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III Simpósio Nacional de História Cultural Florianópolis, 18 a 22 de setembro de 2006 232 Tradições e origens intelectuais das histórias de crime no Brasil Ana Gomes Porto - Unicamp Em determinado momento do livro Os criminosos na arte e na literatura, 1 compilação de conferências realizadas por Enrico Ferri no ano de 1892, há uma análise dos chamados romances e dramas judiciários. O famoso criminologista define-os da seguinte maneira: “Émile Gaboriau foi o inventor d’um certo gênero de romances judiciários, depois imitados, e muito em moda há alguns anos. Os folhetins dos jornais e as coleções de leitura tinham encontrado aí um rico veio de emoções artísticas a explorar no grande público. Nesta espécie de obras, o criminoso é quase sempre relegado para o segundo plano: figura como um acessório, um manequim necessário à representação d’um crime misterioso, porque o verdadeiro protagonista é o polícia, o agente astuto genial e sutilmente lógico, possuindo um faro especial para descobrir um criminoso, entre indícios vagos, insignificantes na aparência.” 2 Com muito sucesso na França dos anos 60 do século XIX, Gaboriau era conhecido do público brasileiro. No ano da sua morte, 1873,Garnier publica duas traduções de famosos romances, canônicos para os atuais aficionados no reconhecido gênero (ou sub-gênero, como dizem alguns) do romance policial: O crime de Orcival e a Corda na garganta. Em 1876, a Gazeta de Notícias apresenta a primeira parte de O Ventríloquo, do reconhecido folhetinista francês Xavier de Montépin, como um romance judiciário, “à imitação de Gaboriau”: “Logo aos primeiros capítulos, fica presa a atenção para um fato criminoso envolto em grandes mistérios, que hábeis agentes de polícia conseguem descobrir.3 Em “O assassino de Marieta” – primeira parte de O Ventríloquo existe, no decorrer da narrativa, uma explicação mais detalhada do romance judiciário. Estas narrativas teriam influenciado um importante personagem, Jobin, o agente de polícia, que as “devorava” nos seus anos de juventude. Este personagem tem papel central na descoberta do assassino: 1 Ferri, Enrico. Os criminosos na arte e na literatura. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1923, 3° edição. (1°edição em francês, 1895). 2 Idem, ibidem, p.87. 3 Gazeta de Notícias, 27 de dezembro de 1876.

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  • III Simpsio Nacional de Histria Cultural Florianpolis, 18 a 22 de setembro de 2006

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    Tradies e origens intelectuais das histrias de crime no Brasil

    Ana Gomes Porto - Unicamp

    Em determinado momento do livro Os criminosos na arte e na literatura,1

    compilao de conferncias realizadas por Enrico Ferri no ano de 1892, h uma anlise

    dos chamados romances e dramas judicirios. O famoso criminologista define-os da

    seguinte maneira:

    mile Gaboriau foi o inventor dum certo gnero de romances judicirios, depois imitados, e muito em moda h alguns anos. Os folhetins dos jornais e as colees de leitura tinham encontrado a um rico veio de emoes artsticas a explorar no grande pblico. Nesta espcie de obras, o criminoso quase sempre relegado para o segundo plano: figura como um acessrio, um manequim necessrio representao dum crime misterioso, porque o verdadeiro protagonista o polcia, o agente astuto genial e sutilmente lgico, possuindo um faro especial para descobrir um criminoso, entre indcios vagos, insignificantes na aparncia.2

    Com muito sucesso na Frana dos anos 60 do sculo XIX, Gaboriau era

    conhecido do pblico brasileiro. No ano da sua morte, 1873,Garnier publica duas

    tradues de famosos romances, cannicos para os atuais aficionados no reconhecido

    gnero (ou sub-gnero, como dizem alguns) do romance policial: O crime de Orcival e

    a Corda na garganta. Em 1876, a Gazeta de Notcias apresenta a primeira parte de O

