02 LIVRO Cavanis Na fraternidade do sangue de Cristo Pode-se testemunhar como o amor de Cristo...

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TULLO GOFFI

Antônio e Marcos Cavanis “Na fraternidade do sangue de Cristo”

Ensaio sobre a Espiritualidade dos Veneráveis Fundadores do Instituto Cavanis

CONGREGAÇÃO DAS ESCOLAS DE CARIDADE INSTITUTO CAVANIS

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TULLO GOFFI

Docente de Teologia Moral e de Teologia Espiritual no Seminário Diocesano de Brescia e na Faculdade Teológica de Milão da Itália Setentrional e docente de Teologia Prática em Veneza junto ao Instituto de Estudos Ecumênicos São Bernardo. É autor, entre outros, de Jesus de Nazaré na sua experiência espiritual, Brescia 1983; A experiência espiritual hoje. As linhas essenciais da Espiritualidade cristã contemporânea, Brescia 1984; A espiritualidade contemporânea (século XX), Bolonha, 1987; A espiritualidade do século XIX, Brescia 1989. Organizou o Novo Dicionário de Espiritualidade, Roma 1989.

TULLO GOFFI, Antonio e Marco Cavanis, « Nella fraternità del Sangue di Cristo ». Saggio sulla spiritualità dei Venerabili Fondatori dell’Istituto Cavanis (Venezia 1994).

Traduzione in Portoghese a cura di P. Manoel Rosa CSCh

Stampa: Anno 2008 Curia generalizia dei Padri Cavanis Via Casilina, 600 00177 ROMA

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INTRODUÇÃO

É possível descrever uma perspectiva espiritual que abarque contemporaneamente duas pessoas? E, se possível, é conveniente do aspecto espiritual? Refletindo sobre a vida dos irmãos Antônio e Marcos Cavanis se oferece uma ocasião para tentar apresentar em um único escrito duas pessoas santas.

Se a tentativa for bem sucedida, poderia nos ajudar a olhar de forma mais ampla como várias almas vivem espiritualmente unidas no Corpo Místico de Cristo. Pode-se testemunhar como o amor de Cristo unifica na dimensão do seu espírito. São Paulo recordava: “Não tem mais importância ser hebreu ou pagão, escravo ou livre, homem ou mulher, porque unidos a Jesus Cristo vos tornastes uma só pessoa”. Unificar o escrito espiritual sobre duas almas santas poderia incitar a disponibilidade em tornarmos uma só coisa em Cristo, na caridade fraterna com os outros.

Verdadeiramente Antônio e Marcos Cavanis oferecem um testemunho espiritual que pode ser único, ou ao menos singular. São dois irmãos que se santificaram entrelaçados intimamente. Conservando a própria personalidade autônoma que não renunciaram, nos testemunham como ela pôde ajudar a exprimir uma fraternidade espiritual. Podemos dizer que de fato assumiram o princípio espiritual enunciado por Máximo de Turim: “A fraternidade de sangue, que funda a fraternidade humana, pede para ser convertida na fraternidade de sangue em Cristo”. Este escrito gostaria de ressaltar dois aspectos espirituais, que diz respeito aos irmãos Antônio e Marcos Cavanis. Em primeiro lugar o contexto sócio-eclesial-espiritual no qual eles nasceram, que certamente influenciou seu modo de vida, seja espiritual, seja apostólico.

Posteriormente, tratar o aspecto espiritual dos dois Irmãos Cavanis, repensado sobre o atual conhecimento que temos da vida espiritual.

O método historiográfico moderno pede a revisão dos acontecimentos históricos passados. É um empenho fundamental, sobretudo na história da espiritualidade. O Espírito nos convida a interpretar com sensibilidade mística atual seja a Palavra, seja a vivência dos Santos. Eles no seu contexto sócio-eclesial-espiritual do passado operaram com toda a riqueza dos seus dons.

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BREVE SÍNTESE DA VIDA DE ANTÔNIO E MARCOS CAVANIS

Antônio Ângelo Cavanis Nascimento - Veneza, 16 de janeiro 1772. Ordenado sacerdote - Veneza, 21de março de 1795. Morte - Veneza, 12 de março de 1858.

Marcos Antônio Cavanis Nascimento - Veneza, 19 de maio de 1774 Ordenado sacerdote - Veneza, no ano de 1806. Morte - Veneza, 11 de outubro de 1853.

1802 – Fundação da Congregação Mariana na paróquia de Santa Inês em Veneza.

Janeiro de 1804 – A primeira escola de caridade em Veneza. A escola é coordenada em comum pelos irmãos com igual responsabilidade, embora com divisão de tarefas: Pe. Antônio tem a direção material e espiritual da obra. Pe. Marcos responde pelas relações burocráticas provendo os meios de subsistência. É também o secretário.

1808 – Inauguração da tipografia para os alunos e acolhida das meninas pobres e abandonadas.

1819 – Ação para o reconhecimento junto ao governo austríaco e à autoridade diocesana: duas novas corporações religiosas: a masculina e a feminina. Princípio fundamental em que é inspirada a instituição escolástica: “A liberdade seja essencial e intrínseca ao próprio ato educativo”. Pe. Marcos é o animador tenaz e prudente. Em Roma obtém a aprovação da Congregação religiosa em 1835. A aprovação das Constituições em 1836. Reconhecimento oficial em Veneza em 1838. Marcos tem os primeiros sintomas da doença em 1850. São progressivos: dores agudas nas costas, acometimento da cegueira, decaimento da limpeza mental, aridez de espírito. Vida ceifada pela paralisia em 1853.

Pe. Antônio desde 1838 sofre de progressivo enfraquecimento das vistas. Em 1851, depois de uma grave doença passa por uma forte queda das energias físicas e mentais. Abandona o ofício de Superior Geral. Em 1853 tem confusão mental. Morre em 1858.

Pe. Marcos costumava dizer: “Duas cabeças, um só coração”.

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CAPÍTULO PRIMEIRO

CONTEXTO ESPIRITUAL E ECLESIAL DO SÉC. XIX

1. Valor do contexto espiritual junto aos Irmãos Cavanis.

A vida espiritual de Antônio e Marcos Cavanis não floresceu independentemente do meio que os cercava. Há um influxo do contexto sócio-eclesial-espiritual do seu tempo. O ambiente os orientou em direção à muitas convicções, favoreceu neles determinadas posturas, despertou em suas almas particulares ideais. A espiritualidade de toda pessoa é sempre uma comunhão entre e com os outros. Porventura o Verbo Encarnado não se mostrou em um rosto espiritual expressivo também do seu tempo a ponto de ser considerado um entre seus conterrâneos?

Os Irmãos Cavanis foram favorecidos por um Carisma que os orientou a se tornarem homens de Deus, vivendo entre as contradições do seu tempo. Mostram-se atentos às situações sócio-eclesiais e aos costumes existentes. Foram preocupados em acompanhá-los na medida em que se mostraram legítimos. Isto não significa que foram acomodados assemelhando-se em tudo aos seus confrades sacerdotes venezianos. Eles deram à sua existência uma orientação que fosse uma resposta alegre e entusiasmada ao chamado espiritual singular recebido do Espírito de Cristo. Ainda que tal resposta exigisse que fosse encarnada entre os membros da Igreja e das ordens sociais dominantes. Podemos dizer que eles foram bem inseridos no contexto eclesial espiritual do seu tempo, permanecendo livres na medida em que a atuação da própria vocação exigia. Uma autonomia que também era assumida diante daqueles que altamente apreciavam e veneravam.

Para com a Igreja tinham uma obediência total, privada de toda crítica pelas suas possíveis imperfeições. Abandonavam-se inteiramente às suas diretrizes, mesmo se sabiam mostrarem-se espiritualmente livres nas suas santas iniciativas. Sabiam conciliar a autonomia com o dever, porque concebiam a Igreja não tanto como uma instituição que manda, mas união de todos os fiéis, e que como fiéis se amam e se ajudam em Cristo, sob a vigilância do Sumo Pontífice.

Os Irmãos Cavanis são imersos na espiritualidade que vinha indicada pastoralmente na comunidade eclesial. Praticaram a vida cristã e sacerdotal como era comumente vislumbrada. Não foram isolados em solitária experiência mística. Na comum preocupação espiritual, todavia, o Senhor foi encontrado no amor ao doar-se aos jovens: saber acolher e procurar respostas de maneira evangélica. Freqüentando os altos prelados da Igreja ou dignitários da vida civil não se deixaram seduzir pelos seus costumes. Buscaram ao invés, quando possível, se tornar atentos e solícitos na caridade em prol dos jovens pobres e abandonados. Distinguiram-se pelo contínuo afadigar-se somente por amor.

Todo relacionamento das suas vidas e da sua obra era sempre examinado e ditado por um pessoal senso espiritual, reforçado criticamente pelo contexto espiritual existente e em base ao amor para com Deus e aos jovens. Para compreender qualquer uma de suas decisões é necessário examiná-las sob o tríplice critério mencionado. É difícil mencionar se ou quando um dos motivos mencionados vem privilegiado. Podemos dizer que estão presentes de forma muito variada. Sendo pessoas altamente ativas, estão em contínua posição interlocutória com a vontade de Deus discernindo-a no interior das várias situações.

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2. O contexto sócio-eclesial do século XIX.

O contexto sócio-cultural do século XIX é claramente revolucionário em relação à mentalidade da louvável prática cristã dos séculos precedentes. É permeado de idéias iluministas, reivindicações libertárias, aspirações a um bem-estar generalizado, tumultos do proletariado e conquistas científicas. Momento histórico desejoso de reverter a ordem tradicional.

A comunidade eclesial, educada a venerar a estabilidade, rejeita o novo contexto sócio-cultural, que não se apresentava evangelizado. Não reconhece outro modo social possível de vida cristã que não seja o tradicional. Diante do culturalmente novo a comunidade cristã se fecha sobre si mesma. Defende-se como cidade sediada. Orienta os fiéis a evitar um contato com os não-crentes, bem como prestar ouvidos somente à voz da Igreja. De fato, a Igreja se posiciona combativa na defesa de seu poder público adquirido. Mas não é consciente que se trata de uma poder social. Reserva-se no direito de testemunhar a própria ortodoxia, de defender a sua sacralidade de uma contaminação mundana.

