04 · Revolução mexicana, origens e significado histórico. ... da personalidade de Embaixador...

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04 Nesta Edição: DOSSIÊ: Países Invisíveis Olhares sobre o Brasil PERFIL ESPECIAL: O negociador Paulo Nogueira Batista ENSAIOS FOTOGRáFICOS: Ásia Vestígios Zanzibar

Transcript of 04 · Revolução mexicana, origens e significado histórico. ... da personalidade de Embaixador...

04Nesta Edição:DOSSIÊ:

Países InvisíveisOlhares sobre o Brasil

PERFIL ESPECIAL:O negociadorPaulo Nogueira Batista

ENSAIOS FOtOgRáFICOS:ÁsiaVestígiosZanzibar

editoresdos

editoresdos

Reunidos em torno da mesa, somos um bom número de colegas da turma de 2009-2011 do Instituto Rio Branco. Pedimos comida chinesa – mal nos conhecemos, temos certa dificuldade em obter consenso quanto às porções a serem divididas – e começamos a conceber a revista que o leitor tem em mãos. Todos fazemos concessões – frango agridoce ou filé com broto de bambu? –, mas saímos satisfeitos. Um ano depois do início da empreitada, acumulamos tempo razoável de convivência pessoal e profissional quase diária, mas percebemos que os consensos não ficaram mais fáceis. A primeira lição: cada um de nós tem uma história, uma formação e uma opinião, e é por isso que juntos somos fortes. Nascemos em diferentes anos e em diferentes terras, temos sotaques e predileções distintos, e compartilhamos a incumbência de representar o mesmo país. Somos díspares, e aprendemos a ver nisso o potencial para, juntos, irmos mais longe; além dos respectivos horizontes. Essa percepção é acentuada pelas propostas de artigos recebidas. Encantamo-nos com a manifestação dos interesses de nossos colegas, tão distintas quanto podem ser uma atualização do pensamento de Lênin e notas sobre a obra de Villa-Lobos; o resgate da memória diplomática na forma da biografia do Embaixador Paulo Nogueira Batista e a constatação, por meio dos perfis das Embaixadoras brasileiras junto à ONU, de que as mulheres vêm paulatinamente conquistando espaço na carreira cujo predomínio masculino é histórico. Um conto sobre um hipotético encontro entre Rui Barbosa e Joaquim Nabuco e poemas de amor. Ao fim, contabilizamos contribuições que podem oferecer elementos instigantes para algumas questões candentes do nosso tempo – e, simultaneamente, um panorama da fascinante diversidade que matiza a turma de 109 diplomatas admitidos no Itamaraty no ano de 2009. Apesar das boas surpresas, diversas decisões concernentes à presente edição de JUCA foram objeto de impasses, contornados por meio do único sistema que permite, a um só tempo, a resolução dos problemas, a manutenção da coesão do grupo e a acomodação das divergências: o debate aberto. Daí, o segundo aprendizado: a necessidade de negociar sempre, buscando compreender o ponto de vista alheio – e aceitá-lo, quando na posição de voto vencido. Procuramos manter a tradição de inovação legada pelas gerações de editores de JUCA que nos precederam: concebemos um CD para acompanhar a revista, mas a ideia não se materializou. Por outro lado, colocamos na Internet o sítio da publicação, com todas as edições disponíveis – a garantia de que eventuais barreiras físicas não limitarão a criatividade dos futuros jucanos. Depois de tanto trabalho e tantas lições, percebemos que em muitos aspectos concluir um trabalho coletivo de fôlego não é tão diferente de pedir comida chinesa. Todos fizemos concessões, mas saímos satisfeitos.

expediente

sumárioDiretor Honorário:

Embaixador georges Lamazière

Editor-Chefe: Bruno Carvalho ArrudaDiretora Executiva: tainá guimarães AlvarengaEditoria JUCA OnLine: Paula Cristina Pereira gomesEditoria do Dossiê: Patrick Luna e thomaz Alexandre Mayer NapoleãoEditoria de Perfis: Leonardo Wester dos Santos RibeiroEditoria de Artigos: Larissa Schneider Calza e Felipe garcia gomesEditoria de Textos Literários e Ensaios Fotográficos: Juliana de Moura gomesEditoria de Cultura: William Silva dos SantosDiretor Gráfico: Hélio Maciel de Paiva NetoDiretor Financeiro: Cauê Oliveira FanhaDiretor Jurídico: Marcelo Adrião BorgesRelações Públicas: Francisco Nelson de Almeida Linhares Junior e Paula Cristina Pereira gomes

Direção de arte e diagramação: Raimundo Aragão

Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Luiz Nunes AmorimMinistro de Estado Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Embaixador Samuel Pinheiro GuimarãesEmbaixador Hildebrando Tadeu Nascimento ValadaresEmbaixador Everton Vieira VargasEmbaixadora Maria Luiza ViottiEmbaixador Paulo Cordeiro de Andrade PintoEmbaixador Antônio José Ferreira SimõesEmbaixadora Maria Nazareth Farani AzevedoEmbaixadora Regina Maria Cordeiro DunlopEmbaixadora Maria Laura da RochaEmbaixador Hadil Fontes da Rocha ViannaMinistro Carlos Sérgio Sobral DuarteMinistro Anuar NahesMinistro Paulo Roberto Caminha de Castilhos FrançaMinistra Maria Clara Duclos CarisioMinistro Sérgio Barreiros de Santana AzevedoSecretário Rodrigo de Oliveira Castro

Secretários Adriana Farias, Aminthas Angel Cardoso San-tos Silva, Gérson Cruz Gimenes, Márcia Canário de Oliveira e Márcio Porto e todos os que contribuiram, com textos, ideias, estímulo ou de outras formas, para a JUCA 04.Adrienne Senna JobimDona Elmira Nogueira Batista, pelas memórias e fotos compartilhadas, e seus filhos – Maria Isabel, João e Olavo – pelos depoimentos. Éveri Sirac NogueiraVinícius de Assumpção VieiraPaulo Leonardo Raimundo FerreiraPedro Belchior e Museu Villa-LobosAcademia Brasileira de MúsicaAssessoria de Imprensa do Gabinete – MREProfessoras e professores de línguas do Instituto Rio BrancoSecretaria do Instituto Rio BrancoEquipes JUCA 01, JUCA 02 e JUCA 03Editora e Gráfica Brasil

agradecimentos:

PERFIS O negociador – Um perfil do Embaixador Paulo Nogueira Batista. Lucas Oliveira Barbosa Lima De frente com Samuca. Bianca Sotelino Dinatale e Eden Clabuchar Martingo

Marias do Brazil. Melina Espeschit Maia e Tainá Guimarães Alvarenga

DOSSIÊ: PAíSES INvISívEIS - OLHARES SOBRE O BRASIL

Apresentação

Primeiras impressões. Delegados estrangeiros na Aliança das Civilizações falam sobre o Brasil.

Babel em Brasília. Hélio Maciel de Paiva Neto

Que país é esse? Filipe Nasser

O cônsul que desceu o São Francisco de canoa, observou a Guerra do Paraguai e traduziu Camões. Thiago Tavares Vidal

Dize-me quem és e te direi com quem andas. Thomaz Alexandre Mayer Napoleão

PAíS vISívEL: O PERCEBIDO BRASIL DO FutEBOL

Apresentação

A construção do Brasil do futebol. Hugo de Oliveira Lopes Barbosa Pereira Pinto

O país melhor do que si mesmo. Felipe Garcia Gomes

ENSAIOS FOtOgRáFICOS Ásia. Thomaz Alexandre Mayer Napoleão

Vestígios. Milena Oliveira de Medeiros Zanzibar. Thiago Tavares Vidal

ARtIgOSLênin, a essa hora? Carlos Henrique Pissardo

Revolução mexicana, origens e significado histórico. William Silva dos Santos

Uso coercitivo da força em ações humanitárias: em favor das vítimas? Márcia Canário de Oliveira

Um debate incoveniente: as turmas de cem e o concurso para diplomata. João Carlos Falzeta Zanini

CuLtuRA As batalhas do Bobo Plin. Eden Clabuchar Martingo

As vantagens do lodaçal. Wellington Muller Bujokas

tExtOS LItERáRIOSConfeitaria Custódio. Jean Rodolfo Madruga Taruhn

Poemas. Marcelo Koiti Hasunuma

Notas de aula. Lourenço Felipe Dreyer

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Um perfil do Embaixador Paulo Nogueira Batista

O negociador

Houve um tempo em que a alta cúpula do Itamaraty de hoje - do Ministro de Estado a Diretores de Departamento ou Chefes de Divisão - era ainda um grupo de jovens recém-ingressados na carrei-ra diplomática, tendo a experiência de trabalhar com seu primeiro chefe. E se ele fosse o Embaixador Paulo Nogueira Batista (PNB, como era chamado por muitos colegas), tinha-se a certeza de um desafio. Em 1968, foi o primeiro Secretário de Planejamento Diplomático do Ministério, assessorado pelos então secretários Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães. Em 1986, PNB convidou o atual Embaixador Antonio Simões para sua primeira remoção a Genebra, para lá substituir um secretário que acabava de ser removido para Pequim, o atual Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Antonio Patrio-ta. Ao fazer a série de entrevistas com diplomatas da Casa para montar o quebra-cabeça da imagem e da personalidade de Embaixador PNB, falecido em 1994, nota-se, em cada entrevistado, a saudade de um diplomata que exerce, ainda hoje, influência muito forte no MRE, embora poucos a percebam.

“O Paulo Nogueira Batista foi um diplomata com uma caracte-

rística muito rara entre os diplomatas. Há aqueles que exercem

uma grande influência sobre um assunto, outros que o fazem

sobre a relação entre dois países ou duas regiões. Mas ele teve

influência sobre a situação interna do Brasil, por ter consegui-

do alterar paradigmas”. Antonio Simões, Embaixador.

Entre esses paradigmas estão o desenvolvimento de energia nuclear para fins pacíficos no Brasil e a contribuição para a consciência ambiental no País. PNB foi o primeiro presidente das Empresas Nucleares Brasileiras (Nuclebrás), de 1975 a 1983, em uma época em que a defesa do desenvolvimento de energia nuclear era polêmica. A partir de sua atuação como Representante Permanente do Brasil na ONU, a reforma do Conselho de Segurança inscreveu-se definitivamente na agenda diplomática brasi-leira. Foi um dos principais responsáveis por ter-se realizado no Brasil a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92. Negociador nas rodadas do GATT, chegou a ser classificado pelo noticiário internacional como “o grande inimigo da Rodada Uruguai”, juntamente com o colega Índiano Shirirang Shukla. Neste contexto, ajudou a aproximar Brasil e Índia na parceria entre grandes países em desenvolvimento. No governo Itamar Franco, foi um dos idealizadores do atual pro-jeto de integração da América do Sul, mesmo com críticas ferrenhas a aspectos do Mercosul. PNB faleceu aos 64 anos, em São Paulo, em 31 de julho de 1994. Não viveria para ver, por exem-plo, a formação do G-20, durante a Ministerial de Cancún, que representou um marco da influência dos países em desenvolvimento sobre os rumos das negociações comerciais agrícolas na OMC. No dia exato em que este artigo foi entregue aos editores da JUCA, PNB completaria 81 anos. Era casado, desde 1954, com Dona Elmira, com quem teve quatro filhos - Paulo, João, Olavo e Isabel. Dona Elmira recebeu a JUCA em sua casa, em São Paulo, para falar não do Embaixador, mas de seu marido Paulo (leia entre-vista na página 11).

Lucas OLiveira BarBOsa Lima

Fotos cedidas por Elmira Nogueira Batista.

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“É a vocação que o impele a entrar para a carreira. Com o tempo isso se confirmou plena-mente. Não conheci outro, em nossa geração, que tivesse tanta vocação para a diplomacia como Paulo Nogueira Batista”. Com essas palavras, o Embaixador foi homenageado pelo colega de tur-ma, Embaixador Ítalo Zappa, durante reunião do Instituto de Estudos Avançados da USP em home-nagem a PNB, em 19951. Foram grandes amigos, colegas de uma das primeiras turmas do Instituto Rio Branco, em 1951, quando o Itamaraty ainda realizava concursos somente no Rio de Janeiro. PNB nasceu no Recife, em 4 de outubro de 1929. Já no Rio de Janeiro, não disfarçava sua origem, sempre acompanhado do sotaque per-nambucano. A turma tinha apenas onze alunos, a maioria formada de candidatos do Rio de Janeiro. “(...) O que primeiro me chamou a atenção na sua personalidade, era o que diziam dele: vinha de uma família abastada. Mas, em consequência do falecimento de seu pai, quando o conheci, as condições eram muito modestas, como aliás era a da maioria da turma. Aquele paletó xadrezinho que combinava com tudo, uma ou duas calças inteligentemente usadas para dar a impressão de um grande guarda-roupa. Diziam mesmo que com 18 ou 19 anos ele tinha um “Jaguar”, também nunca pedi a ele que me confirmasse isso. Ora, um “Jaguar” era algo incalculável. É como hoje um jo-vem de 19 anos ter um iate. Me lembro, certa vez, de um colega criticar-me por minha associação com Paulo Nogueira por ser um homem de elite. Você é que tem mérito, dizia ele. Eu falava que ele estava inteiramente enganado. Quem tem mérito é o Paulo Nogueira porque já foi abastado, teve tudo, perdeu e recuperou com vantagem”2 .

Na formatura do Instituto Rio Branco, a turma teve como paraninfo Raul Fernandes, chan-celer de 1946 a 1951. “Paulo Nogueira Batista era político dos pés à cabeça. Um ser que não podia viver sem elaborações políticas. Ele a fazia todos os dias e era marcado pelo conflito com as pessoas. Um homem que tinha inimigos unilaterais. Alguns o consideravam inimigo, mas ele não se considerava inimigo de ninguém. Agora, os contrariados, os que não queriam debater, os que não aceitavam argumentos, esses se tornavam inimigos a tal ponto que tive de adverti-lo: Paulo, você vai aca-bar ficando com um único interlocutor na turma. Eu!”, recordou o Embaixador Ítalo Zappa. PNB ingressou na carreira diplomática no início do segundo Governo Vargas, em uma época em que o Brasil tinha horizontes diplomáticos que se limitavam às relações com EUA, Europa e América Latina. Paulo Nogueira e Ítalo Zappa cos-tumavam então dizer que trabalhavam no “Minis-tério das Não-Relações Exteriores”. Somente anos depois, já no Governo Geisel, foi que PNB, então chefe do Departamento Econômico, e Zappa, chefe do Departamento da Ásia e África, seriam os responsáveis por receber a delegação chine-sa em preparação para o estabelecimento das relações diplomáticas com a China. O chanceler Azeredo da Silveira implementava, na década de 1970, as diretrizes de política externa do chamado “Pragmatismo Responsável e Ecumênico”. Como símbolo dos esforços do governo brasileiro para buscar novas fontes energéticas, em decorrência da primeira crise do petróleo, o próprio Presiden-te Geisel convocou PNB para uma missão que o afastaria temporariamente da carreira.

O Programa Nuclear Brasileiro PNB tornou-se, assim, o primeiro presiden-te da Nuclebrás, de 1975 a 1983, após negociar o Acordo Nuclear entre Brasil e Alemanha de 1975. Este previa a instalação no Brasil, até 1990, de oito usinas nucleares de 1.300 MW. A defesa da energia nuclear para fins pacíficos gerou muita polêmica. Além das preocupações ambientais associadas ao risco de acidente nas usinas e ao lixo atômico, havia uma expectativa, por parte da sociedade brasileira, de alinhamento com os EUA. Essa expectativa acabou não sendo atendida: o Brasil recusou aderir ao Tratado de Não-Prolifera-ção Nuclear (TNP), por considerá-lo “injusto e dis-criminatório”, e optou pela celebração do acordo nuclear com a Alemanha.

“É o momento de o país ter plena consci-ência, não apenas das potencialidades, mas dos seus deveres. Nós não somos um pequeno país. Estamos condenados a enfrentar esse problema de um projeto próprio, de construir a nossa própria casa. Não podemos ser vagão de nenhuma locomotiva, temos que ter a nos-sa locomotiva”. Paulo Nogueira Batista.

PNB acabou sendo vencido pelas restri-ções orçamentárias do governo. A situação de crise econômica em 1983, durante o Governo Figueiredo, levou ao corte de gastos públicos e ao congelamento das obras das oito usinas inicial-mente previstas. Conseguiu, contudo, que o Brasil se consolidasse como um país na vanguarda do desenvolvimento de energia nuclear e do enri-quecimento de urânio. Em 1983, foi substituído na presidência da Nuclebrás por Dário Gomes. “Encerro, pois, minha tarefa à frente da Nuclebrás sem qualquer sentimento de frustração. A realização de grandes objetivos enfrenta neces-

sariamente grandes obstáculos. Não escondo meu orgulho de desejar um Brasil grande e de acreditar na possibilidade de sua construção – de ver no programa nuclear um dos instrumentos do engran-decimento e da prosperidade nacionais; o que sin-ceramente deploro é a timidez dos que se deixam atemorizar por dificuldades, sobretudo conjuntu-rais, a incompreensão dos que se deixam dominar pelas aflições de curto prazo, o negativismo dos que criticam porque muitas vezes não sabem ou temem construir”, escreveu no discurso de trans-missão do cargo de Presidente da Nuclebrás, em 28 de janeiro de 1983.3

Às vésperas da Rodada Uruguai Na retomada de suas atividades no Itama-raty, PNB tornou-se Embaixador na Missão Perma-nente do Brasil em Genebra, às vésperas da Rodada Uruguai de negociações comerciais do GATT. O tempo em Genebra representou um verdadeiro la-boratório para a lapidação da faceta mais notável na atuação diplomática de PNB: a negociação em foros multilaterais. “Dava orgulho sentar na bancada do Brasil com um Embaixador que fazia tremer o Con-selho do GATT ao esgrimir, com tanta competência, argumentos bem construídos em favor dos interes-ses brasileiros”, comentou o Embaixador Hadil da Rocha Vianna, Diretor do Departamento de Temas Científicos e Tecnológicos. Em artigo de 1996 para o Correio Braziliense, o Ministro Paulo Roberto França, que também trabalhou em Genebra entre os anos de 1984 e 1987, escreveu: “Havia entre os chefes de missão a clara consciência de que o Paulo Nogueira Batista era um aliado poderosíssimo e um adversário insuperável. Sem ele, a engenharia diplomática mais elaborada poderia ruir”.

“Paulo Nogueira tinha a extraordinária quali-dade de não acreditar que qualquer indivíduo

1 O depoimento do Embaixador Ítalo Zappa, falecido em 1997, consta em “Reflexões de Paulo Nogueira Batista. Uma Homenagem”, em BATISTA Jr., Paulo No-gueira (org.). Paulo Nogueira Batista: Pensando o Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

2 Idem

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3 CPDOC, Arquivo Pessoal de PNB. PNBpn n 1983.01.28

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de outra nacionalidade pudesse saber mais sobre o Brasil do que nós brasileiros”. Embai-xador Celso Amorim, em mensagem lida no Instituto de Estudos Avançados da USP, 1995.

PNB não se intimidava na frente dos repre-sentantes dos principais players nas negociações no âmbito do GATT nos anos 80. Lutava, por todos os meios, para conseguir para o Brasil “uma porção da pizza do comércio mundial que não se limitasse a um tomate”, conforme avaliação do Embaixador Hadil da Rocha Vianna. Dessa maneira, PNB tentou garantir que o mandato da Rodada Uruguai não ge-rasse limitações à participação brasileira no processo das negociações comerciais multilaterais, e que não fossem incluídos temas potencialmente prejudiciais ao processo de desenvolvimento então em curso no Brasil. Uma de suas estratégias nesse sentido era tentar separar a negociação de serviços e de proprie-dade intelectual da negociação de bens.

“Qualquer que seja o enfoque, é essencial não perder de vista que a liberalização do mercado nacional para produtos estrangeiros não pode se processar de forma unilateral; pelo contrá-

rio, deve ser conduzida pela via da negocia-ção, de modo a buscar assegurar, pela recipro-cidade, garantia para nossas mercadorias de acesso desimpedido aos mercados externos em troca de abertura de nosso próprio merca-do”. Paulo Nogueira Batista.

Às vésperas da nova rodada do GATT, PNB dizia com todas as letras que a Rodada Uruguai não tinha interesse para o Brasil, pelas dificul-dades que seus resultados poderiam gerar para os países em desenvolvimento, a exemplo das imperfeições das regras sobre propriedade inte-lectual e, no âmbito das negociações agrícolas, da manutenção de subsídios distorcivos ao comércio internacional. “Foi um dos grandes chefes dessa Casa, uma figura memorável e um homem muito corajoso, com coragem de enfrentar o poder”, assegurou o Ministro França. Exemplo disso foi um episódio em que o Chanceler Olavo Setúbal (1985-1986) fez críticas à conduta de PNB no processo de lançamento da Rodada Uruguai, às quais respondeu afirmando que defendia aquela estratégia porque atendia aos interesses do Brasil.

Tamancos pela Pátria Em 1984, o Ministro Paulo França era Terceiro Secretário e acabara de ser removido a Genebra. A postura brasileira no setor de informática era então questionada pelos países desenvolvidos, pelo fato de o Brasil ter implantado reserva de mercado para os produtores nacionais, elemento estratégico para o desenvolvimento da indústria nascente. As críticas partiam dos EUA e dos países europeus, com destaque para um país escandinavo. Já cansado daquilo, sobretudo pela forma como as críticas eram feitas, o Embaixador PNB convocou o secretário Paulo França para uma tarefa: “Se não me falha a memória, esse país já invocou essa cláusula para fazer reserva de mercado para tamancos”. Desejava fazer um dossiê sobre o tema. Paulo França passou dias no GATT pesquisando nos arquivos, até que encontrou documentos que corroboravam as suspeitas do chefe. No dia da reunião, todos os assistentes o acompanharam. O tema entrou na pauta e o delegado escandinavo falou, como sempre fazia, de uma forma contundente, e bastou terminar para que PNB pedisse a palavra. “Ele tinha uma qualidade rara entre os colegas que trabalhavam com diplomacia parlamentar. Não só falava muito bem, como tinha também perfeito controle sobre o timing. Conseguia elevar e diminuir o tom de voz conforme a circunstância – fazendo pausas estratégicas que aumentavam a expectativa do interlocutor até chegar ao momento do clímax”. Começou então a falar da política brasileira para o setor de informática e de suas implicações para o desenvolvimento. E quando menos esperavam: “Me causa espécie o colega criticar a política de reserva de mercado do Brasil em um setor estratégico para o desenvolvimento, tendo o seu país histórico de invocação da segurança nacional para uma reserva de mercado para tamancos!” A palavra “tamancos” foi seguida de um grande silêncio, motivado pela pausa estratégica do Embaixador brasileiro. “E eu me pergunto: será que os soldados do seu país utilizam os tamancos nas suas forças armadas? Seus soldados calçam tamancos para defender a pátria?” A gargalhada foi geral, e o Conselho do GATT veio abaixo. O próprio delegado americano ria tanto que acabou por cair da cadeira. PNB desqualificou o argumento do outro delegado a ponto de fazê-lo nunca mais criticar a Lei de Informática brasileira. “Foi memorável”, recorda o Ministro Paulo França, que relatou o caso pela primeira vez em 1996, em artigo intitulado “Um defensor dos interesses nacionais” para o jornal Correio Braziliense.

Sintonia fina Conforme relatou a Ministra Maria Clara, atual chefe da Divisão de Ásia Meridional, a capacidade de PNB para buscar apoios ficava evidente em seu trânsito fácil entre o Embaixador Índiano Shirirang Shukla e o representante da então Iugoslávia. Em 1986, durante a Reunião Ministerial de Punta del Este, que lançou a Rodada Uruguai, o Brasil fez articulação com muitos países em desenvolvimento, em busca de um texto para a Declaração Minis-terial. Houve determinada reunião em que os três delegados conversavam com vários membros da Delegação brasileira presentes. Num dado momento, o Embaixador Shukla disse: “Ah, mas então...” A frase nem foi terminada, mas PNB completou: “Sim, claro!”, e o Representante iugoslavo respondeu: “O Embaixador Paulo Nogueira está certo”. A fina sintonia demonstrava o alto grau de articulação obtido entre os países em desenvolvimento.

Acabando com a festa Ao término de sua missão em Genebra, em 1988, o então Secretário Hadil da Rocha Vianna passou por Nova York e hospedou-se na resi-dência brasileira com o Embaixador PNB. Este chegou a confidenciar ao jovem colega que preferia Genebra, por ser um ambiente mais instigante, referindo-se às negociações no GATT. Em Nova York, sentia-se de certa forma engessado pela própria dinâmica das Nações Unidas e pela inércia com a qual alguns temas eram tratados. Após o jantar, foram para a biblioteca, para conversar. E num momento de relaxamento, em que sempre fumava seu charuto, PNB lembrou-se dos tempos em Genebra: “Hadil, vou te dizer uma coisa. Quando você quiser muito ir a uma festa e não for convidado, é melhor acabar com a festa”. Esse comentário traduz muito bem o que PNB praticamente fez na Rodada Uruguai – não que ele quisesse acabar com as negociações, mas sim deixar bem claro que, se o Brasil e outros players importantes no cenário do comércio internacional (principalmente outros países em desenvolvimento) não fossem participar, seria melhor que não houvesse Rodada.

Memórias e anedotas do GATT

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TRUQUES DE NEGOCIADOR

“Nunca facilite a vida do outro negociador. Deve-se dificultar ao máximo, de modo que, ao final da negociação, quando aceito o que eu já queria mesmo aceitar desde o início, a outra parte fica até grata”.

“Nunca tire de ninguém o ônus de ter de dizer não. Ele dirá não uma, duas vezes, até ficar constrangido e acabar cedendo”.

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“Autonomia pela participação”: a volta do Brasil ao Conselho de Segurança Em 1987, PNB assumiu novas funções, agora em Nova York, como Chefe da Missão do Brasil na ONU. Liderou a delegação brasileira até 1990, tendo presidido o Conselho de Segurança (CSNU) em 1988 e 1989. Os principais temas de trabalho a serem tratados pelo Embaixador seriam as tensões no Oriente Médio e a crítica ao regime do apartheid na África do Sul. O Brasil, candidato a um assento no CSNU, voltava ao Órgão após 20 anos de afastamento, pondo fim ao período denominado pelo Embaixador Gelson Fonseca Júnior como “autonomia pela distância”. PNB contribuiu, dessa forma, para colocar a reforma do CSNU como algo constante em nossa agenda diplomática, ao inserir, no discurso do Presidente Sarney, em 1989, a ideia de que o Brasil deveria ter um assento permanente no Órgão. PNB chegara a Nova York na véspera do início das reuniões da Assembleia Geral (AGNU) e em meio a três candidaturas simultâneas para órgãos da ONU. Além do Conselho de Segurança, o Brasil apresentara candidaturas para a Corte Internacional de Justiça (CIJ) e para o Conselho Econômico e Social (ECOSOC). Na CIJ, o Embai-xador Sette Câmara, com quem PNB já havia trabalhado em duas ocasiões no Brasil, concor-ria à reeleição, contra um candidato guianense, Mohamed Shahabuddeen (juiz da CIJ em 1988-1997). O Brasil alcançou a maioria de 2/3 so-mente no CSNU, onde ficaria por dois mandatos consecutivos. Com a derrota iminente, coube a PNB retirar as candidaturas brasileiras tanto à CIJ como ao ECOSOC. A Secretaria de Estado pediu análise sobre as razões da derrota e exigiu resposta em 24 ho-ras, conforme lembrou o Ministro Carlos Duarte, então assistente do Embaixador PNB. Em sua ver-são do episódio, enviada à Secretaria de Estado,

atribuiu o insucesso nas candidaturas a dois fato-res decisivos: havia muitas candidaturas brasileiras a serem votadas em uma mesma AGNU; e faltava apoio do próprio grupo latino-americano às can-didaturas brasileiras. Esses fatores em conjunto teriam levado à emergência de um ‘ressentimento’ de alguns países africanos quanto à falta de coo-peração brasileira, o que teria constituído um dos elementos do malogro de nossas candidaturas. Caso reeleito simultaneamente no ECOSOC e na CIJ, o Brasil viria a deter por 21 anos ininterruptos um mandato no ECOSOC e 18 anos um mandato na Corte. Nas eleições seguintes para o ECOSOC, PNB sustentaria a candidatura do Brasil. E, dessa vez, o país foi eleito logo na primeira rodada. O tema da criação de um Estado Palestino também era constantemente discutido no CSNU. Em 1974, a AGNU havia convidado a Organização para Libertação da Palestina (OLP) a participar de seus procedimentos com status de observador, como representante do povo palestino. Poste-riormente, esse status foi estendido para cobrir a participação em todo o sistema ONU. Na resolu-ção 43/177, de 15 de dezembro de 1988, a AGNU reconheceu a proclamação do Estado da Palestina feita pelo Conselho Nacional Palestino. Reafirmou a necessidade de permitir ao povo palestino o exercício da soberania sobre os territórios ocupa-dos desde 1967. Como os EUA recusaram o visto americano a Yasser Arafat, foi necessária uma resolução transferindo a reunião da AGNU para Genebra, para onde viajaram PNB e um de seus assistentes, o então secretário Anuar Nahes, atual Embaixador do Brasil em Doha, também entrevis-tado pela JUCA. O Embaixador Nahes mencionou a me-diação do Brasil por ocasião da derrubada de um avião de passageiros iraniano pela Marinha americana, em 1988, durante a Guerra Irã-Iraque.

perfil

EntrevistaDona Elmira Nogueira Batista

“Venha ver este piano. Foi escolhido pelo Tom Jobim”. Dona Elmira [a quem PNB sempre chamava de Nenem] recebeu a JUCA em seu apartamento em Higienópolis, durante uma tarde de chuva em São Paulo. Peço logo para tirar uma foto dela ao lado do piano, mas o excesso de luz vindo das enormes janelas de vidro prejudica o resultado. “Não se preocupe, aqui você já vê muitas fotos do Paulo”. Pergunto sobre a história do piano. “O Tom era casado com a

sobrinha do Paulo, a Ana Lontra. Você conhe-ce? Tom e Paulo tornaram-se grandes ami-gos. Em Nova York, era comum o Tom ir para a Embaixada, para ficarem discutindo versos e o português que ia ser usado em alguma música. Como não havia piano para que o Tom tocasse, decidimos comprar este aqui, escolhido por ele. Eram muito próximos. Logo quando o Paulo morreu, o Tom me ligou e disse que ainda tinha muita coisa para con-versar com o amigo. E seis meses depois, foi ele quem morreu. Essa amizade com o Tom mostra muito uma característica importante do Paulo. Ele tinha uma ‘round personality’, pois era uma pessoa que se interessava por

tudo. Existem essas pessoas fixas, que só falam de um assunto. Já o Paulo era capaz de conversar com qualquer pessoa, e se adaptava aos assuntos do outro. Não ficava impondo os assuntos dele – adorava arte, e lia muito. Isso ajuda a família do diplomata, que não tem de aguentar aquela pessoa chata, que só sabe falar da carreira”. Dona Elmira me leva ao escritório. Uma estante ocupa toda a parede. Dispostas em frente aos livros, fotos de toda a vida do Embaixador.“Eu quis conversar com você aqui porque este era o escritório do Paulo. Há uma diferença em relação ao tempo dele, pois ele não admitia nada além de livros nessa estante. Com o tempo, eu fui colocando todas as fotografias da carreira e da nossa família”.

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Como foi a mudança para esta casa em São Paulo? Nos mudamos em 1990, quando voltamos de Nova York. O Paulo dizia pra eu me preparar, pois deixaríamos Nova York se o Collor ganhasse as eleições. Ele até visitou a Missão, já como Presidente-eleito, e o Paulo sentiu que aquilo não daria certo. Tinha certeza de que Collor reverteria todo o tra-balho que ele havia feito na ONU. ‘Não quero posto nenhum, quero voltar ao Brasil’, dizia ele. O Ministro [Francisco] Rezek chegou a oferecer três postos, todos recusados. Então o Marcos Azambuja, Secretário-Geral na época, li-gou e disse que, daquele jeito, a única solução seria voltar ao Brasil. E assim, o Paulo aceitou o que realmente queria, ser removido para São Paulo. Na-quele meio tempo, havia feito grande contato com professores da USP, que o convidaram a ser professor. O Governador Fleury [Luiz Antônio Fleury Filho (1991-1994)] também fez um convite pra criar o Comitê de Relações Em-presariais de São Paulo. E além de tudo, nossos filhos estavam morando no Brasil. Seria bom voltar. Pois então, nem se passaram três anos, e, um dia, o Paulo chegou em casa, dizendo que o Presidente Itamar Franco insistia para ele voltar ao Itamaraty, porque precisava dele no MERCOSUL. Nessa época, eu e os nossos filhos fomos contra, porque ele já estava com a vida estabe-lecida em São Paulo, e sabíamos que iria apenas se aborrecer. Dizíamos que ele tentaria fazer no MERCOSUL o que os outros não queriam. Ele largou tudo e foi para Montevidéu, trabalhar com a ALADI. Não deu outra, aquilo durou um ano. Ele se aborreceu tanto que teve um enfarte fulminante, aos 64 anos. Eu me lembro que nós estávamos de férias neste apartamento, e voltaríamos para Montevidéu no dia seguinte. Ele havia voltado de Brasília muito acabrunhado.

Como a senhora conheceu o Embaixador Paulo Nogueira Batista? Conheci o Paulo na nossa adolescência. Tínhamos apenas um ano de diferença em idade, e nessa época, 15 ou 16 anos, ele era colega de meu irmão mais velho no Colégio Mello e Souza, no Rio. Eu era muito “caxias”, estu-dava em colégio de freiras, e os dois eram bem vagabundos e peraltas nessa ocasião. João, meu irmão, veio com uma conversa mole de que tinha um cole-ga que passava por muitas dificuldades com a perda da mãe e que por isso não passara de ano. Perguntou se eu não poderia emprestar meus cadernos para ele. Fiquei furiosa, acabei emprestando, e nunca mais vi os cadernos. Paulo acabou mudando de colégio. Passaram-se alguns anos, eu já com 18 anos, ofereci em nossa casa de Petrópolis uma festa de S. João. Outra vez meu irmão veio com uma conversa de que convidara a moça mais bonita do Rio [era Lú-cia, irmã do Paulo] que viria com os irmãos. E assim foi, chegou o Paulo, que passou a noite inteira atrás de mim e eu o achei um garoto ridículo. Paulo dizia que isso era invenção minha, e ria muito dessa história. Passaram-se mais alguns anos, eu já com 20 anos, fazia festinhas em minha casa quase todos os sábados. Numa dessas festas o Affonsinho [Emb. Affonso Arinos de Mello Franco] entrou em minha casa com um rapaz que acabara de fazer o Concurso para o Rio Branco, passara em segundo lugar e era um gênio. Era o Paulo. O Affonsinho até veio com uma história de que o amigo passava o dia inteiro dentro do quarto, com os livros. Dessa vez fiquei atraída por ele, dançamos a noite inteira e assim começou uma longa história de amor!

