01 Ideologia e Cultura_Felipe Tavares Paes Lopes

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18 Ideologia e cultura na obra de John B. Thompson FELIPE TAVARES PAES LOPES * Resumo Este trabalho analisa a teoria social de John B. Thompson à luz de dois conceitos chaves: ideologia e cultura. Para realizar tal análise, o trabalho foi dividido em três partes: num primeiro momento, apresento a conceituação de ideologia do autor e discuto suas vantagens analíticas para o estudo das formas simbólicas. Num segundo momento, apresento sua conceituação de cultura e discuto suas vantagens analíticas para esse tipo de estudo. Num terceiro e último momento, analiso as conexões teóricas entre esses dois conceitos e suas implicações metodológicas. Em especial, o referencial metodológico da hermenêutica de profundidade, que busca contemplar tanto as características estruturais das formas simbólicas quanto suas condições sócio-históricas. Palavras-chave: Ideologia; Cultura; Metodologia. Ideology and culture in John B. Thompson’s work Abstract This essay aims to analyze John B. Thompson´s social theory focusing two of its main concepts: ideology and culture. To do so this essay was divided in three parts: in the first one, I present the author´s concept of ideology and discuss its analytical advantages for the study of the symbolic forms. Then, I present his concept of culture and discuss its advantages for this type of study. Finally, I analyze the theoretical connections between both concepts and their methodological implications; giving special attention to the methodological referential that Thompson calls “Depth Hermeneutics”, which aims to consider both the structural characteristics and the socio-historical conditions of the symbolic forms. Key words: Ideology; Culture; Methodology. * FELIPE TAVARES PAES LOPES é pós-doutorando na Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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    Ideologia e cultura na obra de John B. Thompson

    FELIPE TAVARES PAES LOPES*

    Resumo

    Este trabalho analisa a teoria social de John B. Thompson luz de dois conceitos chaves: ideologia e cultura. Para realizar tal anlise, o trabalho foi dividido em trs partes: num primeiro momento, apresento a conceituao de ideologia do autor e discuto suas vantagens analticas para o estudo das formas simblicas. Num segundo momento, apresento sua conceituao de cultura e discuto suas vantagens analticas para esse tipo de estudo. Num terceiro e ltimo momento, analiso as conexes tericas entre esses dois conceitos e suas implicaes metodolgicas. Em especial, o referencial metodolgico da hermenutica de profundidade, que busca contemplar tanto as caractersticas estruturais das formas simblicas quanto suas condies scio-histricas.

    Palavras-chave: Ideologia; Cultura; Metodologia.

    Ideology and culture in John B. Thompsons work

    Abstract

    This essay aims to analyze John B. Thompsons social theory focusing two of its main concepts: ideology and culture. To do so this essay was divided in three parts: in the first one, I present the authors concept of ideology and discuss its analytical advantages for the study of the symbolic forms. Then, I present his concept of culture and discuss its advantages for this type of study. Finally, I analyze the theoretical connections between both concepts and their methodological implications; giving special attention to the methodological referential that Thompson calls Depth Hermeneutics, which aims to consider both the structural characteristics and the socio-historical conditions of the symbolic forms.

    Key words: Ideology; Culture; Methodology.

    * FELIPE TAVARES PAES LOPES ps-doutorando na Faculdade de Educao Fsica da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo.

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    Introduo Em Ideologia e cultura moderna, John B. Thompson (2000) faz uma avaliao crtica de um grande nmero de importantes contribuies teoria social contempornea a fim de repensar o conceito de ideologia luz do desenvolvimento dos meios de comunicao de massa1. No curso dessa avaliao, o professor e pesquisador da Universidade de Cambridge, Inglaterra, promove uma discusso acerca da natureza e do papel da ideologia, relacionando-a com a linguagem, com o poder e com o contexto social, alm de desenvolver algumas ideias sobre os modos como a ideologia pode ser analisada e interpretada em casos particulares. Um dos seus argumentos centrais que algumas das principais formulaes tericas que foram desenvolvidas nos ltimos anos sobre a natureza e o papel da ideologia nas sociedades modernas so inadequadas sob inmeros aspectos, principalmente no que diz respeito forma como elas abordam os meios de comunicao de massa e importncia que lhes conferem para a teoria da ideologia.