A comunidade eclesial ainda não conquistou a capacidade de distinguir e separar o poder temporal da pastoral eclesial. Acreditava que tudo que havia na Igreja fosse uma sacralidade intocável: assim, por exemplo, o poder temporal pontifício, benefícios sócio-econômico eclesiásticos, imunidade clerical, atividade assistencial coordenada pelas associações religiosas. Tudo era assemelhado com a prática sacramental da Igreja. Também os laicistas faziam confusão identificando o todo eclesial como somente uma pretensão da Igreja de apoderar-se dos bens e das consciências de forma autoritária e ambiciosa.

Nesta mentalidade comum é compreensível que Pio IX detestasse como obra de Satanás a ratificação da unidade nacional italiana, que não teria outro propósito a não ser invejar e destruir a ação redentora de Deus. Nesta intenção ele incentivava os jovens que se reunissem em Associações de Ação Católica, não tanto empenhados na formação espiritual, mas porque se propunham de “combater à direita e à esquerda os inimigos do nome cristão”.

De um modo inconsciente a pastoral vem legitimar, antes torna obrigatório, um comportamento combativo laico entre os fiéis em favor do poder eclesiástico. Isto significa que o Papa é constituído soberano absoluto, esquecendo de colocar-se exclusivamente à serviço de Cristo e da Palavra. Giovanni Andréa Avogadro (+1815) bispo de Verona, recordava aos seus paroquianos que no seu trabalho pastoral deveriam evitar “todo novo método e toda nova doutrina, sendo somente a Igreja romana mãe e mestra de todas as outras”. Pastoralmente se inculcava um só princípio: “obedecer cegamente aos superiores eclesiásticos”. Pe. Luigi Guanella dizia: “Tocar os superiores eclesiásticos seria como meter o dedo nos olhos, para ferir as pupilas, do próprio Deus. É necessário, portanto, obediência aos superiores sendo eles os representantes de Deus”.

A pastoral eclesial vez ou outra propunha a defesa da Igreja nos mesmos modos em que os laicistas propunham para o próprio Estado. Davide Albertario no congresso de Bergamo em outubro de 1877, calorosamente convidava o povo cristão a cultivar o “ódio” santo. Uma prática que os fiéis gostavam de acolher em defesa da Igreja agredida, semelhante aquele amor evangélico cultivado para com os inimigos pedido por Jesus. Os santos da época, de modo admirável, são iluminados pelo Espírito de Cristo para fazer nascer o amor evangélico também para com os inimigos da Igreja. É compreensível que no contexto sócio-eclesial do século XIX se acreditasse que somente a Igreja

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soubesse sugerir e praticar a caridade evangélica no campo sócio-político. Pe. Zenzi, pároco de Santa Maria Consoladora em Verona, na festividade de São Pedro apóstolo em 1792 afirmava que somente do papa “vem a salvação da nossa fé, a reta disciplina dos nossos costumes e todas as ordens capazes de guiar santamente nossas ações. Os anjos e as dominações diante dele desaparecem, porque ali está o próprio Verbo do divino Pai a nos dar santas e salutares admoestações”.

Quando se canonizavam os santos no século XIX era descrito pormenorizadamente a sua exemplar prática de obediência. Seria oportuno saber precisar se nela havia uma prática de obediência iluminada pelo Espírito de Cristo (isto é, espiritual), ou unicamente adesão a um poderio eclesiástico (isto é, moral).

3. Espiritualidade do século XIX.

Durante o século XIX se acreditava que o fiel pudesse praticar uma vida interior bem particularizada, distante do diálogo com os não crentes, permanecesse abandonado e obediente à Igreja. Isto porque a espiritualidade era vista a partir do princípio da obediência eclesial. Ensinava-se que Deus se comunica somente através da ação diretiva dos representantes da sua Igreja. Toda alma era incapaz de acolher em si mesma as sugestões interiores do Espírito. Devia considerar-se intimamente ofuscada e desviada pelo pecado original.

Para contrapor-se às constantes ocasiões de pecado, sobretudo dos jovens, foi que Dom Bosco (+1888) elaborou o método preventivo da educação. Também os irmãos Cavanis se preocuparam em eliminar qualquer coisa ou situação que fosse capaz de revelar nos jovens más tendências adormecidas no profundo de seus espíritos. Era um inflamar-se de constantes atenções que proibiam livros suspeitos, imagens com tendências sensuais ou amorosas, a convivência desordenada, a conversa que poderia despertar nos adolescentes a curiosidade sobre as realidades sexuais, a necessidade de manter amizades somente virtuosas, a recordação de um vestuário decente, o freqüentar somente divertimentos e espetáculos edificantes e similares. A educação espiritual era colocada em primeiro lugar, seja pela dependência em relação a fé, seja pela mortificação acerca da sensualidade.

A autorizada direção eclesiástica prescrevia qual conduta para conquistar um estado de santidade? No século XVIII dominou a santidade do quietismo, que exaltava a perfeição do amor puro, diante do qual se negava todo desejo de utilidade pessoal, até mesmo de salvação ou de santificação. Buscava-se amar a Deus por si mesmo, também se isso implicasse a própria perdição. O magistério eclesiástico interveio com decidida condenação. Desencorajava a comunidade eclesial procurar uma intimidade mística imediata com Deus mediante o Espírito. Nas orientações espirituais eclesiais era constante a preocupação em orientar a união caritativa com Deus em Jesus e nos irmãos. União tornada possível e louvável se os fiéis estivessem envolvidos em uma prática pessoal ascética, dentro de um estado de sacralidade eclesiástica. A salvação e a santidade eram tidas, sobretudo, como uma conquista pessoal que deveria cooperar com a graça do Senhor. Era objeto de um esforço meritório. Entendia-se que a vida espiritual devesse necessariamente desenvolver entre práticas religiosas e eclesiásticas que tendiam a preencher todo o dia: devoção a Nossa Senhora e aos santos, imagens ou medalhas, quadros, oratórios, óleo bento, som de sino, ladainhas, bênçãos, jaculatórias indulgenciárias, visitas eucarísticas e coisas semelhantes. A prática litúrgica era reduzida ao grau de devoção eclesial, pelo cuidado da sua dimensão mistérica.

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Poder-se-ia dizer que o verdadeiro sacramento tido como santificante fosse a mediação eclesiástica. Era difundido um geral conformismo religioso eclesiástico que o próprio clero vivia na vida espiritual. Isto era muito evidente. Os espiritualistas advertiam com freqüência o clero a fim de que não deixasse tudo ser resumido nos trabalhos ministeriais. Recordavam a necessidade de se voltarem para os mesmos sentimentos de Jesus (por ex.: P. Bérulle, G.G.Olier, C. de Condren).

Até mesmo a atividade profana, ainda que claramente altruísta, deveria assumir uma forma eclesiástica para ser espiritualmente apreciada. Giuseppe Sarto, Patriarca de Veneza (futuro Pio X) no seu discurso em Padova no ano de 1896 à União dos Estados Sociais, lamentava que a prática da assistência social estivesse passando para a esfera civil, porque com isso se vinha a perder “o seu mérito diante de Deus: não é mais um canal de graça e um instrumento seguro de salvação (...). A pobreza torna-se uma função, uma profissão, um ofício público menos retributivo do que os demais e que espera orgulhosamente a sua paga”.

O cerne da dedicação dos religiosos e fiéis é constituído pelo sentido do dever. O trabalho incessante era visto como fonte de vida espiritual e de salvação eterna. Em harmonia com o trabalho se exaltava: ordem, disciplina, competência, sobriedade pessoal, superação do interesse pessoal em favor do bem público, espírito de sacrifício. O empenho ascético constituía o denominador comum de qualquer atividade espiritual. A palavra revelada era meditada como fonte normativa de como desenvolver o próprio dever. A liturgia era um empenho cerimonial para obter a graça necessária à própria vida laboriosa. A comunhão eucarística era praticada como o grande dom da união de Cristo com a alma virtuosa. A freqüência do sacramento da penitência consistia no exame de consciência sobre como era desempenhado os próprios deveres. Oferecia a solução das infrações cometidas e se dava a possibilidade de poder controlar e verificar a própria vida virtuosa e devota.

Ainda mais característica era a devoção alimentada por Dom Bosco junto aos seus jovens. Aos adolescentes que lhe pediam orientações para se tornarem santos ele se limitava a inculcar a prática religiosa (confissão semanal e comunhão eucarística), cumprimento dos próprios deveres em união com Deus e espírito de sacrifício pelas imperfeições cotidianas de se viver em comunidade. A graça era suplicada com o fim de poder viver a própria experiência ascética e não como meio de uma nova vida caritativa no Espírito de Cristo.

Os religiosos em geral ignoravam a experiência espiritual contemplativa mística. Não suplicavam o Espírito para receber uma vida espiritual ou para participar da caridade pascal de Cristo. Limitavam-se a ser fiéis à própria consagração a Deus no cumprimento dos deveres do seu estado, em serem obedientes aos superiores, na observância da regra. Certamente o Espírito Santo comunicou intimamente a sua graça caritativa mística às pessoas do século XIX, mesmo se elas não foram educadas a vivê-la de modo consciente. O Espírito se comunica a toda pessoa que vive em estado de graça.

É necessário dizer que o século XIX foi rico de pessoas que viveram um elevado estado místico contemplativo. Por exemplo: São Gaspar Bertoni (+1853), Santa Madalena Gabriella de Canossa (+1835), Antoine Chevrier (+1879), Beato Antônio Rosmini (+1855) e Santa Teresa do Menino Jesus (+1897).

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4. As Congregações religiosas e a espiritualidade do século XIX.

No século XIX a comunidade cristã nutre uma profunda solidariedade com o generalizado estado de miséria da população. Os jovens aspiram à vida religiosa uma vez que o estado consagrado é concebido como o trabalho voluntário mais próximo do serviço aos pobres. O florescer das Congregações religiosas com finalidade assistencial coincide com o surgimento da sociedade capitalista industrial. Proclama-se a grandeza do trabalho para o bem-estar de todos. O Imperador José II decretará a abolição das ordens religiosas dedicadas somente à vida contemplativa sem serviço assistencial para com os pobres (05 de dezembro de 1781).