    Ventrloquo, do reconhecido folhetinista francs Xavier de Montpin, como um

    romance judicirio, imitao de Gaboriau: Logo aos primeiros captulos, fica presa a

    ateno para um fato criminoso envolto em grandes mistrios, que hbeis agentes de polcia

    conseguem descobrir.3

    Em O assassino de Marieta primeira parte de O Ventrloquo existe, no

    decorrer da narrativa, uma explicao mais detalhada do romance judicirio. Estas

    narrativas teriam influenciado um importante personagem, Jobin, o agente de polcia,

    que as devorava nos seus anos de juventude. Este personagem tem papel central na

    descoberta do assassino:

    1 Ferri, Enrico. Os criminosos na arte e na literatura. Lisboa, Livraria Clssica Editora, 1923, 3 edio. (1edio em francs, 1895). 2 Idem, ibidem, p.87. 3 Gazeta de Notcias, 27 de dezembro de 1876.

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    O leitor deve estar lembrado que foi por esse tempo que surgiu na literatura o romance judicirio, com um xito imenso.

    Penas delicadas, descrevendo com arte as mltiplas peripcias dos dramas que tem seu desfecho no tribunal do jri, estimularam o pblico j um tanto enfastiado.

    Como era natural, o heri dessas hbeis narrativas em que um interesse pungente aumentava a cada linha, e metia, por assim dizer, a faca aos peitos do leitor (relevemos a expresso) foi o agente de polcia, seguindo uma pista, sem hesitar no meio do labirinto de um trama sombrio e complicado, desmascarando o criminoso apesar da sua astcia diablica, e salvando o inocente designado por falsas aparncias vindita das leis4

    O assassino de Marieta tem como eixo central do enredo um duplo assassinato

    de Marieta e seu pai. Envolto no mistrio e descrito como um crime violentssimo,

    comeam as investigaes com a busca de testemunhas, de pistas e da decifrao do

    enigma.

    Para os nossos interesses, a importncia desta citao est em contextualizar o

    surgimento do romance judicirio, na tentativa de perceb-lo em relao a outras

    narrativas de crime existentes no momento. Se existem aproximaes entre a definio

    do romance judicirio de Ferri e esta, pode-se dizer que esto na importncia dada ao

    personagem que decifra um caso misterioso. Neste sentido, o romance judicirio seria,

    como bem exps a Gazeta de Notcias aos seus leitores, imitao de Gaboriau.

    Em O assassino de Marieta nota-se, porm, uma outra explicao para o

    romance judicirio. Inicialmente, o trecho acima chama a ateno para um tipo de

    narrativa que descrevia casos que iam para o Tribunal do Jri. A crnica judiciria

    parece ter sido, efetivamente, um tipo de narrativa bem prxima ao romance judicirio

    e, porque no dizer a sua inspirao. Porm, nem sempre traziam o investigador como

    centro da narrativa e sim o criminoso e o desfecho do crime na justia, alm de

    julgamentos que pudessem causar curiosidade aos possveis leitores.

    Nos jornais brasileiros, provavelmente influenciados pela imprensa francesa, as

    crnicas judicirias eram comuns e descreviam minuciosamente algumas sesses de

    julgamento, numa narrativa agradvel e, sem dvida, carregada de aspectos literrios.5

    Neste sentido, o leitor, deparando-se com a referncia aos dramas do Tribunal em O

    assassino de Marieta, no os estranhava e poderia, inclusive, sentir-se familiarizado

    com elas.

    4 O assassino de Marieta. Gazeta de Notcias, 11 de janeiro de 1877. 5 Por exemplo, as Crnicas do Jri no jornal O Estado de So Paulo e Sesso do Tribunal na Gazeta de Notcias.

