03 - Palavras Do Infinito

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livro psicografado de chico xavier

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  • PALAVRAS DO INFINITOPALAVRAS DO INFINITOA PALAVRA DOS MORTOSCARTAS AOS QUE FICAMAOS MEUS FILHOSNA MANSO DOS MORTOSJUDAS ISCARIOTESAOS QUE AINDA SE ACHAM ...TRAGO-LHE MEU ADEUS...A PASSAGEM DE RICHETHAUPTMANNA ORDEM DO MESTREOH JERUSALM... OH JERUSALM...UM CPTICOCARTA A MINHA MEA PRIMEIRA COMUNICAOSEGUNDA COMUNICAOA CASA DE ISMAELDEMOCRACIA - FASCISMO - COMUNISMOJULGANDO OPINIESCRISE DE GNIOSGNIOS E PSTUMOSNO BUSQUE SER GNIO...POEMA DE UMA ALMADOIS SONETOS DE HERMES FONTESMORTEEXORTAO AOS ESPRITASUMA PALAVRA A IGREJACARNEO MONSTROPRECE DE NATALSOMBRAVOZES DA MORTENOSSOS MORTOSCHICO XAVIER RESPONDE A TRS DELICADAS

    PERGUNTASA ECONOMIA DIRIGIDA UM ERRO?, ETC...NO APENAS O OURO A ALMA DA EMISSOUMA QUESTO DE POLTICA ADMINISTRATIVAA ECONOMIA DIRIGIDA NO UM ERROA SNTESE A ALMA DA VERDADE

    UMA ORIENTAO POLTICA PARA O BRASIL...AINDA A DEMOCRACIA ...EM TORNO DA SITUAO ECONMICA DO BRASILSOMENTE FORA DO FACCIOSISMO, DAS LUTAS DE CL...AS CONCEPES AVANADAS DA ALMA BRASILEIRA

  • OS INTERESSES DOS CHEFES NUNCA SO PREJUDICADOSUMA APROXIMADO NECESSRIAA QUESTO DE HOMENS, NO DE LEISFALTAM OS CREBROS E OS SENTIMENTOSQUESTO PURAMENTE ADMINISTRATIVAPODER A CINCIA SUBSTITUIR A RELIGIO?EM TORNO DE UMA VELHA ANIMOSIDADEEXPERINCIA QUE FRACASSAA CINCIA E SUAS CONTRADIES: ATESTADO DA...O SUBLIME LEGADORELIGIO E RELIGIESACIMA DE TUDO ESTO A SABEDORIA INTEGRAL ...S AO FIM DE CERTO PRAZO DEVER SER FEITA A ...ELEMENTOS DE VIDA QUE FICAM POR ALGUM TEMPO ...TAL VIDA, TAL MORTEO FEMINISMO EM FACE DO CDIGO TRANSITRIO ...CONTRA A MASCULINIZARO ESPETACULOSANO PRECISA MASCULINIZAR-SE E SIM EDUCAR-SE ...OS DEVERES MAIS SAGRADOSUM PROBLEMA QUE FOGE AOS CDIGOS TRANSITRIOS

    ...A EVOLUO DOS POVOS SIGNIFICA A EVOLUO ...AS CLASSES EXISTIRO SEMPRE O DEVER DE ...MEDIDA IMPOSTA PELA EVOLUO GERALO LIVRO ARBTRIO E A FATALIDADEO ELEMENTO DOMINANTEA CRISE ESPIRITUAL, FONTE DOS MALES ATUAISA VERDADEIRA CRISE DO MUNDO E UMA S ...VCIOS DO PENSAMENTO, VCIOS DOS COSTUMES, ...OS ANSEIOS E A LUTA TENAZ DO ESPRITO COMO H ...A CULMINNCIA DE HOJEO APLO AOS SENTIMENTOS DA FRATERNIDADE CRISTMAIS VERDADE DO QUE DINHEIRO, MAIS LUZ DO QUE

    POO SAGRADO SACERDCIOTRABALHO SANTIFICANTE E ABNEGADO REDENTORAMICRBIOS E ELEMENTOS DE ORDEM ESPIRITUALRELACIONANDO ENFERMIDADES DO CORPO E DA ALMAESTAR O MUNDO LIVRE DE GUERRAS?CONSEQUNCIA NATURAL DOS DEFEITOS DAS LEIS...O NACIONALISMO DIANTE DA LEIDESEJOS E ENTUSIASMOS COMPREENSVEISA MSTICA NACIONALISTA E O BEM COLETIVOO ISOLAMENTO DOS ESTADOS O DESEQUILBRIO...QUANDO OS PASES LAVRAM A PRPRIA CONDENAOO UNIVERSO O PENSAMENTO DIVINO EM SUA...OBRAS PURAMENTE HUMANASEVOLUO

  • OS VENTOS DA NOITE SBRE AS RUNAS...AS PROMESSAS DO ESPIRITUALISMOOS PRIMEIROS TEMPOS NO ALEM CU E INFERNOA SAGRADA ESPERANANO H TEMPO DETERMINADO PARA O INTERVALO DAS...O SAGRADO PATRIMNIO DA VIDAA REENCARNAO E AS DIVERGNCIAS

    ESPIRITUALISTASO ESPIRITISMO E AS OUTRAS RELIGIESCOMUNISMO NO BRASIL ATUAL SIGNIFICARIA

    ANARQUIAOS PRIMRDIOS DOS NOVOS SISTEMAS POLTICOS E ...A FRATERNIDADE AINDA UM MITODIVERSIDADE DE AMBIENTES A CONSIDERARAPROXIMAO NECESSARIA E INDISPENSVEL...A FALTA DOS HOMENS PROVIDENCIAISMEDIDAS MAIS QUE DEVIDASO BRASIL E O SOCIALISMO CRISTOO JORNALISMO E O MISTRIOA INTENOPRECIPITAM-SE OS ACONTECIMENTOSA DIFICULDADEA AMVEL POSSIBILIDADEA PORTA ABRE-SEA PERGUNTAA RESPOSTARESPOSTA DE HUMBERTO DE CAMPOS A UMA ME AFLITA

    O amor a divina moeda quegarante os bens do Cu.

    Emmanuel

  • PALAVRAS DO INFINITO

    Leitor Amigo:

    A reedio do livro Palavras do Infinito encontra natural explicao norpido escoamento que tiveram os cinco mil exemplares da publicao anterior,cujos pedidos, vindos de toda parte, denotaram o interesse dos que lem pelascoisas da espiritualidade.

    Muito a animou tambm, concorrendo para a nova tiragem, a boavontade do digno confrade Francisco Cndido Xavier, a cuja mediunidade esolicitude se devem estas encantadoras comunicaes, enviando-nos maiscrnicas, mensagens e alguns versos inditos que tanto ilustram e exortam estasegunda edio.

    Humberto de Campos, graas infinita bondade do Criador, continua aescrever para os que ficaram, Fazendo -o alis com a irrecusvel autoridadede reprter verdadeiro e sobretudo insuspeito para tratar de assuntos do Alm,pois, tivesse ele sido, na Terra, esprita praticante, no faltariam opositoresfanticos que viessem refutar os luminosos conselhos que manda s almasencarceradas sobre a face nevoenta do planeta com o objetivo de edific-laspara a vida eterna no apostolado do trabalho e da dor.

    O humilde psicgrafo Francisco Cndido Xavier com tais produesvem, mais uma vez, firmar os foros justssimos que goza de mdiumassombroso , legtimo expoente da fenomenologia esprita, vaso escolhido doSenhor para a grandiosa misso de provar, sob aspecto estritamente intelectual,a sobrevivncia do ser e a imortalidade da alma humana.

    E essa prova incontrastvel aqui est.Contra ela pode levantar-se oargumento dubitativo, mas a hiptese nica que a explica a do Evangelho,pela Ressurreio de Jesus, sobre a qual se assenta todo o edifcio moral,filosfico e cientfico do Espiritismo.

    Mais abundante, copiosa, imensa, entretanto, ela se nos depara noParnaso de Alm- Tmulo, onde o moo de instruo rudimentar, que vivepobre e triste na sua pequena vila de Pedro Leopoldo, sem biblioteca e semprofessor, consegue captar produes de trinta e dois poetas, brasileiros eportugueses, figurando entre eles nomes gloriosos, como Arthur Azevedo,Batista Cepelos, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Emlio de Menezes,Fagundes Varela, Hermes Fontes, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Antero deQuental, Antnio Nobre, Augusto dos Anjos, Guerra Junqueiro, Joo de Deus,Jlio Dinis, D.Pedro de Alcntara e tantos mais. Ler este livro surpreendente,maravilhoso, e porque no diz-lo, comovedor, verificar 190 produespsicogrficas de Chico Xavier, das quais 118 sonetos magistrais num total de6.538 versos!. realmente admirvel a farta messe de poesias e prosa com queo alm concorre para provar aos homens que todos os poetas escritoresfalecidos, sem distino, so imortais porque so todos acadmicos do GrandTrianon, vivendo,sentindo, amando e pensando sem miolos na cabea...

    O que mais empolga nessas produes no s o estilo, mas a perfeitaidentidade literria dos autores, estilo e identidade que se vislumbram quer na

  • cadncia do verso, quer na forma, quer na idia ou no fundo filosfico.Joo Ribeiro, citado por Manuel Quinto, mestre que tal se fez, indene

    de rabularias acadmicas, ao referir-se ao Parnasodisse que o mdium noatraioara nem um dos poetas.

    ***

    Estas consideraes guisa de apresentao do folheto j vo excedendoo limite razovel. Antes porm de concluir nosso desejo agradecer aHumberto de Campos, a Humberto esprito e corao imortais, a bondade comque atendeu solicitao que lhe fizemos para prefaciar as Palavras doInfinito, e o nosso agradecimento to mais profundo quoextraordinariamente belo e edificante o prefcio do saudoso escritor patrcio.Possam as suas crnicas e bem assim as poesias e mensagens contidas nesteopsculo tocar os coraes endurecidos e levar, a quantos o lerem, o doceorvalho da F, abrindo-lhes o entendimento para a compreenso da imortalidadee certeza da sobrevivncia.

    J.B.(So Paulo , 3 de outubro de 1936)

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • A PALAVRA DOS MORTOS

    Humberto de Campos

    Pedem de So Paulo a colaborao humilde do meu esforo para aapresentao de Palavras do Infinito que um grupo de espiritistas daSociedade de Metapsquica do grande Estado, tendo frente o eminenteamigo Dr. Joo Batista Pereira, vai lanar publicidade com o objetivo defornecer gratuitamente, com a mensagem dos mortos, um consolo aostristes, uma esperana aos desafortunados e um raio de claridade aos quenaufragam, desesperados, na noite escura da dvida e da descrena emmeio s borrascas do oceano tempestuoso da vida.

    Existem poucas probabilidades de eficcia no esforo dos mortos emfavor da regenerao da sociedade dos vivos. Contudo, as atividades deordem espiritualista, na atualidade do mundo, constituem a derradeiraesperana da civilizao. Sou agora dos que vem de perto o trabalhointenso das coletividades invisveis pelo progresso humano; sinto ao meulado a vibrao luminosa do pensamento orientador das sentinelasavanadas de outras esferas da evoluo e do conhecimento e reconheoque somente das concepes do moderno Espiritualismo poder nascer onovo dia da Humanidade. E embora a negao sistemtica dos homensdiante dessas realidades consoladoras, os tmulos vm deixando escapar osseus profundos e maravilhosos segredos, falando a sua palavra tocada deconforto e de claridades sobrenaturais.

    Na Antigidade egpcia, figurava-se o santurio da verdade ao fim deuma estrada sinuosa, rodeada de esfinges representando os enigmas dassuas essncias profundas; e no seu estranho simbolismo essas imagensconstituam as esfinges da Morte, cujos umbrais de silncio e de treva aVida jamais poderia transpor para solucionar os problemas inextricveis dosdestinos e dos seres.