O que o motivou na escolha da carreira diplomática, e quais eram suas maiores expectativas? Paulo veio com a família para o Rio por negócios de seu pai e eles nunca mais voltaram para o Recife. Não sei bem que idade teria, de 10 a 12 anos. O que o motivou na escolha da carreira não sei bem. Ele dizia brin-cando que teria sido falta de opção. Não sei não, nunca vi uma pessoa tão apaixonada pela carreira como ele e o quanto se dedicou a ela. Lembro-me que seu primeiro trabalho foi na Divisão de Material, onde teve a chance de ter como chefe ninguém menos que Guimarães Rosa. Nessa época já era “O Guimarães Rosa”. Foi um tempo de encantamento que selou uma ami-zade! No dia da posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães deu de presente ao Paulo a folha do discurso de agradecimento, com uma dedica-tória para ele. O interessante é que ninguém queria trabalhar na Divisão de Material, pois não era um setor de muito prestígio. O Paulo tinha sido o se-gundo lugar no concurso, mas durante o Rio Branco não se interessou muito e acabou ficando entre os últimos colocados. Mas vendo que o Guimarães Rosa estava na Divisão de Material, decidiu ir para lá. Divertiram-se à beça juntos, e se tornaram amigos.

Como foi a experiência no Rio Branco? E o início da carreira no Itamaraty? Sempre foi positivo em relação ao curso, mas impaciente para começar a trabalhar. Ficou sempre muito ligado ao Ítalo Zappa, seu cole-ga de turma. Nós até somos padrinhos da filha do Zappa. Expectativas em relação à carreira ele tinha muitas, mas sempre uma ansiedade por traba-lhar na Chancelaria. Muitas vezes passamos só um ano em postos. Eu me lembro que ele já era diplomata e se usava muito, nessa época, o correio diplomático. Em 1953, o Paulo fez a primeira viagem dele pelo Itamaraty, como correio diplomático para o Chile, onde estava o Embaixador Cyro de Freitas-Valle, que era uma figura até temida entre os jovens diplomatas. O Paulo, então Terceiro Secretário, viajou morrendo de medo, e ao chegar, foi jantar na Embaixada. O Embaixador perguntou: - O que você toma, meu filho? - Qualquer coisa, Embaixador. - Qualquer coisa eu não tenho. Aí você percebe que a mesma situação que vários secretários passaram na mão do Paulo já havia acontecido com ele.

E o período no exterior? Nunca tivemos problemas com a carreira no exterior. Em 1963, o Paulo foi removido para Nova York e eu fiquei no Rio, pois a Isabel estava para nascer. Ele mandava cartas e telefonava dizendo que estava olhando casas nos Hamptons e nos arredores da cidade. Eu cheguei a dizer a ele pra parar com aquilo, pois eu queria morar no centro de Nova York. Nos Hamp-tons, eu iria acabar virando parceira daquelas americanas com rolos na ca-beça, eu disse a ele. Então ele desistiu. Eu sempre escolhi as nossas casas. As crianças sempre aproveitaram muito o tempo no exterior. No tempo em que ele foi Ministro-Conselheiro em Bonn [1969-1971], eu ma-triculei o Paulinho na escola pública e, em dois meses, já estava falando

alemão fluentemente. Os meninos tinham quase a mesma idade e se apoia-vam muito. Aliás, o Paulo teve uma influência enorme sobre a formação de todas as pessoas da família. Tanto que, um dia desses, eu fiz aniversário e um dos netos, o Paulo [que tinha apenas 10 anos quando o avô morreu], fez um discurso em homenagem a ele, em que dizia que havia sido a pessoa que mais o havia influenciado na vida. Ele tinha uma boa relação com os jovens diplomatas? O Paulo adorava os jovens, tanto que muitos desses atuais Embai-xadores, que na época de secretários trabalharam com ele, se tornaram seus amigos. Houve um período, na ONU, em que o então Ministro-Conselheiro Flávio Miragaia passou uma ordem para os jovens diplomatas, dizendo que o Paulo não gostava que ninguém o incomodasse no gabinete dele. Passou um tempo, e o Paulo começou a achar estranho ninguém ir ao gabinete, e começou então a ir à sala dos secretários. Quando ele soube dessa história, fez uma reunião com to-dos os funcionários da Missão, dizendo que a por-ta dele estaria sempre aberta para conversarem. Na verdade, tinha um contato muito bom com os colegas jovens. Era duro, sim, com os estrangeiros que se opunham à posição do Brasil.

O golpe de 1964 influenciou o trabalho dele na Missão em Nova York? Estávamos em Nova York no começo de 1964, e encontramos desde o início o campo mui-to dividido. O Paulo ficou muito amigo do Houaiss, que já era Ministro nessa época. A delegação do Brasil ficou sob a mira da ditadura, e quem salvou o Itamaraty foi o Vasco Leitão da Cunha, que assu-miu a chancelaria. A primeira pessoa removida foi o Houaiss, que voltou ao Brasil e logo depois foi cassado. O Vasco ainda tentou remover o Embaixador Carlos Bernardes para o Japão, mas o receberam com uma faixa: Fora daqui, comunista! Então, o Bernardes, que mal chegou ao Ja-pão e foi praticamente expulso, acabou sendo convidado a ser funcionário da ONU. O Ítalo Zappa, muito amigo do Paulo, até avisou que nós só poderíamos ser removidos para o Canadá, e ele adorou. Consultaram o Embaixador Sérgio Corrêa da Costa, então Embaixador em Ottawa, que enviou um telegrama ao Itamaraty dizendo que seria uma honra receber o Paulo. Em Ottawa ele até fez um Mestrado em Ciência Política, na Carleton University.

Ele passou muito tempo fora da carreira, por causa da Nuclebrás... Sim, passou dez anos fora do Itamaraty. Toda essa história de Nu-clebrás começou quando ele foi Chefe do Departamento Econômico [1973-1974], chamado pelo Chanceler Gibson Barboza. Lá, ele se envolveu muito com os assuntos de energia nuclear. Depois veio o Presidente Geisel, Azere-do da Silveira assumiu a chancelaria, e Paulo saiu, a convite do Presidente. O Silveirinha não ficou nada satisfeito com a saída dele. Havíamos voltado de Genebra [PNB foi Ministro-Conselheiro em Genebra de 1971 a 1973] e

perfilmorávamos agora no Rio de Janeiro. O Paulo tinha um enorme amor pelo Brasil, por isso nunca perdia uma oportunidade de voltar. Nesses dez anos, chegou a se aborrecer com o Presidente Figueiredo, por causa dos assuntos da Nuclebrás. Paulo era um idealista, e foi atacadíssimo.

Depois de 1994, a senhora foi Chefe do Cerimonial da Prefeitura de São Paulo. A experiência como Embaixatriz ajudou? Eu tinha ficado viúva em São Paulo, fui trabalhar um tempo com a Milu Vilela [Diretora do Museu de Arte Moderna de São Paulo], e comecei a me envolver muito com arte. Quando a Marta [Suplicy] se elegeu prefei-ta, me ligou e aproveitei para felicitá-la. “Mas eu não estou te ligando para você me felicitar, e sim para convidá-la a ser minha Chefe de Cerimonial. O Paulinho, seu filho, já me disse que você tirará isso de letra”. Foi uma gran-

de experiência, e trabalhei tanto que até tive um problema na coluna quando tudo terminou. Mas você perguntou da expe-riência como Embaixatriz. A mulher do Embaixador, na minha época, era quem dava o tom da Embaixada. Em Nova York, eu colocava na Embaixada toda a socieda-de americana de peso. E isso acaba sendo muito importante para a representação do Brasil. Para mim tudo isso era muito natu-ral, pois desde criança me acostumei a ver meus pais recebendo em nossa casa. Meu avô [João Pinheiro] havia sido Governador de Minas, eu era sobrinha do Israel Pinhei-ro, e era uma família muito tradicional na política mineira. Agora a carreira mudou muito, a própria figura da embaixatriz foi

muito substituída pela figura da Embaixadora.

A senhora viu o desenvolvimento da carreira de muita gente no Itamaraty, a começar pelo Embaixador Paulo Nogueira. teria al-gum conselho para quem está iniciando a carreira diplomática? O mais importante é que o diplomata não pode esquecer o seu próprio país. Deve ter a ideia de que é um representante do Brasil onde quer que esteja, e defendê-lo com unhas e dentes. Esse foi o exemplo que o Paulo deixou, de nunca ter medo de defender o Brasil. Eu acho que vocês, que são jo-vens diplomatas, não têm de se preocupar em ir para esses postos do “Circuito Elizabeth Arden”. O Paulo, quando queria ser removido de Nova York, por conta do Collor, sempre se perguntava por que não lhe ofereciam um posto na Índia. Ele tinha verdadeira adoração por aquele país, e acabou ficando muito ligado aos Índianos. Não falou nada, na época, somente para poder voltar ao Brasil. O Patriota [Emb. Antonio Patriota] trabalhou com o Paulo em Genebra, e um dia ligou pra ele para pedir um conselho. Haviam-lhe oferecido duas opções de remoção, uma delas na China. “Mas é claro que você deve escolher a China! É o país do futuro!” Ele ficou muito amigo do Patriota.

O mais importante é que o diplomata não pode esque-cer o seu próprio país. Deve ter a ideia de que é um repre-sentante do Brasil onde quer que esteja, e defendê-lo com unhas e dentes.

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O Brasil exercia, então, a presidência do CSNU, e as negociações duraram quase um mês. PNB negociou com todas as partes e o processo de mediação teve êxito. Isso não foi importante apenas para evitar um conflito maior entre EUA e Irã. Aquele foi o momento em que os presidentes iraniano e iraquiano manifestaram publicamente que concordavam em colocar naquela resolução do Conselho a possibilidade de negociação para resolver a guerra. Isso posteriormente culminou em uma resolução para o fim da Guerra Irã-Iraque. Em seu último ano em Nova York, quando exerceu o cargo de Vice-Presidente do Comitê Pre-paratório da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), PNB contribuiu para trazer para o Brasil a Confe-rência, que ficou conhecida como Rio-92. Havia receio, e essa era a visão predominante, de que o Brasil seria criminalizado na Conferência. Para PNB, era necessário que a CNUMAD fosse realizada pelo Brasil, para que não se tornasse uma conferência contra o Brasil. A Rio-92 tornou-se um marco da questão ambiental internacional e gerou ambiente propício para o desenvolvimento de uma consciên-cia ambiental no Brasil. Lembra Everton Vargas, Embaixador do Bra-sil em Berlim: “estávamos na 43ª AGNU, em outubro de 88, numa reunião de coordenação de todos os diplomatas na Missão, às 9 da manhã, conhecida jocosamente como ‘Bom dia PNB’. Na tarde anterior, a colega do Canadá na Segunda Comissão (Assun-tos Econômicos) me entregara a primeira versão de um anteprojeto de resolução com a ideia de se realizar a Conferência sobre meio ambiente vinte anos depois de Estocolmo. O texto, de iniciativa dos Nórdicos, Canadá e Holanda, fora apresentado no âmbito do item sobre o relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Aqueles países desejavam o co-patrocínio do Brasil. Informei o Embaixador e os colegas sobre o conte-

údo da proposta e PNB imediatamente fuzilou-me: ‘por que não fazemos essa Conferência no Brasil?’ Respondi-lhe ser uma ideia que deveria ser consi-derada, mas que teríamos que preparar um telegra-ma a Brasília. Ele me instruiu a fazê-lo. O telegrama foi enviado; tempos depois veio uma instrução concordando com o oferecimento do Brasil como sede. O discurso de PNB caiu como uma bomba na segunda Comissão da Assembleia, em dezem-bro de 1988. A iniciativa de apresentar o Brasil fora mantida a sete chaves até o último momento. Os suecos estavam interessados em sediar, mas sofriam a concorrência canadense. Na 44ª AGNU, foi acolhida a oferta brasileira, como registrado na resolução 44/228.”

“Temos responsabilidades que são intransferí-veis. Nós as assumimos ou alguém as assume por nós. E um país, senhores, se faz de dentro para fora e não com sobras do desenvolvimen-to alheio”. Paulo Nogueira Batista.

Esse desejo de ver o Brasil assumir respon-sabilidades pelo seu próprio desenvolvimento, evitando assim a imposição externa de políticas econômicas, levou PNB a tecer diversas críticas ao denominado Consenso de Washington, no qual percebia incompatibilidades com pressupostos do modelo de desenvolvimento do Brasil e da política externa que lhe dava apoio. Segundo ele, algumas políticas recomendadas pelo Consenso restringiam a reserva de mercado no setor de informática e impediam o pleno desenvolvimento tecnológico no setor nuclear.

“O Consenso de Washington, além de contraditório com as práticas dos Esta-dos Unidos e dos países desenvolvidos em geral, contém, como pudemos apreciar, vá-rias incoerências nos seus próprios termos. Revela-se em especial inadequado quan-do se tem em conta que sua avaliação e

prescrições se aplicam de maneira uniforme a todos os países da região, independente-mente das diferenças de tamanho, de está-gio de desenvolvimento ou dos problemas que estejam concretamente enfrentando”. Paulo Nogueira Batista.

Entre 1990 e 1992, afastou-se do Itama-raty e mudou-se para São Paulo, onde se tornou professor pesquisador no Instituto de Estudos Avançados da USP. Chegou a apoiar a candidatura presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva – dizia que havia “lulado”, conforme lembrou o Embai-xador Nahes. O desacordo com políticas imple-mentadas pelo Presidente Collor teria sido um dos motivos do afastamento de PNB do MRE. Nesse tempo, foi também Presidente do Comitê de Relações Empresariais do Governo de São Paulo e

Coordenador do Grupo Temático do Mercosul.

A integração na América do Sul Em 1993, no Governo Itamar Franco, o chanceler Celso Amorim convidou PNB para ser Embaixador do Brasil junto à Associação Latino--americana de Integração (ALADI), em Montevidéu, onde permaneceria até sua morte. Surgiu então a ideia de dar novo foco à América do Sul, como for-ma de mitigar os efeitos das iniciativas do México no âmbito do NAFTA.

“Em 1994, Paulo Nogueira não conseguiu convencer o Presidente Itamar a cortar os pri-vilégios do México na ALADI. PNB considerava que a conformação do NAFTA tornava incom-patível a participação do México como sócio na ALADI. Era um chefe lúcido, exigente e duro. Com uma excepcional visão estratégica e uma

perfil

PNB apresenta suas credenciais de Representante Permanente do Brasil na ONU ao Secretário-Geral Pérez Cuellar, 1987.

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grande paixão pelo Brasil”. Embaixador Paulo Cordeiro Pinto.

O Mercosul tornava-se iniciativa de fortaleci-mento da posição negociadora da região frente aos outros blocos regionais. PNB questionava se era ade-quada aquela aliança com países que mantinham assimetria profunda com o Brasil. Preferia privilegiar a América do Sul como um todo, para um processo de integração que julgava mais consistente. Tinha reservas quanto ao avanço da área de livre comércio do bloco para uma união aduaneira. Segundo ele, “a transformação do Mercosul em União Aduaneira terá de ser feita, entretanto, de forma a não se criar um obstáculo à preservação dos níveis atuais de industrialização brasileira nem à sua necessária ex-pansão futura, em termos não só quantitativos, mas também qualitativos. E desde que não implique cer-ceamento indevido da capacidade negociadora do Brasil”. Nesse período surgiu a proposta brasileira de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA).

O talento negociador Nos relatos dos colegas no Itamaraty, a coragem aparece como a característica mais mar-cante de PNB, que não tinha medo, por exemplo, de assumir posição de isolamento do Brasil nas negociações comerciais às vésperas da Rodada Uruguai. Tinha uma noção muito clara do papel do Brasil, e era quase obsessivo nos projetos que queria implementar, principalmente quanto ao seu aperfeiçoamento.

“Profundamente trabalhador, PNB era capaz de fazer análises detalhadas e profundas em muito pouco tempo. No fim dos anos 80, já comprara um dos primeiros modelos de notebook, no qual trabalhou durante todo um fim de semana para uma palestra de 50 laudas para uma universi-dade de Nova York. Às vésperas da palestra, o disquete estragou e o Embaixador mostrou mais

qualquer questão de ser o que as pessoas espe-ravam que ele fosse. E a grande confiança em si refletia-se em uma genuína confiança no Brasil, mesmo em uma época de grande instabilidade econômica, no final dos anos 1980.

“Esse receio da região de se ver relegada à periferia se exprime, no mais das vezes, curio-samente, num inadequado tom de queixu-me e de passividade característico de países subdesenvolvidos que não sabem ou não conseguem se colocar como atores no cenário internacional”. Paulo Nogueira Batista .

Lembra o Ministro Carlos Duarte que Celso Furtado costumava afirmar que o país havia levado uma “paulada na cabeça”, haja vista a descrença que tomava conta do Brasil. “Tratava-se de um país muito diferente do Brasil de hoje, que é cortejado pela comunidade internacional. O Brasil não surfa-va, àquela época, a atual onda positiva, e mesmo assim, PNB não deixava que o País saísse do mapa das negociações”, completou o Embaixador Hadil da Rocha Vianna, que trabalhou com PNB em duas ocasiões: em 1985, na Delegação do Brasil em Ge-nebra; e em 1993, na Delegação Permanente junto à ALADI. Ele recorda que, durante negociações difíceis em algum comitê do GATT, comentava com o colega de posto, Antonio Patriota: “Vamos ter de dar uma de Paulo Nogueira Batista”.

Uma verdadeira round personality Além de seu papel na negociação de te-mas de grande relevância na história diplomática do Brasil, PNB tinha um lado familiar marcante. A convivência dos jovens diplomatas com Dona Elmira, nas Embaixadas e em recepções oferecidas em sua casa, é um fato mencionado por alguns dos entrevistados como algo que facilitava o pri-meiro contato com o chefe, passadas as primeiras

impressões. Sua capacidade de costura política complementava a habilidade diplomática do Embaixador. Foram casados durante 40 anos, co-memorados em 1994, quando ele a homenageou com uma Carta aberta, em que dizia: “Este é, sem nenhuma dúvida, um momen-to de grande alegria, de profunda e gostosa recor-dação de uma longa vida em comum. Mas tam-bém de inevitável melancolia. Aqui estamos para celebrar, de certo modo, muito mais o passado do que o presente. Já não há muito caminho mais a percorrer: sim há a triste certeza de não podermos continuar juntos, indefinidamente, a caminhada que iniciamos faz quarenta anos. Mas que espera-mos seja eterna enquanto dure. A realidade fica, via de regra, aquém do sonho. Mas não é isso o que sinto e que posso testemunhar. O sonho, para mim, é que ficou aquém da realidade. Fui feliz, sou muito feliz, é a constatação a que serenamente chego no somatório dos altos e baixos da vida. Não posso, por isso mesmo, escapar de um senti-mento incômodo, o de ter sido imerecidamente privilegiado – de me haver tocado na vida muito mais o caminho das flores do que o dos espinhos”.

Além de um defensor da diplomacia e do Brasil, PNB era sobretudo alguém que demonstrava uma profunda paixão pela vida e por vários campos do conhecimento: uma well-rounded personality.

“Toda a história do PNB é uma história de má compreensão por parte dos outros, e muitas vezes devido à forma como ele se dirigia às pessoas. Às vezes perdia a ternura, e na vida é preciso fazer como Che Guevara: ‘hay que endurecer, pero sin jamás perder la ternura’. E o Paulo Nogueira não acreditava no Che. Por isso fica mais essa imagem da dureza, mas é preciso julgar as pessoas pela sua história”. Embaixador Antônio Simões.

perfiluma vez sua obstinação:“Fazer o quê? Escrevo tudo novamente”. Anuar Nahes, Embaixador do Brasil em Doha.

Em 1984, PNB recebera em Genebra o então secretário Paulo Roberto França, que logo percebeu que o chefe não era uma pessoa fácil no primeiro contato. “O Embaixador era muito exigente com seus colaboradores. Isto poderia assustar os incautos num primeiro momento. Aos poucos, se verificava que ele era sobretudo exigente consigo mesmo. Era um homem que colocava à prova suas ideias.” Não impunha o seu texto como a regra a ser seguida, e insistia para que apontassem os pontos fracos de cada argu-mento. Esse rigor no teste das próprias ideias o levava também a sempre questionar posições es-tabelecidas do governo. “Nada de automatismos”, dizia ao Ministro Carlos Duarte, hoje diretor do Departamento de Organismos Internacionais, que trabalhou com PNB em 1987 e 1988, quando este chefiava a Missão do Brasil na ONU. Sua presença marcante e seus argumentos peremptórios che-gavam a intimidar alguns. Nesse debate constante para fortalecer os próprios argumentos e, com isso, a posição negociadora do Brasil, PNB desen-volveu técnicas interessantes de negociação, que tentava ensinar aos jovens colegas (veja pág. 8). Utilizava todos os artifícios numa negocia-ção, desde um discurso muito bem concatenado, até técnicas de procedimento das mais simples. Em entrevista à JUCA, o Embaixador Hadil da Rocha Vianna recordou que, numa determinada negocia-ção no GATT na qual o Brasil estava na defensiva, PNB usou como estratégia o ataque ao presidente da reunião. “Presidente, é sua a responsabilidade de encontrar uma solução para este impasse!” Pres-sionado, o presidente acabou por encontrar um desfecho favorável ao Brasil. Ficava claro aos colegas que PNB não fazia

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PNB, sob o olhar dos filhos... “Meu pai sempre fez questão que falássemos português em casa, que nos preocupássemos com as questões do nosso país. Como toda família de diplomatas, vivemos muito no exterior, mas a ligação com o Brasil sempre foi fortíssima, estimulada por nosso pai. A identificação com nosso país de origem foi, portanto, natural. Nun-ca nos sentimos “estrangeiros” em nosso próprio país. Lembro de meu pai sempre como um diplomata em sua natureza, competente não apenas nas negociações profissionais, mas também inteligente e sensível nas suas relações privadas. Sabia nos orientar com perspi-cácia e sensibilidade, sempre nos incentivando e torcendo por nós, filhos. Outra característica marcante: era um autodidata, lia muito, estudava e descobria interesse por assuntos os mais diversos: músi-ca, literatura, arte, política, história, filosofia. Próximo ao fim de sua vida, estava lendo um livro sobre filosofia tibetana - sobre a visão oriental da nossa relação com vida e morte. Tinha uma curiosidade e um interesse por tudo. Faz muita falta. Teria sido extremamente enriquecedor vê-lo envelhecer, o que lhe teria dado mais tempo para descobrir novos interesses e desenvolvê-los. Por exemplo, ele tinha imensa

perfilatração por novidades, novas tecnologias. Adorava gadgets (impressora, fax). Mas não viveu para descobrir a internet, o e-mail, o telefone celular e a foto digital. Ele foi quem me mostrou um dos primeiros personal computers, e me ensinou a usá-lo (ainda o antigo sistema MS-DOS). Eu diria, meu pai era verdadeiramente uma well-rounded personality. Ele partiu cedo demais”. Maria Isabel, a filha caçula

“Eu me lembro em especial das viagens que fazíamos juntos. A que mais me marcou foi a que fize-mos quando ele foi removido, como Ministro Conselheiro, para a Embaixada em Bonn, na Alemanha, no final da década de 60. Fomos de navio do Rio para Lisboa e de lá de carro até a Alemanha, uma viagem de mais de um mês! Foi inesquecível. Eu tinha apenas 10 anos, mas me lembro muito bem do entusiasmo do meu pai com tudo que víamos, e principalmente a paciência dele conosco. Afinal de contas, não é nada fácil aguentar uma viagem desse tipo com 3 garotos na faixa dos 10 aos 13 anos! Não se cansava de nos dizer como era importante conhecer outras culturas. Como diplomata e homem público, a imagem que guardo dele é a do defensor irrestrito dos interesses nacionais. Me lembro muito bem da aliança que ele costurou com o Embai-xador da Índia, na época em que ele era Embaixador em Genebra junto ao GATT. Foi, a partir daí, que come-çou a luta dos países menos desenvolvidos por ‘um lugar ao sol’ e a Índia parecia o parceiro natural nessa luta. A passagem dele pela Nuclebrás também foi um período marcante. Talvez uma das maiores decepções dele. Uma tentativa frustrada de diminuir a influência americana. Mas, acima de tudo, a lembrança que fica é a de um homem muito respeitado por todos, aliados e adversários. E que respeitava os outros. Um verdadeiro di-plomata! Tenho certeza que se ele estivesse vivo (hoje estaria com mais de 80 anos), ele ainda estaria de uma forma ou de outra envolvido com a vida pública, e muito provavelmente adorando e se divertindo muito com o atual momento político que vivemos”. Do filho Olavo

“Seu amor pelo Brasil e sua sensibilidade social foram sempre fonte de inspiração da nossa brasilidade e da nossa formação humanista. Era muito exigente e detestava incompetência e falta de caráter. Como ne-gociador, era duro, mas transparente e confiável. Conquistava o respeito dos adversários. Incansável. Sua rela-ção com o ex-Ministro Olavo Setúbal foi um exemplo marcante. Divergiam ideologicamente em quase tudo, mas a relação de subordinação não era obstáculo. Tornaram-se amigos. Seu maior sonho era ser Chanceler. Liderar a Casa à qual tanto se dedicou. Quase chegou lá, e isso acabou sendo também sua maior frustração. Mas não transigiu com seus princípios. Lembro-me bem que nos meses que antecederam sua morte, ele an-dava muito triste e frustrado com as negociações no âmbito do Mercosul e da ALADI, e com a incapacidade da Casa em defender os interesses nacionais e ceder a pressões desnecessárias”.Do filho João

[ Lucas OLiveira BarBOsa Lima (turma 2009-2011) é BachareL em DireitO peLa universiDaDe FeDeraL De minas Gerais. ]

MEMóRIAS DE MONTEvIDéU, por Tadeu Valadares, embaixador em san José

“Lá estávamos nós, na ALADI. Reunião do Comitê de Representantes. Chegada do novo Em-baixador da venezuela. velhinho, velhinho. Simpático. Tradicional. Uma semana depois, debate no Comitê. PNB fumando seus charutos, como sempre. Impregnava. A mesa era redonda, enorme, para nela caberem o Presidente, todo o Secretariado e dois representantes por país. Lá pelas tantas, no auge do debate previsto na agenda, vem um jovem venezuelano pedir ao Embaixador que, se possível, não fumasse seus havanos, porque o Embaixador da venezuela era asmático, etc e tal. E por casualidade, os dois representantes venezuelanos sentavam exatamente em frente ao Embaixador e a mim. PNB imediatamente apagou o havano. E deixou de fumar durante as reuniões do Comitê. Dois meses depois, a gente querendo algo e os venezuelanos capitaneando a resistência. Bloqueando, negaceando, toda a missa de sempre. PNB se irritando. Usando toda sua sutil dialética, mas com pouco resultado. Então, puxou o havano. Acintosamente acendeu-o e mandou baforada sobre baforada em cima do venezuela-no. A gente acabou vitorioso nesse debate. Da vitória a gente em geral se lembra. Das grandes derro-tas, também. O venezuelano deve ter tido um ataque de asma...”

PNB e família em frente à Embaixada brasileira em Ottawa, onde serviu entre 1964 e 1967.

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perfil

SamucaDe frente com

Bianca sOteLinO DinataLe e eDen cLaBuchar martingO

FOtOs: WaLter sOtOmayOr, 2010. ceDiDas peLa sae.

Frequentemente apontado como um dos diplomatas com trajetória mais polêmica no Ita-maraty, o Embaixador Samuel Pinheiro Guima-rães é dono de opiniões políticas contundentes. E não se exime de manifestá-las. Em razão dessa postura, tornou-se alvo de críticas por parte da mídia e dos setores mais conservadores do Mi-nistério das Relações Exteriores, provocando, em diversas ocasiões, mudanças radicais no rumo de sua carreira. Essas mesmas opiniões políticas ren-deram-lhe ainda o estigma de anacrônico e retró-grado, defensor de uma utópica reestruturação do sistema internacional, visão de mundo que buscaria promover junto aos recém-empossados Terceiros Secretários. A JUCA propõe-se aqui a desvendar um pou-co da história do Embaixador, ex-Secretário-Geral e atual Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégi-cos do Governo Federal, que, a despeito de quais-quer julgamentos, não pode ser acusado de ter pas-sado despercebido na recente história diplomática brasileira.

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É tarde de quarta-feira. Somos conduzidos ao gabinete do Ministro por sua secretária; ele nos espera sentado em uma mesa de trabalho não muito grande, sobre a qual se vê o quadro do Presidente Lula, devidamente portando a faixa presidencial. Levanta-se e nos cumprimenta, convidando-nos a sentar. Sentamo-nos à ponta da enorme mesa de reuniões; ele na cabeceira, e nós dois, frente a frente. A sala é espaçosa. De um lado, estantes repletas de livros tomam quase toda a parede; do outro, a vista para o Congresso e para o Itamaraty. É uma nova perspectiva, sem dúvida. A primeira pergunta é feita por ele, sobre o Rio Branco. Quer saber o que estamos cursan-do, como nos sentimos em relação ao curso, pergunta-nos e dá, sem cerimônias, as respostas. Batemos papo, enfim. A naturalidade com que nos trata é notável, afinal esse homem é Ministro de Estado, Embaixador de carreira, sobre quem se cultivam as mais variadas histórias, de ampulhe-tas a memorandos copiados em papel carbono, o que ele veementemente nega.1 Estamos sentados com Samuel Pinheiro Guimarães e iniciamos a conversa. Decidimos explicar, antes de tudo, o propósito da entrevista. Não queremos saber sobre sua atuação como Secretário-Geral ou sobre seu polêmico ataque à ALCA durante o Governo Fernando Henrique Cardo-so. Buscamos suas origens, na tentativa de compre-ender a experiência desse homem de um tempo tão diferente do nosso, que está na diplomacia há mais de quarenta anos. Queremos saber justamente como foi esse começo. Ou seja, queremos descobrir o Samu-ca – como é chamado pelos alunos, nos corredores do Rio Branco – estudante, o Samuel Terceiro Secretá-rio, e não o Secretário-Geral ou o intelectual estabele-cido. Interessa-nos o caminho, não a chegada, e, mais ainda, os primeiros passos.

perfilJuCA - Ministro, o senhor é um homem de opiniões extremamente fortes, contundentes, muitas vezes polêmicas. Queremos saber como se consolidaram suas posições políticas e ideológicas. Momentos-chaves da sua vida e da sua formação, influências de amigos e familiares, livros. Como foi isso? Fiz a Faculdade Nacional de Direito, que era extremamente politizada. Entrei em 1958, momen-to importante do governo JK, por toda a questão da transferência da capital para Brasília. Eu tinha, por formação familiar, um interesse político muito

grande. Minha avó, mãe de meu pai, era muito po-litizada, tinha convicções republicanas e igualitárias muito fortes. Não conheci meu avô, marido dela. Mas havia todo um ambiente de republicanismo, até mesmo de posições muito progressistas que

eu, como jovem, percebia, principalmente da parte de minha avó e de algumas tias e tios. Fui fazer vestibular de Direito, porque eram as matérias que mais me interessavam... Histó-ria, Português... Era um bom aluno de português, e assim por diante. Tinha feito o curso científico. Na época, havia o clássico e o científico, mas decidi, no último ano, fazer vestibular para a faculdade de Direito.

JuCA – E antes da faculdade, na infância, adolescência, quais eram seus interes-ses? Por que fazer o científico, por exemplo? Na minha juventude, antes disso, acho que houve uma influência interessante. Eu morava no Flamengo, um bairro de classe média do Rio de Janeiro. Tinha um grupo de amigos de classe média e também convivia com algumas pessoas muito ricas. Ao mesmo tempo, gostava de jogar futebol, e jogava com meninos de rua, da favela, morado-res das casas de cômodo, subia a favela com eles... Então, eu podia observar o contraste de três ambientes: pessoas pobres, classe média, como eu era, e pessoas muito, muito ricas. Para vocês terem uma ideia, o governo brasileiro pediu a uma amiga de minha mãe que hospedasse em sua casa o Presidente americano, quando ele esteve no Brasil; não eram pessoas de poucas posses, portanto. Enfim, tinha a sensação de que havia alguma coisa injusta.

JuCA – E as circunstâncias pessoais, familiares, nessa mistura, como elas interfe-riram nessa percepção da injustiça? Minha avó paterna era Silveira Lobo, da linha de Aristi-des Lobo, signatário do Manifesto Republicano, abolicionista, político. Participou do primeiro governo republicano como Ministro do Interior. O pai de minha avó foi um deputado muito ativo no Império, Demóstenes Lobo. O pai do meu avô, por sua vez, tinha tido muita militância política. Era um ambiente familiar interessante, com muitas contradições – do lado materno, eram empresários do Ceará, com quem tinha pouco contato, muito conservadores. Eu estudava no colégio Santo Inácio, o colégio das pessoas da elite. Convi-via com essas pessoas e também com outras muito ricas. Meu pai tinha um grande amigo, Jaime Saldanha da Frota, da família de Saldanha da Gama. Tinha um irmão chamado

Todas essas questões tiveram influência na minha geração: a ideia de uma política externa independente, mais soberana.

1 Na edição da Revista VEJA de 22 de outubro de 2003, em que se traça um perfil do então Secretário-Geral, afirma-se que o Embaixador recorreria a uma velha ampu-lheta para regular o tempo dos despachos com seus subordinados e que ainda utilizaria papel-carbono para produzir cópias fieis de seus memorandos manuscritos.

Samuel Pinheiro com o amigo Celso Amorim, década de 1980 – antes de ocuparem os cargos mais altos do MRE.

(Foto cedida pelo Ministro de Estado, Embaixador Celso Amorim)

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Fernando Frota, muito rico, e tinham outra irmã, que era riquíssima. Minha mãe era amiga dessas pessoas, algumas muito ricas. Depois, na facul-dade de Direito, era um ambiente muito popular, uma faculdade pública, e não a faculdade católica, frequentada pela elite e pela classe média. Havia pessoas de todos os estados, pessoas das mais variadas, até em termos de idade, tinha colegas de 30 e poucos anos, convivia com negros, pessoas variadas, até de Mato Grosso, que naquela época era muito longe (risos). Era um ambiente muito variado, difícil de ter posições dogmáticas e ser muito preconceituoso. O pai do meu bisavô tinha sido do Itamaraty, muitas pessoas da minha famí-lia no passado tinham sido do Itamaraty, mas isso não me influenciou, porque era meu trisavô...

JuCA – A faculdade foi então determinante, não? O convívio com os colegas, professores... Entrei para faculdade de Direito e logo no primeiro ano comecei a trabalhar, trabalhava o dia inteiro. Trabalhava como office boy, e podia obser-var a vida das pessoas, as dificuldades. Estudava à noite e o ambiente era muito polarizado, muitos lacerdistas, a UDN, e havia o PSD também... Enfim, a vida era muita politizada. O ambiente, os alu-nos todos... A faculdade era muito envolvida com política estudantil e passei a participar da política da universidade, conhecia pessoas de outras fa-culdades também, da política estudantil. O Centro Acadêmico chamava-se CACO, o famoso CACO, e era considerado o mais atuante politicamente. Fiz o 1º, o 2º ano. Então, no final do 2º ano, fui eleito para ser secretário-geral de algo que se chamava Movimento de Reforma, agrupamento de esquer-da, que reunia socialistas, trotskistas, comunistas... E havia o outro partido, que se chamava ALA. Não me lembro da sigla, acho que era Aliança Liberal Acadêmica, enfim... E todo ano havia eleições para o Centro Acadêmico.

