02 Alvaro Faleiro

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17 2 0 12 - jan.-abr. - n. 1 - v. 22 - A LETRI A TRÊS MALLARMÉS Traduções brasileiras raduções brasileiras raduções brasileiras raduções brasileiras raduções brasileiras THREE MALLARMÉS: BRAZILIAN TRANSLATIONS Álvaro Faleiros* Universidade de São Paulo R ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO A interpretação da obra de Mallarmé passou por distintas etapas que, por sua vez, determinam o modo como ele foi traduzido. O objetivo deste artigo é analisar esse movimento no que concerne às traduções de Mallarmé no Brasil. P ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS - CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE Mallarmé, tradução, recepção no Brasil A importância de Mallarmé para a poesia moderna é inegável. Trata-se de um autor que acabou, de acordo com Henri Meschonnic, produzindo um verdadeiro “efeito Mallarmé”. 1 Esse efeito atravessou o século 20 e é central na elaboração de várias noções positivas e negativas caras à modernidade poética. Isso vale tanto para “críticos renomados (como Hauser, Adorno, Sartre, Deleuze e mais recentemente Peter Burguer, 1994), [para quem] Mallarmé é culpado pelo crime de ‘depreciação da vida’, e por fazer da ‘autonomia’ artística uma ilusão”, 2 quanto para aqueles que operam por meio da “exaustiva autorreferencialidade do indizível, tal como a questão pode ser tratada numa tradição crítica que se vale da referência a Maurice Blanchot”. 3 A recepção de sua obra, contudo, nem sempre se confundiu com a modernidade poética. Com efeito, a matriz da poética mallarmeana é anterior à década simbolista (1885-1895), sendo elaborada ao longo da década de 1860-1870. Entretanto, “o simbolismo é o primeiro espaço interpretativo, a primeira galeria de textos que o leitor se vê forçado a atravessar antes de chegar à obra de Mallarmé”. 4 * [email protected] 1 MESCHONNIC. Modernité, modernité, p. 25 2 SISCAR. Poesia e crise, p. 89. 3 SISCAR. Poesia e crise, p. 94. 4 FONTES. Os anos de exílio do jovem Mallarmé, p. 30.

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Tradução literária.

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    TRS MALLARMSTTTTTr a d u e s b r a s i l e i r a sr a d u e s b r a s i l e i r a sr a d u e s b r a s i l e i r a sr a d u e s b r a s i l e i r a sr a d u e s b r a s i l e i r a s

    THREE MALLARMS: BRAZILIAN TRANSLATIONS

    lvaro Faleiros*Universidade de So Paulo

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OA interpretao da obra de Mallarm passou por distintasetapas que, por sua vez, determinam o modo como ele foitraduzido. O objetivo deste artigo analisar esse movimentono que concerne s tradues de Mallarm no Brasil.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V EMallarm, traduo, recepo no Brasil

    A importncia de Mallarm para a poesia moderna inegvel. Trata-se de umautor que acabou, de acordo com Henri Meschonnic, produzindo um verdadeiro efeitoMallarm.1 Esse efeito atravessou o sculo 20 e central na elaborao de vrias noespositivas e negativas caras modernidade potica. Isso vale tanto para crticosrenomados (como Hauser, Adorno, Sartre, Deleuze e mais recentemente Peter Burguer,1994), [para quem] Mallarm culpado pelo crime de depreciao da vida, e por fazerda autonomia artstica uma iluso,2 quanto para aqueles que operam por meio daexaustiva autorreferencialidade do indizvel, tal como a questo pode ser tratada numatradio crtica que se vale da referncia a Maurice Blanchot.3

    A recepo de sua obra, contudo, nem sempre se confundiu com a modernidadepotica. Com efeito, a matriz da potica mallarmeana anterior dcada simbolista(1885-1895), sendo elaborada ao longo da dcada de 1860-1870. Entretanto, osimbolismo o primeiro espao interpretativo, a primeira galeria de textos que o leitorse v forado a atravessar antes de chegar obra de Mallarm.4

    * [email protected] MESCHONNIC. Modernit, modernit, p. 252 SISCAR. Poesia e crise, p. 89.3 SISCAR. Poesia e crise, p. 94.4 FONTES. Os anos de exlio do jovem Mallarm, p. 30.

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    Ao primeiro Mallarm simbolista e ao Mallarm moderno, soma-se um terceiroMallarm.5 Marcos Siscar assinala que a comemorao do centenrio da morte do poeta,em 1998, foi acompanhada por uma valorizao sem precedentes de sua prosa crtica.6

    A reformulao crtica em jogo coincide com o chamado esgotamento dos projetos devanguarda e tem como protagonistas, entre outros, Henri Meschonnic7 e JacquesRancire.8 Ao invs de pensar a obra de Mallarm como uma potica de ruptura, derejeio da vida e da realidade ou ainda de exploso do verso, Siscar argumenta que oprojeto de escrita mallarmeano uma forma de inscrio na histria por meio de umasensibilizao pela linguagem e na linguagem misria da poca. Assim, a operaomallarmeana muito diferente da operao da vanguarda, que deseja ruptura trata-se mais de uma perturbao da tradio.9 A partir do acima exposto, acredito serpossvel compreender o lugar de Mallarm na literatura francesa a partir da divisoacima, isto , um Mallarm simbolista, um Mallarm moderno e um Mallarm atual,mais inscrito na histria. No Brasil, a recepo de sua obra parece acompanharmovimento anlogo; o que procuro mostrar ao longo deste estudo, essencialmente apartir da anlise de suas tradues.