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    Georges Claretie foi um escritor francs de crnicas do Tribunal e, se o ano

    adianta-se um pouco no sculo XX, no deixa de recorrer a uma tradio de cronistas do

    mesmo feitio ainda no sculo XIX. A relao com a imprensa parece fundamental,

    segundo o que nos conta o prefaciador daquelas crnicas do ano de 1909, Raymond

    Poincar: Il reconstituait, avec un art incomparable, toutes les scnes comiques ou tragiques

    qui se droulent quotidiennement au Palais. Il dessinait dun traits sr les physionomies des

    accuss ou des tmoins; il analysait, avec une impartialit souriante, les rquisitoires et les

    plaidoiries.6

    O livro, que se refere ao ano de 1909, tem diversas partes, as quais tem como ttulo

    os meses do ano para cada ms existem crnicas selecionadas pelo autor como cenas

    notveis do Tribunal. No necessariamente encontravam-se os casos de maior

    repercusso, mas tambm situaes irnicas e estranhas, como foi o caso de uma

    reclamao do diretor de uma escola contra um pai que no queria pagar o trimestre do

    curso do filho pois afirma que ele se distrai com a dama da frente:

    Personne ne connaissait son nom. On la nommait la dame den face. Et les lves de la classe de seconde de lInstitution Sainte-Marie savaient seulement queelle tait jolie et quelle tait trs blonde. Les jour de soleil, lheure de la classe, elle paraissant sa fentre comme un personnage de srnade, et immdiatement toutes ls petites ttes penches sur ls dictionnaires se levaient pour contempler la dame den face. Pour ces jeunes collgiens toutes ls desses blondes ou brunes de lantiquit, aux corps marmorens, aux yeux couleur de mer, semblaient sincarner dans la dame mystrieuse, qui de sa fentre regardait rouler ls auto-mobiles. Lorsque le rideau de mousseline sabaissait, et que la vision de beaut avait disparu, les jeunes potaches songeaient tristement Galate senfuyant vers ls saules, et lorsque dun geste gracieux la dame den facefaisait bouffer sa chevelure, ils pensaient aux brs blancs dAntigone portant une amphore. Linconnue restait attirante comme l mystre. Les jours de pluie, ctait le dsespoir. La fnetre ferme restait morne, et la version latine semblait plus ardue et le thme plus rude. Mais quand le rideau se soulevait, les marges des dictionnaires ou des traits dalgbre se couvraient de sonnets et de ballades adresss la dame den face qui souponnait point (...).

    No Brasil, Alvarenga Netto escreve as Comdias e dramas judicirios7 entre

    1913 e 1933, numa referncia explcita ao ttulo de Georges Claretie e chamando a

    ateno para uma tradio deste tipo de narrativa: Na Frana e em outros pases, relatos

    desta natureza, so feitos anualmente, em livros ou revistas. Em Paris tornaram-se clebres as

    obras de tal gnero de Albert Bataille, Sainte Auban e Georges Claretie. Deste tomei

    6 Claretie, Georges. Drames et comdies judiciaires. Chroniques du Palais. 1909-1910. Berger-Levrault et Cie diteurs, Paris. 1910. 7 Alm de Alvarenga Netto, outro volume sobre causas clebres seria Causas clebres do Foro Brasileiro. Rio de Janeiro, Typographia Perseverana, 1868.

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    emprestado o ttulo Drames et Comedies Judiciaires.8 O autor afirma que as narrativas so

    fiis e marcam um registro de algumas tragdias ou dramas sensacionais e no um estudo

    de psicologia criminal9 Algumas narrativas so bastante semelhantes crnica de

    Claretie. Veja-se, por exemplo, O sorriso de Chin Lin L:

    Chin Lin L tinha oitenta anos e vendia amendoim, Lang Fung tambm velho, vendia nougats. Ambos eram chineses e habitantes do beco dos Ferreiros. Uma noite, desavieram-se. Chin Lin L, calmo, frio, espetou uma faca no corao do patrcio. Lang Fung morreu instantaneamente. Quando prenderam Chin Lin L, ele sorriu, ao entrar no cubculo da Casa de Deteno, sorriu ainda. Dia do julgamento no Tribunal do Jri: Chin Lin L est indiferente, lgido. Olha o juiz e sorri. Fala o promotor e ele sorri. Durante a defesa do advogado que lhe deu a Justia, sorri tambm. Nada o comove, nada o emociona. Percorre, o olhar vagaroso pela sala do Tribunal. Parece alheado a tudo. Seus lbios esto abertos num constante sorriso. Faz piedade. To velhinho... Os jurados voltam da sala secreta, trazendo a sentena: 24 anos de priso! Quando o juiz a leu, o chins sorriu. O intrprete anunciou-lhe, em seguida, a deciso. Chin Lin L, no sorriu mais. Duas lgrimas lhe afloraram aos olhos. Chorou...10

    Esclarecer de que trata a crnica do Tribunal ajuda no seguinte ponto: o romance

    judicirio, muito provavelmente, era uma derivao deste tipo de narrativa e teve a sua

    origem na Frana. Alm disso, pode-se dizer que havia uma certa mistura ou confuso

    de significados em relao ao que tratava o romance judicirio, que englobava, por

    exemplo, histrias centradas na descoberta do crime por um agente ou podia ser

    caracterizado por descries romanceadas de cenas do Tribunal, e no necessariamente

    descrevendo o desvendamento de um crime.

    Porm, outras causas clebres de Alvarenga Netto (como por exemplo, A

    estrangulada da rua dos Arcos) possuem um tipo de enredo bem caracterstico de

    mistrio, suspense. Nesta crnica, o delegado de polcia descrito como experiente e

    inteligente11 e toma parte importante no enredo. Alm da concluso do caso na justia

    com a culpabilidade ou no do criminoso, o que toma forma como elemento da

    narrativa a descoberta do crime. Portanto, em A estrangulada dos Arcos, a crnica se

    inicia com o cadver:

    8 Alvarenga Netto, Francisco de Paula. Comdias e dramas judicirios (crnicas de processos clebres). 1913-1933. Rio de Janeiro, Marisa, p.10. 9 Idem, Ibidem, p.9. 10 Idem, Ibidem, pp. 73-4. 11 Idem, Ibidem, p.144.

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    Um grito desvairado, quela hora matinal (...) alarmou a todas (...). O grito aflitivo, cheio de angstia, partira de um dos aposentos da casa. A arrumadeira, tendo visto a sua porta mal cerrada, ia fech-la, quando, olhando para o interior, deparou com um quadro que a horrorizou, fazendo-a soltar a exclamao apavorante. Sobre o leito, vira morta, nua, completamente nua, a moradora do quarto. Tinha as mos unidas e amarradas por finas cordas. Pelo pescoo e pela boca, passavam-lhe laadas, tambm de cordas, cujas pontas estavam amarradas cabeceira da cama. A morta era a polaca Fryda Meyertall. Fora assassinada.12

    Ao longo da narrativa, que mais poderia ser um conto, o delegado toma parte

    importante no enredo e o responsvel pelas investigaes que, como no poderia

    deixar de ser, traziam a expectativa da resoluo do caso ao leitor. Criava-se, ou j

    estaria fixada neste momento anos 30 a idia de uma polcia eficiente e baseada nos

    mais modernos aparatos para o desvendamento do crime, no importando o quo

    misterioso fosse o caso.

    No caso da crnica do Tribunal, o que deve ser notado a circulao de histrias

    de crimes verdicos para um pblico mais ampliado que aquele que comparecia s

    sees do jri as quais, como sabemos, eram bastante concorridas.13 Havia um interesse

    em torn-los conhecidos e eram descritos de maneira romanceada e agradvel,

    certamente interessando um amplo pblico.