JuCA – E quando o Jânio foi eleito, quais as mudanças que vocês esperavam? A mudança de governo alterou muito esse clima político que você, como estudante, vivenciava? Na época das eleições, eu estava doen-te, tive uma espécie de hepatite, coisa assim, e inclusive ia ser candidato pelo Centro Acadêmi-co, mas não pude... E assisti pelo rádio à vitória do Jânio Quadros. A essa altura, já trabalhava no escritório de advocacia como estagiário, mas tinha um trabalho muito burocrático, “ir ao foro”, ver o andamento dos processos... Achava aquilo mui-to... (Pensativo) Decidi então entrar para o serviço público, na área que mais parecia com aquilo que me interessava, que era a política externa. Na época, já havia um debate muito grande sobre política externa, já havia ocorrido a Revolução Cubana... Então havia toda a questão cubana, a política externa do Jânio Quadros, que era uma política independente... Ele foi o precursor, sem dúvida, da Política Externa Independente. Não era janista, inclusive fiz a campanha ativamente para o General Lott... Fiz o concurso para o Rio Branco, passei. Havia parado de trabalhar, meu pai permitiu que eu parasse de trabalhar, mas me disse à época que eu tinha uma chance apenas, senão teria que voltar a trabalhar, e, se quisesse, poderia até continuar a estudar, desde que trabalhando. Naturalmente, estudei muito e passei. Fiz o 1º ano em 1962; o 2º, em 1963; e fui nomeado em novembro de 1963, alguns meses antes do golpe de 1964, que ocasionou modificação radical na política externa. Mas eu já estava nomeado Ter-ceiro Secretário (risos). Todas essas questões tiveram influência na minha geração: a ideia de uma política externa independente, mais soberana. Se vocês tiverem oportunidade, leiam o livro do Embaixador Leite Barbosa, conhecem? Não? Ah, é muito interessan-te! Ele era diplomata, Terceiro Secretário, e acom-

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panhava o Jânio permanentemente. Há outro ain-da, do CHDD (Centro de História e Documentação Diplomática), em que publicaram todos os bilheti-nhos do Jânio sobre política externa... Enfim, havia um ambiente muito rico de discussão de política externa na sociedade brasileira, em 1960. E eu passei [no Rio Branco] em julho de 1961.

JuCA – E como foi a entrada no Rio Branco, o convívio com os co-legas? Imagino que estavam todos, ou boa parte, vivendo aquele momento? Para vocês terem uma ideia, na minha turma, Santiago Dantas foi o paraninfo. Mas foi o nome de conciliação, porque o candidato da ala esquerda era Miguel Arraes e o da direita era Juscelino Kubitschek. Para vocês verem como minha turma estava mais à esquerda.... Tanto que o candidato dos conservadores era Jus-celino Kubitschek, que foi cassado. Então, era um momento muito especial da vida política... Ainda havia a Campanha do Petróleo é Nosso, a Petrobras foi fundada em 1954; toda a questão da industrialização do Brasil. Era um momento de efervescência social. (Pausa). Mas então houve logo o Golpe, apenas nove meses depois, foi um choque...

JuCA – E o convívio com colegas, os diplomatas? Havia colegas de vários tipos, de várias ten-dências políticas e de personalidades distintas...

JuCA – Como até hoje... Como até hoje... Minha turma era grande, de 40 pessoas, havia uma gama de posições políti-cas, naturalmente.

JuCA - Havia uma polarização muito forte, então? Não me lembro que tenha havido, não...

JuCA – Muita gente chamou o golpe de Revolução? Muitos, muitos... (pensativo) Não muitos, não. Na verdade, alguns eram mais entusiastas do novo regime. Outros não o eram, mas passaram a ser.

JuCA – E a decisão de continuar trabalhando no Itamaraty, mesmo obedecendo a um regime antidemocrático? Isso não era uma con-tradição, para uma pessoa que mostrou sempre uma voz tão crítica em relação a esse período? Como era na época a vida na instituição? Sempre achei que se pode trabalhar nas situações mais difíceis. Eu tinha tido uma militância estudantil, mas já estava afastado, no tempo do Rio Branco. Mesmo estudando, já não podia participar mais, tinha de estudar o dia inteiro. Não havia mui-

O que é importante, fundamental pra vocês é o estudo. Semprei achei isso, a leitura. Senão, vocês acabam se guiando por notícia de jornal...

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to tempo. Então, quando isso [o Golpe] ocorreu, já estávamos cada um em sua Divisão, ali, lidando com papéis. E, naturalmente, um Terceiro Secretá-rio não tinha participação política muito grande. Pouco tempo depois, fui trabalhar na Divisão de Cooperação Econômica e Técnica. Essa Divisão foi chefiada por Marina de Barros e Vasconcelos, pessoa de grande integridade, porque, naquela época, eu e outros colegas fomos denunciados como comunistas, socialistas... Foi instaurada uma Comissão de Inquérito. Eu era um dos mais jovens denunciados, éramos cerca de trinta, e a maioria era de diplomatas mais graduados do que eu.

JuCA – vocês foram acusados de atos específicos ou apenas de terem essas opiniões? Quer dizer, foram acusados por crime de consciência? Não fomos acusados por atos não, apenas pela suspeita de sermos “comunistas”... Não me lembro dos termos da denúncia. Eu, obviamente, fiquei preocupado... Preocupado, mas honrado... E, ela, Marina, teve uma atitude muito correta, em relação a isso tudo... Está viva ainda, tem noventa e poucos anos... Dessa Divisão, fui fazer um curso do GATT, chamado Comércio Internacional, porque eu tinha a ideia na época que era importante estudar Economia. Fizeram o curso, chamaram alguém do Itamaraty e eu fui o primeiro a fazer esse curso.

JuCA – Quanto ao estudo da Economia, e a decisão de fazer Mes-trado nos EuA? Isso chamou nossa atenção... Não havia muitas opções no Brasil. Quando fiz vestibular, a pessoa tinha três opções: ser en-genheiro, médico ou advogado. Ser economista, arquiteto, não tinha prestígio. Então não havia opção. E eu tinha um amigo, Marcio Monteiro do Rego, colega meu, que tinha sido professor do Rio Branco. Ele me estimulava muito, tinha estado em Columbia, e, depois, eu decidi estudar Economia,

porque achava importante estudar essa disciplina. Nessa época, já trabalhava com Paulo Nogueira Ba-tista, que também tinha estudado Economia. Talvez um dos maiores diplomatas brasileiros, dos mais preparados, mais competentes, de um nível muito acima dos melhores (veja perfil de Paulo Nogueira Batista, nesta edição da JUCA). Extremamente com-petente como diplomata e, por sua formação aca-dêmica, era muito trabalhador. Insisti que queria ir a Boston, grande Centro Acadêmico. E o cônsul era justamente o Marcio, que fazia Doutorado no MIT, já éramos amigos, ficamos mais amigos ainda. Era bom, porque eram menos obrigações e poucos funcionários. Então, havia maior disponibilidade de tempo, sem prejudicar o trabalho do Consulado.

JuCA – O senhor sofreu um choque ideológico, indo estudar justamente Economia nos EuA? Quer dizer, no Brasil, vivia-se o Desenvolvimentismo, mesmo com os militares... Isso não foi uma barreira? Minhas notas não eram muito altas, não (risos). Descobri isso rapidamente. O sistema ame-ricano não tem uma avaliação muito precisa, isso leva as pessoas a entrarem no mainstream, senão o risco é muito alto, de ter notas mais baixas, es-pecialmente para os bolsistas. Porque se você tem uma posição mais independente, mais heterodo-xa, e tira notas mais baixas, essa nota é “reported”, é enviada para a instituição. A necessidade de tirar notas altas induz o indivíduo a tentar corres-ponder às expectativas do mestre. Então, há um processo de enquadramento, que leva os indiví-duos a internalizarem determinadas posições e a racionalizarem suas posições, porque é ruim para o indivíduo, como ser humano, achar que adota uma determinada posição para tirar uma nota, então ele prefere se convencer de que acredita nela... Então eles racionalizam...Enfim... Acho que essa é um pouco da minha experiência de começo de carreira, de formação...

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[ Bianca sOteLinO DinataLe (turma 2009-2011) é Bacharel em relações InternacIonaIs pela pontIfícIa unIversIdade católIca do rIo de JaneIro. ][ eDen cLaBuchar martinGO (turma 2009-2011) é Bacharel em fIlosofIa pela faculdade de fIlosofIa, letras e cIêncIas humanas da unIversIdade de são paulo e pós-graduado em negócIos InternacIonaIs pelo centro unIversItárIo da cIdade, no rIo de JaneIro. ]

O que é importante, fundamental pra vocês é o estudo. Semprei achei isso, a leitura. Senão, vocês acabam se guiando por notícia de jornal...

Toca o telefone, ele atende, percebemos que o tempo está se esgotando – ele fala sobre o Plano Brasil 2022, conversa. Sentimo-nos um pouco constrangidos, na verdade, invadindo o espaço do Ministro. Quebra-se a atmosfera da entrevista. Tentamos fazer a última pergunta, mas ele se desculpa, diz que tem uma reunião marcada. Pergunta se lemos seus livros, não

parece muito convencido quando respondemos que sim... Saímos ainda com a última pergunta engasgada – questioná-lo se, após tantos anos de Itamaraty, recém-aposentado, mas ainda se ocupando de aspectos de Política Externa como Ministro dos Assuntos Estratégicos, ele se sentiria um pouco um gigante de outrora, observando as novas gerações chegarem e passarem. De alguma forma, essa é um pouco a impressão que fica, quando nos despedimos. Mas, ao contrário daqueles titãs mitológicos que há muito desapa-receram, ele não dá sinais de querer sair de cena.

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Marias

meLina espeschit maia e tainá guimarães aLvarenga

As mulheres e a diplomacia pelo olhar das Embaixadoras do Brasil na ONU

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Brazildo

Em 1918, duas audaciosas mulheres, de nome Maria, decidiram que queriam ser diplo-matas. Diante de reposta negativa aos pedidos de inscrição no concurso, uma delas procurou o advogado Rui Barbosa. A avaliação do advogado foi favorável – não havia disposição alguma na le-gislação brasileira que impedisse sua inscrição – o artigo 73 da Constituição de 1891, sobre a elegi-bilidade para cargos públicos, utilizava o termo “todos os brasileiros”, sem discriminar o sexo. Foi então que o Ministro das Relações Exteriores, Nilo

Peçanha, aceitou as inscrições das duas mulheres que aspiravam à carreira naquele ano. Mas não deixou de ponderar: “Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, vide tantos attributos de discrição e competência são exigidos, bem que não são privilégio do homem – e si a requerente está apparelhada para disputar um logar na Secretaria de Estado (...) o que não posso é restringir ou negar o seu direito (...) Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que continuassem a direcção do lar,

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Embaixadoras acompanham o Ministro Celso Amorim em reunião do Conselho de Segurança em setembro de 2010.

(Germano Corrêa/MRE)

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taes são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração, desde que fiquem provadas suas aptidões.” Talvez para a incredulidade do Ministro Peçanha, umas das Marias – Maria José de Castro Rebello Mendes – foi aprovada em primeiro lugar em um concurso que exigia, entre as matérias tradicionais, o conhecimento de cinco línguas, caligrafia, datilografia, álgebra e aritmética. A aceitação do ingresso de Maria José não deixava de ser uma decisão inovadora para a época. O Jornal carioca A Rua chegara a aler-tar – “o Itamaraty está sofrendo de uma perigosa tendência feminista”. Países como Estados Unidos e França ainda não admitiam mulheres na carreira diplomática e só modificaram a regra em 1922 e 1930, respectivamente. Nos dezenove anos seguintes, dezoito mu-lheres ingressaram na carreira. Em 1938, no entan-to, na gestão Oswaldo Aranha, ficou determinado explicitamente, por decreto, que ao concurso somente poderiam concorrer candidatos do sexo

masculino. Com isso, o ingresso de mulheres na carreira ficou proibido por 24 anos. A questão da entrada de mulheres – bem como a da proibição do casamento de diploma-tas brasileiros com estrangeiras – manteve-se, por todos esses anos, como tabu nos corredo-res do Itamaraty. A dificuldade de trabalhar em países “hostis”, além de outras peculiaridades da carreira, tornariam a diplomacia inapropria-da para mulheres. Alguns questionavam esse entendimento e argumentavam que muitos países apresentariam dificuldades também para o trabalho dos homens. Chegou a ser aventada a possibilidade de se abrir o concurso também para mulheres, desde que aumentado o número de vagas. Somente em 1953, uma mulher foi no-vamente aprovada no concurso – mas também precisou da ajuda de advogados para assumir o cargo. Maria Sandra Cordeiro de Mello entrou por força de mandado de segurança, o que levou, em 1954, a novo decreto que permitiu o ingresso de

Caminho Tortuoso Muitos postos de representação do Brasil no exterior são chefiados hoje por diplomatas mulheres, realidade muito distante daquela vivenciada pela primeira Embaixadora do Itamaraty, Odete de Carvalho e Souza, que chefiou o Departamento Político do Ministé-rio de 1956 a 1959. Em 1996, o MRE contava com somente três Embaixadoras, hoje já são 21. Segundo as entrevistadas por JUCA, o grande impulso para que mais mulheres che-gassem aos postos mais altos da carreira ocorreu durante a gestão do Chanceler Celso Amorim e do Secretário-Geral Samuel Pinheiro Guimarães. Atualmente, além das Embai-xadoras, outras oito mulheres – Ministras de Segunda Classe – chefiam Embaixadas ou Consulados brasileiros. Os postos são os mais variados: da Eslováquia à Nova Zelândia, de Israel à Palestina.

perfildiplomatas do sexo feminino. Mas as dificuldades não pararam por aí. Hoje as mulheres são apenas 27% dos diplo-matas brasileiros. No nível mais alto da carreira – o de Ministro(a) de Primeira Classe – elas representam apenas 12%. Ainda não foi possível superar a média de 25% de mulheres em turmas do Instituto Rio Branco. Se, após a ampliação do quadro, o número absoluto de diplomatas aumentou, proporcional-mente, as mulheres continuam sendo minoria. Ainda que em número modesto, nossas Embaixadoras começaram, nos últimos anos, a assumir Subsecretarias-Gerais, Chefias de Gabine-te e postos nos quatro cantos do mundo. A JUCA

investigou a trajetória de algumas delas para tentar entender se existem motivos reais para que o número de mulheres na carreira diplomática continue a ser tão pequeno. Tentamos também entender quais são as peculiaridades da carreira das mulheres em uma instituição onde predominam pessoas do sexo masculino. Nossas entrevistadas são, ou serão em bre-ve, Embaixadoras do Brasil em postos multilaterais de prestígio. Todas trazem “Maria” no nome. São profissionais que provam que, apesar das dificul-dades, a combinação entre mulher e diplomacia pode ser muito bem sucedida.

Não passou despercebido aos participan-tes que a delegação do Brasil para a Conferência de Revisão das Metas de Desenvolvimento do Milênio, convocada pelo Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon, em setembro último em Nova York era composta por cinco mulheres: a Ministra Már-cia Lopes, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; a Ministra Nilcéia Freire, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, e três Embaixadoras: Maria Luiza Viotti, Regina Dunlop e Vera Machado (Subsecretária-Geral Política I). Conta a Embaixa-

Embaixadora MARIA LUIZA RIBEIRO vIOTTIREPRESENTANTE PERMANENTE DO BRASIL JUNTO À ONU EM NOvA YORK

“But what is happening in Brazil, a revolution?” Casada, um filho. Serviu em La Paz e, por três vezes, em Nova York.

dora Maria Luiza que, ao passar em frente da ban-cada brasileira, a Chanceler alemã, Angela Merkel, parou e perguntou: “But what is happening in Brazil, a revolution?”. Há três anos à frente da Missão do Brasil junto à ONU em Nova York, a Embaixadora Maria Luiza Viotti é parte e testemunha das grandes transformações ocorridas nos últimos anos no Brasil e no Itamaraty. Tendo sido Diretora do De-partamento de Direitos Humanos e Temas Sociais e do Departamento de Organismos Internacio-

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nais, foi a primeira Embaixadora a assumir o cargo de Represen-tante Permanente do Brasil junto à ONU. Nascida em Belo Horizonte, é uma das poucas mineiras entre os diplomatas de sua geração. Quando o Ins-tituto Rio Branco ainda ficava no Rio de Janeiro e não havia política clara de divulgação da carreira, a quantidade de pessoas de outros estados a ingres-sarem no Itamaraty era pequena. Quando decidiu prestar o concurso, cursava a faculdade de Econo-mia, mas achou que a possibilidade de representar o Brasil no exterior e de trabalhar com uma grande variedade de temas seria mais interessante do que dedicar a vida a números e tabelas. Foi a única mu-lher da turma de 1975, que formou 12 diplomatas. A Embaixadora sempre procurou conciliar as saídas para o exterior com os interesses pro-fissionais do marido, Eduardo Viotti. Sua primeira remoção, por exemplo, demorou a acontecer, mas coincidiu com o momento em que ele faria doutorado no exterior. Optou por não emendar postos, o que permitiu que Eduardo desse maior continuidade à sua carreira e que o filho deles não perdesse o vínculo com o Brasil. Esta é a terceira vez que a Embaixadora serve na Missão do Brasil junto às Nações Unidas. Apenas 25 outras mulheres ocupam o cargo de Representante Permanente em Nova York, num total de 192 representações. Em relação à quan-tidade de mulheres trabalhando como funcioná-rias das Nações Unidas, a Embaixadora observa que, ainda que a Organização tenha uma política expressa de promoção das mulheres, ainda são

poucas as que ocupam os cargos mais altos. A Embaixadora se diz fascinada com o trabalho em Nova York, que permite convivên-cia com grande diversi-dade de países e cultu-ras. Representar o Brasil, comenta, é especial-mente gratificante dada a grande capacidade de interlocução conquis-

tada, seja com países desenvolvidos, seja com países em desenvolvimen-to. Observa o aumento do protagonismo do País nos últimos anos e assevera: “sempre temos uma contri-buição a dar, somos ouvidos com atenção e muitas de nossas práticas acabam se tornando referência”. Momento importante de sua atuação como Embaixadora do Brasil em Nova York foi a eleição do País para a Presidência da Configura-ção Específica para Guiné-Bissau da Comissão de Construção da Paz (CCP). Foi a primeira vez que um país em desenvolvimento presidiu esse tipo de iniciativa. Outro momento marcante ocorreu no dia 9 de junho de 2010, quando os holofotes do mundo diplomático estavam voltados para o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que votava mais uma rodada de sanções contra o Irã. Quando o Presidente do Conselho anunciou que a primeira a falar seria a Represen-tante Permanente do Brasil, a Embaixadora Maria Luiza, com calma e segurança, anunciou o voto brasileiro: “Mr. President, Brazil will vote against the draft resolution”. Apesar da visibilidade, ela garante que o dia da votação não foi especial-mente tenso ou difícil, já que a posição do Brasil era bem fundamentada e coerente.

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Embaixadora MARIA NAZARETH FARANI AZEvÊDOREPRESENTANTE PERMANENTE DO BRASIL JUNTO À ONU EM GENEBRA

“A minha experiência é que a dedicação e o trabalho nessa carreira compensam” Casada, duas filhas. Serviu em Washington, Montevidéu e, por duas vezes, em Genebra.

Antes de entrar para o Instituto Rio Bran-co, Maria Nazareth, ou Lelé – como é conhecida no Itamaraty –, já conhecia vários diplomatas. Logo que passou no concurso, encontrou uma Embaixatriz que, em vez de dar-lhe os parabéns, disse-lhe: “Esta é não é uma carreira para mulhe-res. Meus pêsames”. A Embaixadora garante: “se eu tivesse que escolher de novo, escolheria a mesma carreira”. Relata que, quando começou a trabalhar, notava que seus chefes não esperavam muito empenho e determinação das jovens secretárias. A percep-ção era a de que logo se casariam e se acomoda-riam, deixando suas ambições profissionais em segundo plano, para que o marido pudesse ir adiante. “Nada era esperado de mim, então eles se surpreendiam”. Quando ingressou no IRBr, já namorava Roberto Azevêdo – hoje Embaixador junto à Orga-nização Mundial do Comércio – que então decidiu prestar o concurso. Engenheiro elétrico, acabou se interessando pelo Itamaraty e ingressou no Rio Branco um ano depois. O casal foi removido pela primeira vez logo após o fim da proibição para que casais de diplo-matas trabalhassem no mesmo posto – nenhum dos dois teve, portanto, que “agregar”, ou seja, parar de trabalhar para seguir o cônjuge. Foram

removidos para Washington com a condição de ganhar salário reduzido - “era um mal, mas pelo menos possibilitou que os dois trabalhassem”. Recorda que, mesmo com essa condição, havia Embaixadores que torciam o nariz e não aceita-vam que casais trabalhassem em suas Embaixadas “nem por cima de seu cadáver”. O motivo era bas-tante mesquinho: não podiam admitir que dois subordinados, por serem casados, ganhassem um salário maior ou próximo ao seu. A Embaixadora afirma, com segurança, que nunca foi preterida em nenhuma promoção ou chefia pelo fato de ser mulher. “Se algum dia fui discriminada, foi positivamente, e não negati-vamente”, garante. Isso não significa, todavia, que não tenha passado por situações inusitadas. Uma delas ocor-reu logo após começar a trabalhar no Gabinete do Ministro de Estado, em 2003, onde era responsá-vel por temas como saúde, trabalho e igualdade de gênero. Relata que, certa vez, ao ser apresen-tada pelo Ministro Celso Amorim como sua asses-sora para temas sociais a funcionária graduada de outro Ministério, foi surpreendida pela reação: “Ah, então é você quem organiza os coquetéis!” A Embaixadora destaca um aspecto bastante peculiar da carreira das diplomatas: a maternidade. Reconhece que, ainda que seja

Maria Luiza Viotti e Ban Ki-Moon.

(Arquivo pessoal)

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possível equilibrar os dois lados – o profissional e o pessoal – às vezes é inevitável que se tenha de fazer alguns sacrifícios. E o fato de as mulheres se sentirem mais divididas entre os dois lados pode acabar modificando o rumo de suas carreiras. Admite ter “feridas” por não ter podido passar o tempo que gostaria com as filhas, por não ter es-tado presente em momentos importantes de suas

vidas. Sublinha, no entanto, que “a carreira não pode ser culpada por isso, porque são escolhas pessoais”. Outro aspecto peculiar do trabalho das mulheres é o papel da feminilidade. Recente-mente, organizou em sua casa o “Lipstick Dinner”, que reuniu as 25 Embaixadoras acreditadas em Genebra, além da Alta Comissária para Direitos Humanos da ONU. Nessa noite, cada uma das Embaixadoras compartilhou suas experiências profissionais e pessoais com as demais colegas. O jantar serviu para estreitar os laços entre elas e estimulou-as a trabalhar mais unidas. Mas a principal mensagem que ela quis transmitir para as suas convidadas foi a de que as mulheres não precisam imitar os homens para serem verdadei-ras profissionais. Mulheres e homens são diferen-tes, fazem política de forma diferente, e é bom que seja assim. Como dica às novas gerações, a Embaixado-ra recomenda, a partir de sua própria experiência profissional, muita dedicação, por acreditar que o reconhecimento sempre vem, mesmo que a mé-dio ou longo prazo – “a minha experiência é que a dedicação e o trabalho nessa carreira compensam”.

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Embaixadora REGINA MARIA CORDEIRO DUNLOPREPRESENTANTE ALTERNA DO BRASIL JUNTO À ONU EM NOvA YORK

“Peculiar na carreira feminina é aguentar o salto alto o dia todo”Casada. Serviu em Londres, Pequim e Nova York.

Braço direito da Em-baixadora Maria Luiza Viotti em Nova York, a Embaixadora Regina Maria Dunlop é re-presentante alterna do Brasil junto à ONU desde 2009. In-gressou na carreira em 1981, após ter feito mestrado em linguística no Reino Unido e trabalhado como professora da matéria. “Me sentia muito bem no ambiente multilateral que o mestrado no exterior me proporcionou”, diz, “por isso resolvi fazer o concurso”. Para a Embaixadora, diferentemente de outras carreiras, a diplomacia é mais que um emprego, é um modo de vida, pois permeia a vida da pessoa em todos os sentidos. Amplia o círculo de amigos e de-termina os passos mais importantes da vida pessoal. A Embaixadora Regina Dunlop é casada com um colega da carreira – o Embaixador Ronal-do Dunlop, hoje Cônsul-Geral do Brasil em Har-tfort. Trabalharam juntos em dois postos: Londres e Pequim. Para administrarem a vida em comum e as respectivas carreiras, trabalham hoje em cida-des diferentes, mas próximas.

Lembra que, em seu primei-ro posto, recebia somente 2/3 do salário do marido. A lógica utilizada pela administração era a de que, como o casal dividia residência, não preci-sava receber a parte do salário atribuída a “representação”. Observa, no entanto, que, en-quanto seu marido trabalhava com assuntos consulares, ela tratava de assuntos econômi-cos, ou seja, seus interlocutores eram bem diferentes. O mes-mo teria ocorrido em Pequim, quando tratava de Ciência e Tecnologia, enquanto o Embai-

xador Ronaldo cuidava de assuntos econômicos. Uma medida administrativa que facili-tou carreira das mulheres foi a flexibilização das normas sobre casamento. Até a década de 1980, não era permitido a casais de diplomatas traba-lharem juntos no exterior – um deles era obrigado a “agregar”. A regra foi flexibilizada, mas não sem restrição: os dois poderiam trabalhar juntos, mas somente um poderia receber salário integral. Para a Embaixadora, a carreira ainda assusta mulheres que a consideram incompatí-

(Arquivo pessoal)

(Arquivo pessoal)

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vel com a constituição de uma família: “Muitas se assustam com a mobilidade permanente que a carreira impõe”. Recorda, no entanto, que a maioria das Embaixadoras de hoje conseguiram conciliar carreira e família com sucesso. Acredita não existir peculiaridades na car-

reira feminina. “Uma dificuldade para a família po-deria ser o elevado número de eventos de repre-sentação, que exigem ao diplomata trabalhar fora do horário convencional”. A Embaixadora brinca que “peculiar na carreira feminina é trabalhar de salto alto o dia todo”.

Embaixadora MARIA LAURA DA ROCHACHEFE DO GABINETE DO MINISTRO DE ESTADO E FUTURA REPRESENTANTE PERMANENTE DO BRASIL JUNTO À UNESCO

“Só não aproveita a carreira quem não tem imaginação”Casada, duas filhas. Serviu em Roma (duas vezes), Moscou e Paris.

Quando chegou a hora de tentar a primeira remoção, a então Segunda Secretária Maria Laura da Rocha quis ir para Paris, trabalhar na Delegação do Brasil junto à UNESCO. Ficou bastante decepcio-nada quando soube que o Embaixador não pode-ria recebê-la, alegando que a Delegação já tinha diplomatas demais. Acabou sendo removida para o posto que era sua segunda opção: Roma. Foi em Roma que Maria Laura conheceu o italiano Sandro, seu marido há 27 anos, que agora começa a arrumar as malas para Paris, onde a Embaixadora chefiará o posto que lhe foi negado em sua primeira remoção. Maria Laura decidiu entrar para a carreira diplomática aos 14 anos. Almejava ter a experiên-cia de viver no exterior, mas sabia que não teria condições financeiras para realizar esse desejo, já que seus pais eram funcionários públicos. Ingres-sou no Instituto Rio Branco em 1977, em uma das turmas com maior número de mulheres: 7 entre

18 aprovados – uma “expressiva” parcela de 38%. Sobre o número reduzido de mulheres na carreira diplomática, Maria Laura observa que, da mesma forma como as mulheres são minoria no Itamaraty, são também minoria no Congresso e em outras instâncias de poder. Isso porque uma carreira política, como a diplomática, deixaria as mulheres um pouco “amedrontadas”, temerosas quanto à capacidade de conciliar carreira e filhos. Sua vida familiar é uma demonstração de que “não há modelos ou receitas” de como lidar com o dilema família/carreira. Seu casamento sobreviveu a sete anos de ponte aérea: primeiro, Roma-Moscou, depois, por duas vezes, Roma-Brasília. Em relação a suas filhas, acredita que elas só tiveram a lucrar com a oportunidade de viver no exterior. Admite que o empenho na carreira pode acabar resultando em menos tempo dedica-do aos filhos – mas acredita que este dilema não é exclusivo das mulheres no Itamaraty, mas sim

perfilde todas as mulheres que estão no merca-do de trabalho. Sublinha que o essencial é saber administrar o tempo: “o importante é a qualidade do tempo dedicado à família, não a quantidade”. Maria Laura acredita que a presen-ça de mais mulheres no Itamaraty seria importante, entre muitos outros motivos, por uma razão gerencial simples: “é impor-tante ter equipes mistas”. Quando um gru-po de trabalho é formado exclusivamente por homens ou por mulheres, a forma de pensar acaba sendo semelhante e a chan-ce de erro, maior. Quando questionada sobre se teria sofrido algum constrangimento na car-reira por ser mulher, Maria Laura responde com firmeza: “nenhum”. Acha, inclusive, que o fato de ser mulher a ajudou, e lhe deu a liberdade para expressar suas opiniões sem maiores constran-gimentos. Sabe, no entanto, que sua opinião é peculiar: “em 33 anos de Itamaraty, o que vejo em geral é que a carreira é, sim, difícil para as mu-lheres. Não são todos os chefes que gostam de trabalhar com mulheres, às vezes acham que você só é bem sucedida porque é bonitinha”. Quando foi promovida a Embaixadora, em junho de 2008, Maria Laura tornou-se a primeira brasileira negra a alcançar essa posição. Alguns meses depois, assumiu a chefia do Gabinete do Mi-nistro de Estado – “uma experiência incrível, única. Sempre acho que nunca vou conseguir fazer nada melhor do que eu estou fazendo aqui”. Mas não é a primeira vez que tem esse sentimento: “a carreira sempre me surpreendeu, e sempre para melhor”. A opção pela Delegação do Brasil junto

à UNESCO teria ocorrido pela oportunidade rara de trabalhar com uma Organização que tem uma agenda exclusivamente positiva. A Embaixadora está entusiasmada com a perspectiva de voltar a trabalhar na área de ciência (ela trabalhou no Ministério da Ciência e Tecnologia durante quatro anos, também como Chefe de Gabinete) e com a comunidade científica brasileira que, segundo ela, tem uma criatividade inesgotável. Apesar de estar indo para um posto de destaque, a Embaixadora Maria Laura acredita que é preciso acabar com o mito de que só alcança o sucesso profissional no Itamaraty quem chefia um Posto “A”. Quem se preocupa em estar sempre na frente, em nunca “levar carona”, acaba se frustran-do e não usufruindo as coisas boas que a carreira proporciona. Em suas palavras: “é preciso apro-veitar, porque essa carreira oferece muito. Só não aproveita a carreira quem não tem imaginação”.

[ meLina espeschit maia (turma 2006-2008) é Bacharel em relações InternacIonaIs pela unIversIdade de BrasílIa e mestre em dIreIto InternacIonal púBlIco pela unIversIdade de nottIngham (Inglaterra). ]

[ tainá Guimarães aLvarenGa (turma 2009-2011) é Bacharel em relações InternacIonaIs pela unIversIdade de são paulo. ]

(Rafael Caminha de Carvalho Beltrami)

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dossiê

Paísesinvísiveis

Olhares sobre o Brasil

O grande conquistador mongol, Kublai Khan, senhor de vasto império e no auge do poder, sentia-se incompleto. Por baixo do orgulho que o insuflava ao cogitar a amplitude de seus domínios, percebia assomar uma sensação contraditória: a angústia de não conhecer seu próprio país. Assim, ansiava pelos relatos feitos pelo renomado viajante Marco Polo, que lhe descrevia as maravilhosas cidades pelas quais passara em suas perambulações. é esse o fio que tece a obra Cidades In-visíveis, de Italo Calvino: “(...) este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma (...) Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destina-das a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino (...)”1. Àqueles desejosos de conhecer o próprio país, fotos feitas por satélites e toda a tecnologia contemporânea pouco mais aju-dam que os mapas e atlas de que dispunha o imperador Kublai. O verdadeiro país que pulsa no território se faz de vivências, se desenha com olhares e se transmite por relatos. Construímos com nossa história o Brasil em que vivemos (pág. 45) – mas o mesmo país é, ao mesmo tempo, formado pelas percepções ex-teriores (pág. 40), pelas experiências de estrangeiros radicados em terra brasilis no presente (pág. 42) e no passado (pág. 47). São tantos e tão imponderáveis os tijolos necessários para a constru-ção da identidade de uma nação (pág. 52) que o esforço de bus-car compreendê-los faz-se não apenas essencial para o exercício das relações internacionais, mas um fascinante e interminável exercício de descoberta. é essa a proposta deste Dossiê: oferecer um ponto de partida para a descoberta dos países invisíveis dos quais fazemos parte e que, percebamos ou não, fazem parte de nossas vidas.

1 CALvINO, Italo. As Cidades Invisíveis. Companhia das Letras, 1972. Páginas 9-10.

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EL SALVADOR“O povo salvadorenho hoje vê o Brasil como um país muito mais próximo ao nosso. A política de cooperação desenvolvida pelo MRE salvadorenho em parceria com o governo do Brasil ja está produzindo resultados muito positivos. As visitas do Presidente Funes ao Brasil e do Presidente Lula a El Salvador têm aumentado o interesse dos empresários brasileiros em investir no nosso país. Já temos várias empresas brasileiras no nosso território. Hoje em dia, o Brasil é visto por nosso governo como um aliado estratégico dos mais importantes para o fortalecimento da nossa democracia e de nossas parcerias comerciais.” Rina del SocoRRo angulo, embaixadoRa de el SalvadoR no bRaSil

“Qual é a primeira coisa que vem à mente das pessoas no seu país, quando pensam no Brasil?” Feitas tantas vezes para quebrar o gelo nas conversas com estrangeiros que acabamos de conhecer, perguntas como essa provocam respostas que oscilam do previsível clichê ao comentário mais inusitado. Não geram conhecimento sociológico que ampare decisões políticas, mas permitem valiosos vislumbres da tela de subjetividade através da qual somos vistos. São primeiras impressões – e, afinal, sempre interessará saber se o interlocutor vê no Brasil uma bossa, um perfume de coco, uma batucada, um nascer do sol no mar, uma dissonância, um mau-hábito, uma nostalgia, um sonho. Ou um pesadelo tropical sem solução. As expressões, cores e sons usados para descrever o nosso país podem ser reveladores. Reconhecer as noções fundamentais que o exterior tem do país é crucial – não apenas por ser um convite à reflexão sobre a identidade nacional, mas também por conduzir à avaliação da distância entre o que achamos de nós mesmos e as visões alheias. Foi nesse espírito que os alunos da turma 2009-2011 do Instituto Rio Branco dirigiram essa pergunta às delegações estrangeiras que acompanharam durante o III Fórum da Aliança de Civilizações, realizado nos dias 28 e 29 de maio de 2010, no Rio de Janeiro. Confira algumas das respostas ouvidas:

Colaboraram os seguintes Secretários da turma 2009-2011 do Instituto Rio Branco: Aminthas Angel Cardoso Santos Silva, Bruno Carvalho Arruda, Diego Oger Fonseca, Francisco Jeremias Martins Neto, Gérson Cruz Gimenes, Guilherme Gondin Paulo, Gustavo Fávero de Souza, Hélio Maciel de Paiva Neto, Jonas Paloschi, José Roberto Hall Brum de Barros, Leonardo Collares, Lígia de Toffoli Morais, Marco Sparano, Mariana Maciel Fonseca, Renata Rossini Fasano, Vinicius Chagas Dias Coelho, William Silva dos Santos.

primeiras impressões

“O Brasil é um ator com relevância cada vez maior no sistema internacional e muitos dos mais importantes temas da agenda internacional não podem obter soluções relevantes se delas não fizer parte o Brasil – como a agenda ambiental, por exemplo, de que o Brasil é grande expoente.”