    PPPPPRIMEIRORIMEIRORIMEIRORIMEIRORIMEIRO M M M M MALLARMALLARMALLARMALLARMALLARM

    Assim como na Frana, a circulao da obra de Mallarm no Brasil se d emcrculos bastante restritos por meio de poetas e revistas identificados com o Simbolismo.Araripe Jnior, em 1888, ao se referir ao verdadeiro grupo dos simbolistas, declara queStphane Mallarm sua encarnao perfeita.10 tambm numa revista simbolista,Vera Cruz, que, em 1898, Silva Marques publica o primeiro artigo mais extenso dedicadoao poeta francs, no qual aponta para a influncia benfica de seu ensinamento.11

    Nesse contexto, surgem as primeiras tradues de Mallarm no Brasil. Jos PauloPaes, em seu histrico da traduo literria no Brasil, assinala que quanto ao paulistaBatista Cepelos, parece ter sido o primeiro a traduzir, no Brasil, a poesia de Mallarm,12

    sem precisar que poema seria, nem o contexto de sua publicao. Guimares, em preciosoestudo sobre o poeta francs, debrua-se sobre o assunto, descobrindo no livro de poemasVaidades no qual se encontram poemas do prprio Cepelos alm de tradues a

    5 A classificao aqui proposta no leva em conta uma srie de trabalhos especficos, como as leituraspsicanalticas de Charles Mauron ou a interpretao sartreana. Trata-se de identificar os grandesmomentos da recepo de Mallarm, dentro dos quais os estudos especficos se encontram, ainda quesejam desvios ou contrapontos em relao s tendncias dominantes.6 SISCAR. Poesia e crise, p. 83.7 MESCHONNIC. Oralit, clart de Mallarm.8 RANCIRE. La politique de la sirne.9 SISCAR. Poesia e crise, p. 109.10 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 28.11 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 29.12 PAES. Traduo a ponte necessria, p. 24.

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    traduo do poema O azul, cuja data no se pode precisar, pois o livro foi publicadoem 1908, mas traz a indicao de que inclui poemas de 1899-1908.13

    A primeira traduo publicada no Brasil no parece ser, pois, a de Cepelos, e sima do poema Tristesse dt, feita por Escragnolle Dria e publicada com o ttuloTristeza Estival na revista carioca Rua do Ouvidor, de 11 de maio de 1901,14 cerca detrs anos aps a morte de Mallarm.

    Uma terceira traduo completa as tradues do ciclo simbolista mencionadaspor Guimares. Trata-se do poema Apparition, traduzido por Alphonsus de Guimaraens,includo na edio de 1938, do livro pstumo do autor, Pastoral aos crentes do amor e damorte.

    O fato de haver apenas trs tradues e poucas referncias a Mallarm no perodoindica claramente que parte do simbolismo brasileiro se desenvolveu independentementedo conhecimento da obra de Mallarm.15 Outro fato importante que se depreende aescolha dos textos: so poemas do jovem Mallarm, anteriores a seus textos maishermticos. O poema Apparition data de 1863; os outros dois datam de 1864. Enfim,como aponta Antonio Candido ao se referir sua poca de juventude: o Mallarmapreciado era o menos hermtico. Pouca gente enfrentava o Coup de ds, que, alis,era de difcil acesso.16

    Quanto aos projetos tradutrios, Jlio Castaon Guimares compara a traduofeita por Alphonsus de Guimaraens com a de Batista Cepelos:

    Tal como a de Batista Cepelos, a de Alphonsus de Guimares tambm est includa,ainda que postumamente, em livros de poemas, Pastoral aos crentes do amor e da morte,que engloba tradues (este elemento, a adoo da traduo quase como texto prprio,bem como a ampla liberdade de interveno nos textos originais, um dado prprio doestatuto da traduo at esse perodo).17

    No trecho acima, h uma sntese de certa prtica de traduzir que se caracterizapor: a) incluso de tradues em livros de poemas dos poetas-tradutores; b) adoo datraduo quase como texto prprio pelos tradutores-poetas; c) ampla liberdade deinterveno nos textos originais. Essa prtica revelaria um dado prprio do estatuto datraduo at esse perodo. Segundo Castaon Guimares, essa seria uma formapredominante de se tratar a traduo de poemas poca.

    De fato, a incluso de tradues, muitas vezes livremente modificadas, nos livrosdos prprios autores, era corrente, pois o que importava era a qualidade e o alcance daemulao. Esse parece ser o caso das tradues simbolistas em questo. Ao comentara traduo de Batista Cepelos, por exemplo, Guimares assinala:

    13 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 17.14 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 17.15 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 15.16 MELLO E SOUZA. As transfuses de Rimbaud, p. 118.17 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 21.