As Congregações religiosas que floresceram numerosas no século XIX uniram de modo exemplar a assistência caritativa aos necessitados e o amor a Deus na própria santificação. Estas em meio ao mundo capitalista majestoso amam testemunhar a Providência divina. Chegam a ver nas graves dificuldades sócio-econômicas que atentam contra a sobrevivência uma graça que pode favorecer o abandonar-se mais profundamente à Divina Providência. O Pe. Marcos Cavanis escreverá ao irmão Pe. Antônio: “Aqui não há saída, convém navegar e abandonar-se à Providência” (Epistolário III, 842). “Caro irmão, consolai-vos por tantas bênçãos e adore a conduta admirável da Providência divina que dispõe as coisas mais indiferentes aos ocultos misericordiosos fins” (Epist. III, 578).

As Congregações religiosas nas suas configurações institucionais e espirituais vão progressivamente se modificando em harmonia com o novo contexto sócio-cultural. Nisso se nota uma progressiva desclerização valorizando os irmãos leigos nas atividades profissionais. O direito de propriedade é concedido aos membros com votos temporários. Busca-se viver do próprio trabalho, embora sempre dando assistência aos órfãos, doentes e adolescentes. Em geral as Congregações escolhem desenvolver a caritativa do seu modo junto às categorias mais necessitadas (doentes e pobres), mas que fosse neutra em questionar o poder público. Por esse motivo na formação dos adolescentes se contentam de ensinar tarefas artesanais e agrícolas. Só em raras exceções se vê algo diferente, seja no mundo do operariado contestador (por ex. os sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus do Pe. G. Dehon e as irmãs da Sagrada Família de Elisabetta Cerioli), seja na oferta gratuita aos pobres de escolas humanísticas superiores (por exemplo Pe. Nicola Mazza de Verona, os irmãos Cavanis de Veneza). Por isso, em linhas gerais as congregações religiosas aprovavam, implicitamene, o domínio sobre a vida social das classes ricas privilegiadas.

As devoções difundidas pelos religiosos são compreensíveis dentro da ordem estabelecida por um sagrado inatingível. Estas devoções por um lado exprimem exaltação espiritual demasiada pela dor (Jesus crucificado, Nossa Senhora das Dores, Via-sacra, os santos penitentes), por outro considerava estável o próprio humilde estado devendo ter como um privilégio o poder oferecê-lo por amor a Deus (devoção do Sagrado Coração e Nossa Senhora).

Sucessivamente junto aos religiosos se notará uma maior serenidade espiritual, uma condescendência para com o bem-estar, uma noção ascética compreensível da fragilidade pessoal, o contemplar a bondade do trabalho sem exaltar o cansaço, uma abstinência mais moderada, um acolher sem polêmicas a assistência aos pobres e doentes feito pela sociedade civil, mesmo privado de motivação espiritual. Vai acontecendo que o novo contexto assistencial cívico fará aparecer junto à população cristã o sentido caritativo da assistência, como era tradicionalmente visto junto aos religiosos. Aos jovens se apresenta a necessidade de um voluntariado com espírito secular laico, de todo despojado das motivações caritativas próprias do Corpo Místico. A assistência oferecida pelos religiosos não será tanto mais admirada, porque oferecida aos indivíduos sem colocar em evidência

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o direito de todos a participar do bem-estar geral em base da proclamada justiça social.

A pastoral eclesial do século XIX apresentava Deus empenhado em assistir a sua Igreja em toda atividade magisterial e pastoral. Convidava a cristandade a confiar-se na Igreja, detentora de salvação e santidade. Proclamava-se que sair da Igreja equivalia a perder o único lugar salvífico humano. Neste contexto de fortaleza eclesiástica os religiosos difundiram um sentimento de serenidade espiritual, mostrando a beleza de um rosto caritativo, que podia ser visto livremente de várias formas. G.B. Cottolengo mostrou a Igreja na caridade miraculosa. Dom Bosco indicou uma austera alegria educativa. Pe. G. Guanella a testemunhou revestida de amável simplicidade e de abandono à providência. Antônio e Marcos Cavanis a apresentaram promotora no serviço da juventude necessitada. As Irmãs Madalenas, recolhedoras da estrada, a revelaram como uma comunidade convertida do pecado que se doa ao serviço aos outros.

De modo geral os religiosos do século XIX recolhem a própria espiritualidade na regra, reconhecendo nesta a capacidade de unir os membros dentro de uma comunidade ascética religiosa. Semelhante atitude poderia inclinar o religioso a esquecer o espírito indicado diretamente do evangelho, limitando-se ao que foi dito pela regra. O Espírito torna consciente Antoine Chevrier (+1879), fundador do Instituto do Prado, a orientar os seus religiosos a praticar os conselhos evangélicos, não na modalidade canônica dos votos evangélicos, mas naquela união mística a Cristo, amadurecida diretamente sob o Evangelho.

Os Irmãos Cavanis vivem profundamente inseridos na espiritualidade comum do século XIX: fundam uma instituição assistencial educativa animada pela caridade, com espírito eclesiástico estruturam uma Congregação religiosa inspirada sobre o esquema religioso dos jesuítas. Tudo isto era um costume generalizado das congregações religiosas da época. Inspiram-se também em São José de Calazans tido como um santo incomparável pela sua atividade apostólica junto aos jovens. É apreciada também a relação serena e alegre com os jovens e um divertimento agradável. Um espírito educativo que se inspirava em São Francisco de Sales e em São Filipe Néri que os conduzia a evitar uma multiplicidade de prescrições e o deixar de impor castigos e jejuns. Queriam favorecer uma vida comunitária de amor. Verdadeiramente os Irmãos Cavanis na convivência com os jovens mostraram a sua santa e amável genialidade inventiva.

CAPÍTULO SEGUNDO

PERSONALIDADE ESPIRITUAL DOS IRMÃOS CAVANIS

1. Duas personalidades de caráter diferente.

É muito natural que os irmãos apresentem diferentes personalidades. O Pe. Antônio Ângelo se mostrava diligente, consciencioso, de índole tranqüila e tímida, reflexivo, amante do silêncio. Sabia comandar, se mostrando calmo e prudente, doce e enérgico ao mesmo tempo.

Formou a alma do Instituto se mantendo humilde e conciliador. Sendo diligente amou a exatidão e a verdade. Conservou a serenidade de espírito em meio aos sofrimentos e doenças. Do lado espiritual testemunhou uma vida interior escondida com Cristo em Deus.

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Pe. Marcos Antônio, vivaz e jovial, se mostrou cuidadoso e hábil diante das autoridades, mas alegre e expansivo com os amigos. Generoso no sacrifício e no apostolado era impaciente com a lentidão, resolvendo tudo de imediato. Exercitou a constância indizível contra as dificuldades, tentando todos os meios possíveis, entre os quais a oração. Conhecedor dos próprios limites, quando alcançava um resultado benéfico o atribuía ao mérito da oração dos outros. Espiritualmente teve zelo ardente e constante.

Antônio Ângelo e Marcos Antônio chamados a trabalharem espiritual e apostolicamente unidos se beneficiaram por terem uma personalidade diferente. Comparando-se puderam corrigir os próprios aspectos pessoais. Cada um pôde usufruir dos dons e da capacidade operativa do outro.

2. Irmãos unidos na espiritualidade de Cristo.

Antônio Ângelo e Marcos Cavanis além de terem o mesmo sangue e de terem sido educados num mesmo ambiente seja familiar, seja eclesial receberam do Espírito de Cristo uma íntima união espiritual fraterna. União que de algum modo fazia recordar a pericorese trinitária: nenhuma Pessoa divina cumpre um ato de forma autônoma, mas somente no operar nas outras e com as outras.

Os irmãos Cavanis condividiam intimamente variados ideais. De modo particular: comum espírito de piedade, confiança na providência divina, busca da vontade de Deus, trabalho e zelo pela juventude, pleno desinteresse pessoal. Também quando entre eles aparecia um ponto de vista conflitante prevalecia sempre a vontade comum fraterna e serena harmonia. Cada um, no apresentar seu próprio ponto de vista, buscava não tanto o convencimento do outro, mas o estímulo da idéia alheia, a fim de que pudesse completar o seu próprio pensamento ou obra a ser realizada. Nos assuntos concordados cada um revelava o que se passava no mais íntimo do seu ser.

3. Uma busca comum: a vontade de Deus.

O Espírito Santo introduz a vida de cada pessoa no próprio desígnio criativo-salvífico de Deus Pai em Cristo. Dentro do desígnio divino o Espírito confiou em comum aos dois irmãos Cavanis não uma busca de doutrina teológica, mas a atividade apostólica de educar os jovens. Eles constataram que lhes foi confiado um campo de trabalho infindável. Daqui em diante a preocupação crescente de sempre doar-se e sacrificar-se mediante a oração.

Conscientes que a sua missão apostólica traduzisse a vontade divina difusa nas suas almas pelo Espírito, cada um buscava nas indicações dadas pelo outro um apoio que melhor revelasse a vontade de Deus. Juntos desejavam sempre e somente de serem iluminados sobre a vontade de Deus. Eram certos de que aderindo a vontade divina poderiam expressar a assistência da Providência divina. Isto lhes dava serenidade de espírito mesmo se as decisões concordadas eram fonte de sacrifícios, de trabalhos e sofrimentos. Desejavam somente sentirem-se iluminados sobre o que Deus queria deles.

É compreensível como era para eles rezar antes de enfrentar um problema a fim de que Deus se dignasse revelar a sua vontade. Tornavam-se disponíveis em acolher a vontade divina qualquer que fosse. No rezar não se colocavam diretamente na intimidade de Deus, mas usufruíam das devoções,

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entre as quais da Virgem Maria e São José de Calazans. Buscavam intermediários celestes para valorar as suas orações junto a Deus. Buscar a vontade de Deus, por eles concretizada no sacrificar a existência e bens próprios no serviço aos jovens necessitados, não significou tornar-se independente da autoridade eclesiástica e civil. Colocavam tudo e todos dentro da luz do projeto da vontade divina.