(Ban Ki Moon, Secretário Geral da ONU, em entrevista concedida no evento)

MARROCOS“O Brasil é um exemplo de êxito econômico e democrático com o qual temos muito o que aprender. Temos orgulho do Brasil, enquanto representante dos países emergentes, e apoiamos sua aspiração legítima a maior influência no cenário internacional.”latifa akhaRbach, miniStRa-delegada de negócioS eStRangeiRoS do maRRocoS

CONGO (BRAZZAVILLE)“O Brasil é famoso pelo futebol, pelo samba e pelas mulheres. O que não é uma imagem ruim!”Jean claude gakoSSo, miniStRo de cultuRa e aRteS da República do congo (bRazzaville)

TANZâNIA“Até algum tempo atrás, o Brasil era lembrado principalmente pelo futebol, o que mudou recentemente para a imagem de uma potência econômica emergente, muito associada à criação dos BRICs.”embaixadoRa begum taJ, encaRRegada de coopeRação multilateRal no miniStéRio daS RelaçõeS exteRioReS na tanzânia

INDONÉSIA“O Brasil desempenhará um papel mais significativo em foros e esferas regionais e multilaterais, como BRICs, MERCOSUL, G-20 e ONU. O Brasil merece manter sua boa imagem, com a forte liderança do Governo Lula, e continuará a colher uma reputação melhor após as eleições de outubro, se organizar uma eleição transparente e democrática. Indonésia e Brasil poderão trabalhar juntos em muitas áreas no futuro.”miniStRo-conSelheiRo Sahat SitoRuS, miniStéRio daS RelaçõeS exteRioReS da indonéSia

NOVA ZELâNDIA“O Brasil é um exemplo – talvez único – de tolerância, convivência e mistura de raças, além de crescimento econômico, o que leva ao aumento de sua importância no cenário político internacional. O Brasil está adotando um modelo de desenvolvimento diferenciado, voltado não apenas para a economia, mas para a inclusão social e cultural da população.”meRvin Singham, diRetoR do eScRitóRio de aSSuntoS étnicoS da nova zelândia

EMIRADOS ÁRABES UNIDOS“A maior força do Brasil é sua identidade única. À medida que se torna uma potência global, o país deveria lutar para manter sua identidade. O Rio é uma cidade linda, fantástica, mas não deve se tornar Hong Kong, Cingapura, ou Nova York para ser desenvolvida. Mesmo resolvendo os problemas urbanos, o Rio precisa permanecer Rio, ou então o desenvolvimento não terá valido a pena. O mesmo vale para o Brasil.”abdul Rahman mohammed bin naSSeR al owaiS, miniStRo da cultuRa, Juventude e deSenvolvimento comunitáRio doS emiRadoS áRabeS unidoS

AFEGANISTãO“O Brasil, hoje, é um país muito importante em questões ambientais e energéticas. Bem de acordo com o tema da Aliança das Civilizações, o país lida positivamente com questões étnico-religiosas-culturais.”mohammed eRfani ayoob, miniStRo-conSelheiRo e vice-RepReSentante do afeganiStão na onu

CHIPRE“O Brasil se tornou muito influente, ativo e respeitado. Concordando-se ou não com suas políticas, a nova posição brasileira deve ser levada em consideração. Isso se deve a seu desenvolvimento econômico, ao G-20 e aos BRICs, mas também pesa a influência que agora detém sobre um grande grupo de países, principalmente aqueles em desenvolvimento. Esse novo papel do Brasil vai perdurar. Não é temporário.”maRkoS kipRianou, miniStRo daS RelaçõeS exteRioReS do chipRe

JORDâNIA“O Brasil é uma “rising star” no cenário político internacional, como demonstram sua liderança na América do Sul e sua reputação como excelente negociador em questões de fundo. Mencionaria o crescente papel do Brasil como “broker” no Oriente Médio, como exemplificaram a liberação da francesa Clotilde Reiss, a mediação do acordo nuclear do Irã juntamente com a Turquia, e sua postura firme em busca da paz e da reconciliação na região.”embaixadoR Ramez gouSSouS, RepReSentante e miniStRo plenipotenciáRio da JoRdânia em bRaSília

ALBâNIA“Na Albânia, os jovens só pensam no Brasil como um lugar de festas! Os mais velhos o ligam ao Partido Comunista, especialmente pós-64, uma vez que alguns brasileiros foram para Albânia e trabalharam intensamente lá, inclusive aprendendo albanês e trabalhando na rádio estatal. Como se sabe, a Albânia era o mais fechado dos comunistas. Quando servia em Paris, paguei uma das passagens de Lula para fazer cursos na Albânia, no começo dos anos 80, final dos 70...”beSnik muStafaJ, ex-miniStRo daS RelaçõeS exteRioReS da albânia

DINAMARCA“O Brasil tem tudo em grande escala! Imensos recursos naturais, uma herança cultural vibrante, um povo amistoso e engenhoso, uma produção agrícola em constante expansão, um ambiente dinâmico para negócios e um peso crescente na política global e em assuntos econômicos. As Olimpíadas de 2016 serão uma grande ocasião para dar visibilidade ao Brasil e à sua influência internacional em expansão. Também será o caso da Copa do Mundo de 2014.”michael lund JeppeSen ,chefe do depaRtamento de oRiente médio e áfRica do noRte do miniStéRio de aSSuntoS eStRangeiRoS dinamaRquêS, e ponto focal na adc

LITUâNIA“Para nós, o Brasil ainda é um país muito distante e desconhecido. É óbvio que conhecemos o futebol e sua tradição em competições internacionais. Também conhecemos o basquete brasileiro, mas, em geral, os lituanos não sabem o que é o Brasil. A multiplicidade étnica e a tolerância são um exemplo interessante para outros povos e dão um caráter especial à participação internacional do Brasil. Também acompanhamos sua emergência na participação política, seu novo mandato no CSNU e seu envolvimento em questões diversas.”RidaS petkuS, chefe do depaRtamento de naçõeS unidaS e políticaS globaiS do miniStéRio daS RelaçõeS exteRioReS da lituânia

UCRâNIA“O Brasil é o país do futuro, assim como China e Índia; seria um B(R)IC, pois a Rússia não está nessa categoria. O Brasil também se destaca como líder regional e devido a ações de cunho humanitário.”SeRgei nebRat, cônSul geRal da ucRânia no Rio de JaneiRo

visões sobre o Brasil colhidas pela turma 2009-2011 do Instituto Rio Branco durante a Aliança das Civilizações (maio de 2010)

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dossiê

Provavelmente o primeiro contato que um recém-ingresso no Rio Branco terá com algum estrangei-ro, na condição de jovem diplomata, será com um dos professores de línguas do Instituto. Se tiver presença de espírito e se interessar em mais do que conhecer um novo idioma, esse jovem diplomata poderá aprender muito sobre a experiência que em muitos níveis defi-ne sua profissão: o contato com o estrangeiro. Afinal, a grande maioria dos professores de línguas da Casa veio do exterior. Suas experiências e vivências diárias contras-tam com as que tiveram em seus países de origem. E suas histórias de vida são ricas em eventos e experiências, que nos ensinam tanto quanto ou mais do que as conjuga-ções verbais que eles ministram nas suas classes. Sara Walker, a “decana” do colégio de professores do Rio Branco, provavelmente já deu aula para todos os Embaixadores do quadro atual. Contudo, sua primeira visita

Babel em BRASÍLIAOs professores de línguas do Instituto Rio Branco contam como viram e veem o Brasil

ao Brasil, em 1967, foi quase acidental. Com um major em Latin American Studies, ela esperava ensinar inglês no Peru, em um projeto das Nações Unidas. Poucos meses antes, ela, que tinha se preparado para ficar pelo menos seis meses fora de Londres, recebeu a notícia de que o programa havia sido suspenso. Decidida a vir para a América Latina de qual-quer jeito, Sara procurou no caderno de educação do The Guardian por vagas para professores de Inglês no exterior. Havia uma, para a Cultura Inglesa do Rio de Janeiro. Lá, até que substituísse o diretor da Cultura Inglesa em uma aula no Instituto Rio Branco, que naquela época ainda ficava na Cidade Maravilhosa, poucos meses se passaram. Meses nos quais Sara conheceu e se admirou com a beleza do Rio de Janeiro, ainda mais encantadora naquela época do que hoje, segundo a professora. Se mesmo uma pessoa especializada em América Latina como Sara se surpreende ao chegar ao Brasil e encon-

héLiO macieL De paiva netO

cOLaBOraram: FeLipe Ortega, heLena JOrnaDa, patrick Luna e thOmaz napOLeãO

trar uma cidade como o Rio de Janeiro, que dizer da professora de francês Béa-trice Correa do Lago, que veio da França pela primeira vez ao Brasil de férias, em 1985, conhecendo apenas os relatos que sua amiga brasileira lhe fazia? Não esta-va preparada para a beleza “luxuriante” da natureza brasileira, em especial a do Rio, cidade que visitou nessa primeira viagem. Sensação não muito diferente da do professor de árabe Abdulbari Nas-ser, que ainda no avião, procurava um pontinho sequer no chão que não fosse verde, e não conseguia encontrar. O pro-fessor Nasser veio naquela ocasião, em 1989, para trabalhar como funcionário administrativo da Embaixada da Síria em Brasília. Não demorou mais do que um mês para perceber que não sairia jamais do Brasil. É um pouco diferente quando se sabe de antemão que seu futuro será no Brasil. Era o caso da professora de inglês Susan Casement, que veio ao Brasil pela primeira vez, em 1994, para conhecer a família de seu noivo, em Brasília. Ela o tinha conhecido na Universidade de Oxford. Encontrar a sua sogra pela primeira vez pode ser uma experiência complicada, e o clima do inverno brasiliense, particularmente seco naquele ano, não ajudou muito. A secura do ar, especialmente para quem estava acostumada com a umidade da Inglaterra, foi muito difícil para Susan. Para piorar a situação, o noivo de Susan decidiu levá-la para a Chapada dos Vea-deiros, para conhecer as belezas naturais do país. Má ideia: um terrível incêndio florestal estava devastando o parque justamente no fim de semana escolhido para a visita, e o ar estava ainda mais irrespirável do que em Brasília. Quando tudo parecia perdido para Susan, e ela já estava se desesperando com o pros-pecto de vir morar no Brasil, seu futuro

marido a levou para passear na casa de amigos em Porto Seguro, na Bahia. Foi lá onde Susan finalmente “descobriu” o Brasil. A beleza da cidade e das praias, a amabilidade do povo baiano, tudo a encantou. O Brasil a tinha conquistado. Na contramão da primeira impressão da professora Susan, o clima é apontado como um dos encantos do Brasil para muitos dos professores estrangeiros. É o caso da professora de russo, Natalia Kudriavtceva. Para ela, sair de uma temperatura de 23 graus abaixo de zero do inverno em Moscou para 25 acima, do verão brasileiro, foi como chegar ao paraíso. Em sua primeira visita ao Brasil, em 1998, como diplomata lotada na Embaixada da Rús-sia, Natalia achou estranho e engraçado que os brasileiros marcassem encontros para “depois da chuva”, quase sem acre-ditar na regularidade das chuvas em Brasília durante o período. O professor Nasser também se sentiu perplexo ao se perceber sentindo calor em plena chuva, acostumado que estava com o frio cortante que sempre acompanhava a chuva na sua cidade natal de Homs, na Síria. A presença forte da cultura ára-be ajudou o professor Nasser a se sentir em casa no Brasil. O mesmo aconteceu com a professora de espanhol María del Mar, natural da região da Galícia, na fronteira da Espanha com Portugal. Alfabetizada em espanhol e galego, uma língua muito próxima da nossa, del Mar nunca precisou de aulas de português para entender e se fazer entender aqui no Brasil, e ela reconhece a jovialidade e a simpatia do povo galego no povo brasileiro. Suas dificuldades com a língua se resumem ao paladar: del Mar nun-ca se acostumou com as sobremesas brasileiras, excessivamente doces para seu gosto. Outra iguaria tipicamente

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dossiêbrasileira, contudo, a conquistou: o requeijão cremoso, que inclusive faz um tremendo sucesso entre seus parentes galegos, quando a visitam no Brasil. Viver no exterior tem sido um pouco mais difícil para o professor de chinês, Wang Jianxun. Recém-chegado ao Brasil, a única coisa que o professor Wang sabia do país era que ficava muito distante da China, e que todos por aqui jogavam futebol. Mesmo com poucos meses aqui, ele já percebeu, não sem certa surpresa, que nem todo mundo no Brasil joga futebol, mas todas as pessoas que ele encontrou são gentis e acolhedoras. O professor Wang se declara espe-cialmente feliz com o ritmo da sua vida no Brasil – as coisas não precisam correr em alta velocidade o tempo todo, como ele estava acostumado na China. Essa mesma impressão é compartilhada pela professora Natalia. Ela comentou que no Brasil, até as flores parecem não ter pressa, pois permane-cem abertas por muito mais tempo que em Moscou, onde a época do floreio é curta e dura apenas poucas semanas. A alegria de viver no Brasil é um denominador comum entre os professores de línguas no Rio Branco. A professora Béatrice, em sua primeira visita ao Brasil, anos antes de conhecer e se casar com o Ministro André Correa do Lago, foi levada por sua amiga brasileira a uma típica “gafieira” carioca, e se encantou com o primeiro contato com a música e a dança brasileira. Experiência musical ainda mais intensa deve ter tido a professora Sara, que nos seus primeiros anos de Brasil, ainda no Rio de Janeiro, gostava de frequentar com seu marido os ensaios da escola de samba próxima à casa onde morava. Não, Sara não sambava (era pedir demais), mas se deliciava com o ritmo da música e com as conversas com seus amigos cariocas, ocasiões nas quais ela absorvia a cultura brasileira em estado bruto. No quesito “vivenciar a cultura brasileira”, Sara pode se considerar à frente dos demais professores. Afinal, no ano em que ela chegou ao Brasil, ela assistiu pela televisão ao histórico III Festival de Música Popular Brasileira, o festival

que lançou o tropicalismo para o Brasil, com as músicas Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, e Domingo no Parque, de Gilberto Gil. Embora tenha ficado muito impressionada com as músicas, Sara também se lembra de ter estranhado a quantidade de propagandas entre as apresentações, e prin-cipalmente o atraso no começo do Festival. Normal, para quem estava acostumada com a pontualidade e a eficiência da BBC londrina. A professora Béatrice também foi testemu-nha de um momento importante da história do Brasil: ela estava aqui quando o Colégio Eleitoral escolheu Tancredo Neves como o primeiro presidente civil desde 1964. O Brasil fervilhava com uma sensação de euforia política, nas pala-vras da professora, que ela simplesmente nunca tinha visto, nem mesmo na sua tão politizada França. Experiências como essas deixam marcas e integram a vida das pessoas, que de estrangeiras passam a ser um pouco mais brasileiras, tendo vivenciado e compartilhado conosco momentos importantes do nosso país. Por direito e por merecimento, podemos dizer que os nossos professores conquistaram seu lugar no Brasil, mas não é absurdo dizer que o Brasil também conquistou um lugar no coração de nossos professores. Foi o que aconteceu precisamente em 7 de junho de 1970 com a professora Sara Walker, quando ela se juntou a um grupo de ingleses para assistir ao jogo da primeira fase da Copa do Mundo entre Brasil e Inglater-ra. Sara começou torcendo pela Inglaterra, mas, à medida que os minutos passavam, ela se percebeu, gradualmen-te, torcendo para o time verde-amarelo. Quando, aos 15 minutos do segundo tempo, Jairzinho recebe o lançamento de Pelé e atira um petardo indefensável na meta defendida por Gordon Banks, é com genuína surpresa e indisfarçável alegria que Sara se levanta e grita – “Goal!” Sob os olhares de reprovação da colônia inglesa do Rio de Janeiro, ela retorna silenciosamente a sua cadeira. Na sua mente, ela diz: “That’s it! Jamais poderei voltar à Inglaterra agora...”. A sorte é toda nossa, Mrs. Walker, a sorte é toda nossa...

[ heLiO macieL De paiva netO (turma 2009-2011) é Bacharel em dIreIto pela unIversIdade federal do rIo grande do norte. ]

dossiê

Meu país – permitam-me: não vou revelar a sua gra-ça – costuma arrancar um arco branco na cara dos gringos. Acho que sei por quê. Um pouco é pela imagem dourada de paraíso tropical, temperada por moral sexual supostamente licenciosa e por ritmos afro-latinos ecoando as batidas do coração. Tudo muito bem supervisionado pelos braços abertos sobre a Guanabara. Um pouco é pelo balé dos homens de farda amarela, que patinam e profa-nam sobre o verde, em um filme épico de final, no mais das vezes, feliz. Um pouco é pela música fácil de colar, simples de entender, difícil de emular — paroquianas e universais, datadas e atemporais –, essas canções que o Rei fez pra mim e pra você. Um pouco é porque serve de manjedoura ao maior espetáculo da Terra, este laboratório anual da con-dição humana levada ao seu paroxismo – seja na Sapucaí, nos quatro cantos de Olinda ou no mercado dos prazeres diamantino. Outro tanto é pela distribuição, gratuita, de abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim. Assim o foi – e ainda o é. Mas agora meu país, como entoaria o Jorge, deu no Niuiórquetaimes, na Economist e

Que país é esse?no Le Monde. Senhoras e senhores, está decretado o fim da era dos clichês sobre o país do futuro. É que, ao que parece, finalmente conquistamos o carimbo 9001 dos que tomam caipirinha com cachaça russa. O olhar gringo e o olhar moreno amalgamaram-se na fotografia dessa gente bronzeada que quer mostrar seu valor. Nossa autoestima, afinal, contraiu matrimônio com as expectativas estrangeiras que se deitavam sobre este naco do globo que nós – os que tomamos caipirinha com cacha-ça mineira – chamamos de lar, mesmo quando no além-mar. E que país é esse? Meu país tem a cara do mundo. É que todo mundo – ou quase – tem a cara do meu país. Somos a fusão de todos os outros passaportes. A mais linda das japonesas é nossa. O verdadeiro rei núbio nasceu aqui – e trouxe três canecos pra casa. Olhe bem o sobrenome deste autor, só mais um Silva cuja estrela não brilha. E os europeus aqui descobriram a experiên-cia pós-civilizatória – um coquetel de civilização e barbárie em doses alternadamente humanas e desumanas. Dor e delícia sem paralelo na história humana. Bem, talvez mais delícia...

FiLipe nasser / FOtOs: amintas angeL carDOsO santOs siLva

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Mas também somos voltados pra dentro, sô. O estrangeiro é sempre melhor aqui dentro e o nosso é im-batível lá fora. O mundo, para nós, começa e termina entre o Atlântico e os Andes, entre o Caribe e o Prata. À exceção de mês de Copa do Mundo, que é quando passamos uma breve temporada na vila de McLuhan. Mas isso tá mudan-do. Tem alguém batendo na porta. Toc, toc. Quem é? Sou eu, o mundo. Meu país, de tantos sotaques, fala uma só língua: a inculta e bela, né, Bilac? Só que em sua versão mais male-molente, preguiçosa, musical, ô pá. E falamos o dialeto de um só canal, em todo o território nacional: artificial, nada natural, sem sal, plim plim. Meu país abriga os mais religiosos dos ateus, graças a Deus. Também os católicos de depois da rodada do Brasileirão. Os devotos que pregam e pagam. E, em primeiro de janeiro, pergunte pro seu orixá, a gente pula sete ondas pra Iemanjá. Meu país é uma democracia arretada. Deixa as eleições dos caras que inventaram essa história toda pare-cendo reunião em torno da fogueira no período neolítico. Mas o processo de formação de consciência é que ainda é tortamente democrático nesta feira de lealdades camaleoas. Faltam Machado e fórmula de Báskara na nossa democracia. Faltam os Buarque de Hollanda (Sérgio, Aurélio, Chico) e aula de química na nossa cultura cívica. Livro pra comida, prato pra educação. No meu país, antônimo de corrupto não é honesto:

é otário. Esses países em que o pessoal paga imposto, nin-guém fura fila, não dá um na mão do polícia, não se associa ao corrupto bom de voto: tudo um bando de otário. Ou você não sabe com quem está falando? Falta estado de direito na nossa democracia. Só pobre vai em cana, é a classe média quem paga a fatura, as regras são democraticamente alteradas ao sabor dos perso-nagens da nossa comédia da vida pública. E cidadania tá em falta, dona. Tem, mas acabou. Mês que vem deve chegar. Faltam revoluções na nossa História, sangue nas nossas revoluções e uma certa História no nosso sangue. Mas sobra-nos a geografia cuja escassez, a outros, tanta celeuma provoca. Tudo é exagerado no meu país: tudo é o maior, tudo é o mais. Maior potencial energético, maior floresta tropical, maior produtor de alimentos, o maior do mundo. Maior taxa de juros do mundo, maior desigualdade entre ricos e pobres, maior desperdício de terras agricultá-veis. A terra da hipérbole e das contradições, essa espeta-cular moradia da gente mais humana da aventura humana sobre a Terra. Meu país, quando tinha tudo pra dar certo, deu com os burros n’água. Lembram-se? Ciclo do ouro, da bor-racha, milagre econômico. E, com um bocado de coisa pra dar errado, tá dando certo. Tem gringo com arco branco na cara batendo palma na primeira fila. Mas o que eu quero ver mesmo é essa gente bronzeada mostrando seu valor. Meu país ainda não foi, mas já é, cumpádi. Entre outras mil (sic), és tu, Pátria amada.

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[ FiLipe nasser (turma 2006-2008) é BachareL em reLações internaciOnais peLa universiDaDe De BrasíLia. ][ amintas anGeL carDOsO santOs siLva (turma 2009-2011) é BachareL em psicOLOgia peLa universiDaDe FeDeraL Da Bahia. ]

dossiê

O cônsul que desceu oSão Francisco de canoa, observou a Guerra do Paraguai

e traduziu camõesImpressões de Sir Richard Francis Burton

sobre o Brasil do século XIX.thiagO t. viDaL

Sir Richard Burton em 1854, possivelmente em Aden (Iêmem).

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Sir Richard Francis Burton (1821-1890), orientalista, lin-guista, tradutor, poeta, explorador, soldado, espião e diploma-ta, poderia ser personagem de um livro de aventuras oitocen-tistas, uma espécie de Allan Quatermain1 , tão extraordinárias eram suas habilidades, não fosse o fato de que ele realmente existiu. Em um século marcado por viajantes e exploradores, como foi o XIX, Burton talvez só encontrasse um personagem capaz de igualá-lo em fascínio, e também em incompreensão, em T. E. Lawrence, que na Primeira Guerra Mundial ganharia fama internacional como Lawrence da Arábia. Burton, fluente em 29 línguas, traduziu e divul-gou pela primeira vez não só o hoje lendário Kama Sutra, mas também a primeira versão sem cortes das Mil e Uma Noites. Além disso, admirador de Camões, verteu Os Lu-síadas e outros poemas do escritor para o inglês. Não bastassem seus dotes linguísticos, Burton também se des-tacou por suas explorações, dentre as quais sua peregrinação à Meca (1851-1853), cidade até então proi-bida aos infiéis. Também foi notável sua expedição em busca das fontes do Nilo (1856-1860), que resultou na descoberta do lago Tanganyka e, de forma indireta, do lago Vitória, por John Speke, seu companheiro de viagem. Após essa fase exploratória e de breve participa-ção na Guerra da Criméia, Burton entrou para o Foreign Office, graças, em grande parte, aos contatos de sua mulher Isabel. Seu primeiro posto seria como cônsul em Fernando Pó, uma ilha na atual Guiné Equatorial. Depois, Burton seguiu para etapa especialmente interessante para nós que, no entanto, costuma ser tratada de forma pouco profunda em suas biografias: o período em que foi cônsul em Santos, de 1865 a 1869. No fim de sua estadia no Brasil, Burton atuou ainda como observador na Guerra do Paraguai, experiência que lhe rendeu a publicação de uma coleção de cartas. Este é sem dúvida um dos períodos menos conhecidos de sua vida. Após visitar os campos de batalha, o cônsul se dirigiu

a Montevidéu e a Buenos Aires, desaparecendo em seguida por vários meses. Aparentemente passou esse tempo be-bendo sem parar e se envolvendo em brigas com faca. (RICE, 1998, pp.404-405). Depois da América do Sul, Burton seria cônsul em Damasco, a partir de 1869, e em Trieste, de 1871 até sua morte por causas naturais em 1890, com quase 70 anos.Sua obra mais importante sobre o Brasil descreve viagem pelo interior do país, saindo do Rio de Janeiro em direção às Minas Gerais, e inclui uma descrição de sua descida do rio São Francisco – de canoa. Seu título inteiro em inglês é um tanto grandiloquente e exprime o interesse nas riquezas do Brasil: “Explorations of the Highlands of the Brazil: with a full account of the gold and diamond mines. Also canoeing down

1500 Miles of the great river São Francisco, from Sabará to the sea.”

A vida no Brasil Como cônsul inglês em Santos, Burton e sua esposa Isabel deveriam morar nessa cidade. No entanto, o casal parece ter detes-tado a vila portuária, descrita por Isabel Burton como um verdadeiro pântano, infestado de insetos e de febre amarela (BRODIE, 1967, p.236). Decidiram então mudar-se para São Paulo, que pela maior altitude

e clima mais ameno, agradou mais aos ingleses. Logo se instalaram em um convento abandonado na Rua do Carmo, n° 72, que Isabel, com a ajuda de três criados, reformou. A esposa de Burton chegou a comentar, em cartas à família, o estranhamento da população local em ver uma mulher inglesa realizando trabalho manual (BRODIE, 1967, p.236). Isabel, católica fervorosa, não deixava de tentar sal-var almas onde se encontrasse. Na capela que instalou em sua nova casa, pregava para escravos negros, com autoriza-ção do bispo de São Paulo. A inglesa ficou chocada com a descoberta de que muitos dos negros tinham sido ensi-nados – e de fato acreditavam – que não possuíam almas (RICE, 1998, p.395). No verão, Burton abandonava São Paulo e dirigia-se

dossiêao refúgio da Corte e do corpo diplomático: Petrópolis. Nessas ocasiões e também em outras visitas ao Rio, o cônsul travou contato com o Imperador do Brasil, D. Pedro II, que em seu diletantismo erudito havia aprendido tupi-guarani, árabe e até sânscrito, não poderia deixar de gostar de Richard Burton, a quem foram concedidas mais audiências imperiais do que normalmente se concederiam a um mero cônsul. D. Pedro II também compareceu a algumas de suas palestras, e certa vez, em um jantar, deu-lhe precedência sobre vários Ministros de missões diplomáticas, o que, sem dúvida, provocou alvoroço (BRODIE, 1976, p.237). A viagem de exploração de Burton, inicialmente com sua mulher e depois sozinho, do Rio de Janeiro até a região das Minas, e então ao São Francisco, não era apenas turismo ou aventura. Apesar de “o diabo guiar” frequente-mente Burton em suas andanças, quando se embrenhava pelo desconhecido movido por desejos e curiosidade, essas viagens não foram totalmente desinteressadas. Como ele afirma na introdução da obra sobre o país, “(...) a África Cen-tral está, rapidamente, se tornando melhor conhecida na Eu-ropa que o Brasil Central.” (BURTON, 1976, p.20). O objetivo era, portanto, conhecer e explorar a região, como ocorria na África. O interesse econômico era evidente. As perspectivas oferecidas pelas Minas, com o ouro e o diamante que já haviam um dia sido explorados, e quem sabe poderiam ser explorados novamente com tecnologia e capitais modernos, foram elementos fundamentais na escolha do roteiro.

As Descrições: Burton e a Capivara A obra de Burton é altamente descritiva, com longas discussões sobre flora, fauna, criação de animais, agricultura, alimentação e costumes locais; arquitetura, geologia e topografia; e até economia, moeda e a adoção do padrão ouro. Enfim, sobre quase tudo o que Burton via e refletia a respeito. Impressiona o domínio relativamente grande de geologia, botânica, zoologia, topografia e várias outras ciências naturais, não se restringindo à descrição superficial dos costumes das pessoas – ele próprio, aliás, se denomina um “antropólogo”. Também é surpreendente como Burton consegue transitar facilmente de descrições naturais para descrições de costumes, passando de uma a outra na mesma página com sarcasmo e sagacidade ferina, como lhe era típico. Outro ponto chama atenção nas descrições. A capa-cidade de Burton de aprender línguas era lendária. Segundo

a maioria dos relatos, ele falava 29 idiomas, além de diversos dialetos (RICE, 1998, p.19). E em seu auge, aparentemente conseguia “quebrar”, ou aprender, uma língua em apenas dois meses (BRODIE, 1967, p.44). De fato, pelo relato que faz, Burton se comunica com todos sem o menor problema. O inglês também parece ter aprendido algum tupi enquan-to esteve no Brasil. São comuns explicações etimológicas para nomes de lugares e animais na língua indígena, algu-mas com precisão de linguista. Em um caso interessante, a análise linguística é ainda mais profunda, com comparações com a gramática hindustani , quando Burton explica a ori-gem do nome da capivara:

“O nome indígena é, como de costume, bonito e pitoresco. Capiuara ou capivara quer dizer ‘comedor de capim’ e não, como diz o T. D., ‘que vive entre o capim’. O original é ‘caa-pim” ou ‘capii, que deu, por corruptela, ‘capim’, e “g-u-ara’, comedor, composto de um ‘g’ relativo, ‘u’, ‘uu’ ou ‘vu’, comer, e ‘ara’ a designação verbal que, curiosamente se parece com o industani ‘wala’”(BURTON, 1976, p.55-56)

A descrição que faz para um leitor europeu que provavelmente nunca viu uma capivara na vida, aliás, permi-te que se perceba muito do estilo de Burton:

“Esse roedor é do tamanho de um porco de porte médio; é um animal muito feio, semelhante a um porquinho-da-índia que tivesse crescido demais (cha-mado Guinea-pig em inglês, quando é, realmente, brasileiro). O focinho é redondo e a queixada muito funda, como a de um porco engordado; nada com a cabeça quadrada bem erguida, como o hipopótamo, e, segundo se diz, leva os filhotes nas costas, como aquele animal. Seu grunhido, e não ornejo é uma espécie de ‘Uh!Uh!’. É gregário, vivendo em bandos de 10 a 60 animais e, segundo as velhas lendas, o chefe do bando era cavalgado por um demônio pigmeu chamado Caapora, ou ‘o habitante da mata’. Quando se torna arisca, em consequência da caça, a capivara não sai de dentro da água, exceto para se aquecer ao sol. Na América Espanhola, ela é comida, e M. Isabelle afirma, como muitos outros, que a carne não é má, depois de ser colocada, durante dezoito horas, em água corrente. Os brasileiros usam sua pele, ra-ramente sua carne. Humboldt (...) encontrou bandos de 60 a 100 capivaras e acredita que esse granívoro coma peixe.” (BURTON, 1976, p.56)

1 No romance As minas do Rei Salomão (1885), de Sir H. Rider Haggard, Allan Quatermain é o aventureiro que lidera a expedição ao coração da África em busca de lendária riqueza, que se diz estar oculta nas minas que dão nome à obra. Grande sucesso literário em sua época, é provavelmente a primeira obra de ficção inglesa a se passar no continente africano.

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Por fim, Burton afirma que a capivara aparece na poesia brasileira, citando versos do poeta José Joaquim Corrêa de Almeida:

“Assim procede o políticoQue o princípio não extrema,

Calculadamente segueDa Capivara o sistema”

(BURTON, 1976, p.56)

Aqui vemos como Burton mistura e alterna vários tipos de descrição. Ele inicia com uma descrição física que procura fazer um leitor não familiarizado entender o que é um animal peculiar como a capivara, comparando-a a um porco e a um hipopótamo. Não se limita, no entanto, a descrever a apa-rência e os hábitos do animal, mas também menciona sua utilização pelo homem. E, de forma inusitada, lembra a associação popular do “grande roedor” à lenda do caapora e cita um poema brasileiro motivado pelo animal. O uso da poesia brasi-leira não se restringe à descrição da capivara, há outros exemplos em sua obra. Burton transita naturalmente de uma descrição zoológica para tradições populares, então para o uso econômico do animal e, finalmente, para sua ocorrência na literatura. Tudo isso falando de uma simples capivara.

Burton e sua relação com os negros Burton era fortemente ambíguo em relação aos chamados não-europeus. Realmente admirava os árabes e indianos, demonstrando enorme interesse por sua cultu-ra, traduzindo e compreendendo suas línguas, crenças e literatura. Por outro lado, tinha visão preconceituosa sobre os negros, expressa por meio daquilo que já foi considerado um de seus maiores talentos: a capacidade de manifestar preconceitos ácidos como ninguém (RICE, 1998, p.366). Não confiava e não gostava dos habitantes da África Ocidental, onde viveu. Considerava-os insolentes, e dizem que em Acra indignou-se ao saber que chamar alguém de “nigger” era proibido. Em uma viagem ficou incrivelmente ir-ritado por permitirem negros na primeira classe (RICE, 1998, p.367). Quando era cônsul em Fernando Pó, Burton estava

especialmente deprimido e violento. Chegou a afirmar que era “guiado pelo diabo”, título dado a uma de suas biografias mais famosas. Certo dia, quando um nativo negro entrou no consulado e lhe cumprimentou com um familiar tapa nas costas, o cônsul, indignado, não hesitou em arremessar literalmente o homem pela janela, em um gesto verdadeira-mente burtoniano (RICE, 1998, p.368). Essa relação complicada de Burton com os negros pode ser constatada em um episódio ocorrido durante as tentativas já mencionadas de sua mulher Isabel de espalhar o Evangelho entre os escravos brasileiros. O cônsul recrimi-nou o sentimentalismo de sua esposa, afirmando que ne-gros não eram confiáveis (RICE, 1998, p.395). Mesmo assim, Burton, vivendo em um país onde a maior parte da mão de

obra disponível era escrava, insistia em pagar seus empregados como homens livres (RICE, 1998, p.395). Um trecho de seu relato de viagem no Brasil é especialmente interes-sante. Em São João Del Rei, Burton visitou a Nossa Senhora do Rosário, igreja frequentada por negros, e diante do que considerava mau gosto na arquitetura, afirmou “não precisamos ser informados de que se tratava de um lugar especial de culto do ‘Homo Niger’” (BURTON; 1998, p. 123). Ele continua a descri-

ção da igreja e avalia que:“Os hamitas têm um cemitério melhor que a igreja; sua

situação foi bem escolhida e, no portão, há uma caveira, não dolicocéfala, como deveria ser baseada no dístico

Eu fui o que tu és,Tu serás o que eu sou.

