”) e científicas (“hiperatividade”, “desatenção”) para delimitar e solucionar um
problema comportamental. É necessário notar que, nos casos estudados, “doença” é
1 Os nomes usados são fictícios.
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umanoção popularmente associada a deficiências físicas, e não à agitação ou ao TDAH,
que se configuram como “apenas um probleminha”. O uso conjunto de categorias
populares e técnicas é igualmente feito por médicos, a fim de tornar compreensivas as
categorias psiquiátricas, especialmente para crianças.
Hiperatividade e agitação confundem-se gradativamente e criam um
“borramento” dos limites de conceitos e categorias, condição fundamental para a
configuração de uma rede de demandas. Para ilustrar essa situação, recorremos à fala de
uma professora:
A escola chega para o pai e fala “seu filho é hiperativo”, só que muitas vezes o professor não tem essa formação. Então a escola acaba reproduzindo na forma de um chavão: uma criança agitada hoje é uma criança hiperativa. (Lívia, professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015)
Nesse extrato de entrevista, a professora questiona o uso indistinto de “agitação”
e de “hiperatividade” e critica a excessiva produção escolar de encaminhamentos
médicos e psicológicos de possíveis casos de TDAH. Ela também critica a suposição de
que os professores detêm a autoridade para identificar quem é hiperativo. Em Santos,
psicólogos entrevistados desaprovavam a banalização do uso do termo “hiperatividade”
e da elaboração de diagnósticos de TDAH, que expressa o fato de que “os adultos [pais
e professores] já chegam [no serviço de saúde] com um diagnóstico pronto”, ainda que
não se trate de um caso de TDAH.
A rede de relações estabelecida entre os diferentes atores sociais se expressa na
fluidez da categoria “agitação”, ao mesmo tempo em que contribui para o “borramento”
observado em relação a essa categoria. Os profissionais de saúde, por um lado, fazem
uso dessa fluidez como uma estratégia de definição da condição da criança e de
estabelecimento da relação médico-paciente. Por outro lado, esses profissionais
baseiam-se na confusão das categorias para criticar as exigências de cuidado
excessivamente endereçadas aos serviços de saúde. Já os professores encontram na
confusão categorial um mecanismo usado pelas famílias para atenção educacional ou
médica especializada devido à sua incapacidade de educar e cuidar de seus filhos. Aqui
está o ponto de partida para uma relação particularmente estabelecida entre professores
e pais: a culpabilização do outro pelo mau comportamento ou fracasso escolar da
criança. Assentada na referida fluidez conceitual, a relação entre eles reforça tal fluidez
ao agregar às noções de agitação, mau comportamento e dificuldade infantil de
aprendizagem a associação entre desestrutura familiar e fracasso escolar. A agitação é
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expressa nesses discursos por meio de categorias sociais fluidas mescladas a categorias
científicas, evidenciando um espectro de possibilidades em relação aos comportamentos
infantis, classificados a partir de zonas aceitáveis ou não aceitáveis. (HELMAN, 1994)
A escola e a família são consideradas as principais instituições responsáveis pela
socialização infantil, isto é, a inserção bem-sucedida da criança nas relações sociais, a
fim de que ela responda adequadamenteàs normas comportamentais e, assim, se
constitua como um indivíduo. Ainda que o conceito sociológico de socialização venha
sendo questionado, sua ainda forte implicação nas relações cotidianas molda as
expectativas referentes ao papel integrador da família e da escola, conformando uma
rede de interdependência que envolve diversos atores e instituiçõessociais (ELIAS,
1994[1939]). No entanto, tal função sofre mudanças que reconfiguram a rede de
interdependências, incluindo novos elementos. Entre as mudanças observadas estão a
flexibilidade da autoridade parental e a horizontalização das relações entre pais e filhos
(ELIAS, 1980), bem como a consequente redefinição das responsabilidades
institucionais relativas ao cuidado com a criança, cujos limites, antes bem definidos
entre escola e família, se tornam tão fluidos e confusos que admitem a inserção de co-
responsáveis, tais como os profissionais de saúde e os especialistas em saúde e
educação.