    A fim de superar essa deficincia, Thompson (2000, p. 12) desenvolve um referencial terico que permite a compreenso das caractersticas distintivas dos meios de comunicao e o curso especfico de seu desenvolvimento. A chave desse marco referencial aquilo que denomina de midiao da cultura moderna, entendendo com isso o processo geral atravs do qual a 1 Tal avaliao j havia sido iniciada por ele em Studies in the theory of ideology (1984).

    transmisso das formas simblicas se tornou sempre mais mediada pelos aparatos tcnicos e institucionais das indstrias da mdia. Ao procurar compreender esse processo, o autor reformula o conceito de cultura, enfatizando, ao mesmo tempo, o carter simblico da vida social e o fato de das formas simblicas estarem inseridas em contextos estruturados, que envolvem diversos tipos de

    conflitos e desigualdades significativas em termos de distribuio de recursos e poder.

    Essa reflexo terica sobre o conceito de cultura nos permite pensar o papel da ideologia nos dias de hoje. Por esta razo, esse marco terico tem servido de base analtica para diversas pesquisas em Psicologia Social e em outras reas das Cincias Humanas e Sociais (LOPES; VASCONCELLOS, 2010). Diante disto, parece ser oportuno tom-lo como objeto de reflexo terica. Neste trabalho, optei por examin-lo luz de dois conceitos chaves as noes de ideologia e cultura buscando, de um lado, indicar as vantagens analticas de cada um desses conceitos para o estudo das formas simblicas em geral e, de outro, suas conexes tericas e implicaes metodolgicas. Comeo pelo conceito de ideologia.

    O conceito de ideologia

    Ao longo dos ltimos dois sculos, o conceito de ideologia tem sido alvo de intensas batalhas, recebendo uma multiplicidade de significados. Ao analisar a histria desses significados, Thompson (2000) distingue dois tipos gerais de concepo de ideologia: a neutra e a crtica. A primeira delas

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    compreende a ideologia como uma forma de investigao social ou como um aspecto da vida social como outro qualquer, no sendo nem mais nem menos atraente ou problemtico. Assim, dessa perspectiva, um fenmeno considerado ideolgico no necessariamente enganador ou ilusrio. Tampouco precisa estar ligado aos interesses de um grupo particular. Entre outros autores, essa concepo foi desenvolvida por Destutt de Tracy, Lnin, Lukcs e Mannheim (na sua formulao geral da concepo total de ideologia).

    A concepo crtica de ideologia, por sua vez, imputa aos fenmenos caracterizados como ideolgicos um criticismo implcito ou sua prpria condenao. Nas palavras de Thompson (2000, p. 73) concepes crticas so aquelas que possuem um sentido negativo, crtico ou pejorativo. Assim, dessa perspectiva, todo fenmeno ideolgico enganador, ilusrio e/ou parcial. Entre outros autores, essa concepo foi desenvolvida por Napoleo, Marx e Mannheim (na sua concepo restrita de ideologia).

    Ao formular seu conceito de ideologia, Thompson (2000) insere-se nesse segundo grupo. Mantm, portanto, o sentido crtico do termo. No entanto, embora se apoie nas conceituaes crticas anteriores, sua formulao abandona alguns dos temas implcitos nelas. Afinal, tenta captar o esprito de algumas dessas concepes, mas sem ligar-se letra de nenhuma teoria particular. Thompson prope, assim, uma conceituao de ideologia ao mesmo tempo construtiva uma vez que procura elaborar um novo conceito de ideologia, ao invs de restituir algum anterior e modesta uma vez que no tenta realizar uma sntese das diversas concepes de ideologia, como se o desenvolvimento

    histrico do conceito desembocasse naturalmente numa concepo definitiva.

    Essa proposta conceitual de Thompson (2000) objetiva-se numa definio relativamente ampla de ideologia, que a compreende como o sentido a servio da dominao. A fim de precisar tal definio, o autor esclarece que o sentido pelo qual est interessado o sentido mobilizado pelas formas simblicas, que esto inseridas nos contextos sociais e que circulam no mundo social entendendo por formas simblicas

    um amplo espectro de aes e falas, imagens e textos, que so produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos. Falas lingusticas e expresses, sejam elas faladas ou escritas, so cruciais a esse respeito. Mas formas simblicas podem tambm ser no lingusticas em sua natureza (por exemplo, uma imagem visual ou um construto que combina imagens e palavras). (THOMPSON, 2000, p. 79).