4. Vida de fé, esperança e caridade.

O Espírito Santo trabalhou no íntimo de Pe. Antônio e Pe. Marcos tornando-os cada vez mais conformados a Jesus. A ação do Espírito transparece em duplo plano. Antes de tudo os fez partícipes da experiência pascal de Cristo. Os fez nascer para uma vida nova transformando o seu ser pessoal sempre mais num espírito ressuscitado em Cristo. Uma condição necessária para serem filhos de Deus, irmãos em Cristo, herdeiros da vida bem-aventurada. Já no fim da vida, possuindo o espírito ressuscitado em Cristo, os irmãos Cavanis tiveram uma oportunidade de comunicar no seu íntimo, ainda que de forma limitada, diretamente com a SS. Trindade.

Em segundo lugar o Senhor Jesus, em virtude do Espírito, não só esteve presente nas almas santas dos Irmãos Cavanis, mas veio assimilando progressivamente as suas faculdades, trabalhando com eles e neles. Infundiu neles, mediante o Espírito, uma contínua animação teologal de fé, esperança e caridade.

Os dois irmãos Cavanis amavam os jovens não tanto com amor humano, mas com aquele mesmo amor de Jesus que atuava neles. Compreende-se, então, como o seu amor tinha um fascínio e uma potência transformadora sobre os adolescentes, como sua caridade inflamava os jovens, tornando-os capazes de suportar penúrias e sofrimentos a fim de conduzir a vida de forma honesta. Igualmente a fé dos irmãos Cavanis, sendo aquela mesma de Jesus operando neles, comunicava às suas palavras exortativas uma excepcional força de convencimento espiritual. Neles se notava o progressivo revelar-se do sobrenatural discernimento espiritual, que não se comprazia das louváveis ações realizadas, mas inquietantemente estimulava em direção a uma experiência sempre mais profunda do Espírito de Cristo.

O enfraquecimento progressivo do corpo, o ofuscar da vista, o turbamento das suas capacidades de discernimento foram vistos por eles como uma renúncia sempre mais crescente da própria autonomia pessoal para abandonar-se intimamente em tudo e exclusivamente em Cristo vivo neles. Eles puderam ao término da vida dizer com São Paulo: “A nossa vida é finda, não somos mais nós que vivemos. É Cristo que vive em nós” (Gl 2, 20).

Não eram mais preocupados com as coisas presentes, mas em virtude do Espírito, na sua interioridade profunda eram totalmente absorvidos na vida nova em Cristo.

5. A lectio divina.

Os irmãos Cavanis orientavam os religiosos a iniciarem o dia lendo um trecho do Novo Testamento, de joelhos. Era um modo de testemunhar que as Escrituras era realmente a Palavra de Deus e como deveria ser acolhida: posta no início das atividades diárias, meditada e preparada no Espírito. Somente o Espírito de Cristo pode revelar a mensagem espiritual da Palavra para a nossa situação

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atual. A Congregação religiosa instituída pelos Cavanis, sendo essencialmente missionária educativa, com a lectio divina implorava as inspirações para poder falar a linguagem dos jovens no dia-a-dia.

Os irmãos Cavanis pessoalmente meditavam e pregavam sobre a Palavra de modo verdadeiramente exemplar. Temos uma clara confirmação nos seus escritos, todos recheados de contínuas e precisas citações bíblicas. Assim também deveria ser em suas ações cotidianas. Não ensinavam uma doutrina própria, mas aquela que o Senhor pedia a todos (e, portanto, sua compreensão) através da sua Palavra.

6. Conhecimento teológico.

Os irmãos Cavanis mostraram que conheciam de forma distinta a doutrina teológica. Isto é excepcional se levarmos em conta que não fizeram estudos sistemáticos junto às escolas teológicas, nem mesmo a nível seminarístico. Conheciam a teologia não tanto segundo uma sistemática doutrinal, mas assimilada dentro de uma interioridade espiritual. Eles se aproximaram da verdade teológica como uma indicação de um caminho interior a percorrer, como uma expressão espiritual a desenvolver.

Quando falavam de teologia não comunicavam uma sentença doutrinal, mas narravam quanto aprenderam vivendo no Espírito de Cristo, quanto viram e experimentaram interiormente na fé. Acontece que em todas as homilias ou discursos teológicos não há um exposição doutrinal, mas um contínuo deter-se na vitalidade interior, um revelar aos outros como eles viviam as verdades evangélicas, como atuar no presente, como suplicar ao Senhor de ser favorável segundo o seu coração misericordioso.

Como mestres da comunidade de religiosos não buscaram vincular os membros a determinados dados de teses teológicas e de dados de princípios morais. Empenharam-se em fazer presente nos religiosos os mesmos sentimentos de Jesus Cristo. Um método instrutivo que consentia em valorizar dotes e dons sapienciais existentes no profundo das almas dos confrades. Na intenção de respeitar a espontaneidade de cada religioso aceitavam um pluralismo nas programações apostólicas. Os irmãos Cavanis souberam evitar uma identificação demais estreita entre a sua personalidade e o que deviam comunicar como mestres da sua comunidade religiosa.

7. As Normas.

Nas próprias Normas dos irmãos Cavanis aparece a convicção que a vida espiritual vem identificada e favorecida mediante as regras disciplinares, entre as quais prescreveram a reverência também corporal aos superiores, piedade filial para com o Instituto, um controle detalhado e minucioso sobre a vida espiritual e apostólica por parte do superior. Tudo isso, se parece aceitável no século XIX, não é assim nos tempos modernos. Nas novas regras do Instituto religioso vêm indicadas orientações que são diretamente confiadas aos seus membros. Hoje cada religioso é tido como responsavelmente adulto no estar à escuta do Espírito operante no seu interior. Se nas normas dos irmãos Cavanis o Espírito Santo se comunicava aos súditos através da palavra da autoridade, nas novas regras o superior tem o dever de educar os religiosos para escutar pessoalmente o Espírito.

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Os irmãos Cavanis reconheciam que deveriam tratar os jovens de acordo com a liberdade. Enunciaram de modo novo um princípio fundamentalmente admirável: da caridade de Cristo provém a liberdade. A sociedade cristã, porque fundada sobre a caridade de Cristo, deve respeitar a liberdade dos adolescentes. Mas porque os irmãos Cavanis não deram a mesma liberdade aos religiosos da própria comunidade? Porque no século XIX era dominante o caráter ascético, não propriamente aquele espiritual místico. A ascese necessitava de particulares proibições para ser solidamente vivida por uma comunidade religiosa.

Todavia, as Constituições pediam somente a promessa, não os votos. Não era para favorecer um relaxamento na conduta comunitária virtuosa, mas para inculcar que tudo deveria ser feito com espontaneidade de amor para com o Senhor, o qual é presente entre os irmãos religiosos vinculados na comunidade de caridade.

CAPÍTULO TERCEIRO

VIVER VIRTUOSAMENTE

1. Obediência.

O conteúdo sócio-cultural-eclesial do século XIX é a favor da obediência “cega”, como foi formulada por São Francisco de Assis e por Santo Inácio de Loiola. Era sugerida, sobretudo, uma profunda disponibilidade interior para acolher as disposições do Papa, tido como o Cristo presente entre nós. São Bento havia sentenciado que o abade faz às vezes de Cristo. Por isso se acreditava que Deus necessitasse assistir todo superior, a fim de que estes, em cada decisão pudessem indicar o autêntico querer divino. Não se tinha a possibilidade de poder criticamente verificar o valor e a oportunidade de uma adesão aos comandos ou desejos dos superiores. Esperava-se somente uma adesão pronta e incondicional.

Os irmãos Cavanis viveram assim e propuseram aos outros a doutrina da obediência. Todavia, dentro de tal doutrina souberam enunciar o respeito da liberdade dos súditos, como vinha sendo anunciado nos novos tempos. Entre aqueles que haviam proposto o reconhecimento à liberdade, seja do estudo ou da escolha profissional aos estudantes adolescentes, por todos reconhecida neste tempo, os irmãos Cavanis idealizaram a sua nova congregação religiosa no modo de comunidade amical, favorecendo um apostolado eficiente junto aos jovens. Não inseriram a figura do superior geral, nem vínculos de votos perpétuos que prendesse os membros para sempre dentro da congregação religiosa. Na prática tiverem que aderir às disposições pontifícias, estruturando a comunidade religiosa segundo o esquema comum das congregações religiosas do seu século. Inspiraram-se nas regras dos Escolápios e dos Jesuítas.

Se do lado institucional se conformaram à obediência eclesial na forma ensinada e praticada do século XIX, os irmãos Cavanis acreditavam que toda ação espiritual e apostólica devesse se orientar além do conformismo eclesiástico criando uma união com o Cristo pascal. Isto sugeria que qualquer que fosse a imposição dos superiores para abandonar a própria iniciativa espiritual apostólica, deveria ser acolhida como uma ocasião de participar da cruz de Cristo e viver ressuscitado nele.

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2. Humildade.

Parece que os irmãos Cavanis tiveram até o fim da adolescência uma disposição de humildade. Mas o comportamento humilde que eles exercitaram como sacerdotes se manifestou de forma espiritual de todo diferente daquele caráter juvenil. É exercido como uma conquista de caridade teologal.

Eram críticos sobre seu trabalho espiritual e apostólico. Manifesta-se claramente testemunhado em uma carta de Pe. Marcos Cavanis escrita aos seus confrades por ocasião do seu onomástico em 1840. De onde nascia a autocrítica? Os irmãos Cavanis concebiam que Jesus, por ser muitíssimo amado era todo absorto em contemplar a grandeza do Pai. Para Jesus amar o Pai significa honrá-lo, olhando para si mesmo com humildade.

Também para os irmãos Cavanis, a exemplo de Jesus, amar o Senhor significa ser consciente que Ele somente é muitíssimo amável. Isso significa que o encher-se de orgulho é sinal que não somos verdadeiramente enamorados de Jesus e que não o amamos com o mesmo amor do Senhor. Estar satisfeitos com tudo que pessoalmente foi feito é não saber reconhecer que tudo é possível pela força da graça do Senhor . O orgulho é um voltar-se para si mesmo, evitando abrir-se para Cristo. Os irmãos Cavanis, olhando para o fim da própria existência compreenderam que ficaria do seu trabalho somente aquilo que foi dom espiritual ofertado pelo Espírito de Cristo. Todo o resto desaparecerá, será “vaidade das vaidades”. Eles foram heróis da humilde porque amaram profundamente Jesus, o único verdadeiro bem.

