02 - A Análise Estrutural Em Linguística e Em Antropologia

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CAPITULO II A ANÁLISE ESTRUTURAL EM LINGUÍSTICA E EM ANTROPOLOGIA (1) No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional: ela não é uma ciência social como as outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida, que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise. Esta situação privilegiada acarreta aignmas dependências: o lingüista verá muitas vêzes pesquisadores provenientes de disciplinas vizinhas, mas diferentes, se inspirarem em seu exemplo e tentar seguir seu caminho. Noblee oblige: uma revista lingüistica como Word não pode se limitar à ilustração de teses e de pontos de vista estritamente lingüísticos. Tem também que acolher os psicólogos, sociólogos e etnógrafos ansiosos por aprender da lingüística moderna o caminho que conduz ao conhecimento positivo dos fatos sociais. Como escrevia, há vinte anos, Marcel Mauss: “A sociologia estaria, certamente, muito mais avançada se tivesse procedido, em tôclas as situações, à maneira dos lingüistas. . .“ (2). A estreita analogia de método que existe entre as duas disciplinas lhes impõe um dever especial de colaboração. (1) Publicado com o título, L’Analyse Structurale en linguistique et anthropologie, Word, Journa2 o! the Ldvguistic Circie of Neu’ York, vol. 1, O 2, agôsto de 1945, pp. 1-21. (2) Rapports reels et pratiques, etc...., ia: Sociologie ei Anthropologie, Paris, 1951. 45 Desde Schrader (3), não há mais necessidade de demonstrar que assistência a lingüística pode traber ao sociólogo no estudo dos problemas de parentesco. Foram lingüistas e filó- logos (Schrader, Rose) (4) que demonstraram a improbabilidade da hipótese —à qual tantos sociólogos ainda se aferravam na mesma época— de sobrevivências matrilineares na família antiga. O linguista fornece ao sociólogo etimologias que permitem estabelecer, entre alguns têrmos de parentesco, vínculos que não eram imediatamente perceptíveis. Inversamente, o sociólogo pode fazer conhecer ao lingüista costumes, regras positivas e proibições que fazem compreender a persistência de certos traços da linguagem, ou a instabilidade de têrmos ou de grupos de têrmos. Durante uma sessão recente do Círculo lingüístico de Nova lorque, Julien Bonfante ilustrava êste ponto de vista relembrando a etimologia do nome do tio em certas línguas. romanas: o grego theios dando, em italiano, espanhol e português, zio e tio; e acrescentava que, em algumas regiões da Itália, o tio se chama barba. A “barba”, o “divino” tio, quantas sugestões êstes têrmos não trazem ao sociólogo! As pesquisas do lastimado Hocart sôbre o caráter religioso da relação avuncular e o roubo do sacrifício pelos parentes maternos, nos vêm logo à memória (5). Qualquer que seja a interpretação que convenha dar aos fatos recolhidos por Hocart (a sim não é por certo inteiramente satisfatória), é indubitável que o lingüista colabora para a solução do problema, revelando, no vo— cabulário contemporâneo, a persistência tenaz de relações desaparecidas. Ao mesmo tempo, o sociólogo explica ao lingüista a razão de sua etimologia e confirma sua validade. Mais recentemente, foi dedicando-se como lingüista, aos sistemas de parentesco da Ásia do Sul, que Paul K. Benedict pôde trazer

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CAPITULO II

A ANÁLISE ESTRUTURAL EM LINGUÍSTICA E EM ANTROPOLOGIA (1) No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional: ela não é uma ciência social como as outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida, que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise. Esta situação privilegiada acarreta aignmas dependências: o lingüista verá muitas vêzes pesquisadores provenientes de disciplinas vizinhas, mas diferentes, se inspirarem em seu exemplo e tentar seguir seu caminho. Noblee oblige: uma revista lingüistica como Word não pode se limitar à ilustração de teses e de pontos de vista estritamente lingüísticos. Tem também que acolher os psicólogos, sociólogos e etnógrafos ansiosos por

aprender da lingüística moderna o caminho que conduz ao conhecimento positivo dos fatos sociais. Como já escrevia, há vinte anos, Marcel Mauss: “A sociologia estaria, certamente, muito mais avançada se tivesse procedido, em tôclas as situações, à maneira dos lingüistas. . .“ (2). A estreita analogia de método que existe entre as duas disciplinas lhes impõe um dever especial de colaboração. (1) Publicado com o título, L’Analyse Structurale en linguistique et anthropologie, Word, Journa2 o! the Ldvguistic Circie of Neu’ York, vol. 1, O 2, agôsto de 1945, pp. 1-21. (2) Rapports reels et pratiques, etc...., ia: Sociologie ei Anthropologie, Paris, 1951. 45

Desde Schrader (3), não há mais necessidade de demonstrar que assistência a lingüística pode traber ao sociólogo no estudo dos problemas de parentesco. Foram lingüistas e filó- logos (Schrader, Rose) (4) que demonstraram a improbabilidade da hipótese —à qual tantos sociólogos ainda se aferravam na mesma época— de sobrevivências matrilineares na família antiga. O linguista fornece ao sociólogo etimologias que permitem estabelecer, entre alguns têrmos de parentesco, vínculos que não eram imediatamente perceptíveis. Inversamente, o sociólogo pode fazer conhecer ao lingüista costumes, regras positivas e proibições que fazem compreender a persistência de certos traços da linguagem, ou a instabilidade de têrmos ou de grupos de têrmos. Durante uma sessão recente do Círculo lingüístico de Nova lorque, Julien Bonfante ilustrava êste ponto de vista relembrando a etimologia do nome do tio em certas línguas. romanas: o grego theios dando, em italiano, espanhol e português, zio e tio; e acrescentava que, em algumas regiões da Itália, o tio se chama barba. A “barba”, o “divino” tio, quantas sugestões êstes têrmos não trazem ao sociólogo! As pesquisas do lastimado Hocart sôbre o caráter religioso da relação avuncular e o roubo do sacrifício pelos parentes maternos, nos vêm logo à memória (5). Qualquer que seja a interpretação que convenha dar aos fatos recolhidos por Hocart (a sim não é por certo inteiramente satisfatória), é indubitável que o lingüista colabora para a solução do problema, revelando, no vo— cabulário contemporâneo, a persistência tenaz de relações desaparecidas. Ao mesmo tempo, o sociólogo explica ao lingüista a razão de sua etimologia e confirma sua validade. Mais recentemente, foi dedicando-se como lingüista, aos sistemas de parentesco da Ásia do Sul, que Paul K. Benedict pôde trazer

(3) O. SCHRADER, Prehistoric Antiqu.ities of the Ar’yan People8, trad. F. B. Jevons (Londres, 1890), cap. XII, parte 4. (4) O. SCHRADER, loc. cit.: H. J. Rosa, On the Alleged Evidence for Mother-Right ia Early Greece, Folklore, 22 (1911). Ver também, sôbre esta questão, as outras mais recentes de G. Thomson, favorável à hipótese de sobrevivências matrilineares. (5) A. M. HOCART, Chieftainship and the Sister’s Son in the Pacific, American Anthropologist, n. s., vol. 17 (1915); The Uterifle Nephew, Man, 23 (1923), n.° 4; The Cousin in Vedic Ritual, Indiarn Antiquarry, vol. 54 (1925); etc.