    Alm disso, Thompson destaca que uma situao pode ser descrita como de dominao quando relaes de poder so sistematicamente assimtricas, ou seja, quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessvel a outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a qual tal excluso levada a efeito (THOMPSON, 2000, p. 80).

    A partir dessa definio de ideologia, uma forma simblica ser ideolgica quando, num contexto scio-histrico determinado, estabelecer e sustentar relaes de dominao. Inversamente, ser contestatria ou crtica da ideologia quando ajudar a minar essas relaes. Assim, a interpretao do potencial ideolgico ou contestatrio de uma forma simblica deve explicitar o vnculo entre

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    os sentidos mobilizados por ela e as relaes de dominao que esses sentidos mantm ou subvertem. Deve, portanto, considerar os contextos scio-histricos especficos nos quais essa forma simblica produzida, transmitida e recebida.

    Ao considerar a importncia desses contextos na interpretao da ideologia, a proposta analtica de Thompson (2000) nos possibilita evitar uma tendncia, prevalente na literatura, de pensar a ideologia como uma caracterstica ou atributo intrnseco de certas formas simblicas ou sistemas simblicos, tais como o conservadorismo, o comunismo etc. Em sua proposta, nenhuma forma simblica ideolgica ou contestatria em si mesma: se ela ideolgica ou contestatria, e o quanto o , depende da maneira como usada e entendida em contextos sociais especficos. Por esta razo, esse enfoque pode nos levar a interpretar uma forma simblica como sendo ideolgica em um determinado contexto e como sendo subversiva em outro.

    Mais ainda, pode levar-nos a considerar uma mesma forma simblica como ideolgica sob certos aspectos e como contestatria sob outros. Ela pode, por exemplo, sustentar relaes de dominao de gnero ao mesmo tempo em que mina relaes de dominao de classe. Alm do mais, Thompson (2000) chama a nossa ateno para o fato de que a prpria mobilizao da ideologia pode provocar a sua contradio. Afinal, as pessoas podem no aceitar passivamente as formas ideolgicas e as relaes de dominao por elas sustentadas. Elas podem, por exemplo, denunci-las, ridiculariz-las, contest-las, satiriz-las.

    O conceito de ideologia de Thompson (2000) tambm considera a participao ativa do sentido na constituio da realidade social sem, todavia, perder de

    vista, como fizeram os tericos das concepes neutras de ideologia, a discusso do entrecruzamento entre sentido e dominao. Com isso, faculta-nos analisar e colocar em prtica essa discusso sem nos conduzir necessariamente ao abstruso debate acerca da falsa conscincia. Isso se deve pois, ao mesmo tempo em que segue a tradio de concepes crticas de ideologia, essa concepo rechaa a ideia de que toda ideologia seja intrinsecamente ilusria colocando seu carter enganador apenas como uma possibilidade contingente. Afinal, trata-se de uma concepo poltica de ideologia uma vez que traz para o seu mago a questo do poder e no epistemolgica uma vez que nada diz acerca da questo da verdade, ou melhor, de como se conhece o mundo social. Escreve o autor:

    no essencial que as formas simblicas sejam errneas e ilusrias para que elas sejam ideolgicas. Elas podem ser errneas e ilusrias. De fato, em alguns casos, a ideologia pode operar atravs do ocultamento e do mascaramento das relaes sociais, atravs do obscurecimento ou da falsa interpretao das situaes; mas essas so possibilidades contingentes, e no caractersticas necessrias da ideologia como tal. Ao tratar o erro e a iluso como uma possibilidade contingente, ao invs de como uma caracterstica necessria da ideologia, ns podemos aliviar a anlise da ideologia de parte do peso epistemolgico colocado sobre ela desde Napoleo. (THOMPSON, 2000, p. 76).

    Outra vantagem analtica da proposta de Thompson (2000) o fato de ela no colocar a ideologia como necessariamente dependente das relaes de dominao de classe. Pelo contrrio, sua concepo de ideologia caracteriza-se

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    justamente por uma abertura anlise da fora simblica de outras formas de dominao, derivadas ou no das relaes de produo. Com isso, faculta-nos discutir ideologia(s) nas sociedades modernas sem, no entanto, reduzi-la(s) a mero(s) reflexo(s) das estruturas econmicas e sociais. Isso decorre do fato de Thompson partir de uma teoria social que, embora confira importncia luta de classes na anlise das sociedades contemporneas, considera centrais tambm outros conflitos estruturais, no os condicionando necessariamente s contradies entre o trabalho e o capital. Nas suas palavras:

    relaes de classe so apenas uma forma de dominao e subordinao, constituem apenas um eixo da desigualdade e da explorao; as relaes de classe no so, de modo algum, a nica forma de dominao e subordinao.... Vivemos, atualmente, um mundo em que a dominao e subordinao de classe continuam a desempenhar um papel importante, mas em que outras formas de conflito so prevalentes e, em alguns contextos, de importncia igual ou at maior. (THOMPSON, 2000, p. 77-78).