3. A pobreza de espírito.

Os irmãos Cavanis, dada a sua personalidade caracteristicamente diferente, fizeram uma experiência espiritual segundo um modo pessoal, com um estilo inconfundível. Uma autonomia espiritual que não foi obstáculo para que ambos pudessem partilhar tudo, unidos no mesmo ideal de espiritualidade. Pode-se falar de semelhança espiritual entre os irmãos Cavanis, sobretudo em relação à prática da pobreza.

O Espírito de Cristo desejou imprimir neles a imagem da humildade divina trinitária. Teologicamente é permitido afirmar que entre as Pessoas divinas existe uma vida totalmente condivisa, exceção somente por quanto constitui a sua personalidade. Nenhuma delas realiza um ato se não for dentro do ato das outras Pessoas. Cada uma opera com as outras Pessoas. Em Deus não existe um trabalho de uma Pessoa contraposto ou distinto das outras. É assim que o Deus trinitário trabalha. Esta dependência recíproca entre as Pessoas Divinas constitui a rica “pobreza” de Deus. Uma pobreza chamada pericorese, que se fosse tirada a divindade seria anulada. Deus porque é Deus, é “pobre”.

É esta pobreza de espírito que o Espírito Santo espelhou, de modo idêntico e ao mesmo tempo diferente, em cada espírito singular dos irmãos Cavanis. Uma pobreza de espírito acolhida interiormente por eles de forma pessoalmente única. Pe. Marcos usufruiu da própria inteligência ágil e impetuosa, tenaz e impaciente. Buscou moderar a si mesmo controlando-se continuamente para ser um com o irmão. Porquanto, Pe. Antônio, humilde e doce, sempre paciente, sentia a necessidade de acolher as propostas de bondade do seu irmão Marcos. Comportavam-se de modo humano e espiritual a se integrarem, nenhum deles pensando que pudesse saber realizar algo sem o

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outro. Se um era humilde e silencioso, o outro se mostrava impávido para realizar as idéias do irmão.

Quando se lê a vida dos irmãos Cavanis é permitido pensar que o Espírito desejou exprimir neles a marca da divina pobreza trinitária. Eles são unidos vitoriosamente em uma comum auto-doação no serviço caritativo, bem como em todos os momentos. Entenderam que somente integrando-se poderiam tornar-se apostolicamente eficientes. Nenhum dos dois se preocupava em tomar para si o mérito de ter iniciado a obra ou que havia corrigido alguma proposta do outro. A sua comum riqueza fraterna e caritativa é subordinada à profunda pobreza interior de espírito. Se cada um realizava uma comum atividade esta era condizente com a própria personalidade.

4. Exercício caritativo da pobreza.

O Espírito Santo comunica a cada pessoa a participação na pobreza trinitária divina como é presente e visível em Jesus Cristo. O mérito dos irmãos Cavanis foi o de se terem colocados disponíveis em acolher e auxiliar com espírito humilde a graça crística do Espírito.

Para poder viver a pobreza espiritual segundo a graça divina trinitária foi preciso que os irmãos Cavanis purificassem sua personalidade de toda forma de egoísmo. Não se tratava de uma simples purificação ascética, mas de uma aniquilação que somente o Espírito Santo sabe realizar. É um ser despojado de tudo quanto seja reivindicação de autonomia do próprio eu, a ponto de ser reduzido a puro amor ao serviço dos outros. Estamos diante da anulação mística do “eu”, diante do rosto profundo de si mesmo. Uma verdadeira pobreza interior que consente em ser disponível a viver a Pobreza divina como Dom do Espírito de Cristo.

O contrário é a persistência de um estado interior de cobiça no auto-possuir-se, impedindo o próprio permanecer no amor de Deus.

Tendo conquistado um espírito evangélico de pobreza interior, os irmãos Cavanis fizeram uma escolha correspondente de pobreza no plano econômico. Foi uma escolha singular que se distingue da pobreza praticada nas congregações religiosas da época. As congregações religiosas do século XIX permanecem na pobreza porque os membros não possuem pessoalmente nada. Possuem somente a comunidade religiosa, a qual pode ser, no entanto, rica. Os primeiros franciscanos para se fazerem pobres haviam entregado suas habitações à Santa Sé, ainda que continuassem a gozar pessoalmente delas. Estamos diante da personalidade jurídica, que aceita a declaração de pobres, ainda que não se viva na pobreza.

No entanto, Pe. Marcos e Pe. Antônio quiseram viver efetivamente como pobres em uma comunidade pobre. Eles abandonaram terras, a nobre casa paterna, a alegria da presença da mãe para se abrigarem em uma casinha úmida, pobre e ao alcance da maré alta de Veneza. Acreditavam que em todo caso a sua obra era confiada à Providência e não aos meios humanos. Estavam certos de que permanecendo na pobreza experimentariam a ajuda de Deus sobre eles.

Atribuíam ao estado de pobreza efetiva uma condição insubstituível para constituir uma comunidade espiritual; para conseguir purificar o próprio eu daquilo que divide e separa do Senhor e dos irmãos. Desconfiando de toda segurança própria poderiam voltar-se para o Senhor suplicando-lhe: “Tu, Senhor, és nossa única esperança, o único sustento em que confiamos. Socorra-nos”.

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5. Mendigar.

Antônio Ângelo e Marcos Antônio Cavanis não somente ofereceram os próprios bens pessoais, mas se doaram na busca de benfeitores, subsídios, doações. Haviam iniciado um movimento assistencial que confrontado com suas possibilidades e recursos era desproporcional, para não dizer gigantesco. A busca de doações é a mais humilhante do estado de pobreza. É submeter-se ao domínio e poder do outro. É reconhecer que há possibilidade não só de humilhação, mas de sofrer de acordo com o agrado alheio. É atestar que se espera do outro o juízo de modo indiscriminado se o nosso pedido merece atenção. É proclamar que se podemos continuar a viver é por dom do benfeitor, enquanto não podemos apresentar nenhum direito pessoal. É proclamar publicamente que não se é capaz sozinho de conquistar um benefício social. Que pessoalmente é um peso, ou, até mesmo, um inconveniente junto à comunidade dos abastados. Que não podemos providenciar os meios de subsistência mediante um trabalho honrável. Os irmãos Cavanis se doaram a uma busca incessante, às vezes aborrecendo amigos e conhecidos.

6. Virtude da castidade.

A castidade foi vivida e ensinada pelos irmãos Cavanis segundo as indicações ascéticas dominantes do século XIX. Estava radicada sobre o incitamento pedagógico de fugir das ocasiões. Repetia-se que no campo da sensualidade vence quem foge. Não se cansava nunca de inculcar o perigo desviante que podia nascer nas situações próximas às ocasiões sensuais.

Na educação do século XIX é ignorada a bondade corpórea, a amizade próxima, o lícito tratar púdico com o outro sexo, o saber penetrar a psicologia masculina e feminina. Castidade significava mortificar-se radicalmente, não reconhecendo nenhuma bondade nas amabilidades humanas.

A espiritualidade monacal possuía uma influência fortíssima junto aos fiéis. Com facilidade as pessoas devotas se ofereciam ao Senhor como o único amor total. Os indivíduos que viviam uma continência heróica, não sentiam os incômodos, seja porque não possuíam amizades próximas, ou já eram exercitados com antecedência nos empenhos cotidianos.

A castidade religiosa era grandemente apreciada, já que consentia aos solteiros de recolherem-se em Jesus como o único amor. Buscava-se assim, como acontecia com os irmãos Cavanis, um intenso amor para com Cristo, na tranqüilidade total dos sentidos e na amabilidade das pessoas, ainda que fosse do outro sexo.

7. Suportar pacientemente os sofrimentos.

Os irmãos Cavanis na sua obra apostólica se defrontaram com sofrimentos muito graves: dificuldades econômicas, incompreensões e críticas, escassez de colaboradores, oposição no plano civil. Sobretudo os sofrimentos pela falta de saúde. Mesmo assim viveram com um sentimento de abandono ao Senhor, seja nas alegrias ou tristezas. A sua existência se tornava triste ou alegre não tanto por aquilo que acontecia, mas pelo fato de saberem-se abandonados nas mãos de Deus, de quem recebiam com serenidade de amor tudo o que acontecia. Pe. Marcos escrevia: “Tudo vem das mãos bondosas as quais vão temperando com infinita bondade e sabedoria o doce e o amargo”. A ! 18

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Providência divina cultivava primeiramente o íntimo da própria existência pessoal. Se qualquer coisa boa ou má acontecia, tinha a permissão de Deus, como oportuna ou necessária à própria existência espiritual. Por tudo se devia render graças ao Senhor.

Os irmãos Cavanis, dado o íntimo abandono à Providência divina, se viram em um despojamento radical de tudo que poderia constituir uma dignidade pessoal. Além das dores físicas, a deformação corporal, a destruição progressiva do seu físico, a cegueira deprimente, eles sofreram na sua racionalidade, na sua capacidade de consciência. Lentamente foram reduzidos ao nada místico que radica toda dignidade pessoal. Permanecia neles somente a graça-luz do Espírito Santo, operando na sua interioridade profunda. Excluídos da comunicação com o mundo externo, foram completamente doados à caridade do Cristo pascal. Nesta situação de humilde acolhida que anulava a sua personalidade, não pediam a Deus saúde e forças operativas, mas o poder imolar-se ao Senhor.

Os irmãos Cavanis compreenderam o sofrimento mais angustiante quando perceberam que a decadência da limpidez mental se traduzia em aridez de espírito. Sentindo a incapacidade de poder abandonar-se em Deus Pe. Marcos confidenciava chorando: “Neste estado de cegueira tenho necessidade de passar o tempo em oração e não sei permanecer por longo tempo. Sinto-me como se fosse de bronze: oh! Cruz que bem mereço!”.

Os irmãos Cavanis não poderiam apresentar-se ao Senhor com uma anulação pessoal mais profunda. Tendo sempre vivido intimamente em Jesus, terminaram a sua vida morrendo com Ele, para serem eternamente espíritos bem-aventurados.