    Apesar da ausncia de referncias ao romance ingls de crime nos jornais

    brasileiros de fins do sculo XIX, houve tambm uma tradio de histrias de

    criminosos na Inglaterra, as quais deram subsdios ao famoso romancista de detective

    fiction, Arthur Conan Doyle. O Newgate Calendar trazia uma crnica detalhada, ainda

    na primeira metade do sculo XIX, dos condenados forca naquele pas, numa espcie

    de relato biogrfico do prisioneiro. Segundo Ronald Thomas, estes relatos, muito

    populares,14 influenciaram uma produo literria centrada no crime que, por sua vez,

    influenciou a detective fiction do final do sculo XIX.15

    12 Idem, Ibidem, pp. 133-4. 13 Ver, por exemplo, Cancelli, Elizabeth. A cultura o crime e da lei. Braslia. Editora Universidade de Braslia. 2001. 14By bringing together sensational memoir moral instruction, and legal history into one text, the Newgate Calendar provided its numerous avid readers with ethical warnings about the consequences of a life of crime at the same time it romanticized the rebellious outsider through a titillating and morbidly entertaining glimpse into intrigues of Londons criminal underworld. Thomas, Ronald R. Detection in the Victorian novel. Em David, Deirdre. The Cambridge Companion to The Victorian Novel. Cambridge, Cambridge University Press, , 2001, p.174. 15 Peter Linebaugh analisa o caso de Jack Sheppard, uma histria de um condenado, no captulo 1 de The London hanged. Linebaugh, Peter. The London hanged. Crime and Civil Society in the Eighteenth Century. London, Penguim Books, 1991.

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    Para este autor, histrias de crime foram centrais na literatura do perodo

    vitoriano e no se concentraram somente no final do sculo XIX, justamente com o

    sucesso estrondoso de Sherlock Holmes: (...) classic novels of high Victorian realism

    like Mary Barton (1848) or Great Expectation (1861) or Daniel Deronda (1876) turn

    themselves into detective stories in the end, not merely by coming to focus on an act of

    criminal detection or the discovery of a secret identity late in their complicated plots,

    but in the way they dramatize the gradual containment and policing of individual

    characters by the pressure of social and professional forces. This is not to claim that

    every nineteenth-century novel is a detective story or that the distinctions between these

    different kinds of narrative are unimportant. Rather, it points out that the historical

    conditions that brought the form into being have found their way (more or less) into

    virtually every other kind of literature in the period as well. In this sense, detection is

    both a quality of all Victorian novels and a distinctive kind of Victorian novel in its own

    right.16

    Portanto, a tradio da crnica criminal no foi uma especificidade francesa,

    mesmo considerando as caractersticas particulares de cada um dos dois pases

    Inglaterra e Frana. No Brasil, a tradio francesa parece ter fincado mais fundas razes.

    Os romances judicirios no so sugeridos como um tipo de gnero por Ronald

    Thomas, apesar da clara presena da detective fiction na Inglaterra e da sua posterior

    influncia em todo o mundo, durante o sculo XX. O Newgate Calendar pode ser

    considerado uma narrativa equivalente, porm, especfica do contexto ingls.17Ressalto

    ainda, a verificao de Thomas de que havia uma presena disseminada de crimes em

    romances clssicos do sculo XIX ingls. As anlises feitas por este autor em muito

    podem ajudar a compreender as narrativas de crime no Brasil.

    Voltemos, ento, para as crnicas e para um tipo de produo que ainda pode

    esclarecer pontos obscuros. Se nelas havia uma descrio detalhada do crime e da sua

    resoluo, a literatura voltada para um pblico mais especfico, os policiais, no deixava

    de chamar a ateno para uma produo ficcional de narrativas de crime.