    Ao cortar o elo entre ideologia e dominao de classe colocando-o somente como algo contingente e no necessrio , essa concepo de ideologia nos permite escapar do que Thompson (2000) denomina de tese da ideologia dominante. De acordo com ele, essa tese sustentada por autores como Althusser, Poulantzas, Gramsci, Horkheimer, Adorno e Habermas e defende que as ideias e valores estabelecidos e difundidos pela classe dominante (ou classes dominantes) teriam um enorme poder de amalgamento. Com isso, cimentariam as relaes sociais em torno de consensos e convergncias, subestimando, assim, o predomnio e o peso do desacordo, do

    dissenso, do cinismo, do ceticismo, da contestao e do conflito nas sociedades contemporneas. Consequentemente, ela sobre-estimaria em grande medida o grau em que as pessoas foram integradas com sucesso na ordem social existente. Ao no sobre-estimar esta integrao, Thompson nos permite analisar as pessoas envolvidas na produo, transmisso e recepo das formas simblicas como agentes ativos que, embora possam ser, at certo ponto, influenciados por essa produo, so capazes de manter certa distncia afetiva e intelectual dela. Ou seja, so capazes de ter um pensamento crtico e independente, buscando sempre compreender e reinterpretar as mensagens que recebem. E, ainda que de modo implcito e quase que inconsciente, reformar-se e reentender-se a si prprios atravs dessas mensagens.

    Por ltimo, cabe notar que, ao investigar alguns dos modos gerais atravs dos quais a ideologia pode operar como a legitimao, a dissimulao, a unificao, a fragmentao e a reificao e as maneiras como esses modos podem estar ligados a vrias estratgias de construo simblica, Thompson (2000) tambm nos indica algumas das maneiras como o sentido pode ser mobilizado no mundo social e como ele pode estar a servio da dominao. Com isso, delimita um raio de possibilidades para a operao da ideologia que pode nos auxiliar na anlise concreta das formas simblicas em circunstncias particulares, avanando nas suas consequenciais lgicas e sociais.

    O conceito de cultura

    Assim como o conceito de ideologia, o conceito de cultura possui uma longa histria, recebendo uma multiplicidade de significados. Ao analisar o desenvolvimento desse conceito, Thompson (2000, p. 170) reala algumas

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    das principais dimenses de seus usos, distinguindo quatro tipos bsicos: o primeiro deles aquele que denomina de concepo clssica de cultura. De acordo com o autor, essa concepo surgiu nas primeiras discusses sobre cultura em especial, naquelas estabelecidas entre os filsofos e historiadores alemes nos sculos XVIII e XIX. Nessas discusses, o termo cultura era empregado, em geral, para se referir a um processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela assimilao de trabalhos acadmicos e artsticos e ligado ao carter progressista da era moderna.

    Embora certos aspectos dessa concepo permaneam presentes ainda hoje em alguns de seus usos cotidianos, os problemas decorrentes de alguns de seus pressupostos fizeram com que ela casse em desuso nos debates de carter mais acadmico. Segundo Thompson (2000), a concepo clssica compreende alguns trabalhos e valores como superiores a outros, tratando-os como o modo pelo qual as pessoas podem se tornar cultas, dignificando-se mental e espiritualmente. Ou seja, ela deposita uma confiana excessiva no progresso associado ao Iluminismo europeu. A principal mudana veio no final sculo XIX, com o desenvolvimento de uma nova disciplina: a Antropologia. A partir de ento, o conceito de cultura perdeu algumas de suas conotaes etnocntricas e foi adaptado aos objetivos e afazeres da descrio etnogrfica. Assim, a concepo clssica de cultura deu lugar a vrias outras. Thompson distingue duas delas: a que denomina de concepo descritiva e a que denomina de concepo simblica.