Do que nós, antropólogos, duvidamos.” (BURTON; 1998, p. 123)

Nesse trecho Burton demonstra traços típicos do pensamento racialista do século XIX. Existe a ideia de que os homens são divididos em raças, com traços físicos distintos. Os europeus seriam “caucasianos”, “arianos” ou “indo-eu-ropeus” e teriam crânio dolicocéfalo, o crânio longo e oval associado aos conquistadores brancos em uma antiguidade remota, com os árias na Índia ou os dórios na Grécia. Burton se engajou por algum tempo na tentativa pseudocientífica de separar os seres humanos em raças dis-tintas. Nesse exemplo, o cônsul chega ao extremo, usando

dossiêsarcasmo despropositado, de chamar os negros de “Homo Niger”, recorrendo à classificação de Lineu para indicar que talvez negros e europeus fossem espécies diferentes. Por fim, sua autodefinição como “antropólogo” indica uma tentativa de garantir alguma cientificidade ou prestígio para o seu discurso, bem ao gosto do XIX. Apesar dessas opiniões, Burton era, como bom inglês de seu tempo, contrário à escravidão. E é interes-sante a solução que propõe para o problema do trabalho escravo. O cônsul desenvolveu um projeto de engenhoso esquema de imigração, no qual primeiro seriam atraídos sulistas americanos descontentes com o resultado da Guerra Civil que, por sua vez, organizariam os serviços de “anglo-escandinavos” e “anglo-celtas”, as “classes inferiores”

importadas da Grã-Bretanha, que encontrariam no Brasil um lugar melhor para morar (BURTON, 1976, p.22). Burton, portanto, era, ao mesmo tempo, um homem de seu tempo e muito mais complexo que a maior parte de seus contemporâneos. Se chegou a defender o racismo científico quando viveu no Brasil, era, também, incrivelmen-te ambíguo. Afinal, entre seus congêneres europeus, havia ele mesmo sido acusado mais de uma vez de “go native”, de adotar costumes e práticas dos “nativos”, de compartilhar de seu modo de vida e de defender posições que hoje seriam chamadas de “relativismo cultural”. Apesar das distorções ve-rificáveis em suas opiniões pseudocientíficas, viveu uma vida notável e construiu, com suas viagens e obras, importante retrato do jovem Brasil.

Para saber mais:BURTON, Richard Francis, Viagem do Rio de Janeiro ao Morro Velho, Ed. Itatiaia, Ed. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1976.BRODIE, Fawn M.; The Devil Drives – A Life of Sir Richard Burton; W. W. Norton & Company, London, New York, 1967.RICE, Edward; Sir Richard Francis Burton - O Agente Secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe as Mil e Uma Noites para o Ocidente; Companhia das Letras, São Paulo, 2ª edição revista, 1998.

[ thiaGO tavares viDaL (turma 2009-2011) é BachareL em DireitO peLa universiDaDe De sãO pauLO e em história peLa pOntiFícia universiDaDe catóLica De sãO pauLO. ]

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Anotações sobre identidade nacional e relações internacionaisthOmaz aLexanDre mayer napOLeãO

dossiê

“Sempre que se ouvir essa palavra [identidade], pode-se estar certo de que está

havendo uma batalha”, escreve Zygmunt Bauman. “O campo de batalha é o lar

natural da identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia

no momento em que desaparecem os ruídos da refrega (...) Talvez possa ser

conscientemente descartada (e comumente o é, por filósofos em busca de elegância

lógica), mas não pode ser eliminada do pensamento, muito menos afastada da

experiência humana.” (BAUMAN, 2005)

Dize-me quem és e te direi com quem andas

A descrição do sociólogo polonês é colorida, mas não exagerada. Na história dos homens, poucos fenômenos são mais frequentes do que as disputas em torno da afirma-ção, da alteração ou da destruição de identidades indivi-duais ou coletivas. Especificamente na arena das relações entre Estados, o comportamento de cada ator é, em boa medida, moldado pela imagem que ele tem de si mesmo.Por identidade, aqui, não se entende a imagem institucional (ou regime político) do próprio Estado, tampouco a identifi-cação de seu povo com uma suposta “civilização” de matriz

confessional. Não acreditamos que a chave para compreen-der a política externa de um Estado esteja na presença ou na ausência de democracia, ou no pertencimento ou não ao Ocidente ou ao mundo islâmico por exemplo. Não obstante, a seguir trataremos do conceito – muito citado e pouco compreendido – de identidade nacional, e de suas repercussões externas.

Identidades e instabilidades Estudar identidades é analisar os efeitos reais de narrativas fictícias. Afinal, para os acadêmicos contempo-râneos, praticamente há consenso em torno do caráter artificial (imaginado, construído e por vezes imposto) das nações, como Anderson, Gellner, Hobsbawm e muitos ou-tros ressaltaram. As concepções essencialistas ou racialistas da cultura caíram na obsolescência há décadas. Fato menos óbvio, mas igualmente importante, é que as identidades nacionais são instáveis e convivem com outras formas de particularismo, sejam supranacionais – religião, língua, etnia – ou locais, como a especificidade de cada clã, dialeto ou família. São, no máximo, estabilizações provisórias (SUNY, 1998). Ademais, como observou o mais influente dos jornalistas-viajantes do século XX, o proces-so de formação de identidades, que já não era simples no passado, tornou-se mais complexo com a migração e com

o êxodo rural, que solaparam os laços culturais tradicionais (KAPUSCINSKI, 2008). As novas identidades, de base urbana, tendem a ser híbridas. Importa, assim, compreender como identidades são forjadas. E há no mínimo quatro vias, não-excludentes, de construção identitária: por assimilação, por contraste, por rejeição e por diferença (MARTINS, 2007).

A identidade por assimilação, que equivale à acultu-ração e é a mais frequente das quatro possibilidades, costuma

resultar de processo gradual e contínuo. Já a identidade por contraste, que também é geralmente pacífica, consiste no re-forço sistemático das diversidades culturais para valorizá-las. A identidade por rejeição, por sua vez, é conflituosa e decorre de um claro sentimento de superioridade (ou inferioridade) simbólica. Por fim, a identidade por diferença, que pode conduzir a qualquer uma das outras três formas, é a simples consciência contemplativa de si e do outro. Tais mecanismos, e em particular a via da defini-ção da identidade pela rejeição, abrem espaço para o que Bertrand Badie chamaria “empreendedores identitários”, spin doctors prontos a manipular lealdades e particularismos para atingir objetivos específicos, inclusive em matéria de política externa. Slobodan Milosevic, que nos anos 1980 e 1990 instrumentalizou o dormente nacionalismo sérvio para avançar sua agenda geopolítica nos Bálcãs, parece ser o exemplo mais acabado.

Identidade na Teoria das RI: o construtivismo e seus problemas A preocupação com a influência da identidade sobre o comportamento externo dos Estados é prioritária para os teóricos construtivistas das Relações Internacionais (RI). Para essa vertente acadêmica, a política internacional é um proces-so infinito de interação e de construção social. Os interesses e

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objetivos dos atores são definidos intersubjetivamente; não correspondem a simples cálculos racionais de maximização de poder, mas levam em conta fatores como normas, ideo-logias, identidades, discursos e ideias. É impossível reduzir as complexidades desse processo a simples equações matemáti-cas de ganhos absolutos ou relativos de poder (HOPF, 1998). Em última análise, no construtivismo não há siste-ma internacional; há uma cultura internacional, que pode ser de rivalidade, competição ou cooperação. Ao contrário de boa parte das correntes realistas e neorrealistas, hegemônicas na disciplina entre as décadas de 1940 e 1980, o construtivismo considera que política interna e ação exterior estão intimamente relacionadas na lógica decisória de um Estado, e descrê da noção de interes-ses nacionais permanentes e imutáveis. O artigo geralmente citado como manifesto funda-dor do construtivismo em RI já assinalava que identidades são a base dos interesses (WENDT, 1992). Essa premissa tem sido levada às últimas consequências, sobretudo no mundo anglo-saxônico, por pesquisadores desejosos de analisar o impacto de praticamente todas as formas imagináveis de identidade – inclusive temas pouco convencionais em RI, como gênero, etnia e orientação sexual. Mesmo no âmbito político strictu sensu, o construti-vismo estabelece importante distinção entre as identidades do Estado, que dizem respeito aos padrões de seu comporta-mento internacional – histórico de cooperação ou de conflito, engajamento em alianças, blocos regionais, etc. – e as identi-dades nacionais, que derivam da sociologia e da psicologia e sempre envolvem processos políticos e culturais domésticos. Dessas duas categorias, as identidades do Estado recebem atenção muito maior do construtivismo em RI. Não são, todavia, suficientes per se. Em virtude da indispensável legitimidade que o discurso nacional fornece ao Estado, e da necessidade individual de pertencer a coletivos dotados de sentido e propósito, Estado e nação são simbolicamen-te interdependentes. Em outras palavras, identidades de Estado não são funcionais se não forem acompanhadas por identidades nacionais compatíveis (ASHLEY, 2002). A condução de estudos de caso acerca da influên-cia das identidades e das percepções dos atores sobre suas decisões individuais e coletivas – frequente na agenda de pesquisa do construtivismo em RI – enfrenta, no entanto, sérias dificuldades. O construtivismo é ontologicamente agnóstico; costuma silenciar sobre a questão da intenciona-lidade e adota, deliberadamente, uma perspectiva multi-

causal que confunde as análises objetivas sobre dinâmicas, processos e comportamentos dos atores das Relações Internacionais (HOPF, 1998). Outro desafio aos pesquisadores da área está no caráter necessariamente intangível e incomensurável das identidades. Esse fator quase inviabiliza a busca por evi-dências empíricas que, normalmente, é demanda central da pesquisa científica – a menos que se adote uma meto-dologia pós-moderna ou pós-estruturalista, como alguns construtivistas, embora não todos, decidiram fazer. Sem ignorar os problemas citados supra, é possível analisar dois casos concretos que esclarecerão o raciocínio construtivista na matéria.

Dois fronts da batalha identitária: Rússia e Turquia Talvez o mais eloquente exemplo do papel mo-bilizador da identidade nas Relações Internacionais seja o ancestral dilema em torno do caráter nacional russo. A discussão remonta a meados do século XIX, esfriou durante a vigência do comunismo, mas ressurgiu com força após a queda da União Soviética, quando a Rússia, pela primeira vez em meio milênio, deixou de ser império para se tornar algo parecido com um Estado nacional. De um lado, situam-se os chamados ocidentalis-tas, inspirados por Alexander Herzen e outros nomes da intelligentsia dezenovesca, que consideram a Rússia parte da Europa e desejam transformá-la em um país “normal” aos moldes ocidentais – isto é, liberal-democrático na organi-zação social e cooperativo em política externa, adepto dos regimes internacionais de direitos humanos e livre comércio (BARANOVSKY, 2000). A tendência oposta é representada pelo movimento eurasianista, cujas raízes remontam ao pan-eslavismo (ou eslavofilia) do século XIX e, mais tarde, ao pensamento de rus-sos brancos e émigrés como Nikolay Trubetskoy (LARUELLE, 2008). Para os adeptos dessa corrente, que flerta com o mes-sianismo e tem como porta-voz atual o geopolítico Alexander Dugin, a Rússia é portadora de um destino excepcional, não se obriga a respeitar padrões liberais impostos pelo Ociden-te e tem a vocação para liderar a Eurásia por meio de um império benigno (DUGIN, 2007). O corolário do eurasianismo é uma política exterior russa mais incisiva e expansionista. Relativamente raro na história russa, o ocidenta-lismo prosperou por aproximadamente uma década, do “novo pensamento” em política externa de Gorbachev ao

dossiêidealismo dos primeiros anos de Yeltsin. Recém-saída da Guerra Fria, Moscou pa-recia acreditar que o capitalismo liberal traria prosperidade automática, e para tanto adotou medidas radicalmente liberalizantes, como privatizações ace-leradas e a supressão quase instantânea do controle de preços. Paralelamente, no plano externo, a Rússia adotou medidas francamente simpáticas à hegemonia americana que então se desenhava: de-cidiu filiar-se ao G-7, assinou numerosos tratados de desarmamento e avalizou a liderança americana na Guerra do Golfo. A atmosfera identitária russa mudou drasticamente nos últimos anos do século. Frustrada com a débâcle eco-nômica advinda das reformas liberais, que culminou com o colapso financeiro de 1998, impaciente com a crônica instabilidade da democracia local – o país teve cinco Primeiros-Ministros entre 1998 e 1999 – e irritada com a aparen-te indiferença do Ocidente quanto às opiniões e interesses globais do Kremlin, a sociedade russa passou a privilegiar discursos abertamente nacionalistas. De súbito, sentindo-se rejeitada pela Europa a que julgava pertencer, a Rússia passou a repensar seu papel no mundo. A consequência inevitável foi a ascensão do pensa-mento eurasianista, que se fez acompanhar por medidas de fortalecimento interno do Estado – como o lançamento da Segunda Guerra da Chechênia e a criação de oito mega-distritos federais, que reduziram o poder dos governos provinciais – e de maior assertividade externa, a exemplo da oposição explícita à Guerra do Kosovo e da resistência às ondas sucessivas de expansão da OTAN. Passado o interlúdio de cooperação com Washing-ton sob o signo da “guerra ao terror”, após o 11 de setembro de 2001, Moscou voltou a divergir do Ocidente em uma longa série de temas cruciais, das bases americanas na Ásia Central às “revoluções coloridas” na ex-URSS; do escudo antimísseis planejado pelos EUA na Europa Oriental à reação militar russa à ofensiva georgiana na Ossétia do Sul, entre outras crises. Pode-se atribuir o renovado ativismo da política externa russa às escolhas estratégicas de seu ex-Presidente e atual Premier, Vladimir Putin, ou à expansão econômica deri-

vada da alta dos preços do petróleo, mas há outros fatores envolvidos. A menor identificação da Rússia com os destinos da Europa é, com toda pro-babilidade, um deles. Moscou hoje advoga e acredita em um mundo pós-ocidental – multipolar e equili-brado, mas em boa medida também um mundo eurasiano (TSYGANKOV, 2010). Debate análogo transcorre na margem oposta do Mar Negro. País bicontinental como a Rússia, a Turquia também padece de inde-finições quanto à sua identidade na-cional, o que visivelmente influencia a condução de sua política externa, em uma perspectiva construtivista das RI (BOZDAGLIOGLU, 2003). Nascida do espólio do Impé-rio Otomano, a moderna Turquia é a expressão geopolítica do ideário de um homem singular, Mustafa Kemal Atatürk. O kemalismo, que

até recentemente dominou todas as esferas da vida política nacional, consiste no esforço de tornar moderna e laica – embora não necessariamente democrática – a sociedade turca. Em termos de ação exterior, o kemalismo prega uma aproximação sistemática do Ocidente, uma postura caute-losa quanto à Rússia e um relativo alheamento em relação ao Oriente Médio – um distanciamento facilitado por uma entente tácita com Israel. Com pequenas variações de tom, essas diretrizes nortearam as primeiras três gerações de diplomacia turca pós-Atatürk. A partir dos anos 1980, o kemalismo se desgastou por uma série de fatores, a exemplo da deterioração da questão curda, da crescente impopularidade dos estamentos militares na Turquia, da retomada do sentimento islamista e do impasse em torno da candidatura turca à União Europeia. Para Ancara, manter-se distante dos vizinhos médio-orientais deixou de ser opção viável. Ao mesmo tempo, a indepen-dência dos Estados pós-soviéticos da Ásia Central, vários dos quais integram a família étnico-linguística da turcofonia, abriu novas perspectivas para a diplomacia da Turquia na Ásia. Com a ascensão ao poder do partido islâmico moderado AKP, em 2003, as condições estavam maduras para a adoção de um

Especificamente na arena das relações entre Estados, o comportamento de cada ator é, em boa medida, moldado pela imagem que ele tem de si mesmo.

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novo modelo de política externa: o neo-otomanismo (TASPI-NAR, 2008). O neo-otomanismo consiste na percepção de que a Turquia, por ser herdeira de longa tradição cultural, potência emergente e geopoliticamente seminal, não é – nem deve ser – réplica política da Europa ou de seus vizinhos mu-çulmanos. Ou seja, não é um país oriental, mas tampouco pertence exclusivamente ao Ocidente. Pode e deve influir sobre todos os processos em seu entorno estratégico. Contrariamente ao que sugere a cartografia redu-cionista de Huntington, a Turquia moderna não se considera simples apêndice da “civilização” islâmica, mas sim o berço de uma matriz cultural autônoma e influente. O corolário dessa confiante identidade neo-otomana é uma política externa multivetorial, que aponta para o Oriente Médio e para a Ásia Central sem se esquecer do foco tradicional do kemalismo, a Europa. O atual Primeiro-Ministro, Recep Erdogan, não hesitou em abandonar posições tradicionais da diplomacia kemalista, como a intransigência quanto ao status do Chipre do Norte, a relativa indiferença perante a causa palestina e a aceitação quase automática da maioria das estratégias dos EUA para o Oriente Médio. O protagonismo turco na criação da Aliança das Civilizações simboliza o papel que a Turquia pretende desempenhar em um mundo de tolerância cultu-ral, mas também de equilíbrio geoestratégico. A Declaração de Teerã, firmada em 17 de maio de 2010, não foi apenas o ápice do envolvimento do Brasil com a questão nuclear iraniana.1 Foi, também, a consagração da política externa neo-otomana do AKP. A hipótese construtivista do vínculo entre identida-de da nação e comportamento internacional do Estado, em ambos os casos analisados, é reforçada por um fato curioso: a reorientação da política externa foi orquestrada, em gran-de medida, por acadêmicos alçados ao posto de Ministros do Exterior. Mais do que meros “empreendedores identi-tários”, o russo Yevgeny Primakov (Chanceler entre 1996 e 1998, depois Primeiro-Ministro) e o turco Ahmet Davutoglu (Chanceler desde 2009, antes Assessor do Premier) são figu-ras de proa de dois pensamentos em política externa que decorrem de percepções identitárias – respectivamente, eurasianismo russo e neo-otomanismo turco.

E o Brasil? Potência emergente como Turquia e Rússia, em-bora ao contrário delas não seja herdeiro de imperialismo algum, o Brasil também faz escolhas em política externa que decorrem de uma percepção específica – consciente ou não – de sua própria identidade. Ressalte-se que identidade não se confunde com paradigma; são duas categorias distintas, ainda que corre-latas. Seria impreciso rotular os tradicionais princípios da po-lítica externa brasileira – como o pacifismo, o universalismo, a busca de autonomia e a defesa do multilateralismo – de traços da identidade nacional que orienta o comportamen-to exterior do Estado brasileiro. Elencar os parâmetros centrais da identidade na-cional brasileira fugiria – e muito – ao escopo deste artigo. Podemos, todavia, esboçar dois elementos principais da autoimagem brasileira perante o mundo, a saber, o perten-cimento à América do Sul e a identificação com o mundo em desenvolvimento. O primeiro elemento identitário que influencia a política externa brasileira é a inserção na América do Sul, não apenas no sentido geográfico mas sobretudo ideático. O apoio instrumental ao processo de integração, que na última década converteu-se em ativismo regional, expressa a proeminência da América do Sul no horizonte externo do Brasil desde o fim da Guerra Fria (SPEKTOR, 2010). Ademais, a recusa em aderir plenamente à OCDE e o protagonismo na formação de agrupamentos Sul-Sul (BRIC, IBAS, BASIC, G-20C, ASPA e ASA, entre outros) simbolizam uma segunda opção identitária brasileira: afirmar-se país em desenvolvimento, que se considera system-affecting State em termos político-estratégicos e grande mercado emergente no plano econômico-comercial (SOARES DE LIMA, 2005). Como todas as demais, as identidades brasileiras são fluidas e mutáveis. Os movimentos diplomáticos dos últimos anos (CALC e em breve CELAC, aproximação com CARICOM, liderança na MINUSTAH e na reconstrução hai-tiana) parecem sinalizar expansão gradual para a América Latina da identidade do Brasil, até então, sul-americana. Para tristeza dos teóricos construtivistas, o perfil identitário do Brasil não possui nome e não motiva gran-des debates domésticos – provavelmente porque o dilema

dossiênacional é muito menos complexo em sociedades sem passado de centralização imperial e fragmentação territorial. Não obstante, assim como nos casos do eurasianismo russo e do neo-otomanismo turco, a percepção nacional do Brasil decorre de escolhas políticas claras e autônomas, que não eram inevitáveis e não foram impostas por atores externos.

Um término sem conclusão Mesmo quando se deleita em debates suposta-mente sofisticados ou supremamente tediosos – como a dicotomia insolúvel entre o protagonismo da estrutura (ou sistema) e a primazia do agente (ou processo), ou a disputa metodológica entre individualismo behaviorista e cogniti-vismo reflexivista –, o construtivismo nunca perde de vista um fato básico: as teorias das Relações Internacionais estão, antes e acima de tudo, subordinadas à observação empírica. Por isso mesmo, são teorias sempre incompletas. Para com-preender o que realmente está em jogo, deve-se ver além da “fumaça e do calor da epistemologia” (WENDT, 1992). Logo, não pode haver conclusões definitivas para nosso artigo. O construtivismo não levaria esse nome se não estivesse em construção. Dois elementos, todavia, ficam claros ao final de nossa rápida análise das consequências da evolução identitária na Rússia, na Turquia e de certa forma no Brasil. O primeiro diz respeito à imprevisibilidade das percepções e das identidades. Como uma lavoura de soja, o comportamento externo de um Estado pode aparentar se-

guir métodos e padrões racionais, mas na realidade depen-de também de fatores incertos. Nesse processo de colheita de resultados diplomáticos, a identidade desempenha papel semelhante ao do clima: sabemos que ela é determinante, percebemos que está em constante mudança por motivos principalmente antropogênicos e subsidiariamente geográ-ficos, mas somos incapazes de prevê-la ou enquadrá-la. O segundo elemento é a lembrança de que cultura é política; portanto, identidade é política. A afirmação é menos trivial do que parece. Como todo campo de ação política, a definição das identidades depende de escolhas livres, ainda que nem sempre racionais. Identidades, como os outros fatores caros ao construtivismo – normas, ideias, discursos e ideologias – não são forjadas de modo exógeno, mas nascem da constante interação entre Estados, no plano externo, e entre atores sociais na esfera doméstica. Acreditar em causalidades automáticas é perigoso para estudiosos e praticantes das Relações Internacionais. Deve-se evitar a sedutora armadilha da “ilusão identitária” (BAYART, 1996), decorrente da crença fatalista de que a cultura tudo determinaria. Em síntese, é preciso estudar a cultura sem cair no culturalismo raso. A batalha das identidades descrita por Zygmunt Bauman é bastante real e afeta as dinâmicas das Relações Internacionais. Mas é um choque entre vontades, não entre destinos. E o desfecho do embate é desconhecido.

[ thOmaz aLexanDre mayer napOLeãO (turma 2009-2011) é BachareL em reLações internaciOnais peLa pOntiFícia universiDaDe catóLica De sãO pauLO, em cOmunicaçãO sOciaL e JOrnaLismO peLa universiDaDe De sãO pauLO e mestre em reLações internaciOnais e segurança internaciOnaL peLO

institutO De estuDOs pOLíticOs De paris (sciences pO), França, e peLO institutO estataL De reLações internaciOnais De mOscOu (mgimO), rússia. ]

1 Acordo político tripartite (Brasil-Turquia-Irã) que prevê a troca de 1.200 kg de urânio fracamente enriquecido (LEU) iraniano por 120 kg de urânio enriquecido a 20%, no prazo de um ano. O combustível abastecerá o Reator Nuclear de Teerã (TRR). Trata-se de tentativa de construir confiança entre as partes envolvidas na questão nuclear iraniana, dispensando a necessidade de sanções e medidas de força.

Para saber mais:ASHLEY, Mark. “Narratives of National Identity and International Conflict: When Does Identity Pose a Threat?”. APSA Annual Meeting, 2002.BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.BAYART, Jean-François. L’illusion identitaire. Paris: Fayard, 1996.BARANOVSKY. “Russia: a part of Europe or apart from Europe?” in International Affairs, v.76, n. 3, 2000, pp. 443-458.BOZDAGLIOGLU, Yucel. Turkish Foreign Policy and Turkish Identity. Londres: Routledge, 2003.HOPF, Ted. “The Promise of Constructivism in International Relations Theory” in International Security, v. 23, n. 1, 1998, pp. 171-200.LARUELLE, Marlène. Russian Eurasianism: An Ideology of Empire. Washington: Woodrow Wilson Center Press, 2008.MARTINS, Estevão de Rezende. Cultura e Poder. São Paulo: Saraiva, 2007.SUNY, Ronald Grigor. “Provisional Stabilities: The Politics of Identities in Post-Soviet Eurasia”. Institute of East and West Studies, 1998.TASPINAR, Ömer. “Turkey’s Middle East Policies: Between Neo-Ottomanism and Kemalism” in Carnegie Papers, n. 10, 2008.TSYGANKOV, Andrei. Russia’s Foreign Policy: Change and Continuity in National Identity. Lanham: Rowman and Littlefield, 2010.WENDT, Alexander. “Anarchy is what States make of it” in International Organization, v.46, n.2, 1992, pp. 391-425.

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País visível: o percebido Brasil do futebol

dossiê Os clichês serão clichês por alguma razão. E, de todos os clichês referentes às percepções que se tem sobre o Brasil, o futebol talvez seja o mais recorrente – sobretudo às vésperas de o país sediar dois dos eventos desportivos de maior magnitude no planeta: a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016). Ainda que eventualmente não conquistemos determinados títulos e por mais que não sejamos, todos, exímios jogadores, vivemos, aos olhos do mundo, no país do futebol. A pecha pode incomodar a quem identifique nela uma subvalorização das outras qualidades do país, para além da ginga de seus meia-armadores. Mas ela é um fato consumado: está presente na moda, materializada no uniforme canarinho; nas conversas de bar e nas bolsas de aposta; e até na política externa, como evidenciado pela realização do “Jogo da Paz”, entre o Brasil e o Haiti, em 2004. Compreender como se construiu a pátria de chuteiras (pág. 60) e como o mito do Brasil do futebol pinta, em determinados momentos, um “país melhor do que si mesmo” (pág. 65), é buscar aspectos obscuros da faceta mais conhecida da identidade nacional. Buscar enxergar o país visível para além da superfície é, ainda, trilhar um caminho de descobertas sobre nós mesmos.

FOtOs: ricarDO stuckert (ceDiDas) - O “JOgO Da paz” entre BrasiL e haiti, agOstO De 2004.

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No dia 8 de julho, em seu discurso durante a apre-sentação do logotipo oficial da Copa do Mundo de 2014, o presidente da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), Joseph Blatter, afirmou que “o Brasil é o país do futebol, não há nenhum outro país no mundo que possa ser identifi-cado com o futebol” (tradução nossa, BLATTER, 2010). Há quem discorde. O jornalista Juca Kfouri, por exemplo, alega que, nas pesquisas sobre tamanho de torcida no Brasil, o maior contingente é o de pessoas que declaram não apoiar qualquer time, o que não ocorreria na Argentina e na Inglaterra (KFOURI, 2007-2008). Além disso, torcedores mais devotos – e, portanto, mais propensos à rivalidade – desses países dificilmente reconheceriam o Brasil como o país do futebol. Outros pesquisadores ressal-tam, ainda, a média de público muito maior nas principais competições de outros países (FRANCO JR., 2007). A declaração do dirigente suíço apenas reafirma, no entanto, uma percepção já constatada em estudos acerca da imagem do Brasil no mundo. A pesquisa “Temas Políticos e Econômicos Internacionais e a Percepção sobre o Brasil”, realizada em 22 países, em 2001, pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e pela empresa Sensus, é ve-emente: 36,6% dos entrevistados indicaram o futebol e ou-tros esportes como a primeira ideia que lhes ocorre quando ouvem falar do Brasil. O segundo tema mais lembrado, Carnaval, não chega à marca de 20% (CNT, 2001). Assim, ain-da que seja discutível, por critérios diversos, se o Brasil é o país do futebol ou não – ou se isso nos é benéfico ou não –, é dessa maneira que significativa parcela do mundo nos vê. Embora haja indícios de que essa percepção – certamente,

A construção do País do FutebolhugO De OLiveira LOpes BarBOsa pereira pintO

um tanto estereotipada – esteja mudando, isso é algo com que o país deve lidar. Nesse sentido, investigar como essa percepção internacional se formou e em que medida ela influencia a atuação externa do Brasil pode ser um exercício profícuo de autoconhecimento.

Identidade nacional e identidade internacional do país do futebol O futebol moderno chegou ao Brasil, como se sabe, em 1894, por intermédio de Charles Miller, quando de seu retorno de temporada de estudos na Inglaterra. Adotado pela elite e, pouco depois, pelas camadas mais baixas da população, o esporte disseminava-se à medida que a urba-nização avançava no país. Não tardou a tornar-se o esporte mais praticado em território nacional. Rapidamente, foi amealhando, na elite intelectual do país, admiradores (como Monteiro Lobato e Olavo Bilac) e detratores (como Lima Barreto e Rui Barbosa). Quando a Seleção Brasileira realizou seu primeiro jogo, em 1914, a prática do futebol já era um fenômeno que não podia ser ignorado pelos governantes.À época, as teses racialistas e seus corolários, as políticas de branqueamento da população, tinham ampla aceitação no Brasil. O futebol, reflexo da sociedade, não ficaria alheio a essas circunstâncias. Produto inglês, esse esporte seria adequado aos propósitos de modernização vigentes, e, para tanto, não poderia trazer, em seu bojo, os traços de uma sociedade miscigenada. Assim, não é de se estranhar que, em 1921, o Presidente Epitácio Pessoa tenha proibido a convocação de jogadores negros para o Campeonato Sul-Americano, disputado na Argentina. A imagem que a

dossiê

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elite nacional queria transmitir ao exterior era a de um país moderno e, preferencialmente, branco. Mesmo que isso custasse, no âmbito do futebol, uma campanha pífia – duas derrotas em três partidas – no referido campeonato. Na década de 1930, os processos paralelos de construção da identidade nacional e da imagem externa do Brasil foram revolucionados pelas teorias de Gilberto Freyre, segundo quem a miscigenação racial não era uma desvan-tagem, mas um atributo do país. Admirador do futebol, o autor publicou, em 1938, o ensaio “Futebol mulato”, em que transferiu para o esporte as ideias defendidas em sua obra. Para o autor, não apenas existiria um estilo brasileiro de se jogar futebol, mas esse estilo seria uma síntese da sociedade brasileira. Segundo Freyre:

“Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos des-pistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e ao mesmo tempo malandro que está hoje em tudo que é afirma-ção verdadeira do Brasil”. Gilberto Freyre, 1938.

Não por acaso, 1938 é o ano em que o Brasil tem sua primeira participação digna de reconhecimento interna-cional em uma Copa do Mundo. A imprensa da França, país que sediava aquele torneio, exalta o futebol nacional. Os jogadores receberam a alcunha de “bailarinos da bola” e Le-ônidas da Silva, melhor jogador do torneio em que o Brasil alcançou a terceira colocação, foi apelidado Le Diamant Noir – o Diamante Negro. A crônica esportiva nacional, surgindo naquele momento, era amplamente influenciada pelas ideias de Freyre, que escreveu o prefácio do clássico livro do jornalista Mario Filho, “O Negro no Futebol Brasileiro” (RODRIGUES FILHO, 2003), espécie de mito fundador do futebol nacional. Iniciava-se o processo que levaria o Brasil a ser reconhecido, em breve, como o país do futebol. No período, o Departamento de Imprensa e Propa-ganda (DIP), que tinha, entre suas divisões internas, as áreas de divulgação e turismo, seria responsável pela projeção de uma imagem favorável do Brasil no exterior. A tentativa do Estado Novo de forjar uma nova identidade nacional, funda-da nos preceitos da democracia racial, refletiu-se, no futebol,

na criação do Conselho Nacional de Desportos (CND), que subordinava a administração do esporte ao centralismo estatal. DIP e CND atuariam em conjunto para a divulgação do futebol como um dos símbolos do país, esforço em parte atenuado pelo início da Segunda Guerra Mundial. Quando, em 1950, coube ao Brasil sediar a primeira Copa do Mundo após a guerra, houve a percepção interna de que aquele momento seria auspicioso para a divulgação da imagem do país. Segundo Gisella Moura, no livro “O Rio corre para o Maracanã”, aquela “poderia ser a ocasião de difundir-mos a imagem do país que desejávamos”(MOURA, 1998). Cronistas e dirigentes esportivos endossavam esse desejo. E assim foi feito. Ao serem associados futebol e nação, o Brasil pôde demonstrar ao mundo sua capacidade de organização – como com a construção do estádio do Maraca-nã, então o maior do mundo – e o grau de civilidade de seu povo. A imprensa internacional, de fato, impressionou-se com o evento (LIMA & SANTORO, 2006). Colateralmente, no entanto, a derrota em campo, na final contra o Uruguai, transformou-se em derrota da nação e de seu projeto, além de ter criado o que Nelson Rodrigues viria a chamar de “complexo de vira-latas” (RODRIGUES, 1993), um complexo de inferioridade em relação a tudo que venha de fora. A partir de 1958, e durante doze anos, a Seleção Brasileira foi o melhor time do futebol mundial. De quatro Copas do Mundo disputadas, o Brasil venceu três. Entre os clubes, o Santos Futebol Clube venceu duas vezes o cam-peonato mundial, com o melhor jogador do mundo, Pelé, em seu elenco. A associação do Brasil com o futebol passou a ser natural e mesmo incontestável. Governos democráti-cos, como o de Juscelino Kubitschek, em 1958, e ditatoriais, como o de Emílio Médici, em 1970, valeram-se das vitórias no futebol para o fim de, mais uma vez, promover a imagem do Brasil. É sintomático o fato de que as marchinhas que animavam a torcida durante essas Copas fizessem referência ao país, não só à equipe: “Pra frente, Brasil”, “Ninguém segura esse país”. O último ano da hegemonia brasileira marcaria um novo patamar para o futebol mundial. A seleção de 1970 tornou-se referência de futebol-arte, o futebol à la brésillien-ne descrito pelos franceses no já longínquo 1938. Nelson Rodrigues substituiria o “complexo de vira-latas” pela “pátria em chuteiras” (RODRIGUES, 1994). Assim, o que Gilberto Freyre e seus herdeiros intelectuais descreviam como algo natural, a existência de um estilo próprio – e superior – de se jogar futebol no Brasil, devido à miscigenação racial do país, e que o faria merece-

dossiêdor de um título como “país do futebol”, é, na verdade, uma construção histórica e simbólica. Insere-se no contexto do que o historiador Eric Hobsbawn chamou de “invenção das tradições” (HOBSBAWN & RANGER, 2006).

Futebol e inserção internacional do Brasil A eficácia da construção da imagem do Brasil como país do futebol pode ser comprovada por sua duração e por sua difusão em todo o mundo. E é inevitável a influência dessa imagem construída em todos os aspectos referentes ao país, mesmo em sua inserção internacional. Afinal, como

ocorria há algumas décadas (KAJIHARA, 2008). É provável, entretanto, que haja uma reversão nessa tendência nos próximos anos, já que o país será sede de dois grandes eventos esportivos com elevado potencial de atração turística: as Olimpíadas e a Copa do Mundo, este último dedicado exclusivamente ao futebol. A tentativa de matizar o estereótipo, no entanto, não pode obscurecer o fato de que o futebol tem sido ins-trumento importante para a inserção do Brasil no mundo. O uso desse poder brando é exemplificado pelo próprio Minis-tério das Relações Exteriores (MRE), que apresenta, dentro

escreve o jornalista Alex Bellos, corrrespondente do jornal britânico The Guardian no Brasil e autor do livro “Futebol: o Brasil em campo”:

“Se o futebol é o esporte mais popular do mundo, e se o Brasil é a nação mais bem-sucedida neste campo, as consequências desta reputação devem ser particulares e de longo alcance. Nenhum outro país é marcado por um único esporte, creio, na mesma medida que o Brasil pelo futebol”. Bellos, 2003.