8. Oração.

Os irmãos Cavanis desde o início da sua atividade apostólica se entregaram continuamente à oração porque reconheciam que tudo depende do Senhor. Amavam rezar para testemunhar o seu abandono total em Deus, para suplicar a sua onipotência a doar determinadas graças necessárias para suas vidas missionárias. Acreditavam que Deus estivesse em toda situação, no interior de toda disposição humana. Quando se encontravam em qualquer dificuldade, ou não, se colocavam a invocar Deus na sua misericordiosa providência. Pe. Marcos não conseguindo nenhuma doação, escreve ao irmão: “Recebamos o salário de São Francisco de Sales, o qual costumava dizer que quando os meios humanos fracassam, era a hora mais feliz, porque se animava a confiar somente no Senhor”. (carta de 21 de outubro de 1825, de Brescia).

Os irmãos Cavanis no final da vida são servos incapazes de atender as exigências da sua comunidade religiosa e apostólica. Contrariamente do que se possa imaginar, tal situação dolorosa é uma providencial graça espiritual. Não só porque pela ocasião da diminuição conquistaram uma profunda purificação que consentiu numa íntima união a cruz de Cristo, mas também por serem capazes de rezar no Espírito de Cristo isento de qualquer utilidade pessoal, seja espiritual ou apostólica. Esgotados pelos trabalhos terrenos eles se abandonaram na oração, toda impregnada do amor para com Deus. E no segredo de seus corações desde então suplicavam: “Tu somente, oh Senhor, nós adoramos, amamos e bendizemos”.

O espírito dos irmãos Cavanis torna-se completamente dócil ao Espírito Santo, a ponto de ser com Ele uma voz uníssona na oração. Cria-se uma harmonia teândrica. Recolhidos na contemplação o seu ânimo estava abandonado e identificado dentro do amor do Espírito. Todo o seu ser sofredor

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mostra ter aderido ao convite de São Paulo: “Rezai incessantemente com toda sorte de orações e súplicas no Espírito” (Ef 6,18).

Isaac de Nínive explica que coisa significa “orar no Espírito”: “O Espírito, quando habita em uma pessoa não o deixa desde o momento em que este se tornou oração, porque o mesmo Espírito não cessa de rezar nele”. A “pessoa oração”, chegando a tal grau espiritual, em todo o seu ser não faz mais que rezar continuamente: o pulsar de seu sangue, as intenções do seu coração, os pensamentos da sua mente se traduzem em um íntimo cantar os louvores de Deus escondido. Isto é possível porque a “pessoa oração” é toda conformada no seu ser e no seu comportamento a Cristo em virtude do Espírito Santo. Desde já toda a sua vida espelha nitidamente o amor orante do Espírito Santo.

Os irmãos Cavanis ao término da vida parecem anulados na sua missão apostólica educativa, vivendo totalmente e somente no Espírito, como mostrou a sua oração.

CAPÍTULO QUARTO

IRMÃOS NA SANTA GENIALIDADE INOVADORA

1. Inserção profética no seu tempo.

No século XVII a sociedade (dita Ancien Regime) se qualificava oficialmente como cristã: reconhecia-se realizada de forma definitiva e buscava ser conservada e defendida.

Para tal fim colaborava o poder público e eclesiástico no tornar as pessoas conscientes acerca dos deveres ou preceitos a serem cumpridos, no individuar conscientemente os próprios pecados, submetendo-os ao sacramento da confissão. Dominava uma moral casuística na preocupação de precisar quando se verificava o pecado na conduta dos indivíduos. O Evangelho, a pessoa como ser social, a promoção pessoal dos indivíduos e o surgimento de valores em novas formas eram coisas muito inadvertidas. Contraposto a cultura católica do “Ancien Régime” se colocava o desenvolvimento moderno do humanismo secularizado. Este ambicionava encontrar em si mesmo a própria justificação e o próprio fim. Acreditava-se que o ideal moral cristão não tinha mais nada a dizer ao homem moderno.

Os irmãos Cavanis não se adaptaram nem entraram neste contexto conservador favorecido por grupos católicos, nem entre os inovadores de espírito secularizado. Eles desejavam ser educadores cristãos que tivessem presente as justas exigências modernas no que dizia respeito a juventude. E assim eles se encontraram no coração do debate sócio-eclesial do século XIX, provavelmente sem ter plena consciência. Querendo ser educadores, eles buscaram conciliar o apoio das autoridades político-eclesiais existente com os novos questionamentos sócio-culturais da parte dos jovens. De fato, evitaram ser classificados como conservadores ou revolucionários. Souberam conservar-se reverentes e afeiçoados às autoridades político-eclesiásticas e, ao mesmo tempo, mostrar-se abertos aos novos anseios juvenis. Não foi uma escolha estratégica, mas uma atitude interiormente guiada pelo Espírito de Cristo, como sugere o Evangelho.

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2. No acolhimento das novas exigências juvenis.

A nova ordem social do século XIX não satisfez as aspirações dos jovens. Instigados por uma generalizada pobreza eles se lançaram no mundo do trabalho, que os explora, perverte e embrutece. Na comunidade cristã aparecem educadores santos que colocam os adolescentes e jovens em escolas ou oficinas para o aprendizado de trabalho profissional. Os irmãos Cavanis perseguem um ideal mais radical. Iniciam um método no qual os adolescentes, também aqueles necessitados, abandonados pelas estradas, tornem-se adultos na cultura, capazes de firmar-se socialmente na dignidade pessoal, idôneos para conquistar uma profissão com habilidade técnica, formados na religiosi- dade, que consigam se defender das insídias culturais laicizantes. Vem assim eliminadas as causas sociais de frustração da juventude: os jovens são integralmente inseridos nos valores humanos, sociais, profissionais, morais e religiosos.

Os irmãos Cavanis completam a escola gratuita com uma apropriada instituição: oferecer o ensinamento em uma “casa de caridade”, que seja também, e antes de tudo, educação espiritual para os diretores e os professores. Só assim poderia ser possível formar os adolescentes em uma vida adulta responsável, elevando-os sobre o contexto social desviante. Verdadeiramente os irmãos Cavanis souberam com inteligência e amor anular o contexto corrompido do século XIX, formando evangelicamente os jovens.

3. Pastoral espiritual.

O tempo cultural se desenvolve entrelaçando-se com o constante devir salvífico. A experiência humana cotidiana tem no seu íntimo o Espírito de Cristo, que tudo permeia e eleva sempre na direção de novas expressões do Corpo Místico de Cristo. Nem sempre estes momentos inovadores são percebidos. O conhecimento e o discernimento chegam sempre depois do evento inovador, o qual pode ser percebido somente “pelas costas”, quando já está instaurado. A irrupção do novo é sentida de forma clara pelos jovens. Eles adoram anunciar o novo. Percebem a exigência de uma existência serena.

O Instituto dos irmãos Cavanis sendo dedicado ao apostolado dos jovens, pela sua própria atividade missionária, é construído sobre o novo. Souberam ler os sinais dos tempos nos quais o Espírito conduz a humanidade no progressivo caminho salvífico. Isto explica como Marcos e Antônio Cavanis souberam propor indicações inovadoras no trato com os jovens, em particular reivindicando também a liberdade na educação escolástica.

Os irmãos Cavanis não se limitaram a serem receptadores do espírito profético que se fazia espontâneo nos jovens. Eram conscientes que os adolescentes e os jovens começariam a abrir-se para o novo exclusivamente no seu aspecto sócio-cultural humanístico. Todavia, no caminho ordinário não conseguiriam distinguir o aspecto salvífico, não se lhes exprimiria a forma evangélica, não se lhes revelaria a animação caritativa. Por isso eles são empenhados a amadurecer os jovens sobre o plano espiritual, tornando-os assim também profetas espiritualmente.

Os irmãos Cavanis desenvolveram esta missão apostolicamente profética também para com os irmãos sacerdotes. Eram conscientes de que mesmo os sacerdotes jovens, abertos para o presente profético, se inclinavam a fecharem-se definitivamente para o novo deles recebido. A identificar o próprio momento espiritual presente como uma verdade absoluta. A considerar a própria irrupção do moderno como se fosse uma sistematização de uma experiência do infinito absoluto.

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Os irmãos cavanis se propuseram a educar os próprios religiosos sacerdotes a acolher o novo como realidade profética, que inicia por revelar-se em um caminho que nunca terá fim. Eles acreditaram na ação do Espírito de Cristo, de tal modo que sentiram pessoalmente e em comunidade um chamado a trilhar um caminho espiritual inédito. Vêem o apostolado como uma proposta aos fiéis de uma contínua conversão. Convidaram os seus religiosos a buscar a verdade evangélica para poderem ser sempre aprendizes. Eis porque a ação pastoral juvenil do Instituto Cavanis nunca mais cessou de progredir sempre para além de tudo aquilo que já havia sido realizado de forma louvável.

CAPÍTULO QUINTO

FUNDADORES DE CONGREGAÇÃO

1. Escolas de Caridade.

A escola oferecida por Marcos e Antônio Cavanis era denominada “escola de caridade”. A qualificação “caridade” pretendia estender-se a toda a realidade da escola. Não significava que esta era do tipo e constituída de forma gratuita, somente. Sendo possível com as ofertas e contribuições dos benfeitores. Certamente este era um aspecto irrenunciável, por razão do qual era escolhida livremente pelos pobres. A especificação “de caridade” guardava particularmente o modo de comunicar o saber escolástico, ou seja com amor. O aluno na escola Cavanis deveria poder aprender primeiramente ser pessoalmente amado e não disperso dentro de uma massa anônima de estudantes. Nesta escola nenhum aluno deveria sentir-se ignorado, desconhecido, pobre ou esquecido. Deveria ir para a escola com alegria, porque sabia ser pessoalmente estimado, amado, privilegiado.