    A concepo descritiva foi amplamente empregada nos escritos dos historiadores culturais do sculo XIX

    interessados na descrio etnogrfica de sociedades no europeias. Entre aqueles que desenvolverem essa concepo, Thompson (2000) destaca os trabalhos de Klemm, de Tylor e de Malinowski. De acordo com o autor, a despeito das evidentes diferenas entre eles, esses trabalhos partilham uma viso comum de cultura e de algumas das tarefas do estudo dos fenmenos culturais. Em todos eles a cultura de um grupo ou sociedade , basicamente, compreendida como as crenas, costumes, ideias e valores que as pessoas adquirem enquanto membros do grupo ou da sociedade. Ou ainda, como os artefatos, objetos e instrumentos materiais por elas adquiridos. Em certa medida, o estudo da cultura pressupe, aqui, comparar, avaliar e analisar cientificamente esses fenmenos.

    Existem, todavia, vises diferenciadas entre esses autores acerca de como esse estudo deve proceder alguns sustentam, por exemplo, que ele deve ser realizado dentro de um referencial evolucionista; enquanto outros argumentam que ele deve dar prioridade anlise funcional. De acordo com Thompson (2000), as principais dificuldades da concepo descritiva diz respeito mais quilo que ela pressupe para o estudo da cultura do que propriamente a ela mesma. Nas suas palavras,

    sem uma especificao adicional do mtodo de anlise, a concepo descritiva de cultura pode permanecer vaga. Alm disso, tambm podemos ter algumas reservas acerca da amplitude do conceito de cultura do modo como ele empregado por Malinowski e outros. Usado no sentido de englobar tudo o que varia na vida humana, afora os desvios fsicos e as caractersticas fisiolgicas dos seres humanos, o conceito de cultura se torna coextensivo com o da prpria antropologia, ou mais precisamente

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    com o da antropologia cultural. O conceito se torna, na melhor das hipteses, vago, e, na pior, redundante; de qualquer modo, ele corre o risco de perder aquela qualidade de preciso que beneficiaria uma disciplina que busca estabelecer suas credenciais intelectuais. (THOMPSON, 2000, p. 174).

    A preocupao em opor-se a este risco foi um dos fatores que estimulou o desenvolvimento da concepo simblica de cultura, que comeou a ser esboada na dcada de 1940 por L. A. White, em A Cincia da Cultura, e que, posteriormente, foi colocada no centro dos debates antropolgicos por Clifford Geertz (THOMPSON, 2000). Em A interpretao das culturas, Geertz (1989) compreende cultura, basicamente, como as teias de significado tecidas pelo ser humano, bem como a anlise dessas teias. Segundo Thompson (2000), esta abordagem manifesta claramente a concepo simblica de cultura, caracterizando a cultura como o padro de significados incorporados nas formas simblicas em funo da qual as pessoas se comunicam umas com as outras e partilham suas experincias, concepes e crenas.

    Desse ponto de vista, realizar uma anlise cultural significa, principalmente, elucidar esses padres de significado e interpretar os significados incorporados s formas simblicas o que difere bastante da anlise implicada na concepo descritiva, que prev a classificao e anlise cientfica, a mudana evolucionista e a interdependncia funcional. A principal dificuldade e fraqueza da concepo simblica de cultura, segundo Thompson (2000), que ela no d ateno devida aos problemas de poder e conflito, passando por cima dos contextos sociais estruturados dentro dos

    quais os fenmenos culturais so produzidos, transmitidos e recebidos. Nas suas palavras,

    os fenmenos culturais so vistos, acima de tudo, como constructos significativos, como formas simblicas, e a anlise da cultura entendida como a interpretao dos padres de significado incorporados a essas formas. Mas os fenmenos culturais tambm esto implicados em relaes de poder e conflito. As aes e manifestaes verbais do dia-a-dia, assim como fenmenos mais elaborados, tais como rituais, festivais e obras de arte, so sempre produzidos ou realizados em circunstanciais scio-histricas particulares, por indivduos especficos providos de certos recursos e possuidores de diferentes graus de poder e autoridade; e estes fenmenos significativos, uma vez produzidos ou realizados, circulam, so recebidos, percebidos e interpretados por outros indivduos situados em circunstanciais scio-histricas particulares, utilizando determinados recursos para captar o sentido dos fenmenos em questo. (THOMPSON, 2000, p. 180).