É certo que o estereótipo, consequência nefan-da da primazia brasileira no futebol, deve ser evitado e combatido. As mais recentes campanhas internacionais do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) para divulgação do Brasil como destino turístico, por exemplo, têm busca-do conferir pouca ênfase ao futebol, ao contrário do que

da seção de Difusão Cultural de seu sítio na Internet, um texto sobre o papel dos esportes na atual política externa brasileira – o que, aliás, consagra a noção de que o futebol é um fenômeno cultural brasileiro. Assevera o texto:

“(...) o sucesso do Brasil em modalidades como futebol e vôlei, bem como em programas sócioesportivos de inclusão social, despertam o interesse de outros países. Governos de todo o mundo têm buscado estabelecer atividades de cooperação esportiva com o Governo brasileiro. (...) Por essas razões, atos internacionais têm sido assinados com países desenvolvidos e em desenvolvimento, buscando sempre o intercâmbio de experiências, a realização de atividades que permitam o desenvolvimento do esporte e o acesso da população à prática de atividade física além da criação de oportuni-dades para profissionais e empresas brasileiras”.

O reconhecimento do Brasil como um país estreitamente relacionado ao futebol gera, portanto, dividendos políticos (e) oferece, ademais, significativo aporte para a expansão comercial nacional.

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Com efeito, a importância dos esportes – e do fute-bol, em particular – para a atual política externa é demonstra-da pela criação, em 2008, da Coordenação-Geral de Intercâm-bio e Cooperação Esportiva (CGCE) e, já em 2010, de Grupo de Trabalho encarregado de coordenar as ações, no âmbito do MRE, relacionadas à organização da Copa do Mundo de 2014. É, aliás, a Ministra Vera Cíntia Alvarez, chefe da CGCE, quem reitera o papel do futebol como fonte do referenciado poder brando brasileiro, ao afirmar para o jornal O Estado de São Paulo que “em suas viagens à África e à América Latina, o primeiro pedido que o presidente Lula recebia era de coope-ração na área de esportes” (MARIN, 2008). O reconhecimento do Brasil como um país estrei-tamente relacionado ao futebol gera, portanto, dividendos políticos. É notável que a maioria das iniciativas de coope-ração esportiva seja relacionada àquele esporte: a Escola Internacional de Futebol (EIF) da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com sede em Brasília; as iniciativas de cooperação para implantação de escolinhas de futebol em países em desenvolvimento; a organização de partidas amistosas em alguns desses países; a tentativa de organizar uma partida entre as equipes do Flamengo e do Corinthians na Palestina, como forma de solidariedade àquele povo e de promoção da paz na região. A eficácia do futebol para a pro-moção da paz, aliás, já restou comprovada em 2004, quando o governo brasileiro organizou o amistoso entre as seleções brasileira e haitiana, em Porto Príncipe, capital do país em que atua a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), cujo comando militar é também brasileiro. A percepção internacional do Brasil como país do futebol oferece, ademais, significativo aporte para a expan-são comercial nacional. O reconhecimento da “marca Brasil” ou “Brazil” deve muito ao reconhecimento do futebol na-cional. A própria seleção é um veículo de divulgação dessa marca, que atesta um certo padrão de qualidade. Na última Copa do Mundo, entre os onze patrocinadores da equipe, seis eram empresas nacionais ou com relevante parcela de capital nacional (FRANCESCHINI, 2010), duas das quais incluídas em levantamento da revista Fortune das maiores multinacionais do mundo (FORTUNE, 2010). As outras três encontram-se em franco processo de expansão internacio-nal de suas atividades. Finalmente, há que se considerar o fator humano da atual inserção internacional do país. Em consonância

com o aumento do fluxo de brasileiros para o exterior du-rante as últimas décadas – o MRE estima que haja, atual-mente, mais de 3 milhões de nacionais vivendo fora do Bra-sil (MAIA, 2008) –, aumentou consideravelmente também o fluxo de jogadores brasileiros para outros países. Se, em 1995, saíram 223 (FRANCO JR, 2007), em 2008 foram 1176 os que passaram a fazer parte do mercado internacional do futebol, segundo estatísticas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O êxodo dos jogadores nacionais, que, como o êxo-do dos brasileiros em geral, tem natureza ambígua, parece indicar que a percepção do Brasil como país do futebol se tornou um fenômeno com capacidade de autorreprodução. Se os jogadores são recrutados por terem uma pretensa habilidade especial derivada da nacionalidade, o êxito de parte deles em clubes de todo o mundo acaba por confir-mar essa impressão inicial, o que estimula a busca de outros representantes da tradição brasileira do futebol.

Muito além do país do futebol O protagonismo brasileiro, especialmente nos últi-mos anos, tem mudado a maneira como o resto do mundo percebe o país. Ainda que a excelência do Brasil no futebol se mantenha – como demonstram as conquistas, na última década, da Copa do Mundo de 2002, de quatro títulos de melhor jogador do mundo e de mais quatro de melhor jogadora –, é notório que outros aspectos do país passam a sobressair no cenário internacional. Os êxitos diplomáticos e os avanços econômicos e sociais no âmbito doméstico fazem que o futebol seja um aspecto relevante para a identi-ficação do país, mas não mais o aspecto mais notado.Essa mudança vai ao encontro do desejo de aproveitar a percepção positiva do Brasil como país do futebol, sem recorrer ao uso do estereótipo. A oportunidade de sediar a Copa do Mundo de 2014 parece sintetizar esse desejo de valer-se do futebol para a divulgação da nova imagem do Brasil no exterior – algo semelhante, por sinal, ao que ocorreu em 1950. A expressão desse sentimento pode ser apreendida das palavras do Presidente Lula na mesma cerimônia em que o presidente da FIFA afirmou ser o Brasil o “país do futebol”:

“Com o mundial, teremos a oportunidade de apresentar ao mundo um novo momento do Brasil. Estamos seguros de que encantaremos o mundo”. Lula da Silva, 2010.

dossiê

[ huGO De OLiveira LOpes BarBOsa pereira pintO (turma 2009-2011) é BachareL em ciência Da cOmputaçãO peLa universiDaDe estaDuaL De campinas. ]

Poucos autores se arriscam hoje em interpretações generalistas sobre a identidade nacional, ao contrário do que ocorreu em outros momentos da história brasileira recente, sobretudo na primeira metade do século XX. O abismo hermenêutico parece, provavelmente, mais assus-tador, e o rigor acadêmico tolheu certas aspirações mais ensaísticas. Alguns autores, no entanto, para nosso deleite intelectual, ainda ousam se lançar nesse projeto ambicioso e sempre inacabado. É o caso de José Miguel Wisnik, em “Veneno remédio: o Futebol e o Brasil” . Partindo de uma análise sobre as características intrínsecas do jogo, que o diferenciam dos demais espor-tes com bola e explicam, em grande parte, seu enorme sucesso, Wisnik examina a especificidade do futebol brasileiro e conjectura relações entre ele e o imaginário da identidade nacional. Na obra, as tabelinhas entre Pelé e Machado de Assis, entre Garrincha e Macunaíma, são constantes, surpre-endentes e sugestivas, mesmo quando parecem abstratas demais. A forma é livre e ensaística; o estilo, agradável e pre-ciso, denota grande poder de síntese, de argumentação e de fabulação, e o conteúdo tem enorme enraizamento teórico.

Futebol e futebol brasileiro Segundo Wisnik, a invenção do futebol pelos ingle-ses é uma proeza da modernização, pois, convertendo a lógi-ca de ritos e jogos ancestrais em esporte, logrou a “quadratura do circo”, ou seja, a racionalização de elementos simbólicos e violentos que a modernidade dissipou. Algumas caracterís-ticas do futebol, seus componentes de indeterminação, sua abertura estrutural à interpretação, à contingência e ao acaso, seu espaço para jogadas “improdutivas” talvez ressaltem seu caráter ritualístico e expliquem, em boa parte, a paixão que ele suscita (WISNIK, 2008, p. 114). Para Wisnik, o futebol se transformou depois pela

FeLipe garcia gOmes

dossiê

interpretação de culturas mestiças, em especial a brasileira, que estão, ao mesmo tempo, dentro e na periferia da mo-dernidade. O autor retoma Pasolini, que, em contraposição ao futebol-prosa eficiente dos europeus, define o futebol sul-americano, e principalmente o brasileiro, como futebol--poesia, capaz de, com dribles e toques de efeito, “criar espaços inesperados por caminhos não-lineares”. O enfoque muda, na reelaboração brasileira, da organização tática e do jogo coletivo para a habilidade técnica e o drible, que permi-tem mudar a forma e o ritmo do jogo. “O futebol brasileiro”, nas palavras de Wisnik, “aproveitou a brecha que a invenção inglesa oferecia, isto é, a margem de festa e ritualização que a narrativa fluida do jogo admite” (WISNIK, p. 399).

Futebol e formação da sociedade brasileira Há diversas formas de se pensar e imaginar um país, suas raízes históricas, suas características sociais, seu imaginá-rio cultural. Wisnik acredita ser proveitoso pensar a formação do Brasil, “a trama de um país mal letrado e exorbitante”, pela alta e baixa cultura, pelo confronto e contraponto de raças, pela palavra e pelo corpo, e mais especificamente, pela litera-tura, a música popular e o futebol (WISNIK, p. 405). Por que o futebol? Talvez porque o futebol tem uma presença marcante na memória coletiva brasileira, e a Copa do Mundo é um dos momentos em que o país mais se identifica como nação. Mas, sobretudo, porque a forma como o brasileiro desenvolveu sua capacidade de jogar futebol re-mete a certos traços da formação da cultura nacional. É bom lembrar que não somente os brasileiros enxergam o futebol como uma forma privilegiada de entrever a cultura brasileira. O autor peruano Mario Vargas Llosa, por exemplo, assevera que a criatividade do brasileiro, com sua “alegria, picardia, ritmo, sensualidade e graça”, se expressa de forma intensa no futebol, além de na música (VARGAS LLOSA, 2006, p. 75).

O país melhor do que si mesmo Uma resenha de “Veneno remédio: o Futebol e o Brasil”, de José Miguel Wisnik

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Wisnik, fazendo referência aos clássicos da en-saística interpretativa da nação, reconhece que aquelas características atribuídas recorrentemente à formação social brasileira – ausência de isonomia na aplicação da lei, de espírito público e de separação entre público e privado, patrimonialismo, fuga à obrigação etc… – são nefastas para os costumes políticos. A outra face da moeda – a simpática familiaridade e informalidade, a interpenetração da casa com a rua, a maleabilidade, o personalismo do homem cordial – pode, no entanto, ter sido benéfica para a vida cultural. A dialética da malandragem1 , zona de permeabili-dade ambígua entre a ordem e a desordem, e a criatividade da cultura mestiça e tropical, “com sua facilidade de juntar elementos supostamente incompatíveis”, estariam, assim, interligadas (WISNIK, p. 422). O jeitinho brasileiro, o jogo de cintura, o samba e a ginga se misturam e fazem o Brasil ser mundialmente reconhecido “pela produção de uma espécie de tecnologia de ponta do ócio, do qual a música e o futebol são os sinais mais evidentes e refinados” (WISNIK, p. 181). Wisnik lança mão de Gilberto Freyre que, em 1947, no prefácio a “O negro no futebol brasileiro”, clássico de Mário Filho, apresenta o futebol como uma “sublimação” dos componentes irracionais, violentos e desorganizadores da herança social brasileira, amplamente comentados em qualquer interpretação da formação nacional, principalmen-te aquelas advindas da tradição de Caio Prado Jr. Assim, se-gundo Wisnik, o futebol poderia ser “o fármacon prodigioso, o veneno remédio que converte a violência, a desagregação social, o primarismo, o oportunismo vicioso e estéril, em arte e perspectiva de afirmação do país” (WISNIK, p. 243). Dessa maneira, o mesmo processo que permitiu aos negros virar o jogo em um esporte, do qual no início estavam excluídos, poderia ser capaz de transcender o giro em falso na vio-lência e no primarismo latentes na sociedade brasileira2 . O futebol seria, assim, o vetor inconsciente por meio do qual o substrato histórico e atávico da escravidão se reinventou de forma artística e lúdica, suplantando, pelo menos parcial-mente, fissuras da sociedade brasileira, como a pobreza, a dificuldade de ascensão social e a discriminação racial. Como a sublimação nem sempre ocorre, no entanto, o processo é reversível e dialético. Wisnik relembra que Gilberto

Freyre havia argumentado, nesse mesmo prefácio, que na falta do futebol ou de algo que pudesse domar as forças destrutivas da sociedade brasileira, “o cangaceirismo teria provavelmente evoluído para um (…) gangsterismo urbano” (WISNIK, p. 242). Comentário de uma atualidade perturbadora. De acordo com Wisnik, “ao roubar a cena da ‘dialé-tica da malandragem’ que enformou a imagem do Brasil na primeira metade do século por meio do samba e do futebol, a dialética dura da marginalidade, sem síntese, sem folga e, afinal, sem dialética, marca a atmosfera geral do país com a lembrança surda e recalcada de um custo social não redimi-do” (WISNIK, p. 421). Assim, o futebol também é o veneno-remédio in-capaz de irradiar suas consequências benéficas para outros âmbitos da experiência nacional. Nessa forma, ele é uma sublimação extremamente limitada, fórmula de uma coesão social que não se sustenta para além das quatro linhas. Wis-nik resume assim esse ponto: “o futebol brasileiro torna pos-sível em campo aquilo que a sociedade brasileira sistemati-camente não realiza (democracia racial em ato, elevação dos pobres à máxima importância, competência inequívoca no domínio de um código internacional)” (WISNIK, p. 408). Se, nesse ano de 2010, a promessa do futebol de Neymar pode ser vista como o lado positivo da moeda, a “dia-lética da malandragem” em toda sua criatividade e inocência, a crueldade e o absurdo da história do goleiro Bruno repre-sentam o horror da “dialética dura da marginalidade”. Duas histórias que parecem querer nos relembrar a tese de Wisnik: o futebol como veneno-remédio, capaz e incapaz, simbolica-mente, de transcender a complexa herança social brasileira.

Perfeição final do homem e primei-ras verduras Em crônica de 1892, Machado de Assis, ao referir-se ao traço brasileiro da fuga à obrigação, escreve em seu estilo irônico: “de duas uma: ou isto é a perfeição final do homem, ou não passa das primeiras verduras”. Wisnik usa esse trecho para simbolizar um complexo recorrente no imaginário brasi-leiro: “o da pendulação entre a ambição de grandeza máxima e a impotência infantilizada de um povo periférico e anarcói-de”. Para o autor, o futebol tornou-se, no século XX, uma arena

dossiêprivilegiada dessa síndrome e de sua contínua reelaboração. O Maracanã, “maior estádio do mundo”, convive com “a Hi-roshima psíquica” da derrota de 1950 e o famoso “com-plexo de vira-latas”, ambas as expressões rodriguianas (WISNIK, p. 168-171). De certa forma, essa pendulação doentia se ajusta bem à ideia do Brasil como um país eternamente do futuro, uma nação que não consegue explorar suas potencialidades, sempre glorificadas como atributos que nos redimirão um dia, quase que por aca-so e preferencialmente sem muito esforço. De acordo com os exemplos de Wisnik, “uma reserva coletiva inesgotável de futebol criativo nas mãos de dirigentes que a dilapidam em benefício próprio; uma cultura notável pelo seu alcance inven-tivo, que germina na incultura; um gigantesco deslocamento das energias produtivas para a esfera lúdica, que só retorna sobre as outras áreas da vida como produção de ilusão fugaz, deixando os problemas intocados” (WISNIK, p. 418). Em termos wisnikia-nos, que remetem ao título do livro, “o futebol brasileiro, e por extensão o país, se expe-rimenta como um fármacon, um veneno remédio, uma dro-ga inebriante e potencialmen-te letal que oscila com uma facilidade excessiva entre a plenitude e o vazio”. Wisnik relembra que essa gangorra se reflete no campo da discussão cultural, em que o futebol é percebido “ora como expressão otimista de uma singu-laridade cultural que se expressa em noções intraduzíveis

como ginga, malandragem, jeito de corpo, molecagem, tidas como marcas originais da formação mestiça, ora é denunciado como uma via de escape que recobre o enfren-tamento das realidades e dá chance à ideia mistificatória de uma democracia racial” (WISNIK, p. 182). De qualquer forma, para o autor, o futebol pode ter acabado oferecendo a oportuni-dade histórica de “um equacio-namento positivo da ‘perfeição final’ com as ‘primeiras verduras’, isto é, do sonho da civilização avançada combinado inespera-damente com a gratificação das disposições infantis, num plano lúdico-artístico” (WISNIK, p. 171). Isso porque o futebol brasileiro conseguiu conciliar o princípio da realidade – no caso, futebol eficazmente jogado – com o princípio do prazer – futebol ludicamente gratuito. E não por outra razão o futebol brasileiro encantou e encanta o mundo.

Irradiação necessária Para que os dons do fu-tebol se irradiassem para áreas menos lúdicas da vida nacional, Wisnik deixa transparecer algu-mas condições: “uma segunda abolição da desigualdade (para além da dicotomia de raças)”; “uma cura do dispositivo doentio segundo o qual o país

é ou receita de felicidade ou fracasso sem saída”; e “uma ação educacional consistente” (WISNIK, p. 408-409). Em leitura otimista, quiçá não completamente compartilhada pelo autor resenhado, algumas dessas condi-ções parecem se materializar devagar – à exceção, talvez, da

Enquanto, para outros pa-íses, a composição da se-leção nacional de futebol remete a problemas iden-titários não resolvidos, o Brasil mestiço, inclusivo e criativo na diversidade que queremos construir nos aparece no futebol como um país “melhor do que ele mesmo”.

1 Wisnik toma o conceito desenvolvido por Antonio Candido no ensaio “Dialética da malandragem” (em O discurso e a cidade), no qual a análise do contexto social do romance Memórias de um sargento de milícia, de Manuel Antônio de Almeida, identifica um mecanismo de oscilação entre a ordem e a desordem que caracte-rizaria a sociabilidade brasileira.2 Wisnik menciona um fato curioso e revelador. Machado de Assis, em crônica de 1893 (“20 de agosto de 1893”) em que comentava a habilidade do caboclo no exer-cício do arco e flecha, afirma: “contestou-se que a poesia nacional estivesse no caboclo; ninguém poderá contestar, a sério, que esteja nele a nacionalização do sport. O caboclo e o capoeira podem fazer-se úteis, em vez de inúteis e perigosos”. Depois, Wisnik comentará: “É possível avaliar, então, o quanto terá se passado em matéria de experiência coletiva e de alquimia cultural concreta até que se processasse o percurso que vai do capoeira inútil e perigoso a Pelé e Garrincha” (WISNIK, 172-174).

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educação, que ainda permanece muito aquém dos desejos e necessidades. A década de 1980 e parte da de 1990, com hiperinflação, crescimento econômico pífio, impeachment e outros sintomas de fragilidade institucional, foram marca-das por grande pessimismo quanto ao futuro do Brasil. As gerações mais novas cresceram ouvindo discursos muito críticos sobre o país, frequentemente reificando caracterís-ticas negativas, tão entranhadas que não se poderia sequer aventar mudá-las3. Nos últimos quinze anos, a junção, finalmente, de políticas públicas exitosas que concederam maior racionali-dade e previsibilidade à economia brasileira com a incorpo-ração de uma parte considerável da população a um mínimo de cidadania efetiva, parece dar novamente a crescente parte da população autoestima e confiança na capacidade de o Brasil (o povo e a elite política e econômica, conjuntamente) enfrentar os enormes desafios na construção de uma socieda-de mais justa. A simultaneidade de democracia, crescimento, equilíbrio macroeconômico e diminuição da desigualdade social, talvez pela primeira vez na história desse país, parece aos poucos reconciliar a elite e o povo brasileiros. Nessa perspectiva, portanto, a segunda abolição da desigualdade que, aliás passa também pelo lado racial, em-bora vá além disso, pode estar sendo gestada nesse últimos anos, com a redução da pobreza e a discussão sobre ações afirmativas. A autoestima reconquistada, por sua vez, pode

aos poucos desarmar os dispositivos doentios simplórios de negação ou idealização do país. Na parte da educação, o caminho ainda é enorme, mas talvez haja perspectivas no horizonte. Professor de matemática da rede pública de ensino da Bahia, Vanildo dos Santos Silva, vencedor do Prêmio Professores do Brasil do MEC, ganhou notoriedade recentemente por ter aumentado bastante o desempenho de seus alunos, através de jogos com objetos concretos que facilitam o entendimento de equações matemáticas4. É o que Wisnik pede: “Quem não intui a possibilidade de um salto de eficácia geral em todas as frentes se uma ação educacional consistente produzisse as condições para que um povo lúdico aprendesse criando, inventando, jogando, com um rigor até então inimaginável de conseqüências para todas as áreas?” (WISNIK, p. 409). Enquanto, para outros países, a composição da seleção nacional de futebol remete a problemas identitá-rios não resolvidos, o Brasil mestiço, inclusivo e criativo na diversidade que queremos construir nos aparece no futebol como um país “melhor do que ele mesmo” 5. O futebol, “o emplasto Brás Cubas que deu certo” , é por tudo isso um dos bairros mais representativos da bonita cidade invisível que é a cultura brasileira, “a respiração fora do produtivismo sem trégua, a capacidade de comunicação entre lógicas múltiplas, a leveza profunda” (WISNIK, p. 430) e “a promessa de felicidade” .

dossiê

[ FeLipe Garcia GOmes (turma 2009-2011) é BachareL em DireitO peLa universiDaDe DO estaDO DO riO De JaneirO. ]

3 “Já que fazer a crítica da insuficiência brasileira tornou-se senso comum, ocorre um efeito vicioso e rebarbativo em que a crítica do mesmo é o mesmo, o que não altera o vaivém entre deslumbramento e corrosão. O espaço público tornou-se, com isso, uma espécie de Fla-Flu, deslocado, sem beleza, sem perspectiva e sem regras” (WISNIK, p. 419).4 “O que os une [Machado de Assis e Pelé] é a afirmação, na negatividade e na positividade, da consciência fulminante e da intuição em ato, assim como a capa-cidade de fazer o país saltar aos nossos olhos como melhor do que ele mesmo” (WISNIK, p. 406, grifo nosso).5 “[Essa] idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humani-dade” (Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cuba, Apud WISNIK, p. 430).

Para saber mais:BELLOS, Alex. Futebol: o Brasil em campo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.FRANCO JR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.FREYRE, Gilberto. Football mulato. Diário de Pernambuco, Recife, 17 jun. 1938.HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.KFOURI, Juca. Futebol, Brasil e a globalização. Política Externa, São Paulo, v. 16, n. 3, dez. 2007/jan./fev. 2008.WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.VARGAS LLOSA, Mario. Diccionario del Amante de América Latina, Barcelona: Paidós, 2006. MOURA, Gisella. O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro: FGV, 1998.RODRIGUES, Nelson. À Sombra das Chuteiras Imortais. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.RODRIGUES, Nelson. A Pátria em Chuteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.RODRIGUES FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.RODRIGUES FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

ensaio fotográfico

A Ásia não existe para os asiáti-

cos. Trata-se de invenção alheia, grega.

O topônimo que hoje designa o imenso

território entre o Helesponto e o Pacífico

confundia-se, na mente ateniense, com

um único império rival – o persa.

Mais do que fraude histórica ou

colosso geográfico, a Ásia é um mito. Ela

simplesmente não está lá. é uma terra que

se pode atravessar – seja com trens soviéti-

cos, ônibus turcos, riquixás pequineses ou

aviões iranianos – mas que ninguém pode

alcançar. A Ásia mora nas mentes.

O termo “diversidade” é insultante-

mente banal para descrever o continente

de onde vieram, e onde repousam, os

mais brilhantes generais e os mais pérfidos

tiranos; os mais lúcidos profetas e os mais

traiçoeiros farsantes; os mais ilustres pen-

sadores e os mais abjetos genocidas. Além

de bilhões, dezenas de bilhões de homens

anônimos e mulheres esquecidas.

Embora não exista, a Ásia é infinita.

O mito da Ásia Thomaz Alexandre Mayer Napoleão

Templo de Confúcio Pequim, China

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GoremeCapadócia, Turquia

Novosibirsk Sibéria, Rússia

ensaio fotográfico

Monastério de Gandan KhiidUlan Bator, Mongólia

Praça Tiananmen, Pequim, China

Kusadasi, Turquia

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ensaio fotográfico

Irkutsk Sibéria, Rússia

Yazd, Irã

artigo

Lênin? A essa hora?Sobre o conceito de imperialismo e sua importância nas relações internacionais contemporâneas

carLOs henrique pissarDO

O imperialismo é um daqueles termos que, por terem sido utilizados com tantos sentidos diferentes e para tão diversas finalidades, parecem de tal modo desgastados que já não serviriam para nada além de adornar discursos ideológicos vazios e ingênuos. Longe de ser um caso excep-cional, esse parece ser o destino comum de con-ceitos que pretenderam, a um só tempo, explicar e modificar a realidade. Ao saírem do mundo asséptico das páginas dos tratados de filosofia e teoria política em direção à “finitude da experiên-cia histórica”, como dizia Hegel, esses conceitos pagam um preço por arriscarem-se tanto. Não obstante, após cerca de um século do profícuo momento histórico de sua formulação – isto é, o primeiro quartil do século XX, quando autores como Vladimir Lênin, Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt, Karl Kautsky e Rudolf Hilferding, entre outros, debruçaram-se sobre o tema –, para um estudioso do sistema internacional contempo-râneo, o conceito de imperialismo pode ainda dizer alguma coisa. O que se pretende discutir neste en-saio é como esse conceito, em especial no sentido

dado a ele por Lênin, pode, ainda, ajudar-nos a en-tender as relações internacionais hoje e, na medida do possível, apontar para algumas hipóteses sobre seus desdobramentos futuros. Quando Lênin escreveu seu clássico Im-perialismo: Fase Superior do Capitalismo – que, segundo seu prefácio de 1917, foi concluído na primavera de 1916 –, não havia tema mais ime-diato do que a guerra. A ideia de levar a cabo uma análise detida sobre a essência econômica do imperialismo aparecia como condição necessária para a compreensão do conflito que então arrui-nava a Europa e colocava em xeque a esperança no progresso ininterrupto que marcara o mundo ocidental desde pelo menos a Revolução Francesa. Afirmar que a Primeira Guerra Mundial deveria ser compreendida por meio da estrutu-ra explicativa do imperialismo significava, em primeiro lugar, negar a centralidade da “história diplomática” – que tende a enfatizar eventos políticos imediatos em prejuízo de tendências históricas mais amplas. Implicava, pelo contrário, inscrevê-la em uma teoria do desequilíbrio sistê-

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mico da divisão internacional do trabalho e em uma análise da dinâmica da reprodução ampliada do capital que, naquele momento, organizava a vida econômica e social das potências beligeran-tes. Significava alocar a Guerra no interior de um processo de crise da globalização, pelo menos no que diz respeito à sua figura liberal. Se o assassi-nato de Franz Ferdinand foi o estopim do conflito, tratava-se de entender como a Europa tornara-se um barril de pólvora. A crise da globalização do final do século XIX, para Lênin, não era senão a crise de um está-gio do capitalismo no qual as relações sociais de produção estavam fundamentadas na existência de pequenas e médias empresas e de um merca-do regulado pela concorrência entre elas. A crise da globalização seria idêntica ao fim do estágio liberal do capitalismo e à ascensão de uma dinâ-mica monopolista de acumulação. Nesse novo contexto, já não seria mais a “mão invisível” do livre mercado que definiria, para além das von-tades individuais de cada agente econômico, a distribuição ótima de recursos e investimentos na economia, mas as decisões “conscientes” tomadas nos escritórios de um punhado de conglomera-dos monopolistas. Como lembra David Harvey, o processo de globalização econômica da segunda metade do século XIX foi, em larga medida, uma resposta à crise europeia de 1846-1850 (HARVEY, 2004, p. 43). A expansão vertiginosa de investimentos de longo prazo na área de infraestrutura (ferrovias e reformas urbanas, por exemplo), a busca de novos mercados para as mercadorias já produzidas na Europa e o crescimento do comércio atlântico apresentaram--se, naquele momento, como a saída para essa crise – ao constituírem-se como únicas oportunidades de investimento lucrativo do capital excedente então disponível. Especialmente a partir da década de 1870, esses fluxos de investimento direcio-

naram-se, cada vez mais, a outras regiões do mundo que não o eixo do Atlântico Norte, como uma resposta “ao fato de que em alguns países o capitalismo “amadureceu” excessivamente e o capital (dado o insuficiente desenvolvimento da agricultura e a miséria das massas) carece de campo para a sua alocação lucrativa” (LÊNIN, 1917, cap. IV). Não por acaso, a OCDE estima que a razão comércio internacional/PIB mundial tenha passado de 1% em 1820 para 7,9% em 1913. Da mesma forma, os Investimentos Dire-tos Externos (IDEs) passaram de cerca de 7% do PIB mundial em 1870 para 20% às vésperas do início da Primeira Guerra. Estradas de ferro cor-responderam a 41% dos investimentos externos britânicos em 1913. Dada a natureza mesma desses investi-mentos, isto é, a necessidade de uma acumulação prévia de grandes quantidades de capital, os pra-zos mais longos de retorno e os riscos envolvidos em qualquer processo de abertura de novos mer-cados, entre outros fatores, demandava-se, para o seu êxito, um novo papel do Estado. Enquanto, no estágio liberal do capitalismo, o Estado poderia dar-se o luxo de atuar apenas como o “guarda no-turno” do sistema, para usar a expressão de Marx, agora ele deveria passar a exercer funções muito mais proeminentes. Em especial, sob o capitalis-mo monopolista, ele passa a se apresentar como agente ativo no processo produtivo que, mais do que dotar o sistema de um quadro normativo que apenas tornasse possível o funcionamento do mercado, deve também intervir na economia a fim de viabilizar e garantir seu desenvolvimento. Pois foi a necessidade de viabilizar e prote-ger a expansão internacional de seus conglome-rados nacionais que levou os Estados europeus a reorientar suas áreas de interesse para além de suas fronteiras. A defesa, por parte dos Estados, dos in-

artigoteresses de suas empresas nacionais no exterior aparecia como condição necessária para o pro-cesso de internacionalização dessas empresas. Se os Estados nacionais assim não o fizessem, suas indústrias ver-se-iam limitadas aos seus mercados nacionais já saturados e com escassas oportunida-des de investimentos lucrativos (o que, no limite, teria sido a causa da crise de 1846-1850). Assim fazendo, eles adentravam um jogo de disputas e interesses que levaria tendencialmente o mundo à guerra. Para Lênin, portanto, a crise do processo de globalização econômica do final do século XIX estava inscrita nas próprias determinantes inter-nas desse processo. Diante da necessidade crescente de se garantir fornecimento economicamente viável de matérias-primas e, mais importante, de abertura de novos mercados capazes de “consumirem” o excedente de capitais que já não encontrava oportunidades lucrativas de investimento no inte-rior das economias nacionais – isto é, de destinos viáveis para a exportação de capitais –, o globo aparecia às potências imperialistas do começo do século XX como um grande território a ser dividi-do: a cada um segundo seu poder. As histórias da partilha da África e das disputas entre os franceses e os ingleses em torno do Oriente Médio são por demais conhecidas para que possamos acrescen-tar algo – de todo modo, continuam exemplares. As empresas transnacionais eram as pontas de lança desse processo; sua presença no exterior deveria ser garantida pelo Estado nacional como se o futuro dele dependesse do êxito delas. Daí a ênfase dada por Lênin ao realismo cínico de Cecil Rhodes quando este afirmava: “se quereis evitar a guerra civil, deveis tornar-vos imperialista” (LÊNIN, 1917, cap. VI). Ao capitalismo monopolista corres-ponde um Estado imperialista. Nesse sentido, as “contradições inerentes entre uma única economia em escala global e as

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jurisdições estatais múltiplas”, às quais se refere Immanuel Wallerstein (HOLLOWAY, 1983, p. 2), ad-quiriram caráter peculiar. Em sua figura imperia-lista, a relação entre Estado e economia nacional deixa de ser propriamente o foco de tensão capaz de produzir atritos desestabilizadores do sistema; o momento de tensão se desloca para o âmbito das relações interestatais, onde o interesse nacio-nal confunde-se com o interesse de determinadas empresas nacionais (às quais, anacronicamente, poderíamos chamar de “campeãs nacionais”). Disputas econômicas, que, sob o modelo liberal deveriam aparecer apenas na forma da concorrên-cia entre agentes no mercado, transformam-se em fonte de rivalidades entre Estados. Aqui, mostra-se relevante a diferença entre as posições de Lênin e de Karl Kautsky sobre o tema. Enquanto Lênin enfatizava a necessidade histórica de um tendencial aumento das tensões interestatais como consequência daquela arti-culação entre interesses do Estado e do grande capital, Kautsky, por sua vez, apostava na possibi-lidade de consolidação do que ele chamou de um “ultraimperialismo”. A hipótese de Kautsky – desa-creditada, por motivos óbvios, durante a Primeira Guerra, mas revitalizada em alguns círculos no Pós-1945 – era a de que as rivalidades entre os Estados-Nações deveriam levar à formação, no interior do sistema internacional, de uma espécie de Superestado, acima das rivalidades imediatas existentes e, por isso, capaz de articular global-mente a produção capitalista. Esse Estado global transferiria à esfera internacional a política interna de cartelização das economias nacionais que até então teria sido levada a cabo pelos Estados em suas jurisdições. O argumento de Kautsky segue dessa forma: os agentes estatais, responsáveis por defender os interesses do capital nacional, perce-beriam, cedo ou tarde, que o aumento da rivalida-de internacional não era do interesse de ninguém;

antes de chegarem à realização de uma guerra generalizada, eles se articulariam de maneira a evitar que ela acontecesse. Pois para Lênin, a Primeira Guerra não era senão a prova cabal de que, sob o capitalismo, os agentes estatais não são tão racionais quanto se espera. Decerto, duas guerras mundiais que atingiram o núcleo mesmo do sistema mostraram que, pelo menos naquele momento, a possibilida-de de instauração desse Superestado kautskiano não se realizou. Não obstante, todo o discurso sobre “o fim do Estado”, hoje um tanto fora de moda, guarda uma proximidade, mesmo que subterrânea, com a tese do ultraimperialismo de Kautsky. Isso por-que esse discurso é também dependente de uma aposta em que a crescente internacionalização da economia capitalista seria capaz de criar um sistema internacional para além dos limites dos Estados nacionais e ainda assim capaz de dotar a economia mundial das instituições necessárias à sua existência e reprodução. Note-se que a teoria de Antonio Negri e Michael Hardt e, especialmen-te, seu conceito de Império, é uma importante contribuição a essa problemática, ao enfatizar a capacidade de articulação do capitalismo mono-polista internacional. O argumento de Lênin, pelo contrário, de-fende o diagnóstico de que, sob o capitalismo mo-nopolista-imperialista, o Estado nacional adquire cada vez mais força – em última instância, porque é ele que se torna o agente central da reprodução ampliada do capital nesse estágio histórico. Mais do que isso, seria da própria natureza do sistema econômico capitalista a existência de disputas entre os agentes econômicos dele constitutivos, sejam esses agentes pequenas empresas ou gran-des conglomerados econômicos. Esperar que, mesmo em uma situação na qual poucos agentes estão presentes, esses não se apresentem como

artigocompetidores, é esperar que eles deixem de ser o que são, isto é, empresas capitalistas. Para Lênin, portanto, a capacidade de instauração de um ultraimperia-lismo não pode passar de uma experiência pontual e momen-tânea: “os capitalistas não parti-lham o mundo levados por uma particular perversidade, mas porque o grau de concentração a que se chegou os obriga a se-guir esse caminho para obterem lucros; e repartem-no segundo o capital, segundo a força” (LÊNIN, 1917, cap. V). Da crescente importân-cia do Estado como agente ga-rantidor da reprodução amplia-da do capital e da incapacidade de instauração de um arcabou-ço institucional capaz de supe-rar o papel do Estado-Nação, Lênin depreende sua tese de que existiria uma tendência inerente ao capitalismo mono-polista em se atualizar como guerra imperialista. Eventos históricos específicos poderiam adiantar ou atrasar a efetivação das tensões internacionais na forma de conflitos abertos: essa, no entanto, seria a tendência histórica desse estágio do capi-talismo. É certo que, no imediato pós-Segunda Guerra, apesar da crescente importância das empresas transnacionais na dinâmica da economia global,

não se verificou um correspon-dente aumento das tensões interestatais que pudessem ter como origem aquela confluên-cia, diagnosticada por Lênin, entre os interesses estatais e os interesses de conglomerados empresariais nacionais. Por ób-vio, a tensão que organizava o sistema internacional de então – isto é, a disputa entre os EUA e a URSS – não pode ser expli-cada a partir do quadro analíti-co de Lênin: suas coordenadas eram outras. Pode-se, no entanto, afir-mar que, se a prevalência dessa outra lógica geopolítica mante-ve as possíveis disputas interes-tatais do tipo imperialista em latência, com o fim da Guerra Fria e com a crise do interreg-no liberal-globalizante que a seguiu, não parece um absurdo perguntar, hoje, se essas dispu-tas não poderiam aflorar nova-mente. A Guerra Fria impôs uma “disciplina”, não apenas aos EUA e à URSS, mas a todos os atores secundários do concerto inter-nacional – “disciplina” que limi-tava as pretensões dos Estados e impedia que rivalidades pon-tuais tomassem proporções de-sestabilizadoras para o sistema. Ademais, no período, a necessi-dade de reconstrução das eco-nomias destruídas pela guerra (principalmente Alemanha e

A defesa, por parte dos Estados, dos interesses de suas empresas nacio-nais no exterior aparecia como condição necessá-ria para o processo de internaciona-lização dessas empresas. Se os Estados nacionais assim não o fizes-sem, suas indústrias ver-se-iam limitadas aos seus mercados nacionais já satura-dos e com escassas oportunidades de investimentos lu-crativos (o que, no limite, teria sido a causa da crise de 1846-1850). As-sim fazendo, eles adentravam um jogo de disputas e interesses que levaria tendencial-mente o mundo à guerra.