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    A traduo faz-se com bastante liberdade, submetendo o texto original a grandesmodificaes (de escolha vocabular, construo sinttica, etc.). No entanto, esseprocedimento no visa uma recriao que revele um compromisso com a esttica do textomallarmeano; ao contrrio, seguindo padres bem distanciados, introduz, por exemplo,uma grandiloquncia que no propriamente mallarmeana.18

    A grandiloquncia de que fala o crtico justamente uma marca da potica deCepelos, que, assim como Alphonsus de Guimares, transforma por completo o poema,integrando-o em sua prpria produo; o que leva o comentador a concluir que otradutor: tomou como base o poema de Mallarm, apropriou-se dele para criar seuprprio poema.19

    Esse primeiro momento da traduo de Mallarm no Brasil seguido de um hiato,fruto do desinteresse dos poetas brasileiros, na fase heroica do Modernismo, pelo mestrefrancs. Postura semelhante que ocorre na Frana, pois, se h um caso Mallarm nahistria da poesia moderna, este no decorre apenas de seu estatuto de farol para oexperimentalismo recente, mas tambm, e contraditoriamente, da rejeio por partedas vanguardas do incio do sculo.20 A postura do perodo pode ser ilustrada peladeclarao de Mrio de Andrade que, em A escrava que no era Isaura (1925), proclama: PRECISO EVITAR MALLARM.21

    SSSSSEGUNDOEGUNDOEGUNDOEGUNDOEGUNDO M M M M MALLARMALLARMALLARMALLARMALLARM

    A eloquncia de Mrio de Andrade no impediu que, em meados dos anos 1930,surgissem os primeiros sinais de um longo processo que atinge seu pice nos anos 1970-1980 e que ecoa ainda nos dias de hoje. Trata-se da publicao, em 1936, da antologiaPoetas de Frana, de Guilherme de Almeida, na qual se encontra, no que se refere aMallarm, sua primeira incluso numa antologia, com os poemas Brise marine eApparition, este j traduzido por Alphosus de Guimares. A traduo, contudo, jno se faz da mesma maneira nem se encontra no mesmo contexto; produz-se ali umamudana da noo de traduo, pois no se trata nem de apropriao nem de traduoque desse ao texto outra orientao.22

    De maneira perspicaz, Castaon Guimares identifica em Guilherme de Almeidaum dos primeiros a operar uma mudana da noo de traduo. Essa mudana aparece,primeiramente, no lugar que a traduo ocupa. Ou seja, ela no se encontra fundida obra do poeta Guilherme de Almeida, mas na antologia Poetas de Frana, organizadapelo autor em 1936. A forma de apropriao no , pois, a mesma, uma vez que possvel

    18 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 21. Na referida pgina e nas seguintes Guimaresdesenvolve anlise dos poemas, reproduzindo-os inclusive na ntegra. Como o intuito deste artigo apresentar um panorama da tradues de Mallarm no Brasil, no sero analisados poemas especficos.19 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p .22.20 SISCAR. Poesia e crise, p. 83.21 ANDRADE. Obra imatura, p. 240.22 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 32.

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    identificar o desejo por parte de Guilherme de Almeida de publicar em volumes distintossua obra de poeta e as obras traduzidas.

    Outra distino importante no trabalho de Guilherme de Almeida o fato de astradues serem apresentadas em edies bilngues, o que permite ao leitor cotejar otexto de chegada com o texto de partida, modificando consideravelmente a relao doleitor com a traduo.

    Quanto afirmao de Guimares, de que Guilherme de Almeida no visou produo de uma traduo que desse ao texto outra orientao, possvel reconhecero anseio de aproximar-se do texto de partida nos paratextos23 de Guilherme de Almeida,em que reflete sobre o ato de traduzir. Um bom exemplo a seguinte passagem de seuprefcio, de 1936,24 na qual define o que traduzir:

    Ora, traduzir, nesse caso, seria antes reproduzir. Reproduzir no sentido autntico,primitivo do termo: re-produzir, quer dizer, produzir de novo, ou seja, sentir, pensar edizer como o autor e com o autor.25

    Chama a ateno a ltima assertiva. Primeiro, trata-se de pensar e dizer, ouseja, produzir uma forma-ideia. E esta vista como um dilogo, mas um dilogo mediado,uma vez que se trata de pensar e dizer como o autor e tambm com o autor. H umaliberdade para a inveno; liberdade esta agora pautada pelo modo de significar dotexto: sua forma, sua estrutura, seu ritmo.

    Esse outro modo de traduzir est ligado a outro modo de se ler Mallarm. Aindaque o intuito no seja retomar a fortuna crtica sobre Mallarm no Brasil,26 cabe lembrarque, em 1942, Manuel Bandeira profere, na Academia Brasileira de Letras, suaconferncia O centenrio de Stphane Mallarm,27 que seria o primeiro texto longoimportante sobre Mallarm no Brasil. Bandeira destaca a poesia de circunstncia dopoeta francs, bem a seu gosto, mas tambm evidencia a concepo orquestral da poesiamallarmeana com a percepo de uma musicalidade em termos estruturais, que sercentral nas leituras modernas de Mallarm. H tambm a publicao, no ano seguinte,por Otto Maria Carpeaux de Situao de Mallarm,28 em que faz um primeiro esforobrasileiro de apresentao de Un coup de ds, alm de apontar para o fato de Mallarmtornar-se o poeta do sculo XX.

    Mais especificamente em relao traduo, Pricles Eugnio da Silva Ramostambm cumpre um papel pioneiro poca transpondo para o portugus dois poemas deMallarm. O primeiro, Laprs-midi dun faune, ainda que publicado apenas em 1992,29

    23 A prpria presena de paratextos tambm uma mudana importante na noo de traduo.24 ALMEIDA. Poetas de Frana, p.17.25 ALMEIDA. Poetas de Frana, p.20.26 Jlio Guimares, em Presena de Mallarm no Brasil, faz um levantamento considervel dessafortuna crtica.27 BANDEIRA. O centenrio de Stphane Mallarm.28 CARPEAUX. Situao de Mallarm.29 FOLHA DE S. PAULO, 13 de maro de 1992.