    A fim de evitar essas dificuldades e limitaes, Thompson (2000, p. 181) formula aquela que ele denomina de concepo estrutural da cultura. Segundo o autor, podemos defini-la como o estudo das formas simblicas em relao a contextos e processos historicamente especficos e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, essas formas simblicas so produzidas, transmitidas e recebidas. Nesse sentido, os fenmenos culturais devem ser vistos como formas simblicas socialmente contextualizadas; enquanto que a anlise cultural pode ser entendida como o estudo da constituio significativa das formas simblicas, bem como de sua contextualizao social.

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    Dessa perspectiva, a anlise dos fenmenos culturais consiste em, basicamente, interpretar as formas simblicas luz dos contextos e processos socialmente estruturados dentro dos quais elas esto inseridas. Ou seja, diferentemente da concepo simblica de cultura, a concepo estrutural proposta por Thompson (2000) chama a ateno para a importncia desses contextos e processos na anlise da cultura. Assim, uma de suas principais vantagens analticas reside, justamente, no fato de ela enfatizar, igualmente, o carter simblico dos fenmenos culturais e o fato de que esses fenmenos esto sempre inseridos em contextos socialmente estruturados.

    Ao fazer isto, a concepo estrutural de cultura tambm se afasta do chamado estruturalismo2. Afinal, em geral, os mtodos estruturalistas esto mais preocupados com os traos estruturais internos das formas simblicas, enquanto que a concepo estrutural de cultura atenta-se, tambm, para os contextos e processos socialmente estruturados (THOMPSON, 2000). Conforme veremos adiante, esses mtodos at podem ser bastante teis e vlidos para o referencial metodolgico proposto por Thompson, mas somente quando combinados com a investigao scio-histrica.

    Conexes tericas e implicaes metodolgicas Uma vez apresentados os conceitos de ideologia e cultura de Thompson (2000) e analisado suas vantagens analticas, cabe, agora, indicar como esses conceitos se articulam teoricamente e quais so as 2 Termo habitualmente empregado para se referir a uma variedade de mtodos, ideias e doutrinas associadas a pensadores franceses, tais como Lvi-Strauss, Barthes, Greimas, Althusser e pelo menos em algumas fases de seu trabalho Foucault. (THOMPSON, 2000, p. 182).

    suas implicaes metodolgicas. Conforme sublinhado, a concepo estrutural de cultura assumida pelo autor consiste no estudo das formas simblicas em relao aos contextos e processos socialmente estruturados dentro dos quais esto inseridas. E justamente a partir desse estudo que podemos estabelecer a interpretao da ideologia, dado que a singularidade dessa interpretao est precisamente na conexo entre os sentidos mobilizados pelas formas simblicas e as relaes de dominao que estes sentidos ajudam a estabelecer e sustentar nos seus contextos de produo, transmisso e recepo. Ou seja, a interpretao da ideologia s pode ser realizada dentro de um tipo de anlise cultural que enfatiza, simultaneamente, o carter simblico da vida social e o fato de que esta envolve conflitos, relaes de dominao e desigualdades sistemticas em termos de distribuio de recursos.

    Alm do mais, conforme j sugerido, porque Thompson (2000) destaca o carter socialmente estruturado dos fenmenos culturais, mas sem colocar a dominao de classe como o eixo principal (ou, at mesmo, nico) da explorao e desigualdade social, que ele pode desenvolver uma concepo de ideologia que contempla tambm outras formas de dominao. Mas se as anlises da cultura e da ideologia esto intimamente interligadas no plano terico, quais seriam as implicaes metodolgicas dessas anlises? Mais concretamente, como Thompson lida com essas anlises tericas na prtica?

    De acordo com o autor, essas anlises tericas podem ser realizadas concretamente dentro de um marco referencial metodolgico descrito como hermenutica de profundidade (HP). Como o prprio nome indica, este referencial se fundamenta na tradio da hermenutica, que oriunda dos debates

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    literrios da Grcia Clssica e que sofreu muitas transformaes desde sua emergncia h dois milnios. Entre os autores que desenvolveram essa tradio, Thompson (2000) destaca Dilthey, Heidegger, Gadamer e Ricouer como suas principais influncias.