    Uma quase competio entre os detetives fictcios e reais foi apontada por

    Alfredo Niceforo em Novelas sangrentas, artigo publicado no Boletim Policial, 16 Thomas, Ronald R. op. cit., p.170. 17 A particularidade pode ser explicada pela grande quantidade de crimes que foram punidos com a pena capital a partir da elaborao da Lei Negra de 1723. O Newgate Calendar, portanto, uma clara repercusso de fatos da sociedade inglesa do perodo. Sobre a ampliao da pena de morte e a Lei Negra ver Thompson, Edward. P. Senhores & Caadores. A origem da lei negra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

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    peridico brasileiro, em 1913.18 Neste texto h a demonstrao de tcnicas de

    investigao modernas e a comparao entre o detetive real e o detetive imaginrio

    numa competio que transforma Sherlock Holmes e Lecoq em homens quase reais. H

    um sentido de evoluo dos descobrimentos tcnicos de investigao policial, sugerindo

    inclusive que o romancista teria um manancial inesgotvel para as suas idias caso

    considerasse as mais variadas descobertas cientficas ocorridas nos ltimos tempos e a

    utilizao destas pelos agentes policiais.19

    Elysio de Carvalho, mentor do Boletim Policial20, publica, por volta de 1920, o

    livro Sherlock Holmes no Brasil. O ttulo poderia indicar uma anlise das histrias de

    Conan Doyle no Brasil, j neste momento, bastante conhecidas.21 Elysio de Carvalho

    no foi somente um membro do aparato policial brasileiro, mas tambm um romancista.

    Portanto, seria bem razovel imaginar que trataria da fico sherlockiana no Brasil.

    Contudo, no. Apesar das referncias ao detetive, segue um caminho muito parecido ao

    de Niceforo nas Novelas Sangrentas. Vejamos:

    Se no fosse o receio de fazer literatura, diria que Reiss a encarnao viva de Sherlock Holmes, um Sherlock autntico, em carne e osso. A analogia flagrante, apenas com esta vantagem, que o sbio de Lauzanne realiza humanamente tudo quanto fico no detetive ideal de Conan Doyle, e ainda muito mais, e superiormente. Reiss, como Sherlock Holmes, possui esse dom natural que empiricamente se chama faro policial, mas desenvolvido, educado, aperfeioado no trato cotidiano com os intrincados problemas cientficos na descoberta de criminosos, e um e outro utilizam o mtodo de observao e de deduo no estudo do crime. Soma feita, Reiss um tipo de detetive lgico, completo, perfeito, porque possui a profisso, a cincia e a arte da polcia.22

    18 Niceforo, Alfredo. O romance policial. Em Boletim Policial, Ano VII, novembro de 1913, n 11. 19 Idem, ibidem, p.144. 20 Elysio de Carvalho foi um autor de produo significativa e variada. Foi anarquista no incio de sua vida adulta. Em 1909, com o romance Five oClock anuncia, explicitamente, a sua renncia s idias anarquistas e passa a fazer carreira no servio pblico: Intelectual internacionalmente conhecido e antenado com o mundo, Elysio de Carvalho veio a destacar-se na pliade daqueles que, no Brasil, pensaram e teorizaram a modernidade republicana na tica do crime, sendo, com certeza, nesse campo do saber, o de produo mais diversificada. Tcnico da Repartio do Servio de Identificao, foi fundador da Escola de Polcia do Rio de Janeiro, tendo sido seu professor e diretor, reunindo experincias que transplantou, posteriormente, para os livros. (...) Publicado entre 1912 e 1915, o boletim [policial] tinha fins doutrinrios e tornou-se o principal instrumento em defesa da estruturao de uma polcia cientfica no Brasil (...).(p.4 Menezes, Len Medeiros de. Elysio de Carvalho. Um intelectual controverso e controvertido. Em Revista Intellectus. Ano 03. Vol.II, 2004. Ver tambm, sobre Elysio de Carvalho, o prefcio de Cassiano Nunes em Obras de Elysio de Carvalho: ensaios.UCB, Braslia, 1997. 21 Por volta de 1920, j eram publicadas as Aventuras extraordinrias de um polcia secreta (Sherlock Holmes) pela Empreza Editora das Aventuras Extraordinrias de um polcia secreta, no Rio de Janeiro. 22 Carvalho, Elysio de. Sherlock Holmes no Brasil. Rio de Janeiro, Casa Moura. s.d. (cerca de 1920), p.13