uma ‘contribuição importante à ociologia da família desta parte do mundo (6). Mas, procedendo dêste modo, lingüistas e sociólogos prosseguem independentemente suas respectivas rotas. Sem dúvida,, de vez em quando fazem uma parada para comunicar uns aos outros, alguns resultados; contudo, êstes resultados provêm de procedimentos diferentes, e não se tenta nenhum esfôrço para fazer beneficiar um grupo com os progressos técnicos e meto dológicos conseguidos pelo outro. Esta atitude podia ser entendida numa época onde a pesquisa lingüista se apoiava sobretudo na análise histórica. Em relação à pesquisa etnológica, tal como era praticada no mesmo período, a diferença era de grau, mais do que de natureza. Os lingüistas tinham um método mais rigoroso; seus resultados eram mais bem estabelecidos; os sociológos podiam se inspirar em seu exemplo, “renunciando a tomar por base de suas classificações a consideração no espaço das espécies atuais” (7) ; mas, afinal de contas, a antropologia e a sociologia só esperavam lições da lingüística; nada fazia prever uma revelação (8). O nascimento da fonologia subverteu esta situação. Ela não renovou apenas as perspectivas lingüisticas: uma transformação dessa amplitude não está limitada a uma disciplina particular, A fonologia não pode deixar de desempenhar, perante as ciências sociais, o mesmo papel renovador que a física nuclear, por exemplo, desempenhou no conjunto das ciências exatas. Em que consiste esta revolução, quando tratamos de encará-la em suas implicações mais gerais? É o ilustre mestre da fonologia, N. Trubetzkoy, quem nos fornecerá a resposta a

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(6) P. K. BENEDICT, Tibetan and Chinese Kinship Terms, Ha’rvard Journ. of A8iatic Studiee, 6 (1942); Studies in Thai Kinship Terminology, Journ. of the Amer. Oriental Society, 63 (1943). (7) L. RRUNSCHVICG, le Progrès de la conscienee dan8 la pki2osophie occidentale, II (Paris, 1927), p. 562. (8) Entre 1900 e 1920, os fundadores da lingtiística inoderna, Ferdinand de Saussure e Antoi.ne Meillet, situam-se resolutaniente sob a proteção dos aociólogos. Sómente após 1920 que Marcel Mauss começa, como dizem os economistas, a inverter a tendência.

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esta questão. Num artigo-programa (9), êle reduz, em suma ,o método fonológico a quatro procedimentos fundamentais: em primeiro lugar, a fonologia passa do estudo dos fenômenos liiigüísticos cmscientes ao estudo de sua infraestrutura inconsciente; ela se recusa a tratar os têrnws como entidades independentes, tomando, ao contrário, como base de sua análise as relações entre os têrmos; introduz a noção de sistema —“A fonologia atual não se limita a declarar que os fonemas são sempre membros de um sistema, ela mostra sistemas fonológicos concretos e torna patente sua estrutura” (1O)_ enfim, visa à descoberta de leis gerais, quer encontradas por indução, “quer... deduzidas làgicamente, o que lhes dá um caráter absoluto” (11). Assim, pela primeira vez, uma ciência social consegue formular relações necessárias. Tal é o sentido desta última frase de Trubetzkoy, ao passo que as regras precedentes mostram como a lingüística deve se arranjar para chegar a êste resultado. Não nos cabe mostrar aqui que as pretensões de Trubetzkoy são justificadas; a grande maioria dos lingüistas modemos parece suficientemente de acôrdo sôbre êste ponto. Mas quando se dá um acontecimento desta importância numa das ciências do homem, não sàmente é permitido aos representantes das disciplinas vizinhas, mas exigido dêles, verificar imediatamente suas conseqüências e sua aplicação possível a fatos de outra ordem. Novas perspectivas se abrem então. Não se trata mais apenas de uma colaboração ocasional, onde o lingüista e o sociólogo, cada qual trabalhando em seu canto, se atiram de vez em quando o que cada um acha que pode interessar ao outro. No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida também no estudo de outros problemas), e sociólogo se vê numa situação formalmente semelhante à do lingüista fonólogo: como os fonemas, os têrmos de parentesco são elementos de significação; como êles, só adquirem esta significação sob a condição de se integrarem em sistemas; os “sistemas de parentesco”, como ‘os “sistemas fonológicos”, são elaborados pelo espírito no estágio

(9) N. TRUBEPZKOY, la Phonologie actueile, in: Ps’ychologie du langage (Paris, 1933). (10) Op. cit., p. 243. (11) Ibid.

do pensamento inconsciente; enfim a recorrência, em regiões afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferews, de formas de parentesco, regras de casamento, atitudes idênticamente prescritas entre certos tipos de parentes, etc., faz crer que, em ambos os- casos, os fenômenos observáveis resultam do jôgo de leis gerais, mas ocultas. O problema pode então se formular da seguinte maneira: numa outra ordem de realidade, os fenômenos de parentesco são fenômenos do mesmo tipo que os fenômenos lingüísticos. Pode o sociólogo, utilizando um método análogo, quanto à forma (senão quanto ao conteúdo), ao método introduzido pela fonologia, conduzir sua ciência a um progresso análogo ao que acaba de se realizar nas ciências lingüisticas? Sentir-nos-emos ainda mais dispostos a nos empenhar nesta direção, quando tivermos feito uma constatação suplementar: o estudo dos problemas de parentesco se apresenta hoje em dia nos mesmos têrmos, e parece que às voltas com as mesmas dificuldades, que a lingüística na véspera da revolução fonológica. Entre a antiga lingüística, que procurava, antes de tudo, na história seu princípio de explicação, e algumas tentativas de Rivers existe uma notável analogia: nos dois casos, sózinho, —ou quase que só— o estudo diacrônico deve explicar fenômenos sincrônicos. Comparando a fonologia e a antiga lingüística, Trubetzkoy define a primeira como um “estruturalismo e um universalismo sistemático”, que opõe ao individualismo e ao “atomismo” das escolas anteriores. E quando êle considera o estudo diacrônico, o faz numa perspectiva profundamente modificada: “A evolução do sistema fonológico é, a cada momento dado, dirigida pela tendência a uma finalidade... Esta evolução tem pois um sentido, uma lógica interna, que se exige da fonologia histórica que torne patente” (12). Esta interpretação “individualista”, “atomista”, exclusivamente fundada na contingência histórica, criticada por Trubetzkoy e Jakobson, é exatamente a mesma, com efeito, que a geralmente

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(12) Op. cit., p. 245; R. JAKOBSON, Pnnzipen der historischen Phonologie, Trcvvaux ctu Cercie tinguistique de Prague, IV; também, as Renwirques s’u.r. revo1uti phowl»gique du ru8se, do mesmo autor, ibid., II.

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aplicada aos problemas de parentesco (13). Cada detalhe de terminologia, cada regra especial do casamento, é ligada a um costume diferente, como uma conseqüência ou vestígio: cai-se num excesso de descontinuidade. Ninguém se pergunta como os sistemas de parentesco, considerados em seu conjunto sincrônico, po4eriam ser o resultado arbitrário do encontro entre muitas instituições heterogêneas (a maior parte, aliás, hipotéticas), e contudo funcionar com uma regularidade e eficácia qualquer (14).