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Japão) foi, em larga medida, capaz de absorver grande parte do capital então disponível, não per-mitindo que se configurasse, assim, uma situação de excedente de capitais no sistema internacional. Se possíveis tensões entre Estados foram, de fato, postas em segundo plano (e, em certo sentido, reprimidas) sob o peso incomparável da disputa maior que definia a Guerra Fria e se essas mesmas disputas pareceram, de modo quase miraculoso, dissipadas pelo discurso da globalização dos anos 1990, o “retorno” à política unilateral por parte dos EUA e o surgimento de outros atores globais, no começo do século XXI – sem, portanto, a existên-cia de um poder ou de uma ideologia que possam apresentar-se como inquestionavelmente hege-mônicos –, além da nova dinâmica do processo atual de acumulação, fazem parecer razoável questionar se o cenário de disputas imperialistas entre blocos estatais-econômicos não estaria mais próximo de nossa realidade do que gostaríamos de imaginar. O fato é que, como afirma David Harvey, referindo-se ao sistema internacional contem-porâneo, “esse fechamento em blocos regionais de poder que recorrem a práticas de exclusão ao mesmo tempo em que se envolvem na compe-tição interblocos é exatamente a configuração que produziu as crises do capitalismo global nas décadas de 1930 e 1940” (HARVEY, 2004, p. 167). Até que ponto os EUA, ou outra instância inter-nacional de poder, serão capazes de evitar um incremento de disputas interestatais como a que deu origem à Primeira Guerra é uma questão que permanece em aberto. Se, para muitos, tais prognósticos podem parecer um tanto “catastrofistas”, como se costu-mava dizer, a opinião de setores teóricos e políti-cos que nada devem às ideias de Lênin ou de ou-tros teóricos do imperialismo não deixa de causar certo mal-estar. Isso porque podemos encontrar

argumentos semelhantes aos desenvolvidos neste ensaio em autores recentes que são tudo, menos marxistas. Em um importante artigo, publicado na Foreign Affairs de 2005, por exemplo, o historiador conservador Niall Ferguson analisa certas variá-veis da realidade internacional hoje que, surpre-endentemente, não são muito diversas daquelas a partir das quais Lênin construiu sua teoria sobre o imperialismo. Para Ferguson, “Pode parecer excessivamente pessimista preocupar-se que esse cenário possa, de alguma forma, repetir-se – que nossa época de globalização colapse da mesma forma como a dos nossos avós colapsou. Mas vale manter em mente que, apesar dos variados aler-tas emitidos, no começo do século XX, sobre as catastróficas consequências de uma guerra entre as grandes potências europeias, muitas pessoas – inclusive os investidores, uma classe geralmente bem informada – foram pegas completamente de surpresa pelo início da Primeira Guerra Mundial. A possibilidade de que a globalização, como o Lusitania, naufrague [sunk] é tão real hoje quanto o fora em 1915” (FERGUSON, 2005, p. 65-6). Decerto, na análise de Ferguson, a articu-lação entre interesses estatais e empresariais é apenas uma das variáveis em jogo nesse prognós-tico de uma possível crise da globalização. Para o historiador inglês, outros fatores (como o terro-rismo internacional e o declínio relativo do poder americano) são tão importantes quanto o aumen-to da rivalidade entre os Estados. De toda forma, é interessante a proximidade. De modo similar, quando uma revista como The Economist afirma, em um editorial de agosto de 2010, que, “por toda Europa, de Berlim a Bruxelas, a demanda por políticas industriais está de volta” (THE ECONOMIST, p. 9), além de citar os casos dos EUA e do Japão e, entre os emergentes, da China, do Brasil e da Índia, talvez seja o caso de se começar a pensar

artigoseriamente nas possíveis consequências, para as relações internacionais, dessas mudanças. Porque políticas industriais sérias significam, necessariamente, a criação de mecanismos es-tatais de viabilização e proteção dos interesses das indústrias nacionais no exterior. O fato de o mesmo editorial defender, coerentemente com a posição histórica da revista, que “os dados demonstram, de modo reiterado, que política industrial não funciona” (THE ECONOMIST, p. 9) em nada altera o problema; da mesma forma que são inúteis apelos voluntaristas por um “retorno” a um fantasmático capitalismo liberal. Para o exercício da diplomacia, os desa-fios envolvidos em um contexto internacional dessa natureza são evidentes. Se a fórmula bati-da de que ao diplomata cabe a defesa do interes-se nacional sempre foi passível de crítica – jus-tamente por deixar em aberto o que se entende por interesse nacional –, ela torna-se, atualmen-te, ainda mais problemática. O que fazer quando o interesse nacional identifica-se com o interesse de um punhado de empresas? E quando esses interesses levam ao aumento de focos de ten-são entre esse país e outros Estados? E quando

qualquer disputa empresarial-econômica corre o risco de se atualizar em disputas diplomáticas e, no limite, em conflito armado? A partir de Lênin, é possível suspeitar que esse tipo de articulação entre Estado e economia – apelidado pela The Economist como a Leviathan Inc. – possa levar o sistema internacional con-temporâneo a uma escalada de tensão similar àquela experienciada nas primeiras décadas do século XX. É certo que se deve apontar para im-portantes diferenças entre a natureza da relação Estado-monopólio no início do século XX e no início do nosso século: entre outras discrepân-cias, a existência de monopólios globais é, hoje, muito mais comum – e sistêmica – do que na épo-ca de Lênin. Até que ponto a “internacionalização” dos interesses desses conglomerados representará uma instância efetiva de resistência a possíveis conflitos entre Estados é algo a ser verificado. Não obstante, os perigos envolvidos no apego irrestrito a posições ingênuas sobre esse tema, ou por demais otimistas, pode colocar-nos em uma situação comparável àquela dos nossos avós (ou bisavós) às véspera da Primeira Guerra Mundial. Parece tratar-se de um futuro nada promissor.

[ carLOs henrique pissarDO (turma 2009-2011) é BachareL em ciências sOciais peLa universiDaDe De sãO pauLO. ]

Para saber mais:FERGUSON, Niall. “Sinking Globalization”. In. Foreign Affairs, Vol. 84, 2, 2005.HARVEY, David. O Novo Imperialismo. Ed. Loyola: São Paulo, 2004.HOLLOWAY, Steven. “Relations Among Core Capitalist States: The Kautsky-Lenin Debate Reconsidered”. In. Canadian Journal of Political Science, XVI, 1983.LÊNIN, Vladimir. Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo. (1917) Versão on-line no sítio www.marxists.org.Revista The Economist. Volume 396, n. 8694 (07/08/2010).

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A Revolução Mexicana

Processo Histórico Durante 35 anos (1876-1911), o México foi comandado pela ditadura do General Porfírio Diaz. Tendo subido ao poder para acabar com a instabilidade advinda dos inúmeros conflitos oligárquicos e executar uma série de reformas no país – como a laicização do Estado e a busca por modernização –, Diaz conseguiu alcançar razoável desenvolvimento econômico, baseado em um sistema altamente repressivo às classes agrárias menos favorecidas. Apoiado pelos “científicos” (políticos de orientação positivista), o governo de Díaz susten-tava-se, fundamentalmente, em um “pacto so-cial” mantido, em boa parte, à força. Os grandes latifundiários beneficiavam-se de diversas me-didas de incentivo à ampliação da propriedade

A Revolução Mexicana de 1910 é, no sécu-lo XX, a primeira revolução bem-sucedida no con-tinente Americano. Tendo como algumas de suas figuras principais personagens como Emiliano Zapata e “Pancho” Villa, constituiu, na realidade, diversos conflitos sobrepostos em torno do poder e de um novo projeto de país, em alternativa ao governo do General Porfírio Diaz. Teve, portanto, diversas dimensões, sendo a agrária a mais salien-te – mas não se resume à questão da terra, e isto é fundamental para o desfecho que alcançou: um regime político altamente estável, sustentado em um modelo de partido único. Para facilitar o esforço de compreensão do que gerou o chamado “Modelo Mexicano”, cabe analisar brevemente o processo histórico da Revo-lução e a atuação de seus principais personagens.

História, Ideias e AtoresWiLLiam siLva DOs santOs

(porque se acreditava no latifúndio como o gran-de motor do desenvolvimento), que promoviam, inclusive, a expulsão das comunidades campo-nesas e indígenas de seus pequenos ranchos e ejidos (formas de propriedade comunal da terra, reminiscentes das comunidades astecas). Se o campo encontrava-se nas mãos da aristocracia rural, as minas, o comércio, os bancos e as pou-cas indústrias eram concessões dadas ao capital estrangeiro, principalmente norte-americano. Tal “pacto” entre governo, aristocracia rural e capi-tal estrangeiro era garantido pelo Exército, que, submerso em um mar de favores clientelistas e profundamente controlado por Díaz, permitia ao governo realizar intervenções nas províncias quando necessário e constituía a manifestação da autoridade central sobre a população campo-nesa e o lumpesinato rural, submetidos inclusive a execuções sumárias por parte dos militares. Tal sistema gerava crescente descontenta-mento entre as massas camponesas, que, ao mesmo tempo em que se viam despojadas de suas proprie-dades e alienadas de seu modo de vida, assistiam a um processo de modernização singular no país. O pano de fundo para revoltas estava armado. No entanto, o estopim para o processo revolucionário partiu “de cima”, da própria elite latifundiária. Em 1908, Díaz concedeu uma entrevista

dizendo-se cansado de exercer o poder e insi-nuando a possibilidade da alternância. Foi o que bastou para Francisco Madero, um rico fazendeiro do norte do país, lançar-se, em maio de 1909, como candidato sob uma plataforma de cunho liberal e antirreeleicionista. A recepção a essa can-didatura é enorme, empolgando Madero e seus seguidores: foi o suficiente para que os científicos pressionassem Díaz a seguir no poder. Madero foi aprisionado pouco antes das eleições e, em junho de 1909, Díaz foi eleito para exercer mais um mandato. A alternativa do uso da força para retirar Díaz do poder tornava-se cada vez mais atraente para os dissidentes mexicanos. Posto em liberda-de, Madero seguiu para os EUA, onde começou a juntar forças para a insurreição e publicou, em 1910, o Plano de San Luís de Potosí, em que exigia a renúncia de Díaz e eleições livres. Enquanto isso, os camponeses articula-vam suas próprias formas de combate, incentiva-dos fundamentalmente por seu problema mais imediato: a terra. Das insatisfações camponesas ascenderam dois caudilhos que canalizavam a luta por seus interesses: do sul, região com maior presença indígena e palco de boa parte das ex-propriações dos ejidos e dos ranchos dos pueblos, provinham tropas comandadas por Emiliano Za-pata, cuja principal reivindicação era a restituição

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da propriedade comunal. Ao norte, região carac-terizada pela presença preponderante de enor-mes latifúndios e de uma massiva população rural sem posses, organizava-se a “divisão do Norte”, comandada por Francisco Doroteo Arango, mais conhecido como “Pancho” Villa, reivindicando extensa reforma agrária com vistas a estabelecer a predominância da pequena propriedade rural. Essas duas mobilizações, surgidas de forma espontânea e independente, foram fundamentais para a queda do regime de Porfírio Díaz. Madero estabelece contato com Pancho Villa e suas tropas, aliadas, tomam a cidade fronteiriça de Juarez em 10 de maio de 1911. A necessidade, por parte dos Federales (como eram conhecidos os aliados de Díaz), de dividirem suas forças entre a repressão a Madero e Villa, ao norte, e as insurreições das tro-pas zapatistas, que destruíam plantações e incen-diavam fazendas ao sul, tornou a situação de Díaz insustentável. Quinze dias depois, em 25 de maio, Díaz embarcou para o exílio depois de maderistas e federales assinarem a paz. Madero entrou triunfante na Cidade do México e elegeu-se Presidente em outubro de 1911. A partir daí teve início um processo de enorme instabilidade e de inúmeros confrontos entre o liberalismo, preconizado por Madero, os interesses agrários das forças lideradas por Villa e Zapata e as forças contrarrevolucionárias ligadas a Porfírio Diaz. Julgando atingidos os objetivos da revolução, que possibilitariam eleições livres e mudanças sociais paulatinas, Madero ordenou a desmobilização das forças revolucionárias. Zapata, que não se sentia satisfeito com a mera mudança de mãos do poder e tinha fortes reivindicações agrárias, rebelou-se contra Madero – a quem chamava de “traidor da pátria” – e, em novembro de 1911, definiu o Plano de Ayala, propondo a derrubada do governo de Madero e um processo de reforma agrária sob controle das comunidades

camponesas. O plano defendia a reorganização dos ejidos, a expropriação de um terço dos lati-fúndios mediante indenização e nacionalização dos bens dos “inimigos da revolução”. A existência de um exército popular organizado e armado era vista como uma ameaça tanto pelo novo governo quanto pela velha elite e pelos EUA (que temiam por seus investimentos, principalmente na área petrolífera); o avanço popular era contínuo, pois, apesar das mudanças no governo, as estruturas sócioeconômicas permaneciam inalteradas. Esse clima de conflito facilitou a subida ao poder de Victoriano Huerta, antigo general do exército de Díaz, apoiado pelos interesses contrarrevolucionários. Huerta ordenou o as-sassinato de Madero (que aconteceu em 22 de fevereiro de 1913) e apontou para uma restaura-ção das políticas do “porfiriato”. Imediatamente, levantou-se Venustiano Carranza, um grande latifundiário, também do norte e aliado a Made-ro, que, formando o “exército constitucionalista” e contando com o clima de revolta geral e com a reorganização das tropas de Villa e Zapata, con-seguiu derrubar Huerta, tomar o poder e retomar o projeto Maderista. Novamente, o confronto entre o maderis-mo e os interesses camponeses entrou em foco. Carranza passou a reprimir as insurreições villistas e zapatistas, que foram aos poucos derrotadas e desarticuladas pelas forças comandadas pelo General Álvaro Obregón. No entanto, as reivindi-cações zapatistas e villistas não poderiam deixar de surtir efeito, e em 1917 Carranza promulgou uma nova Constituição para o México, que se tor-nou o documento máximo da Revolução de 1910 e foi considerada uma das mais progressistas da América Latina. Entre outros, alguns dos pontos fundamentais que ela estabelecia eram:

1) O ensino laico ao encargo do Estado, preservando-se ainda o setor privado; 2) a ex-

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propriação de terras não cultivadas em favor dos ranchos e dos ejidos; 3) fixação de rela-ções entre capital e trabalho como, por exem-plo: jornada de 8 horas, regulamentação do trabalho do menor e da mulher, salários iguais para tarefas iguais, direito de greve, organização sindical, justiça do trabalho, etc.; 4) restrição do poder da Igreja, tornando-se o casamento civil o único válido no país; e 5) secularização do clero, transformando os padres em trabalhadores comuns.

Esta constituição insere-se, então, como uma obra de síntese entre a grande tradição

liberal (separação da Igreja e do Estado, laicização do Estado, etc.) e a emergência do Estado populista. Ela servia tanto à desarticulação da nascente classe ope-rária, com a regulamentação dos conflitos trabalhis-tas, quanto ao enfraquecimento definitivo de Zapata e Villa. Isso porque, ao realizar extensiva reforma agrária, com amplo restabelecimento de ranchos e ejidos (que chegaram a significar, no governo Cár-denas, 53% das terras), esvaziava-se a importância das mobilizações villistas e zapatistas, por terem sido seus objetivos, em ampla medida, alcançados. Em 1919 foi assassinado Zapata, a mando de Carranza e, em 1923, possivelmente a mando de Plutarco Elías Calles, então Ministro do interior do presidente Álva-ro Obregón e seu sucessor no poder, foi morto Villa,

ambos já sem força sequer para articular mobiliza-ções em suas terras natais. A partir daí, o “modelo mexicano” começa a estabelecer-se, com uma série de governos que, mantendo o discurso da herança revolucionária, tinham forte apelo populista, seguindo o molde maderista-carranzista. Ainda durante o governo Carranza, nacionalizam-se as riquezas minerais e fósseis, incluindo o petróleo; a partir de 1920, Álvaro Obregón dá prosseguimento à reforma agrária; a partir de 1924, o general Calles inicia uma violenta perseguição religiosa, proibindo o culto e a educação religiosa em todo o país; em

1929, o próprio Calles funda o Partido Revolucio-nário Institucional (PRI), concentrando as forças constitucionalistas participantes do movimento de 1910 e contribuindo para a normatização da vida política nacional. A partir de Cárdenas, em 1934, os presidentes mexicanos passam a ser eleitos segundo as normas constitucionais que estabelecem um mandato de seis anos e proíbem a reeleição, alcançando-se, dessa forma, o arranjo político-institucional que vigeria de maneira mui-to estável até finais dos anos 90.

Atores e Ideias na Revolução As massas rurais não foram, portanto, o elemento triunfante da revolução. As tropas que

A constituição promulgada por Carranza insere-se como uma obra de síntese entre a grande tradição liberal e a emergência do estado populista. Ela servia tanto à desarticulação da nascente classe ope-rária, com a regulamentação dos conflitos trabalhistas, quanto ao enfraquecimento definitivo de Zapata e villa.

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formaram, movidas pela revolta contra as explora-ções a que estavam submetidas e em prol de seus interesses mais imediatos – fundamentalmente, a terra –, não foram capazes de instituir um novo regime, nem mesmo um novo governo de cunho ruralista. As decisões políticas mais importantes do processo revolucionário não foram tomadas por elas, cabendo basicamente ao próprio estra-to contra o qual elas se voltavam – os grandes latifundiários, ou parcela deles, insatisfeitos com a imobilidade política anterior – a definição final do processo revolucionário. Isso se deu, em ampla medida, pelo fato de as massas rurais não terem, em seu ímpeto mobilizatório, nenhuma estratégia que norteasse sua ação e que definisse de antemão os proce-dimentos a serem adotados, tornando-se plena-mente suscetíveis a manipulações de diversas ordens. Na obra do historiador Arnaldo Córdova, podemos encontrar uma análise coerente do jogo político-ideológico que se deu durante o processo revolucionário mexicano, que desem-bocou no regime populista mencionado. Para ele: “as massas populares expressavam necessi-dades sociais não elaboradas, locais quase sem-pre. Em sua consciência (...) não entravam pro-jetos de reconstrução nacional; não havia uma ideia orgânica, sistemática e global da nação e seus problemas. Suas convulsões começaram como resposta a injustiças que sofriam continu-adamente; sua rebeldia era cega e sem tradições de luta ligadas a ela” (CÓRDOVA, 1973, p. 142). De fato, as mobilizações camponesas não consegui-ram ir além da reivindicação de solução de seus problemas mais imediatos, como restituição da posse da terra e reforma agrária. As lideranças que formaram não transcenderam esta barreira. Os interesses das massas puderam ser utiliza-dos, assim, para a realização de outra revolução: uma revolução ligada à classe média que, atendendo de

forma razoável às reivindicações populares, foi capaz de desarticulá-las. Segundo Córdova, “a consciência da revolução não nasceu entre as massas rebeladas e desagregadas, mas fora delas, entre os expoentes das classes médias, que foram os primeiros a pro-clamá-la, atendendo primeiro a interesses que eram essencialmente seus (os ideais liberais universalis-tas) e agregando depois esses interesses imediatos das massas. A presença das massas (...) obrigaram aqueles expoentes das classes médias a modificar suas demandas e sua concepção da revolução; mas nem por isso [estes] renunciaram a suas posições de classe”. Se o liberalismo de Madero “havia-se desen-tendido dos problemas imediatos dos camponeses e dos operários”, prossegue ele, “os sucessores de Madero se redimiram desta falha (...), e adotaram as exigências populares para ganhar à sua causa as massas e manipulá-las” (CÓRDOVA, 1973, p. 143). O que faltava nas classes populares era encontrado na estratégia dos “expoentes das classes médias”, fundamentalmente em Madero e Carranza, que a elas haviam se unido para liderá-las: uma estratégia de cunho liberal, somada à disposição de realizar po-líticas que, ao mesmo tempo, fizessem concessões e permitissem controlar as massas. A incapacidade de formular projetos po-líticos que abarcassem toda a nação e de pensar modelos institucionais que ultrapassassem as fronteiras de seus ruralismos localistas fez com que villistas e zapatistas fossem facilmente su-perados pela mobilização mais sistemática dos maderistas apoiados pela classe média, que, resol-vendo de forma sagaz boa parte da reivindicação fundamental comum a Villa e Zapata – a questão da reforma agrária – conseguiram desmantelar toda a mobilização armada por ambos. Ademais, a própria recusa em participar dos procedimentos políticos institucionalizados (por conta também de uma profunda ojeriza aos governos e aos polí-ticos) contribuiu para seus tristes ocasos.

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Conclusão Podemos encontrar na Revolução Mexicana elementos discutidos pelo sociólogo Barrington Moore Jr. em seus estudos sobre revoluções cam-ponesas. Pode-se destacar de seu trabalho que algumas das causas mais significativas de levantes camponeses são, grosso modo: crescimento eco-nômico acompanhado de aumento da exploração camponesa, distância social em relação às classes dominantes e pressões advindas de rápidas mu-danças estruturais. Tudo isso houve no México. A ditadura de Díaz conseguiu proporcionar um significativo crescimento econômico para o país, que foi, no entanto, acompanhado de um aumento brutal da exploração dos camponeses; a distância social dos camponeses dos pueblos e dos ejidos (e ainda mais dos despossuídos do norte) em relação à elite latifundiária não era abrandada por nenhum tipo de solidariedade interclasse; e as mudanças estruturais se davam de forma aceleradíssima. Ao mesmo tempo, o fracasso (e a impos-sibilidade) da revolução camponesa no México se dá por uma característica básica, expressa no texto de Moore: “Os camponeses nunca conseguiram consumar uma revolução sozinhos. (...) [Eles] têm

de ter líderes de outras classes. Mas a lideran-ça apenas não basta. (...) Para que uma ruptura revolucionária seja factível, as classes altas de-vem padecer de um grau muito alto de cegueira, produto, sobretudo, de circunstâncias históricas específicas” (MOORE JR., 1976, p. 386-7). No caso da Revolução Mexicana, os cam-poneses não conseguiram, em momento algum, articular qualquer projeto revolucionário que ultrapassasse as fronteiras de seus interesses mais imediatos; as lideranças que formaram dentro de sua própria classe também não tinham esta capa-cidade, e apartaram-se do processo político que culminaria na institucionalização da Revolução. Ademais, a própria articulação revolucionária foi feita por membros da elite, que puderam contro-lar as massas camponesas e, assim que possível, desarticular suas lideranças. A famosa Revolução Mexicana de Zapata e Villa não foi, portanto, uma revolução realizada pelos camponeses. Foi, em vez disso, uma revolução feita “por cima”, por membros descontentes da elite, que, apesar de incorporar parte das reivindicações camponesas e de satisfazê-las em boa medida, jamais permitiu que essa classe tomasse as rédeas do processo de mudança do país.

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[ WiLLiam siLva DOs santOs (turma 2009-2011) é BachareL em ciências sOciais peLa universiDaDe De sãO pauLO. ]

Para saber mais:ALBA, Victor. Las Ideas Sociales Contemporáneas en México. México/Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1976.COCKCROFT, James. Las Precursores Intelectuales de la Revolución Mexicana. México, Siglo XXI.CÓRDOVA, Arnaldo, La Ideologia de la Revolución Mexicana: La Formación del Nuevo Régimen. México, Ediciones Era, 1973.HERZOG, Jesús Silva. Breve Historia de la Revolución Mexicana. México, Fondo de Cultura Económica.MOORE JR, Barrington. Los Orígenes Sociales de la Dictadura y de la Democracia. Barcelona, Ediciones Península, 2ª ed, 1976.RICCIU, Franscescu. La Revolución Mexicana. México, Bruguera, s.d.SKOCPOL, Theda. Social Revolutions in the Modern World. USA, Cambridge University Press, 1994.WORMACK JR, John. Zapata e a Revolução Mexicana. Lisboa. Edições 70.

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Uso coercitivo da força em ações humanitárias: em favor das vítimas?

O Brasil deve (...) avaliar se a relação entre o meio aplicado e o fim colimado é apropriada e se pode produzir efeito positivo, seja sobre os direitos que se quer proteger, seja sobre a credibilidade dos meios empregados para protegê-los .

Trecho de entrevista concedida pelo Ministro de Estado Celso Amorim por ocasião da comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. SEDH, 2008, p. 41.

márcia canáriO De OLiveira

O uso da força como instrumento de ação humanitária suscita intensos debates no âmbi-to das Nações Unidas. A facilidade com que se alcança consenso na repulsa às graves violações massivas de direitos humanos – genocídio, crimes contra humanidade, crimes de guerra, limpeza étnica – não costuma repetir-se na adoção de respostas a tais abusos. O presente artigo busca contribuir para a reflexão sobre a postura brasi-leira em relação ao tema, considerando a preva-lência do direito internacional, a importância da negociação e da mediação para a promoção da paz, bem como a primazia dos direitos das vítimas de violações sobre quaisquer outros interesses. A comunidade internacional estabeleceu um importante mecanismo de segurança coletiva ao final da Segunda Guerra Mundial. Criado para reduzir as chances de um novo confronto, essa instância assegurou às potências vencedoras ra-

zoável controle sobre o uso da força nas relações internacionais. Materializado no Conselho de Se-gurança das Nações Unidas (CSNU), esse mecanis-mo tanto proscreveu a legitimidade da guerra de agressão como consolidou o domínio dos cinco membros permanentes sobre as decisões coleti-vas na matéria, consagrando o reconhecimento da desigualdade real de poder entre as nações. Desde então, a distribuição relativa de poder mundial alterou-se suficientemente para que se acumulem questionamentos quanto à representatividade e à legitimidade do Conselho. Ainda assim, ele torna-se cada dia mais relevante, uma vez que segue em seu mandato “o monopó-lio sobre a autorização da coerção militar e não militar, excetuado o direito individual e coletivo à legítima defesa previsto pelo Artigo 51” da Carta da ONU (PATRIOTA, 2009, p. 25). O Conselho é a única instância internacional autorizada a adotar

decisões coercitivas sob o Capítulo VII da Carta, aplicáveis a despeito da vontade das partes a que se destinam. Ainda assim, a intervenção armada permanece como recurso relegado a casos ex-tremos, considerando-se que tenham falhado as demais alternativas (PATRIOTA, 2009, p. 25):

As possibilidades de ação oferecidas pelo Capítulo VII podem ser consideradas como manifestações de dois enfoques distintos para restabelecer a paz: o do isolamento e o da intervenção. O primeiro seria o das sanções, previstas pelo Artigo 41, que podem assumir fei-ções variadas, indo do isolamento diplomático, passando pelos embargos de armas até chegar às sanções abrangentes, inclusive econômicas e comerciais. O segundo seria o da ação coerciti-va armada contemplada pelo Artigo 42.

Com o fim da Guerra Fria, emergiu um cenário de otimismo que legou à humanidade importantes conquistas em favor da proteção e promoção dos direitos humanos (MARTINS, 2001), processo que contou com participação decisiva e construtiva do Brasil (LINDGREN ALVES, 2001), então recém-redemocratizado. Não tardaram, porém, a ocorrer situações de violência extrema – Somália (1991), Ruanda (1994), ex-Iugoslávia (1995) – que clamaram por respostas coordenadas e assertivas, a fim de conter os abusos. À medida que atrocidades chegavam ao conhecimento dos membros do CSNU, a ideia de um suposto “dever de ingerência”, a ser implementado por meio de uma “intervenção humanitária” sob a égide do Capítulo VII, começou a ganhar força. Essa ideia sempre contou com a resistên-cia dos países em desenvolvimento, cientes do precedente perigoso que se abriria contra sua soberania. Por essa razão, paradoxalmente, gru-pos que – por idealismo – defendiam a interven-ção humanitária como legítima tiveram seu pleito

bem acolhido quase que somente por países que jamais abdicaram dos pressupostos realistas para a consecução de seus interesses, ainda que em detrimento dos direitos humanos e do direito in-ternacional como um todo (PATRIOTA, 2009, p. 52):

Os pólos constituídos pelo idealismo dos que desejariam por a segurança coletiva a serviço de causas moralmente elevadas e o do realis-mo absoluto, contrário, em ultima análise, ao multilateralismo, parece haverem-se aliado – advertidamente ou não – (...) em detrimento do que poderia ser descrita como uma atitude mais eqüidistante (...).

O Embaixador Patriota enumera as ini-ciativas que, apesar de preteridas, poderiam ter aperfeiçoado a maneira como as Nações Unidas respondem a violações massivas de direitos hu-manos, a saber (PATRIOTA, 2009, p. 52-3):

(...)A aplicação uniforme de uma doutrina para as operações de paz; a operacionalização do Artigo 50 [da Carta da ONU] (relativo ao impacto das sanções sobre terceiros países); o exame de diferentes alternativas capazes de garantir uma supervisão de medidas coercitivas militares pelo CSNU, seja pela reativação da Comissão de Estado-Maior, seja por outro meio; a ampliação do Conselho; o equacionamento das variáveis econômicas e sociais, humani-tárias e ecológicas na área coberta pela segu-rança coletiva; a inserção da responsabilidade individual por atos contrários à paz e segurança da humanidade no contexto de elaboração de um código penal internacional em harmonia com o trabalho do Conselho de Segurança; o fortalecimento do papel da Corte Internacional de Justiça na promoção da paz, etc.

Em contraste com a insistência na causa da intervenção humanitária, uma abordagem centra-

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da nas necessidades e direitos das vítimas have-ria reconhecido a importância de uma avaliação multidimensional do problema, tendo em conta que a humanidade já não se encontra desprovida de recursos jurídicos para lidar com essas atroci-dades. As três vertentes da proteção internacional da pessoa humana (CANÇADO TRINDADE, 1996) – direito humanitário1, direito dos refugiados2 e direitos humanos3 – consagram os parâmetros éticos e jurídicos a serem seguidos de boa fé pelos Estados, para a salvaguarda de tais direitos, mesmo nas circunstâncias mais difíceis. Ademais, a comuni-dade internacional logrou instituir o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Tratado de Roma (1998), que promove a persecução individual dos respon-sáveis por crimes contra a humanidade, crimes de genocídio, crimes de guerra e crime de agressão. Não obstante, verifica-se evidente insufici-ência institucional das Nações Unidas para salva-guardar os direitos da pessoa humana em situações extremas. Cada Estado detém a responsabilidade primária de proteger cidadãos e estrangeiros contra genocídio, crimes contra humanidade, crimes de guerra e limpeza étnica. Deve fazê-lo por meio de recursos próprios e outros obtidos via cooperação. A comunidade internacional, por sua vez, tem a res-ponsabilidade de acompanhar e monitorar ameaças a esses direitos, em especial quando há indícios con-fiáveis de que as circunstâncias podem evoluir para graves violações massivas. O compartilhamento de responsabilidades foi consagrado no documento final da Cúpula do Milênio (2005):

138. Each individual State has the responsi-bility to protect its populations from genoci-de, war crimes, ethnic cleansing and crimes

against humanity. (…) The international community should, as appropriate, encourage and help States to exercise this responsibility and support the United Nations in establishing an early warning capability.139. The international community, through the United Nations, also has the responsibility to use appropriate diplomatic, humanitarian and other peaceful means, in accordance with Chapters VI and VIII of the Charter, to help protect popula-tions from genocide, war crimes, ethnic cleansing and crimes against humanity. (…)

O documento confere a prioridade ao engajamento construtivo das partes e à coopera-ção. Cabe às Nações Unidas favorecerem formas pacíficas de resolução de conflito na proteção a populações vulneráveis. Como último recurso, a parte final do parágrafo 139 prevê a utilização dos mecanismos coercitivos previstos pelo Capítulo VII:

139. (…) In this context, we are prepared to take collective action, in a timely and decisive manner, through the Security Council, in ac-cordance with the Charter, including Chapter VII, on a case-by-case basis (…).

Existe o risco de as discussões sobre o emer-gente conceito de responsabilidade de proteger confundirem-se com a antiga defesa da interven-ção humanitária. Esta última vislumbrava recorrer ao regime de segurança coletiva com base em pretextos humanitários, por vezes em detrimen-to de uma perspectiva multidimensional diante de situações de violência extrema. O conceito de responsabilidade de proteger, em formação, de-

artigoveria consolidar-se em torno de um enfoque mais amplo, que priorize as necessidades das vítimas.