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    Ao longo do livro, h a inteno de mostrar a eficcia da polcia do momento. O

    fato curioso que o procedimento para esta comprovao a comparao entre

    detetives imaginrios e reais. As histrias de detetive tinham tanta repercusso que uma

    pessoa ligada ao aparato policial utilizava-se delas para mostrar a eficincia da prpria

    polcia? Qual o interesse de autores ligados investigao judiciria em se reportarem

    literatura como um lugar apropriado para o estudo das faanhas detetivescas, utilizando-

    as como base para a anlise da realidade?

    Carvalho continua a sua anlise de figuras de destaque no mundo investigativo

    real. Outra personalidade que supera a inteligncia de Holmes Bertillon23. Num dos

    captulos, Carvalho chega a comentar sobre a inveja que Sherlock Holmes tinha de

    Bertillon que, segundo ele, excede ao heri imaginrio em saber, em imaginao e em

    perspiccia.24 No captulo denominado Sherlock Holmes no uma fico vislumbra-

    se uma possvel explicao para o fato da importncia dada ao detetive imaginrio.

    Segundo o autor, o tipo de detetive criado pela imaginao de Conan Doyle25 foi

    baseado em personagens reais, entre eles um professor de Doyle, o detetive norte-

    americano Pinkerton e algumas descobertas cientficas da medicina legal.26

    Ou seja, para Elysio de Carvalho, possvel equiparar Sherlock Holmes a

    investigadores reais porque se trata de um personagem derivado de uma dada realidade.

    A anlise dos indcios tida como um fato e o detetive excntrico de Conan Doyle uma

    extenso destes fatos. Assim, o autor pode dizer que a tcnica dos indcios est to bem

    desenvolvida entre os reais investigadores que Sherlock Holmes no passa de um bem

    fraco tipo de detetive.27 No decorrer do captulo, h a narrao da resoluo de um

    crime, considerado por Carvalho como prova de que Sherlock Holmes no somente no

    pura imaginao, mas at uma plida cpia da realidade palpitante.28

    Sherlock Holmes no Brasil ir, a partir de ento, numa sucesso de captulos

    semelhantes queles existentes em Alvarenga Netto. Uma seleo de grandes casos

    exibida luz das tcnicas de investigao indiciria, mostrando a eficcia da polcia

    investigativa. Portanto, apesar da anlise luz da antropologia criminal e das tcnicas

    23 Ver tambm, sobre Bertillon, o livro Carvalho, Elysio de. Alphonse Bertillon. XXVI - Biblioteca do Boletim Policial. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914. As informaes so praticamente as mesmas de Sherlock Holmes no Brasil. 24 Carvalho, Elysio de. op.cit., p.26. 25 Idem, ibidem, p.36. 26 Carvalho, Elysio de. op.cit., p.36. 27 Idem, ibidem, p.38. 28 Idem, ibidem, p.42.

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    de investigao judiciria, o livro de Carvalho retoma, em certo nvel, o sentido

    daquelas crnicas de causas clebres feitas por Alvarenga Netto.

    Para Ronald Thomas, o auge da detective fiction com o personagem de Conan

    Doyle paralelo s novas formas de investigao e controle do crime e do criminoso.