Contudo, uma dificulda.de preliminar se opõe à transposição do método fonológico aos estudos de sociologia primitiva. A analogia superficial entre os sistemas fonológicos e as sistemas de parentesco é tão grande que impele imediatamente a uma pista falsa.. Esta consiste em assimilar, do ponto de vista de seu tratamento formal, os têrmos de parentesco aos fonemas da linguagem. Sabe-se que, para atingir uma lei de estrutura, o lingüista analisa os fonemas em “elementos diferenciais”, que em então ser organizados em um ou vários “pares de oposições” (15). O sociólogo poderia ser tentado a dissociar os têrmos de parentesco de um sistema dado, seguindo um método análogo. Em nosso sistema de parentesco, por exemplo, o têrmo ai tem uma conotação positiva no que concerne, ao sexo, à idade relativa, à geração; ao contrário, tem uma extensão nula, e não pode traduzir uma relação de aliança. Assim, perguntar-se-á, para cada sistema, quais são as relações expressas, e para cada têrmo do sistema, que conotação —positiva ou negativa— possui com referência a cada uma destas relações: geração, extensão, sexo, idade relativa, afinidade etc. É neste estágio “microssociológico” que se espera descobrir as leis de estrutura mais gerais, como o lingüista descobre as suas no estágio infra-fonêmico, ou o físico no estágio infra-molecular,

(13) W. H. R. RIvaRs, The Hist4riJ o! Melivnesian Societ (Londres, 1914), pas8im; Social Organization, cd. W. J. Perry (Londres, 1924), cap. IV. (14) No mesmo sentido, 5. TAX, Some Problems of Social Organization, in: Social Anthropology o! Nortk American T,-jbea, F. Eggan, cd. (Chidago, 1937). (15) R. JAKOBSON, Observations sur le classement phonologique des consonnes, loc. cit.

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isto é, no nível do átomo. Nestes térmos, poder-se-ia interpretar a interessante tentativa de Davis e Warner (16). Mas imediatamente, uma tríplice objeção se apresenta. Unia análise verda4eiramente científica deve ser real, simplificadora e explicativa. Assim os elementos diferen,ciais, que estão no têrmo da análise fonológica, possuem uma existência objetiva no triplo ponto de vista psicológico, fisiológico e até físico; êles são menos numerosos que os fonemas formados por sua combinação; enfim, permitem compreender e reconstruir o sistema. Nada disto rçsultaria da hipótese precedente. O tratamento dos têrmos de parentesco, tal corno acabamos de imaginá-lo, só é analítico na aparência: pois de fato, o resultado é mais abstrato do que o princípio; afastamo-nos do concreto ao invés d,e nos dirigirmos a êle, e o sistema definitivo —se é que há sistema aí— só poderia ser conceitual. Em segundo lugar, a experiência de Davis e Warner prova que o sistema obtido por êste processo é infinitamente mais complicado e difícil de interpretar que os dados da experiência (17). Enfim, a hipótese não tem nenhum valor explicativo: ela não faz compreender a natureza do sistema; permite menos ainda reconstituir sua gênese. Qual é a razão dêste revés? Uma fidelidade demasiado literal ao método do lingüista trai, na realidade, seu espírito. Os têrmos de parentesco não têm apenas uma existência sociológica: são também elementos do discurso. É preciso não se esquecer, esforçando-se para transpô-los aos métodos de análise do lingüista, que, enquanto parte do vocabulário, êles dependem dêstes métodos, não de maneira analógica, mas direta. Ora, a lingüística ensina precisamente que a análise fonológica

(16) K. DAvis e W. L. WARNER, Structural Analysis of Kinship, Amerkan Anthropologist, n. a., vol. 37 (1935). (17) É assim que, no fim da análise dêstes autores, o têrino “marido” se encontra substituído pela fórmula: //Q S U ‘ 8/Ego (loc. cit.)

Aproveitaremos a ocasião para indicar dois estudos recentes, utilizando um aparelho lógico mais refinado e que oferecem um grande interêsse quanto ao método e aos resultados. Cf. F. G. LOUNSBUR’, A Semantic Analysis of

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the Pawnee Kinship Usage, Language v,l. 32, -n.° 1, 1956. W. H. GOODENOUGH, The Componential Anaiysis of Kinaliip, ID., ibid.

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não incide diretamente sôbre as palavras, mas sàmente sâbre as palavras prèviamente dissociadas em fonemas. Não existem relações necessárias no uivei do vocabulário (18). Isto é verdade para todos os elementos do vocabulário —aí compreendido, os têrmos de parentesco. Isto é verdadeiro em lingüística, e deve pois ser verdadeiro ipso facto para uma sociologia da linguagem. Uma tentativa como esta, cujas possibilidades discutimos agora, consistiria então em estender o método fonológico, mas esquecendo seu fundamento. Kroeber, num artigo bem antigo, previu esta dificuldade de maneira profética (19). E se concluiu, naquele momento, pela impossibilidade de uma análise estrutural dos têrmos de parentesco, é que a própria lingüística se encontrava então reduzida a uma análise fonética, psicológica e histórica. As ciências sociais devem, com efeito, partilhar as limitações da lingüística; mas elas podem também se aproveitar de seus progressos. É preciso não negligenciar também a diferença muito profunda que existe entre o quadro dos fonemas de uma língua e o quadro dos têrmos de parentesco de uma sociedade. No primeiro caso, não há dúvida quanto à função: sabemos todos para que serve uma linguagem; serve para comunicação. O que o lingüista ignorou durante muito tempo, pelo contrário, e que sômente a fonologia lhe permitiu descobrir, é o meio pelo qual a linguagem chega a êste resultado. A função era evidente; o sistema permanecia desconhecido. A êste respeito, o sociólogo se encontra em situação inversa: que os têrmos de parentesco constituem sistemas, nós o -sabemos claramente desde Lewis H. Morgan; pelo contrário, sempre ignoramos para que uso se destinam, O desconhecimento desta situação inicial reduz a maior parte das análises estruturais de sistemas de parentesco a puras tautologias. Elas demonstram o que é evidente, e negligenciam o que permanece desconhecido. Isto não significa que devíamos renunciar a introduzir uma ordem e descobrir uma significação nas nomenclaturas de parentesco. Mas é necessário ao menos reconhecer os proble (18

Como se notará lendo o cap V, eu usaria presentemente uma fórmula mais matizada. (79) A. L. KROEBSa, Classificatory Systems of Relationship, Journ. o! the Roya1 AiithropoL Institute, vol. 39, 1909.