Nesse novo cenário, a definição social (ou escolar) do mau comportamento
estrutura os usos populares e técnicos da categoria “agitação”, realidade à qual se
associam algumas condições particulares. A primeira diz respeito aos limites “borrados”
entre as categorias técnicas e populares e entre os comportamentos normais e
patológicos, mas também ao “borramento” das responsabilidades institucionais relativas
ao cuidado infantil e da autoridade das instituições sociais de identificar, definir,
explicar e resolver as situações consideradas problemáticas. Como resultado, os
diferentes usos da agitação referem-se a uma categoria híbrida e difusa, na qual os
conceitos de normal e patológico se confundem, assim como o plano natural (biológico)
e social, na tentativa de explicar, organizar e normalizar o que “não está funcionando
bem”. Nesse sentido, seucaráter híbrido, longe de expressar antigas dicotomias,
evidencia a interdependência entre sistemas biológicos e sociais, aos quais se conjuga o
sistema psíquico. (NAKAMURA, 2017)
A segunda condição concerne ao modelo social adulto que cria a definição da
criança bem adaptada e uma série de expectativas relativas ao comportamento e ao
desempenho infantil. Nesse sentido, a agitação pode indicar quem são as crianças que
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divergem de tal modelo e, ao mesmo tempo, criar novas identidades centradas na ideia
de que a agitação ou os sintomas do TDAH são características pessoais, e não
problemas.
A construção identitária é, portanto, a terceira condição, caracterizada pela
apropriação, pelas crianças, dos termos técnicos e populares para se constituírem como
indivíduos. Por um lado, essa apropriação respaldava a contestação do“diagnóstico”
adulto que definia sua condição. Por exemplo, Luan (13 anos) afirmou, em certa
ocasião, que ele não estava doente e que, por isso, não precisava ir ao médico, no
entanto as consultas eram positivas, pois lhe permitiam faltar à escola. Por outro lado,
algumas crianças apropriavam-se dos termos para criar uma nova identidade, ora de
acordo com o modelo social da criança bem-adaptada, ora em confronto com esse
modelo. No primeiro caso, a medicação servia ao manejo da identidade infantil
deteriorada (GOFFMAN, 1988), já que ela permite à criança “ficar calma”, “ser como
os outros” e “não ter vergonha” do seu jeito de ser. Já na segunda situação, a nova
identidade constrói-se com base na justificação do desvio em relação àquele modelo.
Marcelo (12 anos), entrevistado em 2010, definiu-se como “um paciente de um serviço
de psiquiatria infantil” que “tem hiperatividade e não consegue parar nem por um
minuto”. Ele ainda afirmou: “minha família me pede para parar e ficar quieto, mas eu
sou hiperativo, não posso ficar quieto”.
As formas de apropriação da fluida categoria “agitação” evidenciam que as
crianças são agentes nas relações sociais e nos fluxos de demandas que a tomam como
objeto. Porém, esse caráter não é enunciado nas narrativas adultas constituintes dos
relatórios médicos e escolares. Essas narrativas criam e recriam a história e as trajetórias
de expectativas sociais, normas, representações da infância e da criança agitada e, até
mesmo, da vida e da identidade infantis, a partir da perspectiva do adulto — do
professor, dos pais, do médico. Desse modo, os relatórios e os atores sociais (adultos)
atuam como mediadores da produção da realidade social, constituindo redes reais,
narradas e sociais, por meio das quais ocorre a distribuição das fontes de ação a todos os
atores. (LATOUR, 2016)
Na elaboração adulta dos relatórios e da produção conjunta (adultos e
documentos) da criança agitada e sua realidade, a criança aparece como um mero
objeto, um produto do movimento ao qual se vinculam esses atores. No entanto,
inserida como ator na rede de distribuição das ações, a criança se constitui também
como um mediador, cujos vínculos colocam em movimento uma cadeia de afetos e de
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deslocamentos2. Nessa perspectiva, o híbrido adulto-relatório, agente da produção das
narrativas e representações da criança agitada, faz a criança agir (questionar o médico
ou o professor, desejar o medicamento como forma de normalização ou justificar seu
desvio por meio da manipulação da sua imagem, imposta externamente). Portanto, na
rede de “vinculamentos”, na qual a criança se inclui, sua atuação torna-se visível e, por
meio de sua ação, a “agitação” passa a ter outros sentidos.
As crianças agitadas: de caso médico a ator social
Os dados de pesquisa aqui apresentados derivam, sobretudo, dos relatos adultos
sobre comportamentos infantis, com destaque à agitação. Os atores sociais responsáveis
pela identificação do comportamento agitado são, geralmente, adultos (profissionais de
saúde, professores, orientadores educacionais e pais), e a definição dessa conduta como
um problema se faz com base em valores sociais e culturais adultos, sobretudo com base
na noção de socialização. Privilegia-se, portanto, a conceitualização e a observação
“externa” sobre a criança. Diante desse cenário, é preciso perguntar: quais são o lugar e
o papel social atribuídos à criança em sua relação com o mundo adulto?