    O tempo, todavia, modificou a mentalidade humana, adaptando-apara um conhecimento melhor de si mesma. Em meados do sculo passado,quando o materialismo atingia as suas cumiadas, na expresso filosficados pregoeiros e expositores, eis que os mortos voltam a confabular com osvivos sobre a sua maravilhosa ressurreio.

    A esperana volta a felicitar a mansarda dos pobres e o corao dosoprimidos na prodigiosa perspectiva da imortalidade atravs de todos osmundos e os desencarnados, num herosmo supremo, volvem aos centrosde estudos e aos gabinetes dos sbios com a lio piedosa das suasexperincias.

    No obstante a arrancada gloriosa dos que j haviam partido dassubstncias poderes da Terra para as esferas luminosas do Cu, tentando,com os seus exrcitos de arcanjos, reorganizar a sociedade humana,restaurando os alicerces do Cristianismo, poucos foram aqueles queouviram as suas trombetas ecoando no vale das lgrimas e das provaes.

  • Diante desse fenmeno universal, a religio no pde volver dosseus interesses e da sua intransigncia para identificar a espiritualidade dosseus santos e dos seus antigos reformadores; a cincia acadmica, por suavez, conserva-se de guarda ao seu passado e com as suas conquistas deontem presume-se na posse da sabedoria culminante.

    Entretanto, o dogmatismo incompatvel com o progresso, e todasas concepes cientificas de cada sculo se caracterizam pela suainstabilidade, porque os olhos da carne no vem o que existe. Nenhumateoria pode explicar a vida base exclusivista da matria.

    Todos os fenmenos mecnicos do Universo obedecem a uma forainteligente e nada existe de real diante da viso apoucada dos homens,porque as verdades profundas se lhes conservam invisveis.

    Os movimentos planetrios, os turbilhes atmicos no complexo detodas as coisas tangveis, inclusive o seu prprio corpo, o mistrio da fora,os enigmas da aglutinao molecular, o segredo da atrao, a identidadesubstancial da energia e da matria, que nunca se encontram separadasuma da outra, no se mostram aos olhos humanos dentro da suatranscendncia e da sua grandeza. Todo tomo de matria tem a suagnese no tomo invisvel, de natureza psquica.

    Raios impalpveis e ocultos trazem a vida e trazem a morte. E ohomem, na sua ignorncia presumida, mal se apercebe que o fantasmacambaleante de dipo, vivendo na zona limitada do seu livre-arbtrio, massubmetido s leis de bronze do destino e da dor, cujas atividades objetivamo aprimoramento de sua personalidade; apesar da sua vaidade e do seuorgulho, todas as suas glrias materiais caminham para a morte.

    Nietzsche arquiteta com Zaratustra a filosofia do homem superiorpara cair aniquilado sobre o seu prprio infortnio. Napoleo, depois daslutas prestigiosas que lhe granjearam a admirao universal, recolhe-se emSanta Helena para meditar nas clebres sentenas do Eclesiastes. dison,aps encher de conforto as cidades modernas com a sua imaginaocriadora, sente o esgotamento de suas foras fsicas para aguardar o gumeafiado da morte.

    Os homens, com todos os pergaminhos de suas conquistas, viverosempre no crculo de suas fraquezas e de suas misrias, enquanto no sevoltarem para o lado espiritual do Sofrimento e da Vida.

    A manifestao das atividades dos mortos no lhes tem fornecido asconcluses de ordem moral que se fazem necessrias ao aperfeioamentocoletivo; com algumas honrosas excees, despertou apenas o sentimentode suas anlises, nem sempre orientadas no propsito de saber, para seremfilhas intempestivas das vaidades pessoais de cada um.

    Disse Ingenieros, nos seus estudos psicolgicos, que a histria dacivilizao representa apenas o desenvolvimento da curiosidade humana. Seisso um fato incontestvel, no menos verdade que essa sede derevelaes deve possuir uma bssola espiritual nas suas longas e acuradasperquiries do invisvel. Muita experincia trouxe do mundo para acreditarque as teorias, s por si, possam operar a salvao da humanidade.

    Elas constituem apenas o roteiro de sua marcha onde os espritos de

  • boa vontade vo conhecer o caminho. So acessrios do seu esclarecimentosem representarem a compreenso em si mesmas. Toda a civilizaoocidental fundou-se base do Cristianismo; todavia o que menos se v, noseu fausto e na sua grandeza, o amor e a piedade do Crucificado. Aatualidade est cheia de exemplos dolorosos. Povos considerados cristospreparam-se afanosamente para as lutas fatricidas.

    A Liga das Naes, que alimentava o sonho da paz universal esthoje quase reduzida a uma abstrao de idelogos. A Itlia e Alemanhaexpansionistas empunham a espada do arrasamento e da destruio. Aindaagora o general Ludendhorf acaba de entregar publicidade o seu livroterrvel sobre a guerra total.

    A crena e a f no procedem de combinaes tericas ou domalabarismo das palavras e dos raciocnios. no trabalho e na dor que seprocessam e se afinam. Para a F no h melhor smbolo que o toque deMoiss sobre as rochas adustas, fazendo brotar o lenol lquido das guasclaras da vida. S a dor pode tocar o corao empedernido dos homens e por isso que a lio dos mortos servir somente para constituir a base novada sociologia de amanh.

    A f, por enquanto, continuar como patrimnio dos coraes queforam tocados pela graa do sofrimento. Tesouro da imortalidade, seria oideal da felicidade humana se todos os homens o conquistassem, mesmonos desertos tristes da Terra.

    Um grande astrnomo francs, inquirido sobre as recompensas doCu, acentuou:

    Mesmo aqui podem as criaturas receber as recompensas do paraso.O Cu o infinito e a Terra uma das ptrias da Imensidade; todos oshomens, portanto, so cidados celestes. aqui, na superfcie triste domundo, que as almas realizam a aquisio de suas felicidades. Estamos empleno cu e em toda parte veremos cada um receber segundo as suasobras....

    Sobre as frontes orgulhosas dos homens pairam os rgos invisveisde uma justia imanente e sobre a terra pode o esprito fazer jus aosprmios do Alto. A crena com os seus esplendores subjetivos, um dessesmaravilhosos tesouros.

    Que as palavras do infinito se derramem sobre o entendimento dascriaturas; cooperando com a dor, elas descobriro para o homem asgrandezas ocultas de sua prpria alma, a fim de ele aceite, em seu prpriobeneficio, as realidades confortadoras da sobrevivncia.

    A voz do alm pode ficar incompreendida, mas os mortoscontinuaro a falar para os vivos, comandados ordem de Algum, queest acima das opinies de todos os cientistas e escritores, encarnados edesencarnados. Foi a piedade de Jesus que abriu as cortinas que velavamos mistrios escuros e tristes da morte e o Divino Jardineiro conhece oterreno fecundo onde germinam as sementes do seu amor.

    Os homens aprendero custa das suas dores, com todo o fardo desuas misrias e de suas fraquezas e as palavras do infinito cairo sobre elescomo a chuva de favores do alto. Que elas se espalhem nos coraes e nas

  • almas, porque cada uma trs consigo a claridade de um sol e a doura deuma beno.

    Humberto de Campos(Recebida em Pedro Leopoldo a 27 de maro de 1935).

    Livro Palavras do Infinito Psicografia Francisco Candido Xavier Esprito Humberto de Campos

  • CARTA AOS QUE FICAM

    Humberto de Campos

    No antigo Pao da Boa vista, nas audincias dos sbados, quandorecebia toda gente, atendeu D.Pedro II a um negro velho, de carapinhabranca, e em cujo rosto, enrugado pelo frio de muitos invernos, sedescobria o sinal de muita penas e muitos maus-tratos.

    -Ah! Meu Senhor grande exclamou o infeliz como duro serescravo!...

    O magnnimo imperador encarou suas mos cansadas no leme dadireo do povo e aquelas outras, engelhadas, na excrescncia dos calosadquiridos na rude tarefa das senzalas, e tranqilizando-o comovido:

    - meu filho, tem pacincia! Tambm sou escravo dos meus deverese eles so bem pesados... Teus infortnios vo diminuir...

    E mandou libertar o preto.

    Mais tarde, nos primeiros tempos do seu desterro, o bondosomonarca, a bordo do Alagoas, recebeu a visita do seu ex-ministro; sprimeiras interpelaes de Ouro Preto, respondeu-lhe o grande exilado:

    -Em suma, estou satisfeito e tranqilo.

    E, aludindo sua expatriao:

    a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero.

    A coroa era pesada demais para a cabea do monarca republicano.

    Aos que perguntarem no mundo sobre a minha posio em face damorte, direi que ele teve para mim a fulgurao de um Treze de Maio paraos filhos de Angola.

    A morte no veio buscar a minha alma, quando esta se comprazianas redes douradas da iluso. A sua tesoura no me cortou fios damocidade e de sonho, porque eu no possua seno neves brancas esperado sol para se desfazerem. O gelo dos meus desenganos necessitava dessecalor de realidade, que a morte espalha no caminho em que passa com asua foice derrubadora. Resisti, porm ao seu cerco como Aquiles noherosmo indomvel de quem v a destruio de suas muralhas e redutos.Na minha trincheira de sacos de gua quente, eu a vi chegar quase todos osdias... Mirava-me nas pupilas chamejantes dos seus olhos, pedindo-lhecomplacncia e ela me sorria consoladora nas suas promessas. Eu nopodia, porm adivinhar o seu fundo mistrio, porque a dvida obsidiava omeu esprito, enrodilhando-se no meu raciocnio como tentculos de um

  • polvo.

    E, na alegria brbara, sentia-me encurralado no sofrimento, comoum lutador romano aureolado de rosas.

    Triunfava da morte e como jax recolhi as ltimas esperanas norochedo da minha dor, desafiando o tridente dos deuses.

    A minha excessiva vigilncia trouxe-me a insnia, que arruinou atranqilidade dos meus ltimos dias. Perseguido pela surdez, j os meusolhos se apagavam como as derradeiras luzes de um navio soobrando emmar encapelado no silncio da noite. Sombra, movendo-se dentro dassombras, no me acovardei diante do abismo. Sem esmorecimentos atirei-me ao combate, no para repelir mouros na costa, mas para erguer muitoalto o corao, retalhado nas pedras do caminho como um livro deexperincias para os que vinham depois dos meus passos, ou como a rstialuminosa que os faroleiros desabotoam na superfcie das guas, prevenindoos incautos dos perigos das sirtes traioeiras do oceano.

    Muitos me supuseram corrodo da lepra e de vermina como se fosseBento de Labre, raspando-me com a escudela de J. Eu, porm estavaapenas refletindo a claridade das estrelas do meu imenso crepsculo.Quando, me encontrava nessa faina de semear a resignao, a primeira eltima flor dos que atravessam o deserto das incertezas da vida, a morteabeirou-se do meu leito; devagarinho, como algum que temesse acordarum menino doente. Esperou que tapassem com anestesia todas as janelas einterstcios dos meus sentimentos. E quando o caos mais absoluto no meucrebro, zz! Cortou as algemas a que me conservava retido por amor aosoutros condenados, irmos meus, reclusos no calabouo da vida. Adormecinos seus braos como um brio nas mos de uma deusa. Despertandodessa letargia momentnea, compreendi a realidade da vida, que eunegara, alm dos ossos que se enfeitam com os cravos rubros da carne.

    -Humberto!... Humberto... exclamou uma voz longnqua recebe osque te enviam da Terra!

    Arregalei os olhos com horror e com enfado:

    -No! No quero saber de panegricos e agora no me interessam assees necrolgicas dos jornais.