ruas especiais que supõe uma sociologia do vocabulário, e o caráter ambíguo das relações que unem seus métodos aos da lingüística. Por esta razão, seria preferível nos limitarmos à discussão de um caso onde a analogia se apresenta de maneira simples. Felizmente, temos esta possibilidade. O que se denomina geralmente “sistema d,e parentesco” recobre, realmente, duas ordens bem diferentes de realidade. Inicialmente, existem aí têrmos, pelos quais se exprimem os diferentes tipos de relações familiais. Mas o parentesco não se exprime ànicamente numa nomenclatura; os individuos, ou as classes de indivíduos que utilizam os têrmos, se sentem (ou não se sentem, conforme o caso) obrigado3 uns em relação aos outros a uma conduta determinada: respeito ou familiaridade, direito ou dever, afeição ou hostilidade. Assim, ao lado do que propomos nomear o sistema terminológico (e que constitui, para sermos exatos, um sistema de vocabulário), existe outro sistema, de natureza igualmente psicológica e social, que designaremos como sistema de atitudes. Ora, se é verdade (como o mostramos acima) que o estudo de sistemas terminológicos nos coloca numa situação análoga àquela na qual nos encontramos face aos sistemas fonológicos, mas inversa, esta situação se encontra, por assim dizer, “retificada’ qtiando se trata de sistemas de atitudes. Adivinhamos o papel representado por êstes últimos, que é assegurar a coesão e o equilíbrio do grupo, mas não compreendemos a natureza das conexões existentes entre as diversas atitudes, e não percebemos sua necessidade (20). Em outros têrmos, e como no caso da linguagem, nós conhecemos a função, mas o que nos falta é o sistema. Entre sistema terminológico e sistema de atitudes vemos pois urna diferença profunda, e nos separamos neste ponto de A. R. Radcliffe-Brown se êle realmente acreditou, como lho censuraram às vêzes, que o segundo era apenas a expressão,

(20) necessário excetuar a notável obra de W. Lloyd WqaNsis, Morphology and Functions of the Australian Murngin Type of Kinship, Amer. Antkrop., n. a., voL32-33 (1930-1931), onde a análise do sistema de atitudes, discutível quanto ao fundo, não deixa de inaugurar uma nova fase no estudo dos problemas de parentesco.

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ou a tradução no plano afetivo, do primeiro (21). Ao longo destes ultimos anos, foram fornecidos numerosos exemplos dc grupos onde o quadro dos têrmos de parentesco não reflete exatamente o das atitudes familiais, e redprocamente• (22). Enganar-nos-íamos acreditando que, em qualquer sociedade, o sistema de parentesco constitui o meio principal pelo qual

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se regulam as relações individuais; e mesmo nas sociedades onde êste papel lhe é destinado, êle nãó o preenche sempre no mesmo grau. Ademais, é necessário distinguir sempre entre dois tipos de atitudes: primeiramente as atitudes difusas, não-cristalizadas e desprovidas de caráter institucional, das quais se pode admitir que são, no plano psicológico, o reflexo ou a eflorescência da terminologia; e concomitantemente, ou além das precedentes, as atitudes estilizadas, obrigatórias, sancionadas por tabus ou privilégios, e que se exprimem através de cerimonial fixo. Longe de refletir automàticamente a nomenclatura, estas atitudes aparecem freqüentemente como elaborações secundários destinadas a resolver contradições e superar insuficiências me- Tentes ao sistema terminológico. Éste caráter sintético ressalta de maneira particularmente surpreendente entre os Wik Munkan da Austrália; neste grupo, os privilégios de zombaria vêm sancionar uma contradição entre as relações de parentesco que unem dois homens, prêviamente a seu casamento, e a relação teórica que seria necessário supor entre êles para explicar seu casamento subseqüente com duas mulheres que não se encontram, entre si, na relação correspondente (23). Há contradição entre dois sistemas possíveis de nomenclatura, e o acento pôsto nas atitudes representa um esfôrço para integrar, ou ultrapassar, esta contradição entre os têrmos. Concordaremos sem di.ficuldade com Radcliffe-Brown para afirmar a existência de

(21) A. R. RMCLIFFE-BROWN, Kinship Terminology in California, Amer. Anthrop., n. s., vol. 37 (1935); The Study of Xinship Systems, Journ. of the Roy. Anthrop. Inst., vol. 71 (1941). (22) M. E. OPLER, Apache Data Concerning the Relation of Kinship Terminology to Social Glassification, Amer. Anthrop., n. s., vol. 39 (1937); A. M. HALPERN, Yuma Kinship Terms, ibid., 44 (1942). (23) D. F. TH0MSON, The Joking-Relationship and Organized Obscenity in North Queensland, Amer. Anthrop., n. s., vol. 37 (19S5).

“rèlações reais de interdependência entre a terminologia e o resto do sistema” (24); ao menos alguns de seus críticos se enganaram, concluíndo, da ausência de um paralelismo rigoroso entre atitudes e nomenclatura, a autonomia recíproca das duas ordens. Mas esta relação de interdependência não é unia correspondência têrmo a têrmo. O sistema de atitudes constitui antes uma integração dinâmica do sistema terminológico. Mesmo na hipótese —a que aderimos sem reserva— de uma relação funcional entre os dois sistemas, tem-se pois o direito, por razões de método, de tratar os problemas aferentes a cada um como problemas separados. É o que nos propomos fazer aqui para um problema considerado com justiça como o ponto de partida de qualquer teoria de atitudes: o do tio materno. Tentaremos mostrar como uma tratsposição formal do método seguido pela fonologia permite esclarecer êste problema sob uma nova luz. Se os sociólogos lhe atribuíram uma atenção particular, é, realmente, apenas porque a relação entre o tio materno e o sobrinho parecia se constituir em objeto de um importante desenvolvimento num grande número de sociedade primitivas. Mas não basta constatar esta freqüência; é preciso descobrir sua razão. Recordemos râpidamente as principais etapas do desenvolvimento dêste problema. Durante todo o século XIX e até Sydney Hartland, (25), interpretou-se naturalmente a importância do tio materno como uma sobrevivência de um regime matrilinear. Êste continuava puramente hipotético, e sua possibilidade era particularmente duvidosa em vista dos exemplos europeus. Por outro lado, a tentativa de Rivers (26) para ex— plicar a importância do tio materno na Índia do Sul como um resíduo do casamento entre primos cruzados terminava num

(24) The Study of Kinship Systems, op. cit., p. 8. Esta última fórmula de Radcliffe-Bro’wn nos parece muito mais satisfatória do que sua afirmação, de 1935, de que as atitudes apresentam “um grau razoàvelmente alto de correlação com a classificação terminológica” (Amer. Anthrop., n. s., 1935, p. 53) (em inglês, no original — nota do T). (25) S. HARTLAND, Matrilineal Kinship and the Question of its Priority, Mcm. of the Amer. Anthrop. Assoc., 4 (1917). (26) W. H. R. Rivnas, The Mariage of Cousins in India, Journ, o! the Roya1 Asiatk Saciey, julho, 194Y7.