A exigência que os irmãos Cavanis faziam aos mestres da sua escola (gratuidade, convivência, constância, recurso a todo meio benévolo, paciência, etc.), tinha uma única matriz, que se pode exprimir assim: amar os jovens como Deus Pai os ama em Cristo. A atividade educacional gratuita que durou até 1970 é uma característica da escola de caridade dos Cavanis, bastante singular comparado com as escolas oferecidas pelas outras Congregações religiosas do século XIX. No regulamento escolástico aos educadores era proibido aceitar presentes, para evitar que se criassem preferências entre os jovens. Escola de caridade que oferecia aos mestres colaboradores não só as orientações de como deveriam se comportar diante dos jovens, mas também o renovamento espiritual necessário para a vida pessoal. A escola de caridade tornou-se o critério de orientação espiritual geral para todo educador.

A escola não se reduzia a um puro ensinamento escolástico, mas um fazer vida comum com os atendidos, especialmente nos períodos em que eles eram mais expostos aos perigos espirituais. Fora do tempo da escola os educadores desenvolviam atividades para iniciar os estudantes em jogos agradáveis, à vida religiosa, à verdade cristã e a uma vida virtuosa. Todo jovem era bem acompanhado: como era assistido em casa, em qual ambiente estava inserido, em qual contexto moral se encontrava.

Os irmãos Cavanis constataram a necessidade de integrar a escola com ulteriores estruturas, como uma biblioteca para os estudantes e publicações de subsídios para a formação dos adolescentes. Sobretudo se convenceram de que a escola de caridade, como eles a concebiam, seria atual unicamente se fosse organizada de modo estável em conjunto com um grupo de zelosos sacerdotes.

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2. Religiosos vivazes num serviço caritativo.

O século XIX, ainda com as marcas dos trágicos motivos revolucionários do século precedente, conheceu um florescer incessante e difuso de novas Congregações religiosas dedicadas aos serviços dos pobres, doentes e crianças abandonadas. A Igreja com o breve “ Ex iniuncto nobis” (1737) de Clemente XII e com a constituição apostólica “Quamvis iusto” de Bento XIV, conferia um rosto eclesial às novas congregações femininas, as quais, livres de clausura e de votos, poderiam dedicar-se mais livremente aos irmãos necessitados. Só no século XIX tais Congregações foram tidas religiosas de pleno direito.

Na comunidade eclesial não se admirava tanto os religiosos místicos contemplativos, mas estes novos religiosos dinâmicos e ativos em favor dos necessitados. O cardeal G.B.Dusmet implorava que alguém pudesse “romper as quimeras místicas e cuidar dos homens”. Pio Brunone Lanteri e B. Eustochi deixaram o claustro, fundaram institutos religiosos assistenciais e educativos.

Dos seminários italianos, todos marcados pela disciplina, saíram fundadores de Congregações religiosas (como Dom Bosco, G. Guanella, L. Pavoni). Eram próximos das situações dolorosas das populações pobres da época. Os fundadores religiosos do século XIX buscaram se aproximar tanto da luz interior do Espírito de Cristo quanto do sentido operativo dinâmico do industrialismo imperante. Eles socorreram os necessitados, econômica ou espiritualmente, iniciando-os em várias devoções (a Eucaristia, o Sagrado Coração de Jesus, N.Sra. das Dores, a Imaculada Conceição), exortando a valorizar as mortificações (jejuns e abstinências). Ofereciam às populações missões populares, associações e confrarias.

Neste contexto Antônio e Marcos Cavanis fundaram a Congregação das Escolas de Caridade para os sacerdotes, sob a proteção de São José de Calazans. A nova Congregação era uma sociedade de Sacerdotes seculares sem vínculos de votos, ligados somente pelo propósito in vocatione sua usque ad obitum permanedi expresso na comunidade. A Congregação estava sujeita imediatamente a jurisdição dos bispos diocesanos, com exceção daquilo que dizia

respeito a observância da própria Constituição. Os membros eram empenhados numa dupla atividade: educação gratuita para os jovens, de preferência os mais pobres, usufruindo primeiramente os meios da escola e o exercício espiritual aos jovens e adultos. O método prescrito era aquele da caridade vivida intensamente entre os confrades e alunos.

Os irmãos Cavanis tendo como finalidade última a educação dos jovens chamados a viverem na comunidade dos fiéis compreenderam como era profundamente inadequado instruir e educar cristãmente os rapazes deixando abandonadas as moças. Fizeram todo o esforço para terem também uma escola feminina. A escola pretendia inseri-las na vida cotidiana formando-as para o trabalho doméstico. Os irmãos Cavanis instituíram a Congregação das Mestras de Caridade, colocando-a sob a proteção de São Vicente de Paulo. Junto à Congregação dos sacerdotes também esta das mestras de caridade estava espiritualmente sob o controle direto do Patriarca de Veneza.

3. A fonte de inspiração dos irmãos Cavanis.

A origem primeira que inspirou Antônio e Marcos Cavanis nas suas iniciativas e realizações foi o Espírito de Cristo. Certa- mente que o Espírito não sugeriu diretamente na mente dos fundadores o

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que eles deveriam fazer. Ele costuma agir no íntimo dos acontecimentos humanos. Quem se coloca em contato com estas inspirações com espírito de fé, como fez os irmãos Cavanis, consegue discernir os caminhos abertos pela luz divina infundida. Toda a espiritualidade do século XIX era impregnada do ascetismo, impedindo os irmãos Cavanis de tomar consciência de que era o Espírito a orientá-los na obra educativa. Na medida em que eles se aprofundavam nas situações dos jovens necessitados e lhes ofereciam a escola gratuita com amor pastoral, o Espírito iluminava suas vocações, a fim de saberem agir de modo espiritualmente eficaz.

Os irmãos Cavanis gostavam que fossem chamados de “pai” pela juventude. Não era tanto para se sentirem próximos deles, mas para serem encorajados a viver o amor mesmo de Deus Pai e para recordar àqueles jovens que Deus mediante os educadores os amava com seu amor divino. É necessário recordar a extraordinária capacidade educativa dos irmãos Cavanis. Certamente era alimentada por seu viver na caridade. O amor abre a alma do educador para entender de que coisas os pequenos necessitam, como devem ser tratados. Bastaria recordar como o coração de uma mãe compreende e ajuda o filhinho que ainda não fala.

O amor é a força mais potente que ajuda no desenvolvimento cristão dos pequenos. Se as crianças crescem bem, é devido primeiramente ao amor de Deus pai que se comunica a eles através do coração de seus pais. É este amor de Deus Pai que os Cavanis quiseram transmitir através da sua assistência escolar.

4. Modelos inspiradores.

Os irmãos Cavanis se inspiraram em São José de Calazans (1550-1648), fundador da Ordem das Escolas Pias. Tal inspiração trouxe duas vantagens. Poderiam usufruir de uma experiência bem fundamentada na relação da escola com os alunos e, ao mesmo tempo, se identificavam com uma instituição já aprovada tanto pela Igreja quanto pela autoridade pública.

Calazans preocupado com a difusão do pecado original na vida dos indivíduos havia praticado e ensinado uma dura ascese. Exigia dos seus religiosos e colaboradores a oferta com amor purificado dos próprios egoísmos pessoais, atuando no campo educativo com amor desinteressado para com Deus. A sua experiência mística demonstrava que somente a presença operante de Deus torna sólida a vida interior. Ele era inclinado a reconhecer a importância de uma vivência segundo as virtudes passivas, sobretudo no que se referia a oração, a pobreza e a humildade. José de Calazans insistia junto aos seus religiosos e colaboradores (cooperatores veritatis), para que ensinassem antes de tudo com o testemunho da própria vida santa. Os irmãos Antônio e Marcos Cavanis fundamentalmente se inspiraram em São José de Calazans, usufruindo das Constituições Escolápias.

Ao mesmo tempo tiveram presente as inspirações inacianas (Santo Inácio de Loiola) e as filipinas (São Filipe Néri). Viam em cada exemplar das normas uma inspiração de Deus, que se servia das Constituições religiosas já existentes para ajudar no discernimento do tempo presente. Os irmãos Cavanis atentamente examinaram as constituições escolápias, inacianas e filipinas. Fizeram as suas escolhas com base na própria experiência espiritual e educativa, intimamente iluminados pelo Espírito Santo através de incessante oração.

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5. O critério do discernimento espiritual.

Antônio e Marcos Cavanis não se apegaram de modo indiscriminado às diretrizes das constituições mencionadas. Não se comportaram como alguém que inicia um trabalho sem antes examinar o que faz, porque já tinham uma boa experiência na área. Aproximaram-se somente dos modelos que favorecessem uma educação dos jovens baseada no amor. O critério para a escolha não se deu pela fama de tal modelo, mas pelo amor interior para com as crianças. Podemos dizer que em tudo o que fizeram ou desejaram na relação com os jovens e com os colaboradores teve um fundamento comum: viver no amor com os jovens. Desejaram uma comunidade religiosa de colaboradores não tanto eficiente do ponto de vista administrativo, mas que soubesse testemunhar como a caridade de Cristo lhe animava interiormente. Somente assim poderia ser modelo para seus jovens amigos.

CAPÍTULO SEXTO

EDUCADORES DA JUVENTUDE

1. Instrução, meio para a vida espiritual.

Nos tempos modernos, para a formação espiritual, especialmente dos jovens, se recorda a necessidade de uma oportuna e apropriada instrução doutrinal. Ao mesmo tempo se sublinha os limites e inadequações de tal meio. Quem estuda teologia, nem por isso se sente afervorado ou mais imerso no amor do Senhor. É tentado a confiar nas suas reflexões racionais. Por tal motivo se recomenda um conhecimento teológico que venha unido com um colóquio com o Senhor, atualizado em uma experiência de amor. Já os Padres gregos haviam sentenciado que o verdadeiro teólogo é aquele que reza, porque a experiência e união com o Senhor é o primeiro meio para conhecê-Lo.

Os irmãos Cavanis eram convencidos de que a instrução religiosa fosse necessária aos fiéis para uma vida espiritual. Detalhavam como deveria ser apresentada a fim de que fosse eficaz motivação a uma vida interior. Tudo isto no século XIX encontrava acolhida e disponibilidade nos fiéis, desejosos de serem instruídos religiosamente. Eles, em relação a situação pessoal ou dos próprios filhos, não consultavam psicólogos ou outros profissionais. Confiavam-se a um sacerdote, a quem pediam conselhos de como deveriam se comportar em base à doutrina ensinada pela Igreja. O sacerdote era instado a responder os questionamentos não somente de forma teórica, mas, sobretudo com a experiência pessoal conquistada.