    Enganas-te repetiu as homenagens da conveno no seequilibram at aqui. A hipocrisia como certos micrbios de vida muitoefmera. Toma as preces que se elevaram por ti a Deus, dos peitossufocados, onde penetraste com as tuas exortaes e conselhos. Osofrimento retornou sobre o teu corao um cntaro de mel.

    Vi descer de um ponto indeterminado do espao, braadas de floresinebriantes como se fossem feitas de neblina resplandecente, e escutei,envolvendo o meu nome pobre, oraes tecidas com suavidade e doura.Ah! Eu no vira o cu e a sua corte de bem-aventurados; mas Deusreceberia aquelas deprecaes no seu slio de estrelas encantadas como ahstia simblica do catolicismo se perfuma na onda envolvente dos aromasde um turbulo. Nossa Senhora deveria ouvi-las no seu trono de jasminsbordados de ouro, contornado dos anjos que eternizam a sua glria.

  • Aspirei com fora aqueles perfumes. Pude locomover-me parainvestigar o reino das sobras, onde penso sem miolos na cabea. Amava eainda sofria, reconhecendo-me no prtico de uma nova luta.

    Encontrei alguns amigos a quem apertei fraternalmente as mos. Evoltei c. Voltei para falar com os humildes e infortunados, confundidos napoeira da estrada de suas existncias, como frangalhos de papel,rodopiando ao vento. Voltei para dizer aos que no pude interpretar no meuceticismo de sofredor:

    -No sois os candidatos ao casaro da Praia Vermelha.[HospcioNacional]. Plantai pois nas almas a palmeira da esperana. Mais tarde eladescobrir sobre as vossas cabeas encanecidas os seus leques enseivadose verdes...

    E posso acrescentar, como o neto de Marco Aurlio, no tocante morte que me arrebatou da priso nevoenta da Terra:

    - a minha carta de alforria... Agora posso ir onde quero.

    Os amargores do mundo eram pesados demais para o meu corao.

    Humberto de Campos.

    (Recebida em Pedro Leopoldo em 28 de maro de 1935).

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • AOS M EUS FILHOS

    Humberto de Campos

    Meus filhos venho falar a vocs como algum que abandonasse anoite de Tirsias, no carro fulgurante de Apolo, subindo aos cumesdourados e perfumados do Hlicon. Tudo harmonia e beleza na companhiados numes e dos gnios, mas o pensamento de um cego, em reabrindo osolhos nas rutilncias da luz, para os que ficaram, l longe dentro da noiteonde apenas a esperana uma estrela de luz doce e triste.

    No venho da minha casa subterrnea de So Joo Batista [Oesprito se refere ao cemitrio de So Joo], como os mortos que oslarpios, s vezes, fazem regressar aos tormentos da Terra, por mal dosseus pecados. Na derradeira morada do meu corpo ficaram os meus olhosenfermos e as minhas disposies orgnicas.

    C estou como se houvesse sorvido um nctar de juventude nobanquete dos deuses.

    Entretanto, meus filhos, levanta-se entre ns um rochedo demistrio e de silncio.

    Eu sou eu. Fui o pai de vocs e vocs foram meus filhos. Agorasomos irmos. Nada h de mais belo do que a lei de solidariedade fraterna,delineada pelo Criador na sua glria inacessvel. A morte no suprimiu aminha afetividade e a ainda possuo o meu corao de homem para o qualvocs so as melhores criaturas desse mundo.

    Dizem que Orfeu, quando tangia as cordas de sua lira, sensibilizavaas feras que agrupavam enternecidas para escut-lo. As rvores vinham delonge, transportadas na sua harmonia. Os rios sustavam o curso nas suascorrentes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Havia deslumbramento napaisagem musicalizada. A morte, meus filhos, cantou para mim, tocando oseu alade. Todas as minhas convices deixaram os seus lugaresprimitivos para sentir a grandeza do seu canto.

    No posso transmitir esse mistrio maravilhoso atravs dos mtodosimperfeitos de que disponho. E, se pudesse, existe agora entre ns ofantasma da dvida.

    Convidado pelo Senhor, eu tambm estive no banquete da vida. Nonos palcios da popularidade ou da juventude efmera, mas no trio pobree triste do sofrimento onde se conservam temporariamente os mendigos dasua casa. Minha primeira dor foi a minha primeira luz. E quando os

  • infortnios formaram uma teia imensa de amarguras para o meu destino,senti-me na posse do celeiro de claridades da sabedoria. Minhas dores eramminha prosperidade. Porm qual o corteso de Dionsio, vi a dvida como aespada afiadssima balouando-se sobre a minha cabea. A na Terra, entrea crena e a descrena, est sempre ela, a espada de Dmocles. Isso umafatalidade.

    Venho at vocs cheio de amorosa ternura e se no posso meindividualizar, apresentando-me como o pai carinhoso, no podem vocsgarantir a impossibilidade da minha sobrevivncia. A dvida entre ns como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras. Um morto, comoeu, no pode esperar a certeza ou a negao dos vivos que receberem asua mensagem para a qual h de prevalecer o argumento dubitativo. E nempode exigir outra coisa quem no mundo no procederia de outra forma.

    Sinto hoje, mais que nunca, a necessidade de me impessoalizar, deser novamente o filho ignorado de dona Anica, a boa e santa velhinha, quecontinua sendo para mim a mais santa das mes. Tenho necessidade de meesquecer de mim mesmo. Todavia, antes que se cumpra este meu desejo,volto para falar a vocs paternalmente como no tempo em que destrua ofosfato do crebro a fim de adquirir combustvel para o combustvel para oestmago.

    -Meus filhos!... Meus filhos!... Estou vivendo... No me vem?... Masolhem, olhem o meu corao como ainda est batendo por vocs!...

    Aqui, meus filhos, no me perguntaram se eu havia descidogloriosamente as escadas do Petit Trianon; no fui inquirido a respeito dosmeus triunfos literrios e no me solicitaram informes sobre o meu fardoacadmico. Em compensao, fui argido acerca das causas dos humildes edos infortunados pelos quais me bati.

    Vivam pois com prudncia na superfcie desse mundo de futilidades ede glrias vs.

    Num dos mais delicados poemas de Wilde, as rcades lamentara amorte de Narciso junto de sua fonte predileta, transformada numa taa delgrimas.

    -No nos admira suspiram elas que tanto tenhas chorado!... Erato lindo!...

    -Era belo Narciso? perguntou o lago.

    -Quem melhor do que tu poders sab-lo, se nos desprezavas atodas para estender-se nas relvas da tua margem, baixando os olhos paracontemplar, no diamante da tua onda, a sua formosura?...

    A fonte respondeu:

  • -Eu adorava Narciso porque, quando me procurava com os olhos, euvia, no espelho das suas pupilas, o reflexo da minha prpria beleza.

    Em sua generalidade, meus filhos, os homens, quando no soNarciso, enamorados de sua prpria formosura, so as fontes de Narciso.

    No venho exortar a vocs como sacerdote; conheo de sobra sfraquezas humanas. Vivam, porm a vida do trabalho e da sade, longe davaidade corruptora. E, na religio da conscincia retilnea, no se esqueamde rezar.

    Eu, que era um homem to perverso e to triste, estou aprendendode novo a minha prece, como fazia na infncia, ao p de minha me, naParnaba.

    -Venham, meus filhos!... Ajoelhemos de mos postas... No vemque cheguei de to longe?! Fui mais feliz que o Rico e o Lzaro da parbola,que no puderam voltar... Ajoelhemos no templo do Esprito; inclinemvocs a fronte sobre o meu corao. Cabem todos nos meus braos?Cabem, sim...

    Vamos rezar com o pensamento em Deus, com a alma no infinito.Pai nosso... que estais no cu... santificado seja o vosso nome...

    Humberto de Campos

    (Recebida em Pedro Leopoldo em 9 de abril de 1935).

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • NA MANSO DOS MORTOS

    Humberto de Campos

    - O amigo sabe que os fotgrafos ingleses registraram a presena desir Conan Doyle no enterro de lady Gaillard?

    Esta pergunta me foi dirigida pelo coronel C. da C., (1) que euconhecera numa das minhas viagens pelo Nordeste. O coronel lia pordesfastio as minhas crnicas e em poucos minutos nos tornamoscamaradas. H muito tempo, todavia, soubera eu da sua passagem para ooutro mundo em virtude de uma arteriosclerose generalizada. Tempo vai,tempo vem, defrontamo-nos de novo no vago infinito da Vida, em quetodos viajamos, atravs da eternidade. E, como o melhor abrao quepodemos dar longe dos vivos, ali estvamos os dois tte tte, sem pensarno relgio que regulava os nossos atos no presdio da Terra, nem nosponteiros do estmago, que a trabalham com demasiada pressa.

    C. tinha no mundo idias espritas e continuava, na outra vida, ainteressar-se pelas coisas de sua doutrina.

    Ento, coronel, a vida que levaremos por aqui no ser muitodiversa da que observvamos l em baixo? Um morto, pode apresentar-senas solenidades dos vivos, participar das suas alegrias e das suas tristezas,como no presente caso? Alis, j sabemos do captulo evanglico quemanda os mortos enterrar os mortos.

    -Pode, sim, menino replicou o meu amigo como quem evocasseuma cena dolorosa mas, isso de acompanhar enterros, sobra-meexperincia para no mais faz-lo. Costumamos observar que, se os vivostem medo dos que j regressaram para c, ns igualmente, s vezes,sentimos repulsa de topar os vivos. Porm, o que lhe vou contar ocorreuentre os considerados mortos. Ti medo de dois espectros num ambientesoturno de cemitrio.

    E o meu amigo, com o olhar mergulhado no pretrito longnquo,monologava:

    -Desde essa noite, nunca mais acompanhei enterros de amigos...Deixo isso para os encarnados, que vivem brincando de cabra-cega no seutemporrio esquecimento...

    -Conte-me, coronel, o acontecimento disse eu, mal sopitando acuriosidade.

    -Lembra-se comeou ele da admirao que eu sempremanifestava pelo Dr. A.F., que voc no chegou a conhecer em pessoa?

    -Vagamente...

  • -Pois bem, o Antonico, nome pelo qual respondia na intimidade, eraum dos meus amigos do peito. Advogado de renome na minha terra, j oconheci na elevada posio que usufrua no seio da sociedade que lheacatava todas as aes e pareceres.

    Pardavasco, insinuante, era o tipo do mulato brasileiro. Simptico,inteligente, captava a confiana de quantos se lhe aproximavam. Era deuma felicidade nica. Ganhava todas as causas que lhe eram entregues. Ocrime mais negro apresentava para a sua palavra percuciente umaargumentao infalvel na defesa. Os rus, absolvidos com a suacolaborao, retiravam-se da sala de sesses da justia quase canonizados.O Antonico se metera em alguma pendncia? O triunfo era dele. Gozava detoda a nossa considerao e estima. Criara a sua famlia com irrepreensvelmoralidade. Em algumas cerimnias religiosas a que compareci, recordo-mede l o haver encontrado, como bom catlico, em cuja personalidade onosso vigrio via um dos mais prestigiosos dos seus paroquianos.

    Chefiava iniciativas de caridade, presidia a associao religiosa eprimava pela austeridade intransigente dos seus costumes.

    Quando voltei desse mundo, que hoje representa para ns umapenitenciaria, trouxe dele saudosas recordaes.

    Imagine, pois o meu desejo de reencontr-lo, quando vim a saber,nestas paragens, que ele se achava s portas da morte. Obtive permissopara excursionar Terra e fui rev-lo na sua cama de luxo, rodeado dezelos extremos, numa alcova ensombrada de sua confortvel residncia. Aspoes eram ingeridas. Injees eram aplicadas. Os mdicos eramatenciosamente ouvidos. Contudo, a morte rondava o leito de rendas, como seu passo silencioso. Depois de ter o abdmen rasgado por um bisturi,uma infeco sobreviera inesperadamente.