    Segundo Thompson (2000, p. 359), esses autores nos chamam a ateno para o fato de o estudo das formas simblicas ser, antes de tudo, um problema de interpretao. Ou seja, para eles, as formas simblicas so construes significativas, que no podem ser bem compreendidas apenas atravs de anlises estatsticas e objetivas, como querem alguns positivistas, mas exigem uma interpretao. Alm disso, eles nos lembram que os sujeitos que constituem o campo-sujeito-objeto [da investigao] so, como os prprios analistas sociais, sujeitos capazes de compreender, de refletir e de agir fundamentados nessa compreenso e reflexo. Ou seja, que as interpretaes propostas pelos analistas sociais se colocam numa posio de retroalimentao potencial, podendo, em princpio (e muitas vezes o so na prtica), ser apropriadas por esses sujeitos, que depois tambm podem ser novamente analisados pelos analistas sociais e assim por diante. Por fim, eles mais especificamente Gadamer tambm nos lembram que no somos apenas observadores ou espectadores passivos da histria, mas somos parte dela.

    Entretanto, segundo Thompson (2000, p. 361), se Gadamer est certo ao enfatizar que os seres humanos esto sempre inseridos nas tradies histricas, tambm importante reconhecer que os resduos simblicos que incluem as tradies podem ter caractersticas e usos especficos que meream anlise posterior. Como, por exemplo, no caso em que esses resduos servem para

    obscurecer o presente, mascarando a represso. Assim, seria preciso oferecer metodologias que sejam capazes de concretamente analisar as formas simblicas e seu potencial ideolgico. esta convico que o leva a desenvolver sua HP.

    A HP foi inicialmente desenvolvida por Ricouer, que tinha preocupaes semelhantes s de Thompson. Todavia, embora concorde com os objetivos gerais de sua obra, Thompson (2000) desenvolve uma HP significativamente diferente3. Afinal, na sua perspectiva, tal obra enfatiza demasiadamente a autonomia semntica do texto, abstraindo, consequentemente, suas condies scio-histricas de produo, transmisso e recepo. Assim, a HP desenvolvida por Thompson (2000) contempla tanto as caractersticas estruturais das formas simblicas quanto suas condies scio-histricas. Para tanto, compreende trs fases principais, que devem ser vistas no como estgios separados de um mtodo sequencial, mas antes como dimenses analiticamente distintas de um processo interpretativo complexo. (THOMPSON, 2000, p. 365).

    A primeira delas, a anlise scio-histrica, objetiva reconstruir as condies sociais e histricas de produo, circulao e recepo das formas simblicas (THOMPSON, 2000, p. 366). Para Thompson, essa reconstruo pode ser feita em cinco nveis distintos de anlise, dependendo do objeto e circunstncias particulares da pesquisa. Em primeiro lugar, podemos identificar e descrever as situaes espaos-temporais particulares onde as formas simblicas so produzidas e

    3 Em Studies in the theory of ideology (1984) e, principalmente, em Critical hermeneutics (1981), Thompson elabora mais detalhadamente suas crticas ao pensamento de Paul Ricouer.

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    recebidas. Em segundo lugar, podemos analisar seus campos de interao ou, como diria Bourdieu (1983), seus campos sociais discutindo suas regras e convenes. Em terceiro lugar, podemos reconstruir o conjunto de regras, recursos e relaes que constituem suas instituies. Em quarto lugar, podemos analisar as assimetrias, as diferenas e as divises existentes nessas instituies e nos seus campos de interao. Em quinto e ltimo lugar, podemos investigar os seus meios tcnicos de transmisso e difuso.

    A segunda fase a anlise formal ou discursiva, que objetiva estudar as formas simblicas como construes complexas, que possuem uma estrutura articulada. Para Thompson (2000), do mesmo modo que na anlise anterior, h diversas formas de se realizar a anlise formal ou discursiva, sendo que a forma ideal deve ser definida em funo dos objetos e circunstncias especficas de investigao. Entre os diversos mtodos e tipos de anlise mais amplamente conhecidos e empregados, o autor destaca dois: a anlise semitica, que investiga as relaes entre [os] elementos que compe a forma simblica, ou o signo, e [as] relaes entre esses elementos e os do sistema mais amplo, do qual a forma simblica, ou o signo, podem ser parte (p. 370). E a anlise discursiva, que investiga as caractersticas estruturais e [as] relaes do discurso (p. 371).