Os irmãos Cavanis, peritos na conduta das pessoas, eram preocupados em instruir os/as adolescentes não unicamente no saber acadêmico, mas também naquele espiritual. Só assim poderiam formar os jovens para serem adultos exemplares na sociedade. Depois de 1810 iniciaram a construção de uma biblioteca para o uso dos jovens e dos sacerdotes. Em 1813 iniciaram uma série de publicações para o uso dos estudantes. Queriam estender a sua escola de caridade a todas as partes de Veneza, contribuindo para dar um rosto cristão a cidade inteira. A estas iniciativas principais se deve ajuntar: exercícios espirituais, conferências dominicais que Pe. Antônio exerceu até o fim da vida, retiros mensais para os sacerdotes e outras iniciativas de instrução. Assim, para

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Veneza, não era válido o lamento antigo do profeta: “As crianças pedem pão (do saber), mas não tem ninguém que lhes dê” (Lm 4,4).

2. O método educativo.

Os irmãos Cavanis tinham o dom de oferecer indicações simples e claras, e verdadeiramente eficazes. Em relação ao método educativo para com os jovens ofereceram este límpido princípio: “solícita e amorosa vigilância”. Eles pediam que os adolescentes fossem assistidos continuamente, não tanto para fazer pesar sobre eles o sentido da disciplina, mas para fazer saborear o amor vigilante. Amor e solícita vigilância se requerem e se completam. De fato, o amor exige em viver com a pessoa amada. Deseja permanecer com quem se ama, condividindo a existência, acolhendo a confidência, induzindo ao bem com o testemunho da vivência e tornando alegre a vida da pessoa amada.

Por vezes um conferencista ou professor seja tentado em recolher-se exclusivamente naquilo que deve dizer aos outros. Se sente um profissional da palavra, um encarregado de indagar e comunicar certa verdade aos ouvintes. Pode estar longe de tudo aquilo que disse, não assimilando a verdade na identificação com ela.

Entretanto os irmãos Cavanis não buscaram uma verdade abstrata, um saber para serem aplaudidos. Refletiam sua pessoal convivência com os jovens e em base a isso colhiam a verdade a ser comunicada aos demais. Faziam uma autocrítica de tudo que deveriam ensinar. Eles ensinavam a partir de uma convivência com os jovens. Nunca ninguém pôde repetir para eles o que Jesus reprovou nos escribas e fariseus: “O que dizem e impõe aos outros não é por eles vivido”(Mt 23,3). Eles tinham as palavras que saídas de seus corações espelhavam a vivência pessoal. Se tivessem sido recolhidas as conferências espirituais melhor se poderia compreender a sua experiência espiritual. Isto explica como as palavras dirigidas aos jovens, ainda que simples, suscitavam harmonia regozijante nos ânimos e disponibilidade para agradecer ao Senhor pelos benefícios recebidos.

3. Tornar livres os jovens.

Antônio e Marcos Cavanis no contexto do século XIX receberam e obtiveram para os meninos a liberdade de escolha e de freqüência da escola, também de nível superior. A iniciativa era escandalosa até para pessoas importantes do pensamento católico. Recordavam que de modo absoluto não se devia turbar o estado existente nas classes sociais. C. Di Castagneto em 1885 escrevia: “A diversidade de classe é querida por Deus para o bem da própria sociedade... Discutí-la é se colocar contra os próprios desígnios de Deus”. A revista católica dos jesuítas “Civiltà Cattolica” em 1855 publicava: “Temos declarado muitas vezes os principais danos que vem sendo causados quando as pessoas das classes inferiores desejam inverter a ordem, aspirando as mais altas, derivando isto principalmente das escolas abertas para todos”.

A obra dos dois irmãos Cavanis pode ser interpretada sobre dois planos. Do lado sócio-cultural indicava uma reivindicação profética em favor de uma vida democrática e de um respeito à personalidade de cada pessoa, em contraste com a mentalidade cívica e eclesiástica do século XIX. Do ponto de vista cristão significava colocar em evidência a adesão ao Espírito de Cristo sobre a instituição pública. Um dedicar-se plenamente à caridade, a qual oferece acolhida a todos os indivíduos, buscar a promoção sem acepção de pessoas, porque todos são filhos de Deus.

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Os irmãos Cavanis apresentavam a liberdade como o dom do Espírito Santo para os novos tempos, para quem desejasse ser interiormente liberto por Jesus, para quem permanecesse aberto à plenitude da vida humana e cristã. Para os Cavanis cada jovem tem direito a educação, sem distinção social. Caso contrário é fraudá-los nas suas aspirações. O favorecimento de poder estudar em uma escola superior simbolizava a possibilidade de ter sua personalidade formada no plano humano e cristão. Assim se construía uma nova sociedade, que necessitava ser espiritualmente renovada. Jovens bem formados poderiam cooperar na direção da vida pública.

As Constituições do Instituto Cavanis contemplavam que a obediência deveria ser vivida e oferecida na livre resposta da própria vocação. Não era uma coação externa sobre o subordinado, mas espontânea adesão a uma auto-realização. Ela deveria acontecer em clima de alegria e generosa disponibilidade, não imposta por sanções.

A comunidade sacerdotal das Escolas de Caridade foi desejada e organizada sem os votos, com casas autônomas, sem superior geral. Dizia Pe. Antônio: “Quanto a ser Superior Geral, eu nunca sonhei”. Eram religiosos com simples promessas de permanecer na Congregação até a morte, conservando o direito de sair quando quisessem. A autonomia pessoal era reconhecida e respeitada não só para com os estudantes da Escola de Caridade, mas também para com os religiosos do Instituto Cavanis. A liberdade pessoal era tida como um bem sagrado, que procedia do amor para com cada pessoa. Vivia-se na liberdade religiosa em comunidade porque unidos na força do amor e do comum amor para com os jovens. Como em uma família onde todos moram juntos, unidos e vinculados por um recíproco amor.

Podemos dizer que se entrava no Instituto Cavanis por uma singular vocação de amor: para poder se unir no comum amor em favor dos jovens. Se diminuísse tal amor condiviso e vivido em fraternidade estaria fracassada a própria vocação. Deveria abandonar o instituto. A vivência dos religiosos da Escola de Caridade é algo alegremente livre, porquanto não é a instituição que os une fraternalmente, mas o amor.

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CONCLUSÃO

A palavra “conclusão” suscita a idéia de uma realidade finalizada, de uma vida terminada, de um acontecimento que não conhece um desenvolver-se ulterior. Tudo isto está em contraste com a instituição das Escolas de Caridade. De fato, Antônio e Marcos Cavanis em toda a sua existência se colocaram em um perene caminho pessoal de perfeição, em uma incansável busca de uma educação melhorada em benefício da juventude, em um empenho incessante de atualizar uma comunidade de sacerdotes sempre mais unida na caridade fraterna.

Eles constituíram as Escolas de Caridade aberta aos desafios de novos questionamentos e harmonizada com os acontecimentos sócio-cultural-eclesial. Nunca prescreveram que se deveria permanecer fixos, ainda que eles se fixaram em uma determinada época. Eles confiaram nos educadores do amanhã para que assumissem a responsabilidade de educar segundo as imprescindíveis solicitações do próprio tempo. O Instituto das Escolas de Caridade continua a encarnar no presente a obra educativa inspirada pelos irmãos Cavanis. Aqui não é possível relatar a evolução realizada. Ela é digna de uma apropriada pesquisa. Deseja-se somente recordar como o Instituto continua a oferecer um singular e fundamental apoio atualizado à educação juvenil. A educação dos jovens recebeu nos últimos tempos um apoio precioso, seja psicológico ou sociológico. Os Padres do Instituto das Escolas de Caridade vão conduzindo uma adequada integração educativa: educar no amor do Espírito de Cristo. Uma ajuda para a assistência espiritual que sobre ela certamente se faz sentir a força de seus veneráveis Fundadores.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO Pag. 04 BREVE SÍNTESE DA VIDA DE ANTÔNIO E MARCOS CAVANIS Pag. 05

CAPÍTULO I - CONTEXTO ESPIRITUAL E ECLESIAL DO SÉC. XIX 1. Valor do contexto espiritual junto aos Irmãos Cavanis Pag. 06 2. O contexto sócio-eclesial do século XIX Pag. 07 3. Espiritualidade do século XIX Pag. 08 4. As Congregações religiosas e a espiritualidade do século XIX Pag. 10

CAPÍTULO II - PERSONALIDADE ESPIRITUAL DOS IRMÃOS CAVANIS 1. Duas personalidades de caráter diferente Pag. 11 2. Irmãos unidos na espiritualidade de Cristo Pag. 12 3. Uma busca comum: a vontade de Deus Pag. 12 4. Vida de fé, esperança e caridade Pag. 13 5. A lectio divina Pag. 13 6. Conhecimento teológico Pag. 14 7. As Normas Pag. 14

CAPÍTULO III - VIVER VIRTUOSAMENTE 1. Obediência Pag. 15 2. Humildade Pag. 16 3. A pobreza de espírito Pag. 16 4. Exercício caritativo da pobreza Pag. 17 5. Mendigar Pag. 18 6. Virtude da castidade Pag. 18 7. Suportar pacientemente os sofrimentos Pag. 18 8. Oração Pag. 19

CAPÍTULO IV - IRMÃOS NA SANTA GENIALIDADE INOVADORA 1. Inserção profética no seu tempo Pag. 20 2. No acolhimento das novas exigências juvenis Pag. 21 3. Pastoral espiritual Pag. 21

CAPÍTULO V - FUNDADORES DE CONGREGAÇÃO 1. Escolas de Caridade Pag. 22 2. Religiosos vivazes num serviço caritativo Pag. 23 3. A fonte de inspiração dos irmãos Cavanis Pag. 23 4. Modelos inspiradores Pag. 24 5. O critério do discernimento espiritual Pag. 25

CAPÍTULO VI - EDUCADORES DA JUVENTUDE 1. Instrução, meio para a vida espiritual Pag. 25 2. O método educativo Pag. 26 3. Tornar livres os jovens Pag. 26

CONCLUSÃO Pag. 28

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