    Apareceu uma pleurisia e todas as punes foram inteis. Antonicoagonizava. Vi-o nos seus derradeiros momentos, sem que ele me visse nasua semi-inconscincia. Os mdicos sua cabeceira, deploravam odesaparecimento do homem probo. O padre, que sustinha naquelas mosde cera u delicado crucifixo, recitando a orao dos moribundos, fazia aocu piedosas recomendaes. A esposa chorava o esposo, os filhos o pai!Aos meus olhos, aquele quadro era o da morte do justo. Transcorridasalgumas horas, acompanhei o fnebre cortejo que ia entregar terraaqueles despojos frios.

    Desnecessrio que lhe diga das pomposas exquias que a igrejadispensou ao morto, em virtude da sua posio eminente. Preces.Asperses com hissopes ensopados ngua benta e latim agradvel.

    Mas, como nem todos os que morrem desapegam imediatamentedos humores e das vsceras, esperei que o meu amigo acordasse para ser oprimeiro a abra-lo.

    Era crepsculo. E, naquela tarde de agosto, as nuvens estavamenrubescidas, em meio do fumo das queimaduras, parecendo umaespumarada de sangue. Havia um cheiro de terra brava, entre as lousassilenciosas, ao p dos salgueiros e dos ciprestes. Eu esperava. De vez emquando, o vento agitava a ramaria dos chores, que pareciam soluar,numa toada esquisita. Os coveiros abandonaram a sua tarefa sinistra e eu

  • vi um vulto de mulher, esgueirando-se entre as lpides enegrecidas. Paroujunto daquela cova fresca. No se tratava de nenhuma alma encarnada.Aquela mulher pertencia tambm aos reinos das sombras. Observei-a delonge. Todavia, gritos estentricos ecoaram aos meus ouvidos.

    -A. F. exclamou o espectro chegou o momento da minhavingana! Ningum poder advogar a tua causa. Nem Deus, nem oDemnio podero interceder pela tua sorte, como no puderam cicatrizar nomundo as feridas que abriste em meu corao. Todas as nossastestemunhas agora so mudas. Os anjos aqui so de pedra e as capelas demrmore, cheias de cruzes caladas, so estojos de carne apodrecida.Lembras-te de mim? Sou a R. S., que infelicitaste com a tua infmia!

    J no s aquele moreno insinuante que surrupiou a fortuna de meuspais, destruindo-lhes a vida e atirando-me no meretrcio abominvel. Afortuna que te deu um nome foi edificada no pedestal do crime.

    Recordas-te das promessas mentirosas que me fizeste?Envergonhada, abandonei a terra que me vira nascer para ganhar o po nomais horrendo comrcio. Corri mundo, sem esquecer a tua perversidade esem conseguir afogar o meu infortnio na taa dos prazeres.

    Entretanto, o mundo foi teu. Ru de um crime nefando, fostesacerdote da justia; eu, a vtima desconhecida, fui obrigada a sufocar aminha fraqueza nas sentinas sociais, onde os homens pagam o tributo dassuas misrias. Tiveste a sociedade, eu os bordis. O triunfo e aconsiderao te pertenceram; a mim coube o desprezo e a condenao.Meu lar foi o hospital, donde se escapou o ltimo gemido do meu peito.

    Meus braos, que haviam nascidos para acariciar os anjos de Deus,como dois galhos de rvores cheios de passarinhos, foram por titransformados em tentculos de perdio. Eu poderia ter possudo um lar,onde as crianas abenoassem os meus carinhos e onde um companheirolaborioso se reconfortasse com o beijo da minha afeio. Venho tecondenar, desalmado assassino, em nome da justia eterna que nos rege,acima dos homens. H mais de um lustro, espero-te nesta solidoindevassvel, onde no poders comprar a conscincia dos juizes... Vivestecom o teu conforto, enquanto eu penava com a minha misria; mas, oinferno agora ser de ns dois!...

    O coronel fez uma pausa, enquanto eu meditava naquela histria.

    -A mulher chorava continuou ele de meter d. Aproximei-medela, no sendo notada, porm, minha presena. Olhei a cruz modesta ecarcomida que havia que havia sido arrancada poucas horas antes,daqueles sete palmos de terra, para que ali fosse aberto um novo sepulcro,e, no sei se por artes do acaso, nela estava escrito um nome com pregosamarelos, j desfigurados pela ferrugem: R. S. Orai por ela.

    Por uma coincidncia sinistra, reencontravam-se os dois corpos e asduas almas. Procurei fazer tudo pelo Antonico, mas quando atravessei como olhar a terra que lhe cobria os despojos, afigurou-se-me ver um monte deossos que se moviam. Crnio, tbias, mero, clavculas, se reuniam sob umaao misteriosa e vi uma caveira chocalhando os dentes de fria, ao mesmotempo em que umas falangetas de ao pareciam apertar o pescoo do

  • cadver do meu amigo.

    -E ele, coronel, isto , o Esprito, estava presente?

    -Estava, sim. Presente e desperto. L o deixei, sentindo os horroresdaquela sufocao.

    -Mas, e Deus, coronel? Onde estava Deus que no se compadeceudo pecador arrependido?

    O coronel me olhou, como se estivesse interrogando a si mesmo, edeclarou por fim:

    -Homem, sei l!... Acredito que Deus tenha criado o mundo; porm,acho que a Terra ficou mesmo sob administrao do Diabo.

    ------------------

    (1) No original da mensagem foram dados por extenso os nomes daspessoas nela mencionados. Como, porm, essas pessoas deixaramdescendentes, que poderiam molestar-se com as referncias que lhes fezHumberto de Campos, resolvemos indic-las apenas pelas suas iniciais.

    Humberto de Campos.

    (Recebida em Pedro Leopoldo a 9 de abril de 1935).

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • JUDAS ISCAROTES

    Humberto de Campos

    Silncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital daJudia parece dormir o seu sono de muitos sculos. Alm descansaGetsmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia,acol est o Glgota sagrado e em cada coisa silenciosa h um trao daPaixo que as pocas guardaro para sempre. E, em meio de todo ocenrio, como um veio cristalino de lgrimas, passa o Jordo silencioso,como se as suas guas mudas, buscando o Mar Morto, quisessemesconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondveis doNazareno.

    Foi assim, numa destas noites que vi Jerusalm, vivendo a suaeternidade de maldies.

    Os espritos podem vibrar em contacto direto com a histria.Buscando uma relao ntima com a cidade dos profetas, procuravaobservar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mosiconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decretoirrevogvel. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruio edesgraa. Legies de duendes, embuados nas suas vestimentas antigas,percorrem as runas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre oemprio morto dos judeus, no ouvem os homens os gemidos dahumanidade invisvel.

    Nas margens caladas do Jordo, no longe talvez do lugar sagrado,onde Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobreuma pedra. De sua expresso fisionmica irradiava-se uma simpatiacativante.

    - Sabe quem este? murmurou algum aos meus ouvidos. Este Judas.

    - Judas?!...- Sim. Os espritos apreciam, s vezes, no obstante o progresso que

    j alcanaram, volver atrs, visitando os stios onde se engrandeceram ouprevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos temposidos. Ento mergulham o pensamento no passado, regressando aopresente, dispostos ao herosmo necessrio do futuro. Judas costuma vir Terra, nos dias em que se comemora a Paixo de Nosso Senhor,meditando nos seus atos de antanho...

    Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu no estou ainda livreda curiosidade do reprter, mas entre as minhas maldades de pecador e aperfeio de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porm, e asanta humildade de seu corao, ligaram-se para que eu o atravessasse,procurando ouvi-lo.

    -O senhor , de fato, o ex-filho de Iscariot? Sim, sou Judas respondeu aquele homem triste, enxugando uma lgrima nas dobras desua longa tnica. Como o Jeremias, das Lamentaes, contemplo s vezes

  • esta Jerusalm arruinada, meditando no juzo dos homens transitrios...- uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito

    sua personalidade na tragdia da condenao de Jesus?- Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos no

    atenderam s circunstncias e s tricas polticas que acima dos meus atospredominaram na nefanda crucificao. Pncio Pilatos e o tetrarca daGalilia, alm dos seus interesses individuais na questo, tinham ainda aseu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado emsatisfazer as aspiraes religiosas dos ancios judeus. Sempre a mesmahistria. O Sanedrim desejava o reino do cu pelejando por Jeov, a ferroe fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forasantagnicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonadospelas idias socialistas do Mestre, porm o meu excessivo zelo peladoutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos coraes, eu via apoltica, nica arma com a qual poderia triunfar e Jesus no obterianenhuma vitria. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rdeasdo poder j que, no seu manto de pobre, se sentia possudo de um santohorror propriedade. Planejei ento uma revolta surda como se projetahoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria aum plano secundrio e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta eenrgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande,depois de vencer Maxncio s portas de Roma, o que alis apenas serviupara desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifs, nojulguei que as coisas atingissem um fim to lamentvel e, ralado deremorsos, presumi que o suicdio era a nica maneira de me redimir aosseus olhos.

    - E chegou a salvar-se pelo arrependimento?- No. No consegui. O remorso uma fora preliminar para os

    trabalhos reparadores. Depois da minha morte trgica submergi-me emsculos de sofrimento expiatrio da minha falta. Sofri horrores nasperseguies infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e asminhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde imitandoo Mestre, fui trado, vendido e usurpado. Vtima da felonia e da traiodeixei na Terra os derradeiros resqucios do meu crime, na Europa dosculo XV. Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo atodos os tormentos e infmias que me aviltavam, com resignao epiedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosasreencarnaes na Terra, sentido na fronte o sculo de perdo da minhaprpria conscincia...

    - E est hoje meditando nos dias que se foram... - pensei comtristeza.

    - Sim... Estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora,irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas queainda no deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinospassos. Vejo-O ainda na Cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto aclamorosa injustia dos companheiros que O abandonaram inteiramente eme vem uma recordao carinhosa das poucas mulheres que O ampararamno doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sousempre a figura repugnante do traidor... Olho complacentemente os queme acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu

  • nome pesa a maldio milenria, como sobre estes stios cheios de misriae de infortnio. Pessoalmente, porm, estou saciado de justia, porque jfui absolvido pela minha conscincia no tribunal dos suplcios redentores.

    Quanto ao Divino Mestre continuou Judas com os seus prantos infinita a sua misericrdia e no s para comigo, porque se recebi trintamoedas, vendendo-O aos seus algozes, h muitos sculos Ele est sendocriminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos ospreos em todos os padres do ouro amoedado...

    - verdade conclu e os novos negociadores do Cristo no seenforcam depois de vend-LO.

    Judas afastou-se tomando a direo do Santo Sepulcro e eu,confundido nas sombras invisveis para o mundo, vi que no cu brilhavamalgumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordorolava na sua quietude como um lenol de guas mortas, procurando ummar morto.

    Recebida em Pedro Leopoldo a 19 de abril de 1935

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • AOS QUE AINDA SE ACHAMMERGULHADOS NAS SOMBRAS DO MUNDO

    Humberto de Campos

    Antigamente eu escrevia nas sombras para os que se conservavamnas claridades da Vida. Hoje, escrevo na luz branca da espiritualidadepara quantos ainda se acham mergulhados nas sombras do mundo. Querocrer, porm que to dura tarefa me foi imposta nas manses da Morte,como esquisita penitncia ao meu bom gosto de homem que colheuquando pde dos frutos saborosos na rvore paradisaca dos nossosprimeiros pais, segundo as Escrituras.

    Contudo no desejo imitar aquele velho Tirsias que fora deproferir alvitres e sentenas conquistou dos deuses o dom divinatrio emtroca dos preciosos dons da vista.

    Por esta razo o meu pensamento no se manifesta entre vocs queaqui acorreram para ouvi-lo como o daquelas entidades batedoras, que emHydesville, na Amrica do Norte, por intermdio das irms Fox, viviamnos primrdios do Espiritismo, contando histrias e dando respostassurpreendentes com as suas pancadas ruidosas e alegres.