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    teria sido traduzido em 1939. O segundo, Le tombeau dEdgard Poe, foi publicado em19 de outubro de 1949 no Jornal de So Paulo.

    A situao de Mallarm no Brasil acima exposta mostra os anos 1930-1940 comoum perodo de gestao do segundo momento da traduo de Mallarm no Brasil. Se certo que ainda no h divulgao sistemtica de sua obra (so apenas duas traduespublicadas em mais de 20 anos), tambm o que no se destaca mais o jovem Mallarm,e sim o poeta central para as poticas do sculo 20.

    De todo modo, desde Guilherme de Almeida at as preocupaes estruturaisapontadas por Bandeira em relao a Mallarm, nota-se uma crescente ateno para osaspectos formais. Essa caracterstica anuncia o projeto de traduo dos poetasconcretistas, no que concerne a Mallarm e traduo de poesia no Brasil.

    Com os poetas concretistas, as tradues comeam a se tornar um objeto de anliserigorosa graas, em certa medida, ao advento da lingustica e da semitica do Crculode Praga. Tanto que no difcil relacionar o conceito de traduo criativa deJakobson com a transcriao de Haroldo de Campos. Pode-se dizer que a traduoentra, no Brasil, numa etapa formalista, na qual o poema pensado como estrutura.No por acaso que Haroldo de Campos, no primeiro pargrafo de seu ensaio seminalde 1962, intitulado Da traduo como criao e como crtica, retoma Albercht Fabripara quem a linguagem literria aquela que no tem outro contedo seno suaestrutura.30 Isso leva Haroldo de Campos a deduzir que, numa traduo de textosliterrios:

    No se traduz apenas o significado, traduz-se o prprio signo, ou seja, sua fisicalidade, suamaterialidade mesma (propriedades sonoras, de imagtica visual). (...) O significado, oparmetro semntico, ser apenas e to-somente a baliza demarcatria do lugar da empresacriadora.31

    Em relao proposta de Guilherme de Almeida, para quem a traduo ideiae expresso ao mesmo tempo e a traduo movimento mental e verbal, Haroldo deCampo radicaliza o primado da forma, reduzindo o parmetro semntico teoricamentea mera baliza demarcatria.

    Nesse contexto surge toda uma srie de escritos concretistas envolvendo a obrade Mallarm, que passa a ser citado, comentado e traduzido regularmente. Antes detraduzir parte da obra potica de Mallarm, os concretistas, na elaborao de sua prpriapotica, deram destaque ao poeta francs, conferindo-lhe uma centralidade que aindano conhecia, como se pode notar pela sistemtica presena do poeta francs nosmanifestos concretistas do final dos anos 1950 e incio dos 1960, sobretudo a partir deseu poema Un coup de ds.32

    No momento, contudo, de traduzir Mallarm, os concretistas no se concentramapenas no Coup de ds. Augusto de Campos, em seu ensaio Mallarm: o poeta emgreve, originalmente publicado em 1967, retoma a classificao proposta, em 1957, por

    30 CAMPOS. Da traduo como criao e como crtica, p. 31.31 CAMPOS. Da traduo como criao e como crtica, p. 35.32 CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS. Teoria da poesia concreta: textos crticos e manifestos 1950-1960.

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    Mrio Faustino no texto Stphane Mallarm,33 em que faz uma apresentao do poeta.Guimares interpreta o trabalho de Mrio Faustino como uma exposio abrangenteda produo de Mallarm, que dividida em diferentes etapas, bem caracterizadas eexemplificadas.34

    A importncia do ensaio de Faustino enorme. Nele, a obra de Mallarm dividaem quatro etapas: a) uma primeira, parnasiano-simbolista (com ecos de Baudelaire eRimbaud); b) uma segunda, em que se reconcilia com o francs de Racine e antecipaValry; c) um terceiro, em que surge o grande Mallarm de seus sonetos mais audazes;d) o derradeiro Mallarm de Igitur e de Un coup de ds. Complementando que oltimo e o penltimo Mallarm que seriam os fundamentais para o leitor atual. NemAugusto de Campos nem Jlio Castaon Guimares mencionam, contudo, o pargrafoque encerra a apresentao das etapas mallarmeanas, em que se l:

    H, tambm, outros mallarms que teremos de deixar de lado: o dos poemas de infnciae de juventude (alguns surpreendentes); o dos versos de circunstncias (alguns bemmelhores e mais importantes do que muita poesia sria); o Mallarm tradutor de Poe; oMallarm grande prosador, influenciador, inclusive, de um Proust e renovador de umFlaubert; o Mallarm esteta; o Mallarm-ganhador-do-po-de-cada-dia: Les motsanglais, Thmes anglais, Les dieux antiques...35

    O trabalho de traduo da obra potica de Mallarm, empreendido pelo grupoconcretista, no levar em conta os outros mallarms; ele seguir de perto as indicaesde Faustino, concentrando-se nos poemas que o crtico destaca em sua apresentao.O trabalho empreendido pelo grupo encontra-se reunido no volume Mallarm, compostopor textos crticos escritos sobre o poeta e por tradues de Haroldo de Campos (Umlance de dados), de Dcio Pignatari (A tarde um fauno) e de Augusto de Campos(vrios poemas curtos, na maioria sonetos). Nas dcadas seguintes, Augusto de Camposainda traduziu alguns outros poemas de Mallarm em seus livros Linguaviagem (1987) ePoesia da recusa (2006).