Intervenção armada: em favor das vítimas? Costuma-se acreditar que uma intervenção armada contra um Estado opressor será, neces-sariamente, uma medida favorável às vítimas de graves abusos aos direitos humanos. Por essa concepção, a insistência na mediação ou na busca por uma solução negociada apenas protelaria a adoção de medidas protetivas. A resistência ao uso coercitivo da força com motivação humani-tária representaria postura soberanista, contrária aos direitos humanos. Não obstante, ao avaliar as possibilidades de atuação da comunidade internacional, se-ria interessante ter em conta o que propugna o Juiz Cançado Trindade em relação aos supostos conflitos entre normas de direito interno e de direito internacional. Esse grande jurista defende que (CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 542) a “(…) a primazia é da norma mais favorável às vítimas, que melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. Este e aquele aqui interagem em benefício dos seres protegi-dos”. Essa mesma avaliação pode ser transposta para as violações massivas de direitos humanos. Deve-se priorizar, sem lugar à dúvida, o direito das vítimas à medida que melhor lhes proteja, o que não necessariamente implica o uso da força. Nessa perspectiva, verifica-se que a ênfase em estratégias não violentas coaduna-se perfeita-mente com o princípio da primazia dos direitos das vítimas de violações de direitos humanos. Estudos recentes sobre os fatores relevantes na resolu-ção de conflitos armados, demonstram que, “[o]verwhelmingly, (…) the evidence points to military

and economic interventions as factors that tend to increase the duration of civil wars” (REGAN & AYDIN, 2006, p. 738), o que acarreta maior vulnerabilidade e sofrimento às populações afetadas. Paralelamen-te, o mesmo estudo destaca o caráter positivo da participação não coercitiva de atores externos na resolução dos conflitos, por meio do desenvolvi-mento de confiança e melhora do intercâmbio de informações (REGAN & AYDIN, 2006, p. 738):

The role of an outside actor is central to pe-aceful settlement given two main problems confronting the civil war parties: (1) the diffi-culty in signaling one’s strength, resolve, and preferences to the opponent and (2) the civil parties’ inability to identify a mutually ac-ceptable solution to their disagreements and make a credible commitment to this position without being vulnerable in the postconflict period.(…) Absent the transfer of information that reduces uncertainty over the distribution of power, relative resolve, and the preferences of the opponent, adversaries are unable to identify a mutually agreeable solution(…). To be effective, third parties need to take actions in the course of the conflict that transform the conflict by influencing the information and structure and facilitating communication between the adversaries.

Um envolvimento militar externo que des-considere a necessidade do diálogo tende a pro-longar e recrudescer o nível de violência, com con-sequências devastadoras para as populações civis4. Cunningham acrescenta que, se essa intervenção vier acompanhada de agenda separada, ainda que não claramente manifesta, ela poderá tornar cada vez mais longínqua a possibilidade de resolução

1 Sistematizado nas quatro Convenções de Genebra (1948) e seus Protocolos Adicionais (1977). O direito humanitário normatiza as atividades bélicas em situa-ções de conflito armado (jus in bello), salvaguardando os direitos de civis e pessoas fora de combate.2 Regulado principalmente pela Convenção das Nações Unidas sobre Direito dos Refugiados (1951).3 A proteção internacional dos direitos humanos fortaleceu-se após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Nas ultimas décadas, foram adotadas inúmeras resoluções, declarações e convenções sobre o tema, acompanhadas de significativo fortalecimento institucional.

4 “A potential explanation for the deleterious consequences of military or economic interventions is that these third-party strategies increase the ability of one or both sides to resort to violence but do not help the adversaries to overcome their distrust and misperceptions of one another” (REGAN & AYDIN, p.739-40).

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do conflito. Ademais, o autor informa que o agente externo envolvido nessas circunstâncias tende a deter parcos incentivos para comprometer-se com concessões que levem a uma solução negociada (CUNNINGHAM, 2010, p. 118-9):

(…) In many cases it will actually be more diffi-cult to induce external states to exit the conflict short of fully achieving their goals because of differences between external states and internal combatants in the attractiveness of negotiation. (…) in addition to facing lower costs from fighting, external states are likely to perceive a lower benefit from negotiation than domes-tic groups.

Evidências levantadas por estudos dessa natureza autorizam propugnar pela inversão de perspectiva em relação ao que se defende como intervenção humanitária. Mais relevante que o suposto direito de potências estrangeiras intervi-rem seria o direito das vítimas à efetiva proteção. A ação internacional centrada em meios pacíficos de solução do conflito, na construção de condi-ções para uma paz duradoura e conduzida de for-ma adequada e com os recursos suficientes tem maior potencial que a ação armada de proteger quem precisa contra graves abusos.

A posição brasileira frente a graves viola-ções massivas de direitos humanos A resposta brasileira às graves violações massivas de direitos humanos baseia-se nos princípios de não-intervenção e não-indiferença, manifestos na busca de soluções pacíficas e ne-gociadas e no convencimento dos atores rele-vantes para que aceitem o diálogo e busquem o engajamento, de boa fé. A principal virtude

desse procedimento consiste na flexibilidade e adaptabilidade às múltiplas circunstâncias da vida internacional, bem como em seu potencial de gerar soluções mais legítimas e duradouras. Em contraste, a ênfase no diálogo suscita críticas e incompreensões, uma vez que requer mais tempo para produzir resultados. O Brasil também tem favorecido os dois primeiros pilares5 do emergente conceito de responsabilidade de proteger, que destacam a responsabilidade primária do Estado na proteção de nacionais e estrangeiros sob sua jurisdição e a cooperação e assistência internacional para a prevenção de casos extremos de violação aos direitos humanos. Além disso, propugna pelo aperfeiçoamento dos sistemas de coleta e difu-são de informações visando ao desenvolvimento de um mecanismo de alerta antecipado, que fortaleça a alternativa pela solução negociada e pela diplomacia preventiva. Por fim, a ampliação da rede de embaixadas brasileiras no exterior e a consolidação dos órgãos brasileiros responsá-veis pela coleta e análise de informações tende a melhorar a qualidade e a quantidade de informa-ções disponíveis para a tomada de decisões pelo Estado brasileiro frente a situações extremas. No que tange ao terceiro pilar, timely and decisive response, restam duas questões a serem respondidas. A primeira refere-se aos parâmetros que determinariam o momento, as circunstâncias e as condições necessárias e suficientes para a eventual adoção de medidas coercitivas. A segun-da consiste em como assegurar que o conceito de responsabilidade de proteger priorize a satisfação dos legítimos interesses e direitos das vítimas de violações, em detrimento de um suposto direito de agir de potências estrangeiras, que poderiam recru-

artigodescer a violência que alegam querer extinguir. O país reconhece a importância de a comu-nidade internacional ocupar-se do tema e atuar tanto na prevenção como na defesa das vítimas. Ademais, participa ativamente de todo o sistema global de proteção dos direitos humanos (SEDH, 2008). Contribuir construtivamente para a delimi-tação adequada do conceito de responsabilidade de proteger, para o fortalecimento institucional das Nações Unidas na proteção de civis e para a con-solidação de princípios claros e justos no eventual uso da força em ações humanitárias aumentará ainda mais a credibilidade e a representatividade da diplomacia brasileira em foros multilaterais.

Conclusões A solução pacífica de conflitos costuma ser o melhor caminho para a promoção e proteção dos direitos humanos. Tendo presente esse en-tendimento, a comunidade internacional envidou grandes esforços para limitar o uso legítimo da força nas relações internacionais, tornando-o qua-se privativo das decisões do Conselho de Segu-rança. Por suas graves implicações, este deve ser

visto como último recurso, a ser aplicado diante de situações extremas, direcionado para as neces-sidades dos mais vulneráveis. Não se deve tampouco pressupor que o uso da força será necessariamente eficaz para estancar graves violações de direitos humanos e aliviar o so-frimento das vítimas. A comunidade internacional deve avaliar, caso a caso, se os benefícios vislum-brados pelo uso coercitivo da força superarão os riscos e malefícios que dele advirão. Ademais, é preciso avaliar com cautela quais circunstâncias tornariam efetivo recorrer às armas em detrimento do diálogo, da negociação e da cooperação. Por fim, uma perspectiva centrada nas ne-cessidades das vítimas incorporará esforço amplo de redução dos fatores de escalada do conflito, com vistas à sua eliminação. Assentar-se-á em medidas de desenvolvimento e em outras iniciati-vas como a oferta de reparações, a integração das comunidades locais na elaboração de estratégias de proteção e o fortalecimento de mecanismos lo-cais de monitoramento e prevenção. Dessa forma, poder-se-á vislumbrar uma situação de maior segu-rança, paz e estabilidade para quem mais precisa.

[ márcia canáriO De OLiveira (turma 2009-2011) é BachareL em reLações internaciOnais peLa universiDaDe De BrasíLia, DipLOmaDa em DireitOs humanOs e prOcessOs De DemOcratizaçãO peLa universiDaD De chiLe e mestre em ciência pOLítica peLa universiDaDe De BrasíLia. ]

5 O Secretário-Geral da ONU emitiu um relatório intitulado Implementing the responsibility to protect (A/63/677), em que expõe os três pilares do conceito: the protection responsibilities of the State; international assistance and capacity building; timely and decisive response.

Para saber mais:CANÇADO TRINDADE, A.A., PEYTRIGNET, G. & RUIZ DE SANTIAGO, Jaime. As três vertentes da proteção internacional da pessoa humana – Direitos Humanos, Direito Humanitário e Direito dos Refugiados. Brasília: IIDH, 1996.CANÇADO TRINDADE, A.A. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos – Volume I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. CUNNINGHAM, David E. Blocking resolution: How external States can prolong civil wars. Journal of Peace Research 2010; 47; 115. LINDGREN ALVES, J.A (2001). A Conferência de Viena sobre Direitos Humanos. In: Relações Internacionais e Temas Sociais – A década das conferências. Brasília: IBRI.MARTINS, Estevão Resende (2001). Ética e relações internacionais: elementos de uma agenda político-cultural. Brasília: Revista Brasileira de Política Internacional – 44 (2): 5-25.MORGENTHAU, Hans Joachin (1948). Politics Among Nations – The Struggle for Power and Peace. New York: Mc-Graw Hill, 2006, 7th Edition.PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo. Brasília: FUNAG, 2009.REGAN, Patrick M. & AYDIN, Aysegul. Diplomacy and Other Forms of Intervention in Civil Wars. Journal of Conflict Resolution 2006; 50;736.SEDH. Brasil Direitos Humanos – 2008: A realidade do País aos 60 anos da Declaração Universal. Brasília, 2008.

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artigo

Dos ditos mais repetidos no Ministério, o de que “a maior tradição do Itamaraty é saber renovar-se” parece ser o preferido. Não existe alu-no no Instituto Rio Branco que não tenha ouvi-do essa frase. Infelizmente, é fácil perceber que grande parte considera a frase anacrônica, desde o advento das turmas de cem alunos. Saber renovar-se implicaria entender que o aumento do número de vagas não veio acompa-nhado de diminuição na concorrência ou menor exigência nos critérios de aprovação. Nesse senti-do, a proposta deste breve artigo é a de argumen-tar que a chamada “popularização” do acesso ao Itamaraty, na realidade, serviu para atrair candida-tos com áreas de formação mais diversas, tornar a carreira mais conhecida, aumentar a procura, além de não ter comprometido o nível de preparo dos novos diplomatas. Mais do que isso, este artigo tem a pretensão de demonstrar que, se não exis-te muito sentido em julgar os novos ingressantes com base na comparação com o perfil de diploma-tas que serviram em momentos históricos distin-tos, a realização desse estudo não desfavoreceria os membros das turmas de cem. Ao contrário, será apresentada a conclusão de que, fosse válido o co-mum questionamento acerca da capacidade do diplomata das turmas maiores em ser aprovado nos concursos de décadas passadas, certamente

haveria espaço para o argumento de que, em con-traponto, pode-se duvidar se o diplomata sênior encontraria vaga nas edições recentes do CACD. Evidente que essa discussão resulta em exer-cício contraproducente. No entanto, é impossível ignorar que ela existe e, pior, é frustrante perceber que ela é produto inexorável da falta de informa-ção. A existência desse lugar-comum em relação ao perfil dos servidores aprovados nas turmas de cem alunos torna inescapável a contra-argumentação. Ao analisarmos os requisitos para aprovação no concurso desde 1946, percebemos que o perfil desejado à época da redação daquele edital não permaneceu estático ao longo dos anos. Não foram a ampliação do número de vagas ou o fim da pro-va oral os responsáveis por deturpar uma fórmula que supostamente sempre deu certo. Ao contrário, o modelo mais recente do concurso deriva de um processo longo, por vezes claudicante, com mudan-ças constantes. Desse modo, é possível imaginar que o diplomata aprovado em fins da década de 40, depois de passar por “investigação social”, apresen-tar certificado de vacinação contra varíola e realizar prova de cultura geral com peso quatro vezes maior do que a de história do Brasil, questionaria o perfil dos ingressantes na década de 90, dispensados da obrigatoriedade de conhecer o idioma francês. Es-tes, por sua vez, teriam a seu crédito a exigência de

JOãO carLOs FaLzeta zanini

Um debate inconvenienteAs turmas de cem alunos do IRBr e o concurso para diplomata: uma perspectiva histórica

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um diploma de curso superior, item que tardou qua-se 50 anos para ser incluído no CACD. Seria possível também encontrar um jovem diplomata das “tur-mas de cem” cheio de certezas de que as gerações antigas priorizavam uma abordagem mais abran-gente do concurso, que chegou a incluir astronomia e música entre as matérias obrigatórias, enquanto o concurso de 2009 exigiu demonstração de fórmu-las e a derivação de uma função literal na prova de economia. A resposta viria com a acusação de que um grupo de monoglotas invadiu o Ministério des-de que a prova de inglês deixou de ser eliminatória, mesmo que seja muito difícil ser aprovado sem falar bem o idioma. O hipotético debate entre diplomatas de turmas de todas as décadas certamente chegaria ao questionamento sobre as bibliografias exigidas no concurso e a relação entre número de candida-tos e número de vagas. Nesses dois aspectos, o senso comum seria desafiado com dados suges-tivos que posicionam a década corrente como a mais desafiadora da história para os aspirantes a diplomatas, sobretudo em seu início. Se é verda-de que, em alguns anos, não se preencheu o nú-mero oferecido de vagas, é sintomático o fato de que a concorrência superou os dois dígitos, por três vezes, nesta década. Para ser mais exato, du-rante a década de 70, a média foi de 20 candidatos por vaga, sendo que em 1975 apenas 240 pessoas pleitearam as 34 vagas (7,06 por vaga). Na década seguinte a média elevou-se para pouco menos de 40 candidatos por vaga, sendo que o pico foi em 1988, com 59. Nos anos 90, a média novamente se elevou e chegou a quase 60 por vaga, com o pico registrado em 1999 (127,8 por vaga). A década cor-rente registrou 89 candidatos/vaga de média. Em relação aos 5 concursos de 100 vagas, registra-se que a média apurada de 76,27 é superior às médias obtidas em todas as décadas anteriores. Acredita-se que a maior exposição da polí-

tica externa brasileira nos últimos anos, o aumento dos vencimentos, o programa de bolsas e a maior divulgação que alguns cursinhos promoveram fo-ram os fatores mais importantes para aumentar o nível de conhecimento sobre a carreira e, conse-quentemente, a procura. Nesse sentido, a “popu-larização” não poderia ter sido mais benéfica, uma vez que possibilitou a um maior número de pesso-as conhecer a profissão e dedicar-se à preparação. Em relação à bibliografia, 102 livros foram recomendados para a preparação em 2010, excluin-do-se dicionários de idiomas. Na década de 70, a re-comendação do Instituto não passava de 20. Outra curiosidade é o fato de o livro de Pandiá Calógeras ter servido como referência única para a prova de História do Brasil até o fim da década de 1950. As turmas de cem seguramente não poderão reproduzir aspectos próprios de turmas menores, como o espírito de grupo e o convívio mais próxi-mo entre os membros da turma e entre a turma e o resto do Ministério. Nesse sentido, é compreensível que as turmas maiores sejam vistas como agressivas a costumes formados e a tradições do Itamaraty. Não se imagina que mudança tão brusca seja assimilada sem qualquer desconforto, assim como não existe na maioria de nós o desejo de negar práticas que têm funcionado ao longo de décadas. O que se nega com veemência é a presunção de que o aumento no nú-mero de vagas resultou em despreparo dos novos di-plomatas ou facilidade na aprovação no concurso. A essa insinuação estimula-se o diálogo de surdos com os dados apresentados e com outra especulação: a de que os concursos desta década tiveram grau de exigência mais elevado. A proposta que se faz é a da renúncia a um debate desagregador como esse em benefício da discussão acerca de quais são o tama-nho e o ritmo de crescimento ideais para o corpo diplomático brasileiro. Essa mudança de enfoque de-volveria sentido ao mantra de que o Itamaraty tem notório saber em renovar-se.

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[ JOãO carLOs FaLzeta zanini (turma 2009-2011) é BachareL em aDministraçãO púBLica peLa FunDaçãO getuLiO vargas – Fgv/eaesp. ]

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ensaio fotográfico

“Caminha-se por vários dias entre árvores e pedras. Raramente o olhar se fixa numa coisa, e, quando isso acontece, ela é reconhecida pelo símbolo de alguma outra coisa: a pegada na areia indica a passagem de um tigre; o pântano anuncia uma veia de água; a flor do hibisco, o fim do inverno. O resto é mudo e intercambiável – árvores e pedras são apenas aquilo que são.” ( I. Calvino. As Cidades Invisíveis )

vestígiosMilena Oliveira de Medeiros

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[ miLena OLiveira De meDeirOs (turma 2009-2011) é BachareL em DireitO, peLa universiDaDe FeDeraL DO acre, e em música, peLa universiDaDe De BrasíLia; e pós-graDuaDa em DireitO cOnstituciOnaL peLa universiDaDe FeDeraL DO acre. ]

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ensaio fotográfico

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cultura

Do santista Plínio Marcos se disse que foi o dramaturgo brasileiro mais censurado, o mais perseguido e aquele que porventura mais teria incomodado o poder durante a vigência da dita-dura civil e militar que amordaçou o teatro brasileiro a partir de 1964. Avaliação que, talvez, de maneira contraditória, minimize a consis-tência da luta do palhaço Bobo Plin, como ele se intitulava, pela liberdade artística e pelo direito de “pensar até o limite as questões culturais do homem brasileiro”. Pois a obra de Plínio começou a ser proibida antes da ditadura, no final dos supostos anos dourados do governo JK, e o questionamento incansável não arrefeceu com a pa-naceia da Nova República, não se furtando Plínio a apontar os limites e contradições que se instaura-vam na nova sociedade que ia sendo criada. O Au-tor Maldito era, antes de tudo, um brigão: brigou

As Batalhas do

eDen cLaBuchar martingO

Bobo Plin

nos bares, brigou com os poderosos, brigou com os amigos e com os adversários, com a gente do teatro e do governo, brigou justa e injustamente, mas nunca deixou de vislumbrar, obsessivamente, algo de transcendente, que justificasse toda a luta, e tampouco deixou de denunciar as dinâmicas de poder que buscam suprimir no homem justamen-te essa partícula sonhadora, idealista. Em suas peças e crônicas, Plínio foi a voz dos marginalizados, dos que não têm vez, dos desajustados. Incomodado com toda forma de en-quadramento social, sentiu na pele, desde cedo, o que é estar do lado de fora da “boa sociedade”. Canhoto em um tempo em que isso era corrigido à palmatória, Plínio completou tão somente, e a duras penas, o ensino primário. Abandonou a es-cola sem ser considerado completamente imbecil apenas porque, segundo seu próprio e imodesto relato, jogava futebol muito bem, sendo requisi-tado pelos times das escolas, ainda que não pelos professores. Mas o problema de Plínio com a esco-la na infância ia além da ignorância da época em relação ao uso da mão esquerda. A inadaptação da criança ao sistema educacional revelava, ou causaria, quem sabe, a ojeriza do adulto às formas de institucionalização do homem e às relações de poder que elas implicam. Sobre a educação for-mal (ou a falta dela), diria, um ano antes de mor-rer, ao amigo Oswaldo Mendes: “Meu problema com a escola não começou por eu ser canhoto. Começou com a escola, que é uma coisa que mata as pessoas, que castra as pessoas. A escola foi feita para preparar as pessoas para servir a uma socie-dade imbecil”. Durante a adolescência experimentou dife-rentes atividades, que o pai lhe arranjava para dar ocupação ao enfant térrible que se mostrava um especialista em arrumar confusões. Trabalhou em uma banca de livros espíritas, foi aprendiz de en-cadernador e de funileiro e vendeu enciclopédias,

mas só parou mesmo no circo, onde se tornou o palhaço Frajola e começou sua relação com o palco. A experiência de vendedor, no entanto, revelou-lhe o talento de camelô, capaz de vender tudo a todos, que seria crucial para sua futura sobrevivência. Quando se deparou com a sanha dos militares em tirar-lhe o trabalho no palco e na imprensa, ou mesmo quando enfrentou a indi-ferença da indústria de entretenimento na Nova República, não se desesperou: passou a viver da venda de seus próprios livros, que ele mesmo mandava editar, às portas de teatros e de bares da capital paulistana. No circo, aprendeu a andar e a se por-tar no palco; e a partir dele é que ingressou no mundo do teatro. Convidado a atuar em uma peça infantil que se apresentava em Santos, conheceu, em 1957, Patrícia Galvão, a Pagu, que o aproximou do mundo do teatro. Foi também a Patrícia Galvão que Plínio mostrou, antes de a qualquer outro, sua primeira peça, Barrela, e foi Pagu que reconheceu o gênio do dramaturgo naquele rapaz que se dizia analfabeto e ganhava a vida fazendo bicos de camelô. A necessidade de escrever a peça, algo que muitas vezes decla-rou ter sido uma surpresa para ele mesmo, surgiu da profunda indignação de Plínio com um caso de estupro de um rapaz que passou uma noite na cadeia por conta de uma briga de bar. O diálogo rápido e violento de Barrela, gíria de curra na época, e o retrato cru que faz dos perso-nagens marcariam o estilo dos melhores momentos de sua obra. Brutalizados e bestiais, desumanizados pela estrutura de poder que se abate sobre eles – no caso, a cadeia –, os tipos de Barrela reproduzem, no microcosmo da cela diminuta, as mesmas relações de violência que caracterizam a exclusão social que cria, de uma forma ou de outra, esses mesmos tipos. O poder flutua dentro da sociedade autoritária, reproduzindo-se de maneira tão menos sutil quanto

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mais miserável e violento é o contexto. A primeira peça de Plínio era nada menos do que revolucionária, apresentando uma contes-tação social sem amarras doutrinárias nem propó-sitos políticos mais definidos do que a denúncia, mas seu efeito imediato no cenário cultural brasi-leiro foi mínimo. A peça foi imediatamente proibi-da pela censura, que nesse ano de 1959 ainda era estadual, antes mesmo de estrear no 2º Festival Nacional de Teatro de Estudantes, trazido a Santos naquele ano por Pagu. A proibição da peça, que já estava montada e ensaiada, e que Pagu alardeava como a estreia de um “novo Nelson Rodrigues”, foi um duro golpe contra o jovem autor. No entanto,

um expediente partido do mesmo Estado censor possibilitou, ao menos, uma única apresentação da peça, que afinal fez parte do Festival. Após a proibição e os protestos que se seguiram, os censores mantiveram-se inflexíveis. De pouco valeu o apelo de importantes personali-dades do mundo artístico pela liberação da peça, em que apontavam o caráter pedagógico e, até mesmo, cristão, como se tentou argumentar, da denúncia da violência e da miséria humana que se fazia ali. Os palavrões de Plínio e o argumento da peça, a violência sexual, chocavam o paroquialismo de agentes de um Estado patrimonial que desfia-vam liberações e interdições não de acordo com valores democráticos e impessoais, e sim segundo uma provinciana sensibilidade de salão, comezinha

e hipócrita. Mas quando se depararam com uma autorização do próprio Presidente da República, Juscelino Kubitschek, para que fosse liberada apre-sentação única da peça durante o festival, o mesmo paroquialismo falou mais alto e a apresentação pôde enfim ser realizada, apenas com um “Sim, Senhor” e um murmúrio de espanto dos censores. A explicação para a autorização deus ex-machina, no entanto, é mais prosaica e de-liciosa do que um escondido gosto extraordi-nário de Juscelino pelo Teatro Amador. Patrícia Galvão apresentou, durante o festival, o texto de Barrela a Paschoal Carlos Magno (ver box na pág. 103), Embaixador de carreira, criador do

Festival e importante renovador do Teatro bra-sileiro a partir da década de 1940, que recebeu a peça com elogios ainda mais laudatórios do que Pagu. Com a proibição e a futilidade das tentativas de liberação, Carlos Magno resol-veu valer-se da própria vivência do ambiente burocrático e de seu conhecimento de como se comportavam frente à mera sombra de au-toridade os estafetas da República. Oficiou das entranhas do Gabinete de Juscelino, onde en-tão trabalhava, a autorização para a apresenta-ção única utilizando papel da Presidência em armas brancas. À vista do documento vindo do Rio de Janeiro, não houve remédio, liberaram a apresentação! Depois da estreia conturbada e efêmera,

culturamas exitosa de qualquer forma, Plínio demoraria a reeditar o impacto daquele ano de 1959. Entusias-mado pela recepção de Barrela, escreveria no ano seguinte a peça Os Fantoches, que teria recepção fria, mesmo entre seus amigos. Escorregando em certo artificialismo, faltava a sua segunda obra a es-pontaneidade que o havia feito se destacar. Patrícia Galvão escreveu crítica desfavorável, mas razoável, que enfureceu Plínio. Ele rompeu naquele momen-to com Pagu e, durante longo tempo, afirmou que ela teria dado o seguinte título à crítica: “Esse anal-fabeto esperava outro milagre de circo” – obvia-mente, não era verdade, mas Plínio não perdoou. No mesmo ano, mudou-se para São Paulo,

onde continuava se virando como podia. Chegou a morar no Teatro de Arena, tornando-se porteiro do lugar. Passou a alternar o trabalho de técnico na TV Tupi com os bicos de camelô e com pontas em espetáculos. Fazia de tudo um pouco, como havia aprendido, e ia se enturmando com as personalidades da cultura da florescente capital industrial. Escreveu sua terceira peça em 1963, Reportagem de um Tempo Mau, que também foi proibida, mas o verdadeiro impacto viria com Dois Perdidos Numa Noite Suja, de 1966. Em plena ditadura militar, mais que nunca era urgente a reflexão sobre as relações de dominação e de repressão que já haviam sido objeto do escrutínio do autor em seus primeiros trabalhos. Junto com Navalha na Carne e Abajur Lilás, Dois Perdidos

compõe o tríptico fundamental do autor que aborda a exploração e a brutalização do homem pelo homem. Por conta das condições políticas do país – todas foram escritas durante a ditadura – se tornariam também bandeiras da luta pela liberda-de de expressão no país, ele mesmo, brutalizado. Dois Perdidos, inspirada em um conto de Alberto Moravia chamado O Terror de Roma, foi escrita para apenas dois atores, a fim de que se pudesse ganhar algum dinheiro com a peça. Na tra-ma, Plínio opõe as personagens Paco e Tonho em um quarto de pensão barata, em que o sadismo do primeiro, totalmente resignado à sua condição de marginalidade, se exerce sobre o segundo. “Tendo

estudado”, Tonho esperava conseguir um emprego na capital antes de poder voltar para a família no interior. O confronto se desenrola em torno de um sapato, o “pisante legal” de Paco, que é visto por Tonho como esperança de conseguir o almejado emprego, de romper o cerco imposto a ele pela sociedade que não o quer, que precisa dos seus excluídos. A relação de opressão se inverte no final, apenas para mostrar que, no claustrofóbico am-biente do quarto de pensão, não há saída, nunca. Tonho domina a situação quando deixa de lado aquela vontade de dignidade e reproduz o despre-zo de Paco por qualquer senso moral. Escrúpulos morais, numa noite suja, são apenas inconvenien-tes. Do lodo dos excluídos e da marginalidade, não é possível que surja um lírio.

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Dois Perdidos foi liberada inicialmente pela sorte de ter sido o censor responsável pela avaliação da obra um homem de teatro, Coelho Neto, que havia sido jurado no festival em que Barrela se consagrara. Corria o ano de 1966, antes do endurecimento maior da ditadura, e a censura, que havia passado para o âmbito federal, conser-vava algum espaço para a expressão, ao menos na pessoa de alguns poucos censores. Esse espaço logo se fecharia. A peça seguinte de Plínio, Na-valha na Carne, de 1967, seria proibida antes de estrear, sendo liberada somente após intensa luta da classe artística, capitaneada pela grande dama do Teatro brasileiro, Tônia Carrero. Navalha na Carne também tinha poucas personagens, apenas três, e apresentava a relação disfuncional entre Neusa Sueli, prostituta decaden-te, Vado, cafetão que a explora e humilha, e Veludo, homossexual que trabalha no prostíbulo onde a ação se passa. Mais uma vez são destrinchadas as relações de poder que se estabelecem entre as personagens e a desumanização que se impõe a partir dessa dinâmica suja e miserável de opressão. Em um dos mais pungentes diálogos, Neusa Sueli pergunta a Vado: “...será que sou gente? Será que eu, você, o Veludo somos gente? Chego até a duvi-dar! Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro”. Após 1968 e o fechamento total do siste-ma político brasileiro, tanto Navalha quanto Dois Perdidos seriam interditadas em todo o território nacional, assim como as outras obras que escre-veu a partir de então. Plínio escrevia e a censura proibia, suas peças eram fulminadas ab ovo, pela mera razão de terem sido escritas por ele. Impe-dido de trabalhar, Plínio teve a sorte de, logo no princípio desse processo de fechamento, ter-se tornado conhecido do grande público ao inter-pretar o personagem Vitório, da novela Beto Ro-ckfeller, e amealhado algum patrimônio, que lhe

culturapermitiu criar os filhos e se manter sempre atuan-te, escrevendo obras que, sabia, seriam proibidas.Ele próprio, apesar de toda a perseguição, não aceitava ser rotulado como vítima. Ao contrário, se referia à sistemática proibição de trabalhar que enfrentou como a justa medida a pagar por seu ativismo na denúncia das agruras pelas quais o país passava. “Se sentir perseguido é coisa de bunda mole: eu fiz por merecer! Eu sacaneava a milicada a toda hora e eu conheço a lei das causas e efeitos... que ia esperar? Que me mandassem flores? Porra! Bateu, levou” – afirmou em uma entrevista de 1990. E ele realmente sacaneava. A maior batalha de Plínio com a censura ocorreria quando alguns já vislumbravam certo relaxamento da ditadura, sob o governo Geisel. O Abajur Lilás era o libelo mais contundente que ele havia soltado contra os ditadores, uma peça ainda mais forte que as outras, com claras referências à tortura e que se tornaria mais do que uma peça, uma verdadeira bandeira pela redemocratização do país e pelo direito à liberdade de expressão. Proibida preliminarmen-te pelos censores federais, o apelo de Plínio pela liberação da peça chegou ao Ministro da Justiça, Armando Falcão, que não apenas não a liberou como fez campanha aberta para que se mantives-se proibida, inclusive quando os advogados de Plínio levaram recurso contra a proibição da peça ao Tribunal Federal de Recursos (equivalente ao atual STJ). Plínio foi esmagado na decisão final, com apenas um voto a favor da liberação, proferido pelo juiz de São Paulo Jarbas Nobre. Mas, para Plínio, foi uma vitória, pois, em suas próprias palavras, ga-nhou o “único voto de qualidade”. Muitos consideram O Abajur Lilás a gran-de obra de Plínio Marcos. De fato, a trama que, de novo, se passa num prostíbulo, tem muito de obra-prima. A relação que se desenvolve entre um cafetão homossexual, as três prostitutas por ele

Paschoal Carlos Magno: dramaturgo e diplomata

Paschoal Carlos Magno (1906-1980) foi ator, crítico de teatro, dramaturgo e diplomata, destacando-se como promotor cultural e renovador da dramaturgia brasi-leira. Criou o Teatro do Estudante Brasileiro, em 1937, o Teatro Experimental de Ópera, em 1949, junto com a cantora Alda Pereira Pinto, e, em 1952, o Teatro Duse, além de organizar em 1958 a primeira edição do Festival Nacional de Teatro de Estudantes. Atuou no setor cultural e universitário da Presidência da República, nomeado por Juscelino Kubitschek, e posteriormente como secretário-geral do Conselho Nacio-nal de Cultura, durante o governo Jango. O golpe de 1964 o afastaria dos centros de poder, mas ele ainda pôde se lançar na aventura da Barca da Cultura, nos anos 70, que buscava levar cultura e entretenimen-to às populações ribeirinhas do São Fran-cisco. Dele afirmou o crítico Yan Michalsky que “pessoa física, era, na verdade, uma instituição: sozinho, chegou a exercer, às vezes, funções que caberiam a um informal Ministério da Cultura”.

exploradas e seu capanga retoma os temas da domi-nação e da bestialização, e introduz um retrato mais sólido e brutal de como a opressão se exerce de facto e, nesse exercício, de como ela passa a ser a experiên-cia primordial e mesmo única da vida. O cupincha Osvaldo, idiota e impotente, obe-dece às ordens do cafetão Giro ao ameaçar e torturar as prostitutas: a alcoólatra Célia, Dilma – cujo único motivo para resistir é o filho – e Leninha, niilista e alienada. A relação de poder que se estabelece, no entanto, não se transfere aritmeticamente de Giro, o “chefe”, para baixo. Ao contrário, dentro do quadro de violência e autorita-rismo, todos passam a ser agentes e sujeitos. Osvaldo se faz independente de Giro e engana o patrão para poder torturar as mulheres, única forma de prazer que conhece. Célia tenta tiranizar Dilma ao colocá-la em um dilema quando quebra o abajur, e Dilma, a que se mostra mais humana de todas, humilha Giro com sua homofobia e o nojo que sente por ele. Na miséria da violência e do autoritarismo mostrada pelo autor, no microcosmo desses margi-nalizados, desses bestializados, o poder dilui-se pelo sistema, ele flui pelos indivíduos que são agentes e sujeitos ao mesmo tempo. Mesmo na base da pirâ-mide um agente consegue mobilizar essa relação de forças para oprimir os outros sujeitos do sistema. A relação se atomiza e se autonomiza na hora da execução, e o poder se exerce como numa teia: ele simplesmente funciona, não é patrimônio de nin-guém, mas uma característica do próprio sistema. Escrito em 1975, O Abajur foi premiado no mesmo ano na eufemística categoria de “peça mantida inédita” pela Associação Paulista de Críticos de Arte, mas só viu a luz dos palcos em 1980, quando a dita-dura desmoronava sob o peso da crise econômica e sob suas próprias contradições internas. Nessa época, com a volta dos presos políticos e a perspectiva do fim do poder dos militares, houve quem avaliasse que a obra de Plínio Marcos havia envelhecido. No entanto, a vivência do processo de redemocratização mostrou

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rapidamente que, não obstante a enorme vitória obtida, muitas das agruras denunciadas durante a ditadura permaneciam, enquanto outras surgiam sob o mesmo signo da exclusão, da violência e do subdesenvolvimento. Quanto à atualidade de sua obra, Plínio repetia, modestamente, que ela não era mérito seu, mas do país, que não havia evoluído. “Se continuar assim” – argumentou – “viro um clássico