James e Prout (1990) afirmam que a infância conforma-se por um conjunto de
relações sociais ativamente negociadas que constituem os primeiros anos da vida
humana. Assim, não se podem ignorar os aspectos biológicos da infância e do corpo
infantil, porém tampouco se pode desconsiderar o caráter social e discursivo que os
compõem, associado à capacidade infantil de agir e fazer as coisas acontecerem, isto é,
à ação participativa da criança (agency). Esse conjunto de atributos pôde ser constatado
em entrevistas concedidas por crianças e nas observações feitas nos campos em
Campinas, os quais evidenciaram a interação infantil com pares, com os adultos e com a
realidade que os cerca, e a consequente resposta ativa e criativa à condição de criança
agitada.
São exemplos dessa particularidade as já citadas formas de apropriação dos
termos técnicos e populares e de construção identitária. É o caso de Marcelo (12 anos)
que, por ser hiperativo, afirmou ser impossível responder ao pedido de seus familiares
para que se acalme e fique quieto. Também é o caso de Luan, que declarou não estar
2Latour (2015, p. 126-127) emprega o conceito de “faitiches” para designar tudo o que “nos faz fazer”, o que coloca os atores em movimento sem nunca ter a força de uma causalidade ou deixar de transformar a ação. Daí o emprego da noção de vínculo como a pluralidade daquilo que faz agir (os afetos). Latour busca superar as dicotomias indivíduo/sociedade e objeto/sujeito, fundamentais às ciências sociais.
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doente e não gostar de ir ao médico porque ele o “entope de remédios”, mas que
reconheceua positividade das consultas médicas por poder faltar à escola e permanecer
em casa brincando.
A escola foi relatada, em diferentes entrevistas, como o meio em que a agitação
e a desatenção tornam-se mais problemáticas, ainda que essas manifestações não sejam
assim consideradas pelas crianças em outros espaços, sobretudo aqueles ligados à
brincadeira. Isto é, a agitação afeta a criança de diferentes maneiras, dependendo das
relações nas quais ela se insere, e mobiliza-a a igualmente responder de modos diversos.
Durante uma de nossas visitas ao ambulatório psiquiátrico, conhecemos Lorena
(11 anos), a quem foram solicitados desenhos que expressassem suas percepções e
experiências concernentes ao hospital onde estávamos, à sua relação com colegas de
escola e às suas experiências escolares. Ela dedicou-se longamente à tarefa,
descrevendo em suas pinturas muitos detalhes do ambiente, tais como a cor da blusa da
pesquisadora ou o vaso de planta encontrado próximo à porta de entrada. É interessante
notar que ela era diagnosticada com TDAH, subtipo desatento, devido às suas
dificuldades escolares de concentração e atenção. O que, então, motivou-a a ser tão
detalhista em seus desenhos?
Esses breves exemplos de discursos e práticas infantis demonstram que as
crianças reproduzem a sociedade, mas também a colocam em questão e criam suas
próprias maneiras de produzir a realidade. As formas de construção identitária são
muito significativas nesse sentido, assim como as brincadeiras com materiais
disponíveis em um ambulatório psiquiátrico, tais como pedaços de papelão que se
tornavam carrinhos de puxar ou escorregadores, ou cadeiras de rodas que se
transformavam em carros de corrida.
Em outra ocasião, um menino chegou à sala de espera do referido ambulatório
carregando uma caixa de sapatos repleta de objetos, que ele explicou serem suas
invenções: uma geladeira que, ligada à pilha, tinha sua luz interna acesa e possuía em
seu interior cápsulas de remédios já consumidos representando itens de consumo, como
linguiças unidas por um barbante e latas de refrigerante; um “criador de neve” (em um
recipiente de plástico, ele colocou um pequeno motor na parte de baixo e dentro, isopor
picado, assim, quando a pilha entrava em atividade, o motor fazia com que os pequenos
flocos de isopor voassem por todo o recipiente); uma igreja, confeccionada com caixas
de remédio, sendo que na porta, havia uma cruz e nas torres, um sino e um relógio que
marcava a hora exata.