    Outro membro do grupo concretista que se debruou sobre a obra de Mallarmfoi Jos Lino Grnewald. Em 1990, ele publica Poemas, em que rene dcadas de trabalhoem torno de alguns poucos textos-chave do cnon apontado por Faustino. Com efeito,cada um dos sete poemas que traduz vem acompanhado de notas em que apresentaleituras crticas dos textos e discute aspectos tradutrios, essencialmente em torno dequestes formais de inspirao lingustico-semitica. Interessante que, apesar do ttulo,o livro inclui textos em prosa (quatro poemas em prosa, Igitur, alm de trechos deUm lance de dados, de O livro e de Para um tmulo de Anatole), que estodentre os primeiros publicados em nossas terras.36

    33 FAUSTINO. Poesia no brincadeira.34 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 45.35 FAUSTINO. Poesia no brincadeira, p.161.36 H uma traduo da prosa O demnio da analogia, feita por Ins Oski-Dpr que foi publicada,em Salvador, na revista Cdigo de agosto de 1980.

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    O longo processo de incorporao de Mallarm dentro de um horizonte maisvanguardista e formalista ainda dominou a cena nos anos 1980 e 1990. Dante Milano, poetada gerao de Murilo Mendes e de Drummond, inclui dois poemas de Mallarm Salut(traduzido por Saudao) e de Herodiade a Cena II em seu volume Poemastraduzidos de Baudelaire e Mallarm, publicado em 1988. A escolha dos poemas e o projetotradutrio, pautado pela busca de uma correspondncia formal e pela apresentao deedio bilngue, permitem englobar suas tradues dentro do momento moderno deMallarm no Brasil.

    Algumas antologias de poesia francesa publicadas posteriormente ao Mallarmconcretista acabam por repercutir sua interpretao. A mais abrangente delas Antologiada poesia francesa, de Cludio Veiga. Ele escolhe cinco poemas j traduzidos por Augustode Campos. Veiga, contudo, no segue risca a busca de uma equivalncia formal, mastampouco se desprende dela, numa espcie de hesitao que no permite depreenderum projeto tradutrio claro; postura que certamente o distingue poeticamente dosconcretistas. A segunda grande antologia dedicada poesia francesa Poetas francesesdo sculo XIX, em que Jos Lino Grnewald retoma suas tradues de Mallarm, fazendodele o poeta mais representativo do sculo por ser o autor com o maior nmero depoemas na antologia. Mallarm passa assim a ocupar lugar de destaque em antologiasdo final do milnio.

    Em 1992, ano do sesquicentenrio de Mallarm, foram publicados, tanto na Folhade S.Paulo quanto no Estado de S. Paulo, textos e tradues das grandes refernciassobre o poeta no Brasil, Augusto de Campos, Pricles Eugnio da Silva Ramos, Jos LinoGrnewald e Jos Paulo Paes, entre outros .37

    Outro evento relevante foi a organizao, por Flora Sssekind e por Jlio CastaonGuimares, de uma grande exposio na Fundao Casa de Rui Barbosa, em que foramexpostos mais de 100 itens relativos presena de Mallarm no Brasil. Entre os itensencontrava-se traduo ento indita do poema Prose. Com efeito, Jlio CastaonGuimares publicou posteriormente, em 1995, o livro Brinde fnebre e prosa.38 Aocomentar seu prprio trabalho tradutrio Guimares destaca:

    Dentre as inumerveis observaes que se poderiam fazer sobre a traduo dos doispoemas, exponho aqui apenas algumas poucas que me parecem indispensveis. Valeressaltar, no tocante a ambos os poemas, a importncia decisiva, para o trabalho destetradutor, da releitura insistente das tradues mestras de poemas de Mallarm realizadaspor Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Dcio Pignatari e Jos Lino Grnewald.39

    A atitude de Guimares aponta, em certa medida, para uma mudana da posturatradutria. No se est mais diante do tradutor transcriador que desbrava e se apropria.Castaon retoma o trabalho que o antecede sugerindo ser sua prtica uma espcie deretraduo. O tom deferente que adota releitura insistente das tradues mestras

    37 Os poemas traduzidos na ocasio (Prose, Laprs-midi dun faune...) encontram-se no cnonemallarmeanode Mrio Faustino.38 Em 2007, Guimares publica verso ampliada do livro com o ttulo Brinde fnebre e outros poemas.39 GUIMARES. Brinde fnebre e outros poemas, p. 37.

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    acaba comprometendo o carter dinamizador da releitura devido ao alinhamento comuma postura tradutria consolidada.