    Devo tambm esclarecer ao sentimento de curiosidade que ostangeu at aqui, que no estou exercendo ilegalmente a medicina como agrande parte dos defuntos, os quais, hoje em dia, vivem diagnosticando ereceitando mezinhas e guas milagrosas para os enfermos.

    Nem tampouco, na minha qualidade de reprter falecido souportador de alguma mensagem sensacional dos paredros comunistas quej se foram dessa vida para a melhor, mulos dos Lenine, dos Kropotkine,cujos crebros, a esta hora, devem estar transbordando teoriasmomentosas para o instante amargo que o mundo est vivendo.

    O objetivo das minhas palavras pstumas somente demonstrar ohomem... Desencarnado e a imortalidade dos seus atributos. O fato quevocs no me viram.

    Mas contem l fora eu enxergaram o mdium. No afirmam que elese parece com o Mahatma Gandhi em virtude de lhe faltar uma tanga, umacabra e a experincia anosa do lder nacionalista da ndia. Mashistoriem, com sinceridade, o caso das suas roupas remendadas e tristesde proletrio e da sua pobreza limpa e honesta que anda por esse mundoarrastando tamancos para a remisso de suas faltas nas anterioresencarnaes. Quanto a mim, digam que eu estava por detrs do vu desis.

    Mesmo assim, na minha condio de intangibilidade, no me furtoao desejo de lhes contar algo a respeito desta outra vida para onde todostm de regressar. Se no estou nos infernos de que fala a teologia doscristos, no me acho no stimo paraso de Maom. No sei contar asminhas aperturas na amarga perspectiva de completo abandono em que

  • me encontrei, logo aps abrir os meus olhos no reino extravagante daMorte. Afigurou-se-me que eu ia, diretamente consignado ao Aqueronte,cujas guas amargosas deveria transpor como as sombras para nunca maisvoltar, porque no cheguei a presenciar nenhuma luta entre So Gabriel eos Demnios, com as suas balanas trgicas, pela posse de minha alma.Passados, porm, os primeiros instantes de inusitado receio, divisei afigura mida e simples do meu Tio Antoninho, que me recebeu nos seusbraos carinhosos de santo.

    Em companhia, pois, de afeies ternas, no reconto fabuloso, que a minha temporria morada, ainda estou como aparvalhado entre todos osfenmenos da sobrevivncia. Ainda no cheguei a encontrar os sismaravilhosos, as esferas, os mundos comentrios, portentos celestes, quedescreve Flammarion na sua Pluralidade dos Mundos. Para o meuesprito, a Lua ainda prossegue na sua carreira como esfinge eterna doespao, embuada no seu burel de freira morta.

    Uma saudade doida e uma nsia sem termo fazem um turbilho nomeu crebro: a vontade de rever, no reino das sombras, o meu pai e aminha irm. Ainda no pude faz-lo. Mas em um movimento demaravilhosa retrospeco pude volver minha infncia, na Miritibalongnqua. Revi as suas velhas ruas, semi-arruinadas pelas guas do Pirie pelas areias implacveis... Revi os dias que se foram e senti novamente aalma expansiva de meu pai como um galho forte e alegre do troncorobusto dos Veras minha frente, nos quadros vivos da memria, abraceia minha irmzinha inesquecida, que era em nossa casa modesta como umanjo pequenino da Assuno de Murilo, que se tivesse corporificado deuma hora para outra sobre as lamas da terra...

    Descansei sombra das rvores largas e fartas, escutando ainda asviolas caboclas, repenicando os sambas da gente das praias nortistas e queto bem ficaram arquivadas na poesia encantadora e simples de JuvenalGaleno.

    Da Miritiba distante transportei-me Parnaba, onde vibrei com omeu grande mundo liliputiano... Em esprito, contemplei com a minhame as folhas enseivadas do meu cajueiro derramando-se na Terra entreas harmonias do canto choroso das rolas morenas dos recantos distantesde minha terra.

    De almas entrelaadas contemplei o vulto de marfim antigo daquelasanta que, como um anjo, espalmou muitas vezes sobre o meu espritocansado as suas asas brancas. Beijei-lhe as mos encarquilhadasgenuflexo e segurei as contas do seu rosrio e as contas midas e clarasque corriam furtivamente dos seus olhos, acompanhando a sua orao...

    Ave Maria... Cheia de graa... Santa Maria... Me de Deus...Ah! De cada vez que o meu olhar se espraia tristemente sobre a

    superfcie do mundo, volvo a minha alma aos firmamentos, tomada deespanto e de assombro... Ainda h pouco, nas minhas surpresas de recm-desencarnado, encontrei na existncia dos espaos, onde no se contam ashoras, uma figura de velho, um esprito ancio, em cujo corao milenriopresumo refugiadas todas as experincias. Longas barbas de neve, olhostransudando piedade infinita doura, da sua fisionomia de Doutor da Lei,nos tempos apostlicos, irradiava-se uma corrente de profunda simpatia.

    - Mestre! disse-lhe eu na falta de outro nome que podemos fazer

  • para melhorar a situao do orbe terreno? O espetculo do mundo medesola e espanta... A famlia parece se dissolve... O lar est balanandocomo os frutos podres, na iminncia de cair... A Civilizao, com os seusnumerosos sculos de leis e instituies afigura-se haver tocado os seusapogeus... De um lado existem os que se submergem num gozo aparente efictcio, e do outro esto s multides famintas, aos milhares, que no tmseno rasgado no peito o sinal da cruz, desenhado por Deus com a suasmos prestigiosas como os smbolos que Constantino gravara nos seusestandartes... E, sobretudo Mestre, a perspectiva horrorosa daguerra...No h tranqilidade e a Terra parece mais um fogareiro imenso,cheio de matrias em combusto...

    Mas o bondoso esprito-ancio me respondeu com humildade ebrandura:

    - Meu filho... Esquece o mundo e deixa o homem guerrear empaz!...

    Achei graa no seu paradoxo, porm s me resta acrescentar:- Deixem o mundo em paz com a sua guerra e a sua indiferena!No ser minha boca quem v soprar na trombeta de Josaf. Cada

    um guarde a a sua crena ou o seu preconceito.

    Recebida em Pedro Leopoldo a 23 de abril de 1935.

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • TRAGO-LHE O MEU ADEUS SEMPROMETER VOLTAR BREVE

    Humberto de Campos

    Apreciando, em 1932, o Parnaso de Alm-Tmulo, que os poetasdesencarnados mandaram ao mundo por intermdio de voc, chamei aateno dos estudiosos para a incgnita que o seu caso apresentava. Osestudiosos, certamente, no apareceram. Deixando, porm, o meu corpominado por uma hipertrofia renitente, lembrei-me do acontecimento.Julgara eu que os bardos do outro mundo, com a sua originalidadeestilar, se comprometiam pela eternidade da produo, no falsopressuposto de que se pudessem identificar por outra forma. Encontrandoensejo para me fazer ouvir, atravs de suas mos, escrevi essas crnicaspstumas que o Sr. Frederico Figner transcreveu nas colunas do Correioda Manh.

    No imaginei que o humilde escritor desencarnado estivesse aindana lembrana de quantos o viram desaparecer. E as minhas palavrasprovocaram celeuma. Discutiu-se e ainda se discute.

    Voc foi apresentado como hbil fazedor de pastiches e osnoticiaristas vieram averiguar o que havia de verdadeiro em torno do seunome.

    Colheram informes. Conheceram a honestidade da sua vida simplese as dificuldades dos seus dias de pobre. E, por ltimo, quiseram ver comovoc escrevia a mensagem dos mortos, com uma Remington acionada pordedos invisveis.

    Tive pena quando soube que iam conduzi-lo a um test e recordei-me do primeiro exame a que me sujeitei a com o corao batendo forte.

    Fiz questo de enviar-lhe algumas palavras como o homem que falade longe sua ptria distante, atravs das ondas de Hertz, sem saber se osseus conceitos sero reconhecidos pelos patrcios, levando em conta asdeficincias do aparelho receptor e os desequilbrios atmosfricos.Todavia, bem ou mal, consegui falar alguma coisa. Eu devia essareparao doutrina que voc sinceramente professa.

    Esperariam, talvez, que eu falasse sobre os fabulosos canais deMarte, sobre a natureza de Vnus, descrevendo, como os viajantes deJlio Verne, a orografia da Lua. Julgo, porm, que por enquanto me mais fcil uma discusso sobre o diamagnetismo de Faraday.

    Admiraram-se quando enxergaram a sua mo vertiginosa correndosobre as linhas do papel.

    A curiosidade jornalstica agora levantada em torno da sua pessoa. possvel que outros acorram para lhe fazer suas visitas. Mas oua bem.No me espere como a pitonisa de Endor aguardando a sombra de Samuelpara fazer predies a Saul sobre as suas atividades guerreiras. No seimovimentar as trpodes espritas e se procurei falar naquela noite que o

  • seu nome estava em jogo. Colaborei, assim, na sua defesa. Mas, agora queos curiosos o procuram, na sua ociosidade, busque, no desinteresse, amelhor arma para desarmar os outros. Eu voltarei provavelmente quandoo deixarem em paz na sua amargurosa vida.

    No desejo escrever maravilhando a ningum e tenho necessidadede fugir a tudo o que tenho obrigao de esquecer.

    Fique-se, pois, com a sua cruz, que bem pesada por amor Daqueleque acende o lume das estrelas e o lume da esperana nos coraes. Amediunidade posta ao servio do bem quase a estrada do Glgota; mas af transforma em flores as pedras do caminho. Li a, certa vez, num contodelicado, que uma mulher em meio de sofrimentos acerbos, apelara paraDeus, a fim de que se modificasse a volumosa cruz da sua existncia.Como filha de Cipio, vira nos filhos as jias preciosas da sua vaidade edo seu amor, mas como Nobe vira-os arrebatados no torvelinho da morte,impelidos pela fria dos deuses. Tudo lhe falhara nas fantasias do amor,do lar e da ventura.

    - Senhor exclama ela por que me destes uma cruz to pesada?Arrancai dos meus ombros fracos este insuportvel madeiro!

    Mas, nas asas brandas do sono, a sua alma de mulher viva e rffoi conduzida a um palcio resplandecente. Um Anjo do Senhor recebeu-ano prtico, com a sua bno. Uma sala luminosa e imensa lhe foidesignada. Toda ela se enchia de cruzes. Cruzes de todos os feitios.

    - Aqui disse-lhe uma voz suave guardam-se todas as cruzes queas almas encarnadas carregam na face triste do mundo. Cada um dessesmadeiros traz o nome do seu possuidor. Atendendo, porm tua splica,ordena Deus que escolhas aqui uma cruz menos pesada do que a tua.

    A mulher escolheu conscienciosamente aquela cujo peso competiacom as suas possibilidades, escolhendo-a entre todas.

    Mas apresentando ao Mensageiro Divino a sua preferncia,verificou que, na cruz escolhida, se encontrava esculpido o seu prprionome, reconhecendo a sua impertinncia e rebeldia.

    - Vai! disse-lhe o Anjo com a tua cruz e no descreias. Deus, nasua misericordiosa justia, no poderia macerar os teus ombros com umpeso superior s tuas foras.

    No se desanime, portanto, na faina que se encontra, carregandoesse fardo penoso que todos os incompreendidos j carregaram. E agoraque os bisbilhoteiros o procuram, trago-lhe o meu adeus, sem prometervoltar breve.

    Que o Senhor derrame sobre voc a sua bno que conforta todosos infortunados e todos os tristes.