    Em relao anlise discursiva, o autor observa que ela pode ser realizada por meio de muitos mtodos diferentes. Destes, distingue quatro: 1) a anlise da conversao, que enfoca as propriedades sistemticas de diversos modos de interao lingustica; 2) a anlise sinttica, que aborda a sintaxe prtica ou a gramtica prtica, isto , aquela que empregamos no nosso dia-a-dia; 3) a

    anlise da estrutura narrativa, que busca identificar os efeitos narrativos especficos que operam dentro de uma narrativa particular, ou elucidar seu papel na narrao da histria (THOMPSON, 2000, p. 374) e 4) a anlise argumentativa, que objetiva reconstruir e tornar explcitos os padres de inferncia que caracterizam o discurso (p. 374).

    A terceira e ltima fase a interpretao e reinterpretao, que busca explicitar, de modo criativo, o que dito ou representado pela forma simblica. Para tanto, apoia-se nos resultados das fases anteriores, indo, porm, alm deles. Afinal, como diria Thompson (2000, p. 375-376),

    a interpretao implica um movimento novo de pensamento, ela procede por sntese, por construo criativa de possveis significados.... Ela transcende a contextualizao das formas simblicas tratadas como produtos socialmente situados, e o fechamento das formas simblicas como construes que apresentam uma estrutura articulada. As formas simblicas representam algo, elas dizem alguma coisa sobre algo, e esse carter transcendente que deve ser compreendido pelo processo de interpretao.

    Ao esquematizar o referencial metodolgico da HP nessas trs fases, lanando luz tanto sobre os aspectos estruturais quanto conjunturais das formas simblicas, Thompson (2000) escapa das armadilhas de dois tipos de falcia: a reducionista e a internalista. A primeira supe que as formas simblicas podem ser analisadas a partir apenas de sua localizao scio-histrica, como se seu contedo e suas caractersticas estruturais no tivessem nada a dizer; enquanto que a segunda supe que seu contedo e suas caractersticas estruturais devem ser o

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    alfa e o mega da anlise, como se fosse possvel identificar as caractersticas e os efeitos das formas simblicas analisando-as em si mesmas, isoladamente das condies scio-histricas a partir das quais so produzidas, transmitidas e recebidas.

    Ao escapar dessas falcias, o referencial metodolgico da HP nos possibilita analisar as formas simblicas de uma forma geral de uma maneira sistemtica e apropriada. No entanto, para interpretar o potencial ideolgico dessas formas, Thompson (2000) prope que implementemos as diferentes fases da HP dando uma inflexo crtica a cada uma delas, com a finalidade de identificarmos o sentido a servio da dominao. Assim, quando empregada na anlise da ideologia, a HP deve prestar ateno especial s formas de dominao que caracterizam os contextos de produo, transmisso e recepo das formas simblicas e em como os sentidos mobilizados pelas caractersticas estruturais dessas formas simblicas podem estar alimentando essas formas de dominao. Trabalho que exige, simultaneamente, certa sensibilidade em relao s caractersticas estruturais das formas simblicas e certo conhecimento da forma como so estruturadas as relaes humanas.

    Consideraes finais Embora a preocupao central deste trabalho tenha recado sobre as conexes especficas entre os conceitos de ideologia e cultura do Thompson (2000), bem como a pertinncia de cada um deles para a anlise das formas simblicas em geral, no poderia encerr-lo sem indicar que o exame desses conceitos deve,

    seguindo as anlises do prprio autor, levar em conta o papel central da natureza e do impacto dos meios de comunicao de massa nas sociedades modernas. Afinal, foi graas ao desenvolvimento e proliferao desses meios que assistimos hoje em dia a um processo de midiao da cultura. Processo este que permite que a mobilizao dos sentidos das formas simblicas seja capaz de transcender o contexto social imediato em que essas formas so produzidas, tornando sua audincia mais extensa e potencialmente mais ampla. O que, consequentemente, faz com que o raio de operao da ideologia aumente significativamente, ou seja, faz com que os fenmenos ideolgicos possam emergir como um fenmeno de massa.

    Referncias

    BOURDIEU, P. Questes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

    GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

    LOPES, F. T. P.; VASCONCELLOS, E. G. Os alicerces metatericos da teoria social de John B. Thompson. Psico, v. 41, n. 1, p. 67-75, 2010.

    THOMPSON, J. B. Critical Hermeneutics: a study in the thought of Paul Ricouer and Jrgen Habermas. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.

    THOMPSON, J. B. Studies in the theory of ideology. Cambridge: Polity Press, 1984.

    THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social e crtica na era dos meios de comunicao de massa. Petrpolis: Vozes, 2000.

    Recebido em 2014-03-21 Publicado em 2014-07-06