    Assim, a primeira histria de Holmes, Um estudo em Vermelho de 1887, justamente

    do mesmo ano em que Alphonse Bertillon ganha notoriedade com o mtodo de

    identificao de criminosos baseado nas medidas e na quantificao de certas partes do

    corpo humano.29 Para Thomas, the Sherlock Holmes stories not only provided good

    entertainment for the middle-class readers, they also anticipated and popularized

    contemporaneous advances in criminological practice as well. Indeed, both Bertillon

    and Edmond Locard, another pioneer in forensic medicine and criminology in France,

    attributed some of their own innovations to their reading of the Sherlock Holmes

    stories. () Locard would even instruct his colleagues and students to read over such

    stories as A Study in Scarlet and The Sign of the Four in order to understand the basis

    of the practices he was recommending.30

    interessante notar que tanto Elysio de Carvalho quanto Alfredo Niceforo

    confirmam estes dados fornecidos por Thomas. Os especialistas do crime, na sua busca

    pela verdade, pelo domnio do crime com o seu conseqente controle, no abdicam de

    nenhuma possibilidade, entre elas a leitura das novelas sangrentas.31 Neste nterim,

    parece existir no somente uma tentativa de tornar pblica as descobertas cientficas,

    mas tambm mostrar que os agentes reais da polcia so bastante eficientes, mais que

    aqueles mostrados nas narrativas detetivescas. Aparentemente, um tipo de produo que

    se assemelha s crnicas do Tribunal, requintado pelas anlises da cincia criminal.

    Mas, retornemos definio de romance judicirio de Enrico Ferri. Este autor

    ainda chama ateno para os dramas judicirios, ou seja, peas teatrais que traziam um

    crime como tema central. Para ele, tratava-se de um gnero anlogo ao romance e,

    muito comumente, tirado de um folhetim.32 Acrescenta ainda que o pblico aguarda

    emocionado e ansioso33 a resoluo do drama que, normalmente, acaba com a

    punio dos culpados e o jbilo dos inocentes.

    29 Thomas, Ronald R. op.cit., p.185. 30 Idem, ibidem, pp.185-6. 31 Termo utilizado por Alfredo Niceforo. 32 Ferri, Enrico, op.cit., p.106. 33 Idem, ibidem, p.105.

  • III Simpsio Nacional de Histria Cultural Florianpolis, 18 a 22 de setembro de 2006

    241

    O que era chamado de romance judicirio parece abranger um grupo de

    romances mais amplos que aqueles que, aparentemente, passaram a ser reconhecidos

    como romance policial no sculo XX. Thomas, ao chamar a ateno para uma

    disseminao de histrias de crime entre toda a literatura do perodo vitoriano repara

    este fenmeno. Franco Moretti em Slaughterhouse of literature34 toma o mesmo

    procedimento e acaba concluindo que as histrias de Sherlock Holmes estavam imersas

    em uma imensidade de outras histrias que no necessariamente se assemelhavam ao

    que ele definiu como um padro de histrias de sucesso, determinadas pela busca e

    decifrao de pistas, as quais o leitor necessariamente deveria acompanhar: Inevitable

    was the tree, not the success of this or that branch: in fact, we have seen how unlikely

    the branch of clues was in the 1890s.35

    Para os nossos interesses, esta indefinio de sentidos ajuda a delimitar as

    histrias de crime no Brasil. Elas circularam em forma de folhetim e livros

    principalmente nos anos finais do sculo XIX e houve um efetivo boom de histrias

    ficcionais de crime nos anos iniciais do sculo XX. No havia uma referncia explcita

    de que se tratavam de histrias policiais ou de romances policiais e muitas delas eram

    romances traduzidos do francs ou do ingls, mas tambm de autores brasileiros, entre

    eles Carneiro Vilela e Aluzio Azevedo. O que certo que houve uma receptividade e

    uma aceitao destas narrativas pelos leitores, pois basta abrir as pginas dos jornais

    para notar a presena intensiva das narrativas de crime.

    34 Moretti, Franco.Slaughterhouse of literature.Em Modern Language Quarterly, spring, 2000. 35 Idem, ibidem, p.227.

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