    O desejo de continuidade por parte de Castaon Guimares explica tambm otom que adota ao se referir s tradues, como, por exemplo, ao afirmar que Haroldo deCampos, em suas notas, analisa minuciosamente o vocabulrio do poema com vista asuas opes de traduo, sem apontar para possveis idiossincrasias e imprecises alipresentes.40 Em outro trecho, compara o momento concretista com o momento anterior(simbolista):

    Pela lista acima dos poemas traduzidos [pelos concretistas] pode-se ver que se est longedaquelas primeiras tradues que se apegavam ao Mallarm inicial. Tem-se agora umaapresentao ampla da produo mallarmeana. Os estudos que acompanham esse trabalhode traduo, procuram ser uma exposio abrangente da obra e, ao mesmo tempo, tratardas questes de traduo, entram muitas vezes por anlises detalhadas, amparadas poruma bibliografia especializada e atualizada.41

    Se o tom elogioso certamente se justifica pela importncia das tradues e o lugarque passam a ocupar, assim como por todo o trabalho crtico realizado pelos concretistas,ele perde fora ao no historicizar o trabalho dos concretistas.

    Outro aspecto que merece destaque a afirmao de que as publicaes dosconcretistas so uma apresentao ampla da produo mallarmeana. Se compararmoscom o momento anterior, a afirmao se sustenta. Entretanto, o prprio Guimaresassinala, em relao prosa de Mallarm, que a maior parte dela est na verdade espera de traduo.42

    O pouco interesse pela prosa e pelos ensaios crticos, que nem chegam a sermencionados por Guimares deve- se importncia da experincia poticamallarmeana para os concretistas. Mallarm leva a um ponto mximo, at hoje nomais atingido, uma linguagem (a potica) e uma lngua (a francesa).43 Experinciaesta que se aproxima da leitura vanguardista e formalista de Mallarm pautada emparte pela compreenso da poesia moderna como processo de desrealizao defendida,por exemplo, por Hugo Friedrich.

    Paralelamente a esse processo, surge uma leitura simbolista-parnasiana da poesiade Mallarm em trs antologias mais recentes. Em 1998, Jos Jeronymo Rivera traduz ospoemas de juventude Apparition e Soupir, em sua Poesia francesa: pequena antologiabilngue. Paulo Hecker Filho insere, em sua antologia pessoal intitulada S poema bom,de 2000, uma traduo formalmente precisa do poema Brisa marinha. Um terceiropoema de Mallarm foi encontrado na Pequena antologia de poemas franceses, de RenataCordeiro. Nessa coletnea de 2002, monolngue, assim como a de Paulo Hecker Filho,a tradutora incluiu mais uma nova traduo do poema Apparition. O Mallarm das

    40 o que procuro fazer em artigo anterior. Cf. FALEIROS. Lance de dados: contrapontos sinfoniaharoldiana.41 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 46-47.42 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 49.43 FAUSTINO. Poesia no brincadeira, p. 167.

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    antologias da virada do milnio no se distingue, no que concerne escolha dos poemas,do primeiro Mallarm. A grande distino que os projetos tradutrios so pautadospela busca de correspondncias formais, tendncia que domina o sculo 20 no Brasil, exceo do hesitante Cludio Veiga.

    A relativa hesitao de Cludio Veiga no , porm, fenmeno isolado. Ele,primeiramente, indica uma ligeira mudana de percepo na busca das correspondnciasformais.44 No que concerne traduo de poesia, a primeira reflexo mais consistente provavelmente a de Ana Cristina Csar, e envolve justamente Mallarm, servindo,pois, como sinal de mudana no modo de se perceber e de se traduzir Mallarm noBrasil.

    TTTTTERCEIROERCEIROERCEIROERCEIROERCEIRO M M M M MALLARMALLARMALLARMALLARMALLARM

    No final dos anos 1980, so publicados postumamente os ensaios de Ana CristinaCsar sobre traduo, dentre os quais Traduzindo o poema curto,45 no qual argumentaque a concentrao uma das marcas do poema curto. No inflacionar o poema,tentando absorver o esforo original de dar condensao ao poema, procurandoencontrar mais equivalncias para esse esforo especfico46 o que caracterizaria,para a autora, uma boa traduo.

    O poema que a autora escolhe para ilustrar seu argumento Salut, segundoela, intrinsecamente um brinde modernidade.47 Diferentemente das leiturasformalistas em voga, a anlise de Ana Cristina Csar concentra-se nos trs nveismetafricos do poema o brinde como banquete, como viagem ao mar e como a prpriapoesia e identifica nas palavras cume e toile (que, segundo ela, pode significartanto pano, como tela, ecoando ainda a palavra voile) pontos de interseco dessestrs nveis.

    Em sua interpretao, Ana Cristina Csar destaca a condensao polissmica dostermos como o cerne do poema e como caracterstica marcante da modernidade potica.Para ilustrar sua reflexo, remete uma nica vez traduo brasileira do poema feitapor Augusto de Campos, citando o verso final Le blanc souci de notre toile e suatraduo por Um branco af de nossa vela. No trecho, a autora comenta que Augustode Campos poderia ter usado tela, mantendo o mesmo ritmo e mtrica.48 Chama suaateno no o rigor na construo metro-rmica do poeta concretista, e sim sua imprecisometafrica com o consequente achatamento imagtico que provocou.

    44 H, desde os anos 1990, uma crescente tendncia de se traduzir o poema no Brasil com um afrouxamentodo rigor formal, mas, em geral, sem projetos tradutrios capazes de se sustentar como texto. Cf. FALEIROS.Sobre uma no-traduo e algumas tradues de Linvitation au voyage de Charles Baudelaire.45 CSAR. Escritos da Inglaterra. curioso o fato de Jlio Castaon Guimares no fazer referncia a toimportante ensaio.46 CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 156.47 CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 157.48 CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 159.