    Recebida em Pedro Leopoldo a 28 de abril de 1935

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • A PASSAGEM DE RICHET

    Humberto de Campos

    O Senhor tomou lugar no tribunal da sua justia e, examinando osdocumentos que se referiam s atividades das personalidades eminentessobre a Terra, chamou o Anjo da Morte, exclamando:

    Nos meados do sculo findo, partiram daqui diversos servidores daCincia que prometeram trabalhar em meu nome no orbe terrqueo,levantando a moral dos homens e suavisando-lhes as lutas. Alguns jregressaram, enobrecidos nas aes dignificadoras, nesse mundolongnquo. Outros, porm, desviaram-se dos seus deveres e outros aindal permanecem, no turbilho das duvidas e das descrenas, laborando noestudo.

    Lembras-te daquele que era aqui um inquieto investigador, com assuas analises incessantes, e que se comprometeu a servir os ideais daImortalidade, adquirindo a f que sempre lhe faltou?

    Senhor aludis a Charles Richet, reencarnada em Paris, em 1850,e que escolheu uma notabilidade da medicina para lhe servir de pai?.

    Justamente. Pelas noticias dos meus emissrios, apesar da suasinceridade e da sua nobreza, Richet no conseguiu adquirir os elementosde religiosidade que fora buscar, em favor do seu prximo. Tensconhecimento dos favores que o Cu lhe tem adjudicado, no transcurso dasua existncia?.

    Tenho, Senhor. Todos os vossos mensageiros lhe cercaram ainteligncia e a honestidade com o halo da vossa sabedoria. Desde osprimrdios das suas lutas na Terra, os Gnios da Imensidade o rodeiamcom o sopro divino de suas inspiraes. Dessa assistncia constante lhenasceram os poderes intelectuais, to cedo revelados no mundo. Suapassagem pelas academias da Terra, que serviu para excitar a potenciavibratria da sua mente, em favor da ressurreio do seu tesouro deconhecimentos, foi acompanhada pelos vossos emissrios com especialcarinho. Ainda na mocidade, lecionou na Faculdade de Medicina, obtendoa cadeira de Fisiologia. Nesse tempo, j seu nome, com os vossosauxlios, estava cercado de admirao e respeito. As suas produesgrangearam-lhe a venerao e a simpatia dos seus contemporneos. De1877 a 1884, publicou estudos notveis sobre a circulao do sangue,sobre a sensibilidade, sobre a estrutura das circunvolues celebrais, sobrea fisiologia dos msculos e dos nervos, perquirindo os problemas gravesdo ser, investigando no circulo de todas as atividades humanas,conquistando o seu nome a admirao universal.

    E em matria de espiritualidade, replicou austeramente oSenhor, que lhe deram os meus emissrios e de que forma retribuiu o seuesprito a essas ddivas?.

    Nesse particular, exclamou solicito o Anjo, muito lhe foi dado.Quando deixastes cair, mais intensamente, a vossa luz sobre os mistrios

  • que me envolvem, ele foi dos primeiros a receber-lhe os raios fulgurantes.Em Carqueiranne, em Milo e na ilha Roubaud, muitas claridades obafejaram, junto de Eusapia Paladino, quando o seu gnio se entregava aobservaes positivas, com os seus colegas Lodge, Myers e Sidwick. Deoutras vezes, com Delanne, analisou as celebres experincias de Alger,que revolucionaram os ambientes intelectuais e materialistas da Frana,que ento representava o crebro da civilizao ocidental.

    Todos os portadores das vossas graas levaram as sementes daVerdade sua poderosa organizao FSICA, apelando para o seucorao, afim de que cite afirmasse as realidades da sobrevivncia;povoaram-lhe as noites de severas meditaes, com as imagensmaravilhosas das vossas verdades, porm, apenas conseguiram que eleescrevesse o Tratado de Metapsquica e um estudo proveitoso, a favor daconcrdia humana, que lhe valeu o Premio Nobel da Paz, em 1913.

    Os mestres espirituais no desanimaram, nem descansaram nuncaem torno da sua individualidade; mas, apesar de todos os esforosdespendidos, Rechia viu, nas expresses fenomenolgicas de que foiatento observador, apenas a exteriorizaro das possibilidades de um sextosentido nos organismos humanos. Ele que fora o primeiro organizador deum dicionrio de fisiologia, no se resignou a ir alm das demonstraeshistolgicas. Dentro da espiritualidade, todos os seus trabalhos deinvestigador se caracterizam pela duvida que lhe martiriza apersonalidade. Nunca pode, Senhor, encarar as verdades imortalistas,seno como hiptese, mas o seu corao generoso e sincero.Ultimamente, nas reflexes da velhice, o grande lutador se veioinclinando para a f, at hoje inaccessvel ao seu entendimento deestudioso. Os vossos mensageiros conseguiram inspirar-lhe um trabalhoprofundo, que apareceu no planeta como A Grande Esperana e, nestesltimos dias, a sua formosa inteligncia realizou para o mundo umamensagem entusistica, em prol dos estudos espiritualistas.

    Pois bem, exclamou o Senhor, Richet ter de voltar agora apenates. Traze de novo aqui a sua individualidade, para as necessriasinterpelaes..

    Senhor, assim to depressa? retornou o Anjo, advogando acausa do grande cientista O mundo v em Richet um dos seus gniosmais poderosos, guardando nele sua esperana. No conviria protelar asua permanncia na Terra, afim de que ele vos servisse, servindo Humanidade?.

    No disse o Senhor tristemente. Se, aps oitenta e cincoanos de existncia sobre a face da Terra, no pode reconhecer, com a suacincia, a certeza da Imortalidade, desnecessria a continuao de suaestadia nesse mundo. Como recompensa aos seus esforos honestos embeneficio dos seus irmos em humanidade, quero dar-lhe agora, com opoder do meu amor, centelha divina da crena, que a cincia planetriajamais lhe concedeu, nos seus labores ingratos e frios..

    No leito de morte, Richet tem as plpebras cerradas e o corpo naposio derradeira, em caminho da sepultura. Seu esprito inquieto deinvestigador no dormiu o grande sono.

    H ali, cercando-lhe os despojos, uma multido de fantasmas.Gabriel Delanne estende-lhe os braos de amigo. Denis e

  • Flammarion o contemplam com bondade e carinho. Personalidadeseminentes da Frana antiga, velhos colaboradoras da Revista dosMundos cooperadores devotados dos Anais das Cincia Fsicas aliesto, para abraarem o mestre no limiar do seu tumulo.

    Richet abre os olhos para as realidades espirituais que lhe eramdesconhecidas. Parece-lhe haver retrocedido s materializaes da VilaCarmem; mas, ao seu lado, repousam os seus despojos, cheios de detalhesanatmicos. O eminente fisiologista reconhece-se no mundo dosverdadeiros vivos. Suas percepes esto intensificadas, suapersonalidade a mesma e, no momento em que volve a ateno para aatitude carinhosa dos que o rodeiam, ouve uma voz suave e profundafalando do Infinito:

    Richet, exclama o Senhor no tribunal da sua misericrdia,porque no afirmaste a Imortalidade, e porque desconheceste o meu nomeno teu apostolado de missionrio da cincia e do labor? Abri todas asportas de ouro que te poderia reservar sobre o mundo. Perquiriste todos oslivros. Aprendeste e ensinaste, fundaste sistemas novos do pensamento, base das duvidas dissolventes. Oitenta e cinco anos se passaram,esperando eu que a tua honestidade me reconhecesse, sem que a fdesabrochasse em teu corao... Todavia, decifraste, com o teu esforoabenoado, muitos enigmas dolorosos da cincia do mundo e todos osteus dias representaram uma sede grandiosa de conhecimentos... Mas, eis,meu filho, onde a tua razo positiva inferior revelao divina da f.Experimentaste as torturas da morte com todos os teus livros e diante deladesapareceram os teus compndios, ricos de experimentaes no campodas filosofias e das cincias. E agora, premiando os teus labores, eu teconcedo os tesouros da f que te faltou, na dolorosa estrada do mundo!.

    Sobre o peito do abnegado apostolo, desce do Cu um punhal de luzopalina, como um vernbulo maravilhoso de luar indescritvel.

    Richet sente o corao tocado de luminosidade infinita emisericordiosa, que as cincia nunca lhe haviam dado. Seus olhos soduas fontes abundantes de lagrimas de reconhecimento ao Senhor. Seuslbios, como se voltassem a ser os lbios de um menino recitam o PaiNosso que estais no Cu....

    Formas luminosas e areas arrebatam-no, pela estrada de Eder daeternidade e, entre prantos de gratido e de alegria, o apostolo da cinciacaminhou da grande esperana para a certeza divina da Imortalidade.

    Pedro Leopoldo, 21 de janeiro de 1936..

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • HAUPTMANN

    Humberto de Campos

    Na Casa da Morte, em Trenton, Bruno Richard Hauptmanndesfolha, pela ltima fez, o calendrio de suas recordaes. de tarde. Ocondenado sente esvaecer-se-lhe a derradeira esperana. J no h maispossibilidade de adiamento da execuo depois das decises do GrandeJri de Mercer, e o caso Wendel representava o nico elemento quemodificaria o eplogo doloroso da tragdia de Hopewell. O governador doEstado de Nova Jrsey j havia desempenhado a sua imitao de Pilatos, eo senhor Kimberling nada mais poderia realizar que o cumprimentoaustero das leis que condenaram o carpinteiro alemo cadeira eltrica.

    Hauptmann sente-se perdido diante do irresistvel e chora,protestando a sua inocncia. Recapitula a srie de circunstncias que oconduziram situao de indigitado matador do baby Lindenbergh, eespera ainda que a justia dos homens reconhea o seu erro, salvando-o, ltima hora, das mos do carrasco. Mas a justia dos homens est cega;tateando na noite escura de suas vacilaes, no viu seno a ele, noamontoado das sombras.

    A polcia norte-americana precisava que algum viesse barra doTribunal responder-lhe por um crime nefando, satisfazendo assim asexigncias da civilizao, salvaguardando o seu renome e a suaintegridade.

    E o carpinteiro de Bronx, o olhar marcado de lgrimas, recorda ospequenos episdios da sua existncia. A sua velha humilde de Kamentz; oideal da fortuna nas terras americanas, a esposa aflita e desventurada e aimagem do filhinho, brincando nas suas pupilas cheias de pranto,Hauptmann esquece-se ento dos seus nervos de ao e da sua serenidadeperante as determinaes da justia, e chora convulsivamente, enfrentandoos mistrios silenciosos da Morte. Paira no seu crebro a desiluso detodo o esforo diante da fatalidade e, sentindo o escoamento dos seusderradeiros minutos, foge espiritualmente do torvelinho das coisashumanas para se engolfar nas meditaes das coisas de Deus. Suas moscansadas tomam a Bblia do padre Werner e o seu esprito excursiona nolabirinto das lembranas. Ao seu crebro atormentado voltam as oraesaprendidas na infncia, quando sua me lhe punha na boca os salmos deDavi e o santo nome de Deus. Depois disso ele viera para o mundo largo,onde os homens se devoram uns aos outros no crculo nefasto dasambies. Suas preces de menino se perderam como restos de umnaufrgio em noite de procela. Ele no conhecera nenhum apstolo ejamais lhe mostraram, no turbilho escuro das lutas humanas, uma figuraque se assemelhasse quele Homem Suave dos Evangelhos; entretanto,nunca como naquela hora, ele sentiu tanto o desejo de ouvir-lhe a palavrasedutora do Sermo da Montanha. Aos seus ouvidos ecoavam asderradeiras notas daquele cntico de glorificao aos bem-aventurados do

  • mundo, pronunciado num crepsculo, h dois mil anos, para aqueles que avida condenou ao infortnio e uma voz misteriosa lhe segredava aosouvidos os segredos da cruz, cheia de belezas ignoradas. Hauptmann tomao captulo do salmo XXIII e repete com o profeta: O Senhor o meuPastor, nada me faltar..