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esultado particularmente aflitivo: o próprio autor teve que re.onhecer que esta interpretação não podia explicar todos os aspectos do problema, e êle se resignava à hipótese de que vi.irios costumes heterogêneos, e agora desaparecidos (o casamento de primos sendo apenas um dêles), tivessem que ser invocados para compreender a existência de uma única instituição. O atomismo e o mecanicismo triunfavam (27). De fato, é sõmente com o artigo capital de Lowie sâbre o complexo matrilinear (28) que se abre o que se poderia denominar a “fase moderna” do problema do avunculado. Lowie mostra que a correlação invocada, ou postulada, entre a predominância do tio materno e um regime matrilenar .não resiste à análise; de fato, o avunculado se encontra associado a regimes patrilineares tanto quanto a regimes matrilineares. O papel do tio materno não se explica como uma conseqüência ou sobrevivência de um regime de direito materno; é sômente a aplicação particular “de unia tendência muito geral de associar relações sociais definidas com formas definidas de parentesco sem considerar o lado materno ou paterno”. Êste princípio, introduzido pela primeira vez por Lowie em 1919, segundo o qual existe uma tendência geral para qualificar as atitudes, constitui a única base positiva de uma teoria de sistemas de parentesco. Mas ao mesmo tempo, Lowie deixava algumas questões sem resposta: o que se denomina, com

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exatidão, de avunculado? Não se confundem sob um único têrmo costumes e atitudes diferentes? E se é verdade que existe uma tendência para qualificar tôdas as atitudes, por que sàmente algumas atitudes se encontram associadas à relação avuncular, e não, segundo os grupos considerados, quaisquer atitudes possíveis? Abramos aqui um parêntese para sublinhar a analogia surpreendente que se manifesta entre a marcha de nosso problema e certas etapas da reflexão lingüística: a diversidade das atitudes possíveis no domínio das relações interindividuais é pràticamente ilimitada; dá-se o mesmo para a diversidade de sons que o aparelho vocal pode articular, e produz efetivamente, nos primeiros meses da vida humana. Contudo, cada língua

(27) Op. cit., p. 624. (28) R. H. L0wIE, The Matrilineal Complex, Univ. of California Pubi. in Ainer. Archaeol. arnd Ethiiol., 16 (1919), n.° 2.

só retém um número muito pequeno dentre todos os sons possíveis, e a lingiística se coloca duas questões a êste respeito: porque foram selecionados alguns sons? Que relações existem entre um ou muitos dos sons escolhidos e todos os outros (29)? Nosso esbôço da história do problema do tio materno se encontra precisamente no mesmo estágio: o grupo social, como a língua, encontra à sua disposição um material psico-fisiológico muito rico; do mesmo modo que a língua, êle retém apenas alguns elementos, dos quais ao menos alguns permanecem os mesmos através das culturas mais diversas, e que êle combina em estruturas sempre diversificadms. Pergunta-se, pois, qual é a razão da escolha, e quais são as leia de combinação. No que concerne ao problema particular da relação avuncular, é então para Radcliff-Brown que convém se dirigir; seu célebre artigo sôbre o tio materno na África do Sul (30) é a primeira tentativa para atingir e analisar as modalidades do que podériamos denominar o “princípio geral da qualificação de atitudes”. Bastará recordar ràpidmente, aqui, as teses fundamentais dêste estudo, hoje clássico. Segundo Radcliffe-Brown, o têrmo avunculado recobre dois sistemas de atitudes antitéticas: num caso, o tio materno representa a autoridade familial; êle é temido, respeitado, obedecido e possui direitos sóbre seu sobrinho; no outro, é o sobrinho quem exerce privilégios de familiaridade em relação a seu tio, e pode tratá-lo mais ou menos como vítima. Em segundo lugar, existe uma correlação entre a atitude face ao tio materno e a atitude com relação ao pai. Em ambos os casos. encontramos os ,mesmos dois sistemas de atitudes, mas invertidos: nos grupos onde a relação entre o pai e filho é familiar, a relação entre tio materno e sobrinho é rigorosa; e lá onde o pai aparece como o austero depositário da autoridade faniilial, é o tio que é tratado com liberdade. Os dois grupos de atitudes formam então, como diria o fonólogo, dois pares de oposições. Radcliffe-Brown terminava propondo uma interpretação do fenômeno: a filiação determina, em última análise,

(29) R. JAKOBS0N, Kindrspraeh.e, Aphaie und aligemeine Lautgesetze (Upsala, 1941). (30) A. R. RADCLIFFE-BROWN, The Mother’s Brother in South Africa, South Africoin Journei of Srjieiu.,e, vol. 21 (1924).

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o sentido destas ojxsições. No regime patrilinear, onde o pai e a linhagem do pai representam a autoridade tradicional, o tio materno é considerado como uma “mãe masculina”, geralmente tratado da mesma maneira e às vêzes mesmo chamado pelo mesmo têrmo que a mãe. A situação inversa se encontra realizada no regime matrilinear: aí o tio materno encarna a autoridade, e as relações de ternura e de familiaridade se fixam no pai e em sua linhagem. Dificilmente se poderia exagerar a importância desta contribuição de Radcliffe-Brown. Após a impiedosa crítica da me •tafísic evolucionista, tão magistralmente conduzida por Lowie. o esfôrço de síntese é retomado numa base positiva. Dizer que êste esfôrço não atingiu de uma só vez o seu têrmo não é por certo atenuar a homenagem que se deve prestar ao grande sociólogo inglês. Reconheçamos, pois, que o artigo d Radcliffe-Brown deixa, também êle, abértas questões tremendas em primeiro lugar, o avunculado não se encontra presente em todos os sistemas matrilineares e patrilineares; e encontramo-lo s vêzes em sistemas que’ não são nem um nem outro (31). Em seguida, a relação a’i’uncular não é uma relação a dois, mas a quatro têrmos: ela supõe um irmão, uma irmã, um cunhado e um sobrinho. Uma interpretação como a de Radcliffe-Brown isola arbitràriamente certos elementos de uma estrutura global, e que deve ser tratada como tal. Alguns exempios simples salientarão esta dupla dificuldade. A organização social ds indígenas das ilhas Trobriand, na Melanésia, se caracteriza pela filiação matrilinear, relações livres e familiares entre pai e filho, e um antagonismo acentuado entre tio materno e sobrinho (32). Ao contrário, os Tcherkesse do Cáucaso, que são patrilineares, situam a hostilidade entre pai e filho, ao passo que o tio materno ajuda seu sobrinho, presenteando-o com um cavalo quando êle se

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(31) Assim os Mundogomor da Nova-Guiné, onde a relação entre tio materno e sobrinho é constantemente familiar, ao passo que a filiação é alternativamente patrilinear e matrilinear. Cf. Margaret MEAD, Sex cz.nd Temperament in Three Priinitive Societies (Nova lorque, 1935), pp. 176-185. (32) B. MÀLINOWSKI, The Sexual Li! e of Swvages in Northwester’n Mela.nesia (Londres, 1929), 2 vols.

casa ‘(33). Até aqui, estamos nos limites do esquema de Radcliffe-Brown. Mas consideremos as outras relações famiiais em causa: Malinowski mostrou que nas ilhas Trobriand, marido e mulher vivem numa atmosfera de intimidade terna e que suas relações apresentam caráter de reciprocidde. Em compensação as relações entre irmão e irmã são dominadas por um tabu de extremo rigor. Qual é a situação no Cáucaso? A relação entre irmão e irmã é que é a relação terna, a tal ponto que, entre os Pschav, uma filha única “adota” um irmão que desempenhará junto dela o papel, habitual ao irmão, de casto companheiro de leito (34). Mas a situação é completamente diferente entre esposos: um Tcherkess não ousa aparecer piiblicamente com sua mulher e só a visita em segrêdo. Segundo Malinowski, não existe insulto mais grave, em Trobriand, do que dizer a um homem que êle se assemelha a sua irmã; o Cáucaso oferece um equivalente desta proibição, com a inter4ição de e indagar de um homem a respeito da saúde de sua mulher. Quando se consideram sociedades do tipo “Tcherkesse” ou do tipo “Trobriand”, não basta então estudar a correlação de atitudes: pai/filho e tio/filho da ieini. Esta correlação é apenas um aspecto de um sistema global: onde se acham presentes quatro tipos de relações orgânica.mente ligados, a saber: irmJo/irnid, nwido/mulher, pai/filho, tio mat./filho da irmã. Os dois grupos que nos Serviram de exemplo fornecem ambos aplicações de uma lei que se pode formular assim: nos dois grupos, a relação entre tio materno e sobrinho está para a relação entre innão e irmã, como a relação entre pai e filho está para a relação entre marido e mulher. Desçle que um par de relações seja conhecido, será sempre possível deduzir o outro.