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    Como nesse mesmo ensaio a autora insinua que a poesia moderna poderia estarem busca de outra maneira de traduzir,49 ao que tudo indica, sua crtica dirige-se aosprojetos tradutrios formalistas em voga e o faz a partir de Mallarm. Em vez de reger-sepelo primado da forma, ela parece mobilizada pelo que chama de inerncia semnticae parece esperar do tradutor um resultado que, no caso do poema curto moderno,reverbere sua tenso. De certo modo, a mudana de perspectiva de Ana Cristina Csarno que concerne poesia de Mallarm, anuncia uma mudana de perspectiva em relaoao modo de perceber o conjunto de sua obra; o que, de fato, se verifica pelo modo maisdiversificado como Mallarm passa desde ento a ser traduzido no Brasil.

    Uma mudana, j percebida por Guimares,50 diz respeito traduo de sua prosa.Ele assinala que Amlio Pinheiro publica as tradues dos ensaios O livro, instrumentoespiritual e O mistrio nas letras, em 1991, na recolha Fundadores da modernidade,organizada por Irlemar Chiampi; em 1994, saem os Contos indianos, por Yolanda Steil deToledo; e no ano seguinte, saem Prosas (que rene Autobiografia, Poemas em prosa eContos indianos), por Dorothe de Bruchard. a fico em prosa de Mallarm que comeaa ser traduzida. O final do sculo 20 indica assim um momento de mudana na recepo daobra de Mallarm no Brasil, em que a hegemonia concretista cedeu lugar a uma apropriaomultifacetada, processo que prossegue e se desdobra no incio do sculo 21.

    Em 2007, a revista de poesia Inimigo Rumor, no nmero comemorativo de seus 10anos de existncia, publica Crise de vers, traduzido por Ana Alencar por Crise doverso. O texto acompanhado por uma nota do tradutor, na qual Ana Alencarcomenta que, no texto mallarmeano, apesar (ou justamente por causa) de suasacrobacias na sintaxe, h, curiosamente, toda uma entonao do registro falado nessetexto to trabalhado.51 O Mallarm que se escuta , bem ao gosto de Meschonnic, umMallarm mais falado. Essa mudana de enfoque na percepo de Mallarm no Brasilteve ainda outro desdobramento envolvendo a traduo de Crise de vers.

    Marcos Siscar, num dos captulos de seu livro Poesia e crise, discute precisamentepoesia e crise a partir da traduo de Crise de vers, como segue:

    Em portugus, o texto normalmente mencionado ou traduzido por Crise do verso. Atraduo rotineira, do meu ponto de vista, incorre em um problema no apenas lingustico,mas tambm hermenutico, uma vez que o ttulo envolve uma reflexo sobre a crise devers, e no a crise du vers. (...) Ou seja, a crise de verso no designa uma interrupoou colapso histrico do verso; antes, uma irritao do verso, dentro do verso, e a propsitodele.52

    A posio adotada por Marcos Siscar tem endereo certo. Como ele mesmo apontanuma das notas de seu ensaio: Augusto de Campos apresenta leitura oposta a essa emum dos manifestos da poesia concreta.53 O deslocamento proposto por Siscar a respeito

    49 CSAR. Escritos da Inglaterra, p. 161.50 GUIMARES. Presena de Mallarm no Brasil, p. 49.51 MALLARM. Crise do verso, p. 163. (nota do Tradutor)52 SISCAR. Poesia e crise, p. 107.53 SISCAR. Poesia e crise, p. 110.

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    do verso envolve o entendimento da obra da Mallarm em seu conjunto e de sua traduono Brasil. Trata-se para Siscar de reposicionar Mallarm no campo literrio, no maiscomo um poeta de vanguarda ou formalista:

    Em suma, Mallarm no limita o campo do potico semitica do verbal pelo contrrio,expande-o, sugerindo que onde h dico h verso. A noo de verso generalizada,designando a possibilidade de articulao, de reagrupamento e, com isso, tambm deregenerao dos talhos ou dos cortes vitais (coupes vitales) da lngua.54

    Para essa mesma direo aponta o prefcio que Siscar escreveu para a primeirapublicao no Brasil, tambm ocorrida em 2010, de Divagaes, obra que rene grandeparte dos ensaios de Mallarm.55 Assim, num perodo de poucos anos, Crise de verspassa a circular em duas tradues que se encontram no centro de um processo deressignificao e ampliao da recepo da obra de Mallarm no Brasil, cuja prosa ecrtica hoje circulam amplamente e fazem parte de debates no mais mediadosexclusivamente por princpios formalistas ou discursos de vanguardas.