    O relgio da Penitenciria prosseguia, decifrando os enigmas dotempo, e o carrasco j havia chegado para o seu terrvel mister. Cinqentatestemunhas ali se conservavam para presenciar a cena do supremodesrespeito pelas vidas humanas. Mdicos, observadores das atividadesjudicirias, autoridades e guardas, ali se reuniam para encerrartragicamente um drama sinistro que emocionou o mundo inteiro.

    O condenado, hora precisa, cabelos raspados a mquina zero e acala fundida para que a execuo no falhasse, entra, calado e sereno, naCmara da Morte. Havia no seu rosto um suor pastoso como o dosagonizantes. Nenhuma slaba se lhe escapou da garganta silenciosa.Contemplou calmamente o olhar curioso e angustiado dos que orodeavam, representando ironicamente o testemunho das leis humanas.No seu peito no havia o perdo de Cristo para os seus verdugos, mas umvulco de prantos amargos torturava-lhe o ntimo nos instantesderradeiros; considerando toda inutilidade de ao, diante do Destino e daDor, deixou-se amarrar poltrona da morte enquanto os seus olhostangveis no viam mais os benefcios alegres da claridade, mergulhando-se nas trevas compactas em que iam entrar.

    Elliot imprime o primeiro movimento roda fatdica, correnteseltricas anestesiam o crebro do condenado, e, dentro de quatro minutos,pelo preo mesquinho de alguns centavos, os Estados Unidos da Amricado Norte exercem a sua justia, no obstante as dvidas tremendas quepairam sobre a culpabilidade do homem sobre cuja cabea recaram osrigores de suas sentenas.

    Muito se tem escrito sobre o doloroso drama de Hopewell.Os jornais de todo o mundo focalizaram o assunto, e as estaes de

    rdio encheram a atmosfera com as repercusses dessa histriaemocionante; no demais, portanto, que um morto se interesse poresse processo que apaixonou a opinio pblica mundial. No para exercera funo de revisor dos erros judicirios, mas para extrair a lio daexperincia e o benefcio do ensinamento.

    As leis penais da Amrica do Norte no possuam elementoscomprobatrios da culpa do Bruno Hauptmann como autor do nefandoinfanticdio. Para conduzi-lo cadeira da morte no se prevaleceu senodos argumentos dubitativos, inadmissveis dentro da cultura jurdica dostempos modernos.

    Muitas circunstncias preponderavam no desenrolar dosacontecimentos, e que no foram tomadas na considerao que lhes eradevida. A histria de Isidoro Fisch, a ao de Betty Cow e de ViolettaScharp, a leviandade das acusaes de Jafzie Condon e a dvida profundaempolgando todos os coraes que acompanharam, em suas etapasdolorosas, o desdobramento desse processo sinistro.

    Mas em tudo isso, nessa tragdia que feriu cruelmente asensibilidade crist, h uma justia pairando mais alto que todas asdecises dos tribunais humanos, somente acessvel aos que penetraram o

  • escuro mistrio da Vida, no ressurgimento das reencarnaes.Hauptmann sacrificado na sua inocncia, Harold Hoffmann com

    desprestgio poltico perante a opinio pblica do seu pas e Lindbergh,heri de um sculo, dolo do seu pas e um dos homens mais afortunadosdo mundo, fugindo de sua terra a bordo do American Importer, ondequase lhe faltava o conforto mais comezinho, como se fora um criminosovulgar, so personalidades interpeladas na Terra pela Justia Suprema.

    Nos mundos e nos espaos h uma figura de Argos observandotodas as coisas. No seu tribunal do direito absoluto a Tmis divinaarquiteta a trama dos destinos de todas as criaturas. E s nessa Justiapode a alma guardar a sua esperana, porque o direito humano, quasesempre filho da supremacia da fora, s vezes falho de verdade e desabedoria.

    Dia vir em que a justia humana compreender a extenso do seuerro, condenando um inocente. As autoridades jurdicas h/ao de sepreparar para a enunciao de uma nova sentena, mas o processo tersubido integralmente para a alada da equidade suprema. Debalde osjuzes da Terra tentaro restabelecer a realidade dos fatos com os recursosde sua tardia argumentao, porque nesse dia, quando Bruno RichardHauptmann for convocado para o ltimo depoimento em favor do resgatede sua memria, o carpinteiro de Bronx, que os homens eletrocutaram,no passar de um punhado de cinzas.

    6 de abril de 1936

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • A ORDEM DO MESTRE

    Humberto de Campos

    Avizinhando-se o Natal, havia tambm no Cu um rebulio dealegrias suaves. Os Anjos acendiam estrelas nos cmodos de neblinasdouradas e vibravam no ar as harmonias misteriosas que encheram um diade encantadora suavidade a noite de Belm. Os pastores do parasocantavam e, enquanto as harpas divinas tangiam suas cordas sob o esforocaricioso dos zfiros da imensidade, o Senhor chamou o Discpulo Bem-Amado ao seu trono de jasmins matizados de estrelas.

    O vidente de Patmos no trazia o estigma da decrepitude como nosseus ltimos dias entre as Esprades. Na sua fisionomia pairava aquelamesma candura adolescente que o caracterizava no princpio do seuapostolado.

    - Joo disse-lhe o Mestre lembras-te do meu aparecimento naTerra?

    - Recordo-me, Senhor. Foi no ano 749 da era romana, apesar daarbitrariedade de Frei Dionsios, que colocou erradamente o vossonatalcio em 754.

    - No, meu Joo retornou docemente o Senhor no a questocronolgica que me interessa em te argindo sobre o passado. quenessas suaves comemoraes vem at mim o murmrio doce daslembranas!...

    - Ah! Sim, Mestre Amado retrucou pressuroso o Discpulo compreendo-vos. Falais da significao moral do acontecimento. Oh!...Seme lembro... A manjedoura, a estrela guiando os poderosos ao estbulohumilde, os cnticos harmoniosos dos pastores, a alegria ressoante dosinocentes, afigurando-se-nos que os animais vos compreendiam mais queos homens, aos quais ofertveis a lio da humildade com o tesouro da fe da esperana. Naquela noite divina, todas as potncias anglicas doparaso se inclinaram sobre a Terra cheia de gemidos e de amargura paraexaltar a mansido e a piedade do Cordeiro. Uma promessa de pazdesabrochava para todas as coisas com o vosso aparecimento sobre omundo. Estabelecera-se um noivado meigo entre a Terra e o Cu erecordo-me do jbilo com que Vossa Me vos recebeu nos seus braosfeitos de amor e de misericrdia. Dir-se-ia, Mestre, que as estrelas de ourodo paraso fabricaram, naquela noite de aromas e de radiosidadesindefinveis um mel divino no corao piedoso de Maria!...

    Retrocedendo no tempo, meu Senhor bem-amado, vejo o transcursoda vossa infncia, sentindo o martrio de que fostes objeto; o extermniodas crianas de Vossa idade, a fuga nos braos carinhosos da Vossaprogenitora, os trabalhos manuais em companhia de Jos, as vossas visesmaravilhosas no Infinito, em comunho constante com o Vosso e nossoPai, preparando-Vos para o desempenho da misso nica que Vos fezabandonar por alguns momentos os palcios de sol da manso celestial

  • para descer sobre as lamas da Terra.- Sim, meu Joo, e, por falar nos meus deveres, como seguem no

    mundo as coisas atinentes minha doutrina?- Vo mal, meu Senhor. Desde o conclio ecumnico de Nicia,

    efetuado para combater o cisma de Ario em 325, as vossas verdades sodeturpadas. Ao arianismo seguiu-se o movimento dos iconoclastas em 787e tanto contrariaram os homens o Vosso ensinamento de pureza e desimplicidade, que eles prprios nunca mais se entenderam nainterpretao dos textos evanglicos.

    - Mas no te recordas, Joo, que a minha doutrina era sempreacessvel a todos os entendimentos? Deixei aos homens a lio docaminho, da verdade e da vida sem lhes haver escrito uma s palavra.

    - Tudo isso verdade, Senhor, mas logo que regressastes aos vossosimprios resplandecentes, reconhecemos a necessidade de legar posteridade os vossos ensinamentos. Os evangelhos constituem a vossabiografia na Terra; contudo, os homens no dispensam, em suasatividades, o vu da matria e do smbolo. A todas as coisas puras daespiritualidade adicionam a extravagncia de suas concepes. Nem ns enem os evangelhos poderamos escapar. Em diversas baslicas de Rvenae de Roma, Mateus representado por um jo0vem, Marcos por um leo,Lucas por um touro e eu, Senhor, estou ali sob o smbolo estranho de umaguia.

    - E os meus representante, Joo, que fazem eles?- Mestre, envengonho-me de o dizer. Andam quase todos

    mergulhados nos interesses da vida material. Em sua maioria, aproveitam-se das oportunidades para explorar o vosso nome e, quando se voltampara o campo religioso, quase que apenas para se condenarem uns aosoutros, esquecendo-se de que lhes ensinastes a se amarem como irmos.

    - As discusses e os smbolos, meu querido disse-lhe suavementeo Mestre no me impressionam tanto. Tiveste, como eu, necessidadedestes ltimos, para as predicaes e, sobre a luta das idias, no telembras quanta autoridade fui obrigado a despender, mesmo depois daminha volta da Terra, para que Pedro e Paulo no se tornassem inimigos?Se entre meus apstolos prevaleciam semelhantes desunies, comopoderamos elimin-las do ambiente dos homens, que no me viram,sempre inquietos nas suas indagaes? ... O que me contrista o apegodos meus missionrios aos prazeres fugitivos do mundo!

    - verdade, Senhor.- Qual o ncleo de minha doutrina que detm no momento maior

    fora de expresso?- o departamento dos bispos romanos, que se recolheram dentro

    de uma organizao admirvel pela sua disciplina, mas altamenteperniciosa pelos seus desvios da verdade. O Vaticano, Senhor, que noconheceis, um amontoado suntuoso das riquezas das traas e dos vermesda Terra. Dos seus palcios confortveis e maravilhosos irradia-se todoum movimento de escravizao das conscincias. Enquanto vs notnheis uma pedra onde repousar a cabea, dolorida os vossosrepresentantes dormem a sua sesta sobre almofadas de veludo e de ouro;enquanto trazeis os vossos ps macerados nas pedras do caminhoescabroso, quem se inculca como vosso embaixador traz a vossa imagem

  • nas sandlias matizadas de prolas e de brilhantes. E junto de semelhantessuperfluidades e absurdos, surpreendemos os pobres chorando de cansaoe de fome; ao lado do luxo nababesco das baslicas suntuosas, erigidas nomundo como um insulto glria da vossa humildade e do vosso amor,choram as crianas desamparadas, os mesmos pequeninos a quemestendeis os vossos braos compassivos e misericordiosos. Enquantosobram as lgrimas e os soluos entre os infortunados, nos templos, ondese cultua a vossa memria, transbordam moedas em mos cheias,parecendo, com amarga ironia, que o dinheiro uma defecao dodemnio no cho acolhedor da vossa casa.

    - Ento, meu Discpulo, no poderemos alimentar nenhumaesperana?

    - Infelizmente, Senhor, preciso que nos desenganemos. Por umestranho contraste, h mais ateus benquistos no Cu do que aquelesreligiosos que falavam em vosso nome na Terra.

    - Entretanto sussurraram os lbios divinos docemente consagroo mesmo amor humanidade sofredora. No obstante a negativa dosfilsofos, as ousadias da cincia, o apodo dos ingratos, a minha piedade inaltervel... Que sugeres, meu Joo, para solucionar to amargoproblema?

    - J no dissestes, um dia, Mestre, que cada qual tomasse a sua cruze vos seguisse?