Examinemos, agora, outros casos. Em Tonga, na Polinésia, a filiação é patrilinear, como entre os Tcherkesse. As relações entre marido e mulher parecem públicas e harmoniosas: as querelas domésticas são raras e, se bem que possua fre (33

DuBoIs DE MONPEREUX (1839), citado segundo M. KoVALEv SKI, la Famille matriarcale au Caucase, L’Anthropologi”, t. 4 (1893). (34) Ibid.

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qüentemente um status superior ao de seu marido, a mulher “não nutre o menor pensamento de rebelião a seu respeito... para tôdas as questões domésticas, ela se submete de bom grado à sua autoridade”. Do mesmo modo, reina a maior liberdade entre o tio materno e o sobrinho: êste é fahu, acima da lei, face a seu tio, com o qual tôdas intimidades são permitidas. A estas relações livres se opõem as relações entre um filho e seu pai. Êste é tapu, é proibido ao filho tocar sua cabeça ou cabelos, roçá-lo enquanto come, dormir em seu leito ou sôbre seu travesseiro, partilhar sua bebida ou seu alimento, mexer nos objetos que lhe pertencem. Entretanto, o mais forte de todos os tapu é o que prevalece entre irmão e irmã, que nem podem ficar juntos sob o mesmo teto (35). Se bem que sejam também patrilineare5 e patrilocais, os indígenas do lago Kutubu, na Nova-Guiné, oferecem o exempio de uma estrutura inversa da precedente: “Jamais vi associação tão íntima entre pai e filho”, escreve F. E. Williams a seu respeito. As relações entre marido e mulher são caracterizadas pelo status muito baixo atribuído ao sexo feminino, “a separação rigorosa entre os centros de interêsse masculino e feminino”. As mulheres, diz Williams, “devem trabalhar dura- mente para seu senhor.., de vez em quando elas protestam e recebem uma surra”. Contra seu marido, a mulher se beneficia sempre da proteção de seu irmão, e é junto dêle que procura refúgio. Quanto às relações entre o sobrinho e tio materno: “O que melhor as resume é o têrmo “respeito”... com um matiz de temor”, pois o tio materno tem o poder (como entre os Kipsigi da África) de maldizer seu sobrinho e afligi-lo com uma grave doença (36). Esta última estrutura, tirada de uma sociedade patrilinear,. é, entretanto, do mesmo tipo que a dos Siuai d,e Bougainvilie, que têm filiação matrilinear. Entre irmão e irmã, “relações amigáveis e generosidade reciproca”. Entre pai e filho “nada indica uma relação de hostilidade, de autoridade rígida ou de

(35) E. W. GIFIw, Tonga Society, B. P. Bi.&wp Museum BuUet’in, n.° 61, Honolulu, 199, pp. 16-22. (36) F. E. WILLIAMS, Natives of Lake Kutubu, Padua, Oceo.— fia, vol. II, 1940-1941 e 12, 1941-1942, pp. 265-280 do vol. II. Group Sentiment and Primitive .Tustice, Amkan Anthropologist, vol. 43, n.0 4, Pt. 1, 1941.

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respeito temeroso”. Mas as relações do sobrinho com seu tio materno situam-se “entre a disciplina rígida e uma interdependência naturalmente reconhecida”. Todavia, “os informantes dizem que todos os rapazes têm um certo pavor de seu tio materpo e lhe obedecem melhor do que ao pai”. No que concerne ao marido e à mulher, não parece que reina uma boa harmonia entre êles: “Poucas jovens espôsas são fiéis.., os jovens maridos são sempre desconfiados, propensos a cóleras ciumentas.., o casamento implica em tâda espécie de ajustamentos difíceis” (37). Quadro idêntico, mas ainda mais acentuado em Dobu: matrilineares e vizinhos de Trobriand, também matrilinear, mas com uma estrutura bem diferente. Os casais de Dobu são instáveis, praticam assiduamente o adultério, e marido e mulher temem sempre perecer pela feitiçaria um do outro. De fato, a observação de Fortune de “que é um grave insulto fazer alusão aos podres de feitiçaria de uma mulher, de modo que o seu marido possa ouvir”, parece ser uma permutação das proibições de Trobiand e do Cáucaso anteriormente citadas. Em Dobu, o irmão da mãe é considerado como o mais severo de todos os parentes. “Êle bate em seus sobrinhos muito tempo depois que seus pais deixaram de fazê-lo”, e é proibido pronunciar seu nome. É certo que existe relação terna com o “umbigo”, marido da irmã da mãe, isto é, um duplo do pai, mais do que com o próprio pai. Contudo, o pai é considerado como sendo “menos severo” do que o tio, e, contràriamente à lei de transmissão hereditária, êle empre procura favorecer seu filho às custas de seu sobrinho uterino. Enfim, o elo entre irmão e irmã é “o mais forte de todos os elos sociais” (38). O que se deve concluir dêstes exemplos? A correlação entre formas de avunculado e tipos de filiação não esgota o problema. Diferentes formas de avunculado podem coexistir com um mesmo tipo de filiação, patrilinear ou matrilinear.

(37) Douglas L. OLIvIER,. A Solomm 18kt’nd Society. Kinship and Leci4ership among the Siuai o! Bugaiiiville, Cambridge, Mass. 1955, pasim.

(38) Reo F. FORTUNE, The Sorcerers aí Dobu, Nova Jorque, 192, pp. 8, 10, 45, 62-64, etc.

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Mas èncontrainos sempre a mesma relação fundamental entre os quatro pares de oposições que são necessários para a elaboração do sistema. Isto aparecerá mais claramente nos es— + quemas que ilustram nossos exemplos, e onde o sinal + re— presenta as relações livres e familiares, o sinal — as relações

o 4 acentuadas pela hostilidade, antagonismo ou reserva (Fig. 1). Esta simplificação não é inteiramente legítima, mas pode-se

— \ + utilizá-la de maneira provisória. Mais adiante procederemos

+ às distinções indispensáveis. ________ A lei sincrônica de correlação assim sugerida. pode ser veri , ficada diacrônicamente. Se resumimos a evolução das relações

\ iciirss.s.- familiais na Idade Média, tal como ressalta da exposição de _ \ Howard, obtem-se o seguinte esquema aproximativo: o poder do irmão sôbre a irmã diminue, o do marido prospetivo au- + menta. Simultâneamente, o elo entre pai e filho se debilita, o e— elo entre tio materno e sobrinho se reforça (39).