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Representar seu meio, significar suas experiências e negociar suas relações e
identidades desloca, então, a criança de uma posição de objeto — o caso médico, o ser
em desenvolvimento ou o objeto de pesquisa — para outra de ator social. Esse
deslocamento é fundamental para compreender a criança agitada e o simbolismo
daquilo que ela faz e diz. Recorremos ao texto (uma autobiografia?) escrito por Marcelo
(12 anos), com que conversamos em 2010, diagnosticado e tratado como TDAH
(BARBARINI, 2011, p. 125-126).
Nasceu um menino chamado Guilherme. Ele transformava-se em leão quando quisesse. Um dia, ele passou para a 5ª série, todos detestavam o coitado. Um dia, ele não se controlou e se transformou em leão! Guilherme foi expulso da escola e pior! Da cidade.
Guilherme foi para um deserto, em uma tempestade de areia, sozinho, sem comida e nem água, encontrou uma caverna, na qual encontrou um outro menino, que transformava-se em tatu, chamado Zé, eles conversaram:- Não sei o que aconteceu comigo, Zé. Fui expulso de tudo o que tinha.- Você precisa mostrar pra eles como seu coração é bom, Gui. Existem muitas crianças além de nós com isso.- Mas como?- Ajude-os como puder!- Eu não vou dar uma de super-herói, se é isso que quer dizer...- Se for o único jeito, sim.
Então o Guilherme foi para Caconde, era Festa de Setembro, onde um menino iria cair da roda-gigante, Guilherme salvou a vida dele, por isso é chamado de herói.
Sob um olhar classificatório e diagnóstico, esse texto representa um tipo clássico
de TDAH: a criança inicia o texto sem muitos detalhes e termina-o rapidamente, com
ainda menos detalhes. Essa é considerada uma indicação clínica da presença de TDAH,
uma vez que a impaciência e a realização de atividades inconclusas são sintomas desse
transtorno. No entanto, sob um olhar mais crítico, entende-se que o texto conta a
história de um menino diferente, que se transformava em um animal e que, por isso,
deveria se controlar. Quando não o fez, o desprezo dos outros se materializou em
isolamento (a expulsão e a ida ao deserto).
Transformar-se em leão ou em tatu remetem-nos ao conceito de devir. Deleuze e
Guattari (1997) viram na criança — no animal, na mulher, enfim, nas minorias,
caracterizadas por singularidades avessas ao que é dominante (ser homem, branco e
ocidental) — a potência do devir, ou seja, da construção do presente a partir daquilo que
o sujeito é, como um movimento que tensiona as formas, multiplica e cria o diferente e
a possibilidade. Ao contrário dos adultos, das teorias e das instituições, que produzem
identidades enrijecidas e diminuema potência humana criativa e imaginativa de
experimentação e de jogo, as crianças multiplicam e substituem os vínculos, criam
afetos, deslocam e produzem movimentos. Negociando, resistindo e reproduzindo, as
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crianças revelam o caráter interdependente e híbrido da vida social, ao mesmo tempo
natural, cultural, discursivo e técnico. Nessa perspectiva, a criança agitada emerge em
sua potencialidade, ressignificando a “agitação”, ao mesmo tempo em que provoca a
circulação de pessoas, práticas, técnicas, discursos e objetos em torno do modelo adulto
com o qual a criança agitada rompe.
Considerações finais
O uso da palavra circulação remete-nos, habitualmente, a uma concepção
geográfica de trajetos e deslocamentos territoriais, ou a uma concepção econômica de
trânsito de mercadorias. Neste artigo, contudo, buscamos nos embasar em um conceito
de circulação que excedesse essas definições tradicionais para incorporar diferentes
dimensões da realidade social colocadas em movimento a partir da representação e da
ação da criança agitada, constituída pela interdependência entre diferentes atores (a
mãe, a professora, o médico, a psicóloga), instituições (a família, a escola, os serviços
de saúde), saberes e práticas.
Na perspectiva deleuziana, a cartografia é um diagrama, uma multiplicidade
espaço-temporal, coextensiva a todo o campo social, altamente instável e fluida, em
constante mutação e resistência. O rizoma, ou o pensamento múltiplo, é seu princípio
fundador. Talvez pudéssemos dizer, tomando por coerente a proposta de Latour, que a
rede de “vinculamentos” coloca essa multiplicidade em movimento, criando um mapa
no qual a criança e seus trajetos agem (DELEUZE, 2011). A criança agita as
circulações que se dão em seu entorno, atribuindo à agitação outro sentido, mais
potente.
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