    - Mas prometi ao mundo um Consolador em tempo oportuno!...E os olhos claros e lmpidos, postos na viso piedosa do amor de

    seu Pai Celestial, Jesus exclamou:- Se os vivos nos traram, meu Discpulo Bem-Amado, se traficam

    com o objeto sagrado da vossa casa, profligando a fraternidade e o amor,mandarei que os mortos falem na Terra em meu nome. Deste Natal emdiante, meu Joo, descerrars mais um fragmento dos vus misteriososque cobrem a noite triste dos tmulos para que a verdade ressurja dasmanses silenciosas da Morte. Os que j voltaram pelos caminhos ermosda sepultura retornaro Terra para difundirem a minha mensagem,levando aos que sofrem, coma esperana posta no Cu as claridadesbenditas do meu amor!...

    E desde essa hora memorvel, h mais de cinqenta anos, oEspiritismo veio, com as suas lies prestigiosas, felicitar e amparar naTerra a todas as criaturas.

    Pedro Leopoldo 20 de dezembro de 1935.

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • OH JERUSALM ... OH JERUSALM...

    Humberto de Campos

    possvel a estranheza dos que vivem na Terra com respeito atitude dos desencarnados, esmiuando-lhes as questes e opinando sobreos problemas que os inquietam.

    lgico, porm, que os recm libertos do mundo falem mais com oseu cabedal de experincias do passado, que com a sua cincia dopresente, adquirida custa de faculdades novas, que o homem no estainda altura de compreender.

    Podem imaginar-se na Terra determinadas condies da vida sobre asuperfcie de Marte; mas, o que interessa, por enquanto, ao mundosemelhantes descobertas, se os enigmas que o assoberbam ainda noforam decifrados? Para o exilado da Terra, no vale a psicologia dohomem desencarnado. Tateando na priso escura da sua vida, seria quaseum crime aumentar-lhe as preocupaes e ansiedades. Eu teria muitascoisas novas a dizer, todavia, apraz-me, com o objeto de me fazercompreendido, debruar nas bordas do abismo em que andei vacilando,subjugado nos tormentos, perquirindo os seus logogrifos inextricveispata arrancar as lies da sua inutilidade.

    Tambm o homem nada tolera que venha infringir o mtodo da suarotina.

    Presumindo-se rei na criao, no admite as verdades novas queesfacelam a sua coroa de argila. Os mortos, para serem reconhecidos,devero tanger a tecla da mesma vida que abandonaram.

    Isso intuitivo.O jornalista, para alinhavar os argumentos da sua crnica, busca os

    noticirios , aproveita-se dos acontecimentos do dia, tirando a sua ilaodas ocorrncias ,do momento.

    E meu esprito volve a contemplar o espetculo angustioso dessaAbissnia, abandonada no seio dos povos, como o derradeiro reduto daliberdade de uma raa infeliz, cobiada pelo imperialismo do sculo,lembrando-me de Castro Alves nas suas amarguradas "Vozes d'frica": .

    Deus, Deus, onde ests que no respondes? Em que mundo, emque estrela tu te escondes,

    Embuado nos cus?H dois mil anos te mandei meu grito,Que embalde, desde ento, corre o infinito.Onde ests, Senhor Deus?

    Da Roma poderosa partem as caravanas de guerreiros. Cartagoagoniza no seu desgraado herosmo. Pblio Cornlio consegue a maisestrondosa das vitrias. Os crebros dos patrcios ilustres embriagam-seno vinho do triunfo: e nas galeras suntuosas, onde as guias simbolizam o

  • orgulhoso poder da Roma eterna, lamentam-se os escravos nos seusnefandos martrios.

    Os Csares enchem a Cidade das Sabinas de trofus e glrias. Todosos deuses so venerados. Os pases so submetidos e os povos entoam ohino da obedincia senhora do mundo. .

    J no se ouve a melodiosa flauta de P nos bosques da Tesslia enas margens do Nilo apagam-se as luzes dos mais suaves mistrios.

    Vtima, porm, dos seus prprios excessos, o grande imprio vapressar-se a sua decadncia. No esboroamento dos sculos, a invencvelpotncia dos Csares um monto de runas. Sobre os seus mrmoressuntuosos aumentam as destruies.

    Roma dormiu o seu grande sono.Ei-la, contudo, que desperta.Mussolini deixa escapar um grito do seu peito de ferro e a Roma

    antiga acorda do letargo, reconhecendo a perda dos seus imensosdomnios.

    Urge, porm, recuperar o poderio, empenhando-se em alargar o seuimprio colonial. Onde e como? O mundo est cheio de leis, de tratadosde amparo recproco entre as naes.

    A Frana j ocupou todos os territrios ao alcance das suaspossibilidades, a Alemanha est fortificada para as suas aventuras, o Japotem as suas vistas sobre a China, e a Inglaterra, calculista e poderosa, nopode ceder um milmetro no terreno das suas conquistas.

    Mas, Roma quer a expanso da sua fora econmica e prepara-separa roubar a derradeira iluso de um povo desgraado, ao qual no bastaa lembrana amarga dos cativeiros multisseculares, julgando-se livre naobscura faixa de terra para onde recuou, batido pela crueldade daspotncias imperialistas.

    Que mal fizeste civilizao corrompida dos brancos, pequenaAbissnia, grande pela expresso resignada do teu ardente herosmo?

    Como pudeste, das areias calcinantes do deserto, onde apuras o teuesprito de sacrifcio, penetrar nas instituies europias, provocando afria das suas armas?

    Deixa que passem sob o teu sol de fogo as hordas de vndalos,sedentas de chacina e de sangue.

    Sobre as tuas esperanas malbaratadas derramar o Senhor operfume da sua misericrdia. Os humildes tm o seu dia de bem-aventurana e de glria.

    No importa sejas o joguete dos caprichos condenveis dos teusverdugos, porque sobre o mundo todas as frontes orgulhosas desceram dopinculo da sua grandeza para o esterquilnio e para o p.

    Se tanto for preciso, recebe sobre os teus ombros a mortalha desangue, porque, junto do maravilhoso imprio da civilizao apodrecidados brancos, ouve-se a voz lamentosa de um novo Jeremias: -Jerusalm!... Jerusalm!...

    Recebida em Pedro Leopoldo a 11 de agosto de 1935

    Do livro Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cndido Xavier.

  • UM CPTICO

    Humberto de Campos

    Ainda no me encontro bastante desapegado desse mundo para queno me sentisse tentado a voltar a ele, no dia que assinalou o meudesprendimento da carcaa de ossos.

    Se o vinte e sete de outubro marcou o meu ingresso no reino dassombras, que a vida da, o cinco de dezembro representou a. minha voltaao pas de claridades benditas, cujas portas de ouro so escancaradas pelasmos poderosas da morte.

    Nessa noite, o ambiente do cemitrio de So Joo Batista pareciasufocante. Havia um "qu" de mistrios, entre catacumbas silenciosas, queme enervava, apesar da ausncia dos nervos tangveis no meu corpoestranho de esprito. Todavia, toquei as flores cariciosas que a Saudademe levara, piedosa e compungidamente. O seu aroma penetrava o meucorao como um consolo brando, conduzindo-me, num retrospectomaravilhoso, s minhas afeies comovidas, que haviam ficado adistncia.

    E foi entregue a essas cogitaes, a que so levados os mortosquando penetram o mundo dos vivos, que vi, acocorado sobre a terra, umdos companheiros que me ficavam prximos ao bangal subterrneo comque fui mimoseado na terra carioca. .

    - O senhor o dono desses ossos que esto por a apodrecendo? -interpelou-me.

    - Sim, e a que vem a sua pergunta?- Ora, que me lembro do dia de sua chegada ao seu palacete

    subterrneo. Recordo-me bem, apesar de sair pouco dessa toca para ondefui relegado h mais de trinta anos... - O senhor se lembra? A urnafunerria, portadora dos seus despojos, saiu solenemente da Academia deLetras, altas personalidades da poltica dominante se fizeram representarnas suas exquias e ouvi sentidos panegricos pronunciados em suahomenagem. Muito trabalho tiveram as mquinas fotogrficas nacamaradagem dos homens da imprensa e tudo fazia sobressair importncia do seu nome ilustre. Procurei aproximar-me de si e notei queas suas mos, que tanto haviam acariciado o espadim acadmico, estavaminermes e que os seus miolos, que tanto haviam vibrado, tentandoaprofundar os problemas humanos, estavam reduzidos a um punhado demassa informe,onde apenas os vermes encontrariam algo de til.Entretanto, embora as homenagens, as honrarias, a celebridade, o senhorveio humildemente repousar entre as tbias e os meros daqueles que oantecederam na jornada da Morte. Lembra-se o senhor de tudo isso?

    - No me lembro bem... Tinha o meu esprito perturbado pelas dorese emoes sucessivas.

    - Pois eu me lembro de tudo. Daqui, quase nunca me afasto, comoum olho de Argos, avivando a memria dos meus vizinhos. O senhor

  • conhece as criptas de Palermo?- No.- Pois nessa cidade os monges, um dia, conjugando a piedade com o

    interesse, inventaram um cemitrio bizarro. Os mortos eram mumificadose no baixavam sepultura. Prosseguiam de p a sua jornada de silncio ede nudez espantosa. Milhares de esqueletos ali ficaram, em marcha,vestidos ao seu tempo, segundo os seus gostos e opinies. Muito rumorcausou essa parada de caveiras e de canelas, at que um dia um inspetorda higiene, visitando essa casa de sombras da vida e enojado com apresena dos ratos que roam displicentemente as costelas dostraspassados ricos e ilustres que se davam ao gosto de comprar ali umlugar de descanso, mandou cerrar-lhe as portas pelo ministro Crispi, em1888. Ora bem: eu sou uma espcie dos defuntos de Palermo. Aqui estousempre de p, apesar dos meus ossos estarem dissolvidos na terra, onde seencontraram com os ossos dos que foram meus inimigos.

    - A vida assim -disse-lhe eu; mas, por que se d o amigo a essainglria tarefa na solido em que se martiriza? No teria vindo do orbecom bastante f, ou com alguma credencial que o recomendasse a estemundo cujas fileiras agora integramos? -

    Credenciais? Trouxe muitas. Alm da honorabilidade de velhopoltico do Rio de Janeiro, trazia as insgnias da minha f catlica,apostlica romana. Morri com todos os sacramentos da igreja ; porm,apesar das palavras sacramentais, da liturgia e das felicitaes doshissopes, no encontrei viva alma que me buscasse para o caminho doCu, ou mesmo do inferno. Na minha condio de defuntoincompreendido, procurei os templos catlicos, que certamente estavamna obrigao de me esclarecer. Contudo, depressa me convenci dainutilidade do meu esforo. As igrejas esto cheias de mistificaes. SeJesus voltasse agora ao mundo, no poderia tomar um tomo de tempopregando as virtudes crists, na base, luminosa da humildade. Teria detomar, incontinenti, ao regressar a este mundo, um ltego do fogo etrabalhar anos afio no saneamento de sua casa. Os vendilhes esto muitomultiplicados e a poca no comporta mais o Sermo da Montanha. O quese faz necessrio, no tempo atual, no tocante a esse problema, a creolinade que falava Guerra Junqueiro nas suas blasfmias.

    - Mas, o irmo est muito ctico. preciso esperana e crena...-Esperana e crena? No acredito que elas salvem o mundo, com

    essa gerao de condenados. Parece que maldies infinitas perseguem amoderna civilizao. Os homens falam de f e de religio, dentro doesnobismo e da elegncia da poca. A religio para uso externo,perdendo-se o esprito nas materialidades do sculo. As criaturas parecemmuito satisfeitas sob a tutela estranha do diabo. O nome de Deus, naatualidade, no deve ser evocado seno como mscara para que osenigmas do demnio sejam resolvidos.

    No estamos ns aqui dentro da terra da Guanabara, paraso dosturistas, cidade maravilhosa? Percorra o senhor, ainda depois de morto, asgrandes