A = O Esta evolução parece confirmada pelos documentos reunidos

\ por L. Gautier, pois, nos textos “conservadores” (Raoul de

\ + Cambrai, G’esta dos Loherains etc.), a relação positiva se esta-

— 4- belece antes entre pai e filho, e só se desloca progressivamente para o tio materno e o sobrinho (40). *

\ Tonga.- patrflin. * *

— •j.. Vemos pois (41) que o avunculado, para ser compreen dido deve ser tratado como uma relação interior a um sistema, e que é o próprio sistema que deve ser considerado em seu conjunto para se perceber sua estrutura. Esta estrutura está Sivat.— atrI1L,

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+ — (39) G. E. Howin, A HistoDy of Matrimoniat InStitutioii8, 4 3 vois., Chicago, 1904. (40) Léon GAUTiSR, la. Cheixaerie, Paris, 1890. Sôbre o mes m assunto, consultar-se-ão, também com proveito: F. B. GUMME mi The Sister’s Son, in: An Englirh Miscellwnqj Presented to Lac Kutubu.- patrfltn. Dr. Fvrniva.ll, Londres, 1901; W. O. FARNSWORTH, Uncle and Nephew in the Okl French Cha.nson de Geste, Nova lorque, Co _______________________________ lumbia University Press, 1913. (41) Os parágrafos que precedem foram escritos em 19&’7, FIG. i e subs’ it’iídos no texto inicial, em resposta à observação judicio sa de meu colega Luc de Heusch, da Université Libre de Bruxelas, de que um dos meus exemplos era materialmente inexato. Por isto, agradeço-lhe aqui. 63

fundada, ela própria, sôbre quatro tênnos (irmão, irmã, pai, .filho), unidos entre si por dois pares de oposições correlativos, e tais que, em cada uma das duas gerações em causa, existe sempre uma relação positiva e uma relação negativa. Agora, o que é esta estrutura e qual pode ser a sua razão? A resposta é a seguinte: esta estrutura é a estrutura de parentesco mais simples que se pode conceber e que pode existir. É, para sermos exatos, o elemento do parentesco. Em apoio desta afirmação, pode-se fazer valer um argumento de ordem lógica: para que uma estrutura de parentesco exista, é necessário que se. encontrem presentes nela os três tipos de relações familiais sempre dados na sociedade humana, isto é, uma relação de consangüinidade, uma relação de .aliazça, uma relação de filiação; em outras palavras, uma re lação de germano com germana, uma relação de espôso com espôsa, uma relação de pai (ou mãe) com filho. É fácil se explicar que a estrutura aqui considerada é a que permite satisfazer a esta tríplice exigência, segundo o princípio da maior ‘economia. Mas as considerações precedentes têm um caráter abstrato, e uma prova mais direta pode ser invocada para nossa demonstração. O caráter primitivo e irredutível do elemento de parentesco, tal como o definimos, resulta realmente, de modo imediato, da existência universal da proibição do incesto. Isto equivale a dizer que, na sociedade humana, um homem só pode obter uma mulher de um outro homem, que lha cede sob forma de filha ou de irmã. Não temos, pois, necessidad de explicar como o tio materno faz sua aparição na estrutura de parentesco: êle não aparece, êle é imediatamente dado, êle é a sua condição. O êrro da sociologia tradicional, como da lingüística tradicional, é de ter considerado os têrmos, e não as relações entre os têrmos. Antes de continuarmos, eliminemos râpidamente algumas objeções que poderiam vir ao espírito. Em primeiro lugar, se a relação dos “cunhados” forma o eixo inevitável em tôrno do qual se constrói a estrutura do parentesco, por que fazer intervir a criança saída do casamento na estrutura elementar? Deve ficar entendido que a criança representa talvez tanto a criança nascida como a nascer. Mas dito isto, a criança é 4ndispensável para atestar o caráter dinâmico e teleológico dp

procedimento inicial, que funda o parentesco na e através da aliança. O parentesco não é um fenômeno estático; só existe para se perpetuar. Não pensamos aqui no desejo de perpetuar a raça, mas no fato de que, na maior parte dos sistemas de paretuesco, o desequilibrio inicial que se produz, numa dada geração, entre o que cede uma mulher e o que a recebe, só pode se estabilizar pelas contra-prestações que se sucedem nas gerações ulteriores. Mesmo a estrutura de parentesco mais elementar existe simultânearnente na ordem sincrônica e na ordem diacrônica, Em segundo lugar, não se poderia conceber uma estrutura simétrica, de uma simplicidade igual, mas onde os sexos fôssem invertidos, isto é, uma estrutura implicando uma irmã, seu irmão, a mulher dêste último, e a filha nascida de sua união? Sem dúvida; mas esta possibilidad,e teórica pode ser imediatamente eliminada com base experimental: na sociedade humana, são os homens que trocam as mulheres, não o contrário. Resta pesquisar se algumas culturas não tenderam a realizar uma espécie de imagem fictícia desta estrutura simétrica. Os casos só podem ser raros. Chegamos então a uma objeção mais grave. Realmente, poderia acontecer que apenas tivéssemos conseguido revirar o problema. A sociologia tradicional se obstinou em explicar a origem do avunculado, e nós nos desembaraçamos desta pesquisa tratando o irmão da mãe, não como um elemento extrínseco, mas como um dado imediato da estrutura familial mais simples. Como é que se dá então que não encontramos o avunculadq sempre e em tôda parte? Pois, se o avunculado apresenta uma distribuição muito freqüente, êle não é, contudo, universal. Seria vão ter evitado a explicação de casos onde êle se acha presente para fracassar apenas diante de sua ausência. Observemos inicialtnente que o sistema de parentesco não tem a mesma importância em tôdas as culturas. Êle

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fornece a algumas o princípio ativo que regula todas as relações sociais, ou a maior parte delas. Em outros grupos, como nossa sociedade, esta função está ausente ou bem reduzida; em outras ainda, como as sociedades dos índios d2s Planícies, ela só está parcialmente preenchida, O sistema de parentesco é uma linguagern; não é uma linguagem universal, e outros meios de

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expressão e ação podem ser preferidos. Do ponto de vista do sociólogo, isto equivale a dizer que, em presença de uma cultura determinada, se coloca sempre uma questão preliminar: será que o sistema sistemático? Uma tal questão, absurda à primeira vista, só o sei-ia realmente em relação à lingua; pois a língua é o. sistema 4e significação por excelência; ela não pode não significar, e o todo de sua existência está na significação. Ao contrário, a questão deve ser examinada com um rigor crescente, à medida que nos afastamos da língua para encarar outros sistemas, que também pretendem à significação, mas cujo valor de significação permanece parcial, fragmentário ou subjetivo: organização social, arte etc. Além disto, nós interpretamos o avunculado como um traço característico da estrutura elementar. Esta estrutura elementar, resultante de relações definidas entre quatro têrmos é, ao nosso ver, o verdadeiro átomo do jarentesco (42). Não há existência que possa ser concebida ou dada fora das exigências fundamentais de sua estrutura e,’ por outro ladQ, éle é o único material de construção de sistemas mais complexos. Pois existem sistemas mais complexos; ou, para sermos mais exatos, qualquer sistema de parentesco é elaborado a partir da repetição desta estrutura elementar, ou de seu desenvolvimento por integração de novos elementos. É preciso, pois, encarar duas hipóteses: aquela onde o sistema de parentesco considerado procede por justaposição simples de estruturas elementares, e onde, por conseguinte, a relação avuncular permanece constantemente aparente; e a relação onde a unidade de construção do sistema já é de ordem muito mais complexa. Neste último caso, a relação avuncular, mesmo estando presente, poderá estar imersa num contexto diferenciado. Por exemplo, pode-se conceber um sistema, tomanao como ponto de partida a estrutura elementar, mas incorporando a ela, à direita do tio materno, a mulher deste último e, à esquerda do pai, primeiramente a irmã do pai, depois o marido desta. Poder-se-ia demonstrar fàcilmente que um desenvolvimento desta ordem

(42) seguramente supérfluo sublinhar que o atomismo, tal como o criticamos n Rwers, é o da filosofia clássica e não a concepção estrutural do átomo, tal como a encontramos na física moderna.

narreta ria geração seguinte, uni desdpbramento paralelo: a criança deve ser então distinguida em um filho e uma filha, cada qual unido por uma relação simétrica e inversa aos têrmos que ocupam na estrutura as outras posições peritéricas (posição preponderante da irmã do pai na Polinésia, n*hlampsa sul- africana, e herança da mulher do irmão da mãe). Numa estrutura desta ordem, a relação avuncular continua a ser manifesta; mas já não é mais predominante. Ela pode desaparecer, ou se confundjr com outras, em estruturas de uma complexidade ainda maior. Mas precisamente porque provém da estrutura elementar, a relação avuncular reaparece claramente, e tende a se destacar com ênfase, cada vez que o sistema considerado apresenta um aspecto critico: seja porque está em transformação rápida (costa noroeste do Pacífico); seja porque se encontra no ponto de contato e conflito entre culturas profundamente diferentes (Fidji, India do Sul); ou, enfim, porque está prestes a sofrer uma crise fatal (Idade Média européia). Enfim, seria necessário acrescentar que os símbolos, positivo e negativo, que utilizamos nos esquemas precedentes, representam uma simplificação excessiva, aceitável sômente como uma etapa da demonstração. Na realidade o sistema de atitudes elementares compreende ao menos quatro têrmos: uma atitude de afeição, de ternura e de espontaneidade; uma atitude resultante da troca de prestações e contra-prestações; e, além d4estas relações bilaterais, duas relações unilaterais, uma correspondente à atitude do credor, outra à do devedor. Ou melhor: mutualidade (=); reciprocidade (±); direito (+) ;

obrigação (—); estas quatro atitudes fundamentais podem ser representadas em suas relações recíprocas, da seguinte maneira:

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+

Fig. 2.

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Em muitos sistemas, a relação entre dois indivíduos se exprime freqüentemente, não por uma única atitude, mas por várias delas que formam, por assim dizer, um feixe (assim, nas ilhas Trobriand, entre marido e mulher encontra-se mutualidade mais reciprocidade). Existe aí uma razão suplementar pela qual pode ser difícil distinguir a estrutura fundamental.

*

* *

Tentamos mostrar tudo o que a análise precedente deve aos mestres contemporâneos da sociologia primitiva. Entretanto, é preciso sublinhar que, no ponto mais furidmental, ela se afasta de seu ensinamento. Citemos, por exemplo, Radcliff e Brawn:

A unidade de estruture da qual se constrói um parentesco é o grupo que denom4no uma “família elementar”, a qual consiste em um homem e sua mulher e seu filho (a) ou filhos(as) A existência da janvului elementar cria três tipos e.s’peciois de relações sociais, entre pai(mãe) e filho(a), entre filhos(as) dos n$esnws pais (germanos), e entre marido e mulher como pais do mesmo filho (a) ou filhos(as)... As frês relações que existem dentro da família elementar constituem o que denomino de primeira ordem. Relações de segunda ordem são aquelas que dependem da conexão de duas famílias elementares através de um nembro comum, tal como o pai do pai, o irmão da mãe, a irmã da espôsa, e assiim por diante. Na terceira ordem estão pessoas canw o fiLho do Irmão do pai, a espôsa do irmão da mãe. Déste nodo podemos traçar, se possuímos informação genealógka, relaçães de quarta, quinta ou ensiina ordem (43). A idéia expressa nesta passagem, segundo a qual a família biológica constitue o ponto a partir do qual toda sociedade elabora seu sistema de parentesco, não é certamente própria do mestre inglês; nem é a que teria hoje em dia a maior unanimidade. Segundo nossa opinião, não existe uma idéia mais perigosa. Sem dúvidt, a família biológica está presente e se prolonga na sociedade humana. Mas o que confere ao paren (

) A. R. RADCLTFFE-BROWN, op. cit., p. 2 (em inglês, no original — Nota do T)..

tesco ‘seu caráter de fato social não é o que êle deve conservar da natureza: é o procedimento essencial pelo qual se separa dela. Um sistema de parentesco não consiste nos elos objetivos de filiação ou consangüinidade dados entre, os indivíduos; só existe na consciência dos homens, é um sistema arbitrário d representações, não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato. Certamente isto não significa que esta situação de fato seja automáticamente contradita, ou até simplesmente ignorada. Radcliffe-Brown mostrou, em estudos presentemente clássicos, que até os sistemas de aparência mais rígida e mais artificial, como os sistemas australianos de classes matrimoniais, levam em consideração, cuidadosamente, o parentesco biológico. Mas uma observação tão indiscutível quanto a sua deixa intacto o fato, ao nosso ver decisivo, de que, na sociedade humana, o parentesco só é admitido a se estabelecer e se perpetuar por e através de determinadas modalidades de aliança. Dito de outro modo, as relações tratadas por Radcliffe-Brown de “relações de primeira ordem” são função, e dependm, das que êle considera como secundárias e derivadas, O caráter primordial do parentesco humano é exigir, como condição de existência, o relacionamento disto que Radcliffe-Brown chama “famílias elementares”. Então, o que é verdadeiramente “elementar” não são as famílias, têrmos isolados, mas a relação entre êstes têrmos. Nenhuma outra interpretação pode explicar a universalid de da proibição do incesto, da qual a relação avuncular, em seu aspecto mais geral, é sômente um corolário, ora manifesto e ora disfarçado. Porque são sistemas de simbolos, os sistemas de parentesco oferecem ao antropólogo um campo privilegiado, no qual seus esforços podem quase (e insistimos sôbre isto: quase) reunir-se aos da ciência social maiS desenvolvida, ou seja, a lingüística. Mas a condição dêste encontro do qual se pode esperar um melhor

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conhecimento do homem, é de não perder jamais de vista que, no caso dp estudo sociológico como no caso do estudo lingüístico, estamos em pleno simbolismo. Ora, se é legítimo e, num sentido, inevitável, recorrer à interpretação naturalista para tentar compreender a emergência do pensamento simbólico, desde que êste aparece, a explicação deve mudar tão radicalmente de natureza quanto o fenômeno recentemente aparecido difere dos fenômenos que o precederam e

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prepararam. A partir deste momento, qualquer concessão ao naturalismo arriscaria comprometer os imensos progressos já realizacjps no domínio lingüístico e que começam a se esboçar também na sociologia da família, e arrojar esta última num empirismo sem inspiração nem fecundidade. 70