    Alm das redescobertas parnaso - simbolistas, algumas dimenses aindadesconhecidas da poesia de Mallarm passaram a ser exploradas em duas ltimaspublicaes elencadas neste artigo. Em 2007, foi publicado Os anos de exlio do jovemMallarm, do professor Joaquim Brasil Fontes, outra importante mudana no modo de setraduzir e de se ler a poesia de Mallarm no Brasil. Pedro Meira Monteiro, no prefcio obra, diz tratar-se de um ponto de inflexo sobre Mallarm em lngua portuguesa.56

    O prefaciador tem razo, pois Fontes seleciona textos de vrias fases da vida de Mallarm,incluindo poemas de juventude e os apresenta, ao longo do livro, em contexto, isto ,acompanhado de informaes biogrficas, trechos de cartas. Pedro Meira Monteirosintetiza:

    De certa forma, pode-se dizer que Joaquim Brasil Fontes mantm uma delicada e firmetenso com a leitura para ns (ns, leitores brasileiros) fundadora que a do concretismo.No chega a explicitar-se, mas podemos inferir que o carter eminentemente construtivo,ou mais propriamente construdo que os concretos emprestam a Mallarm e nele enxergam, o que levar o autor deste livro [Joaquim Brasil Fontes] a sugerir, no plano biogrficocomo no plano potico, um Mallarm menos adstrito forma final do poema, talvez at,eu arriscaria dizer, menos cerebrino na consecuo potica.57

    O projeto tradutrio adotado por Joaquim Brasil Fontes condiz com a leitura queprope. Em vez de procurar correspondncias formais, faz leitura praticamente semntica,desprendida de rima e mtrica. A escolha vocabular, contudo, de grande preciso eleva a uma abertura de redes associativas e etimolgicas caras a Mallarm. Ao longo dolivro, h captulos em que a leitura intercala tradues/interpretaes de poemas, de

    54 SISCAR. Poesia e crise, p. 111.55 Siscar republica na ntegra o prefcio, intitulado O tnel, o poeta e seu palcio de vidro em Poesiae crise. , alis, nesse texto, que faz o balano das mudanas atuais na recepo de Mallarm na Frana.A traduo de Fernando Sheibe inclui todos os ensaios da edio original de Mallarm56 FONTES. Os anos de exlio do jovem Mallarm, p. 22.57 FONTES. Os anos de exlio do Jovem Mallarm, p. 22.

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    cartas, de poemas em prosa e de breves ensaios. A forma aberta e fragmentada, coerentecom um Mallarm menos adstrito forma final do poema.

    H, por fim, a coletnea Poesias de Mallarm, publicada em 2011 por Andr Dick,que , de certa maneira, tributria do trabalho de Joaquim Brasil Fontes, tanto pelaseleo de textos, que recupera poemas de distintas fases de Mallarm, quanto por umdesejo de personalizar o autor francs. Por exemplo, em seu prefcio, Andr Dick comentaque na poesia de Mallarm se destaca (...) a imagem sensvel, perceptvel do cotidiano.58

    Ele ainda critica algumas leituras estruturalistas e ps-estruturalistas, como as de HugoFriedrich e as de Blanchot, e tambm conceitos como o de despersonalizao.Diferentemente de Joaquim Brasil Fontes, contudo, seus argumentos no se articulamcom clareza, o que transparece em seu projeto de traduo. O tradutor hesita entreusar ou no rima e mtrica (o uso de rimas toantes, por exemplo, no implica, em muitoscasos, uma maior proximidade semntica). O mais lacunar, contudo, a falta de relaoentre o ensaio introdutrio no qual defende a existncia de uma imagem perceptveldo cotidiano e tradues, em que o cotidiano no comparece.

    O livro de Andr Dick explicita riscos das mudanas em curso hoje no Brasil nomodo de se pensar a traduo potica.59 O distanciamento de um projeto formalizadorcom o consequente afrouxamento das balizas semiticos-textuais, sem a criao de umprojeto tradutrio que aponte de modo claro para os parmetros em jogo, corre o risco um risco provavelmente necessrio no atual contexto brasileiro de produzir textosque dificilmente se sustentam como obra.

    EEEEEMMMMM CONCLUSOCONCLUSOCONCLUSOCONCLUSOCONCLUSO

    Mallarm enuncia que h verso to logo se acentua a dico.60 Ouso dizer queh traduo to logo se acentua a dico. No primeiro Mallarm, h traduo, uma dico/emulao que olha para o Malalrm parnaso-simbolista e dele se apropria. No segundoMallarm, h traduo como dico/formalizao que via vanguarda ou no atua emrelao a etapas precisas de sua obra (os derradeiros Mallarms em verso). O terceiroMallarm o que se inventa agora e que desponta como um Mallarm plurivocal, emverso e prosa. Este, por um lado, desloca, divaga, fragmenta e, por outro, adere aomundo. E posturas como as de Marcos Siscar ou de Joaquim Brasil Fontes, nos nossostempos, traduzem esse Mallarm em dico mais historicizadora.61

    58 DICK. Poesias de Mallarm, p. 23.59 Aponto para os mesmos riscos em relao a Baudelaire em FALEIROS. Sobre uma no-traduo ealgumas tradues de Linvitation au voyage, de Charles Baudelaire.60 MALLARM. Crise do verso, p.151.61 A retraduo que proponho de Um lance de dados, a sair pela Ateli Editorial se quer tambm umapotica elaborada a partir dessa dico historicizadora. Cf. FALEIROS. Lance de dados: contrapontos sinfonia haroldiana; SISCAR. Poesia e crise; e FALEIROS.Traduzir Mallarm o lance de dados.

    AA

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    R S U M S U M S U M S U M S U M Linterprtation de luvre de Mallarm est passe par desdiffrentes tapes qui dterminent, leur tour, la faon dont ila t traduit. Lobjectif de cet article est danalyser cemouvement en ce qui concerne les traductions de Mallarmau Brsil.

    M O T SO T SO T SO T SO T S ----- C L SC L SC L SC L SC L SMallarm, traduction, rception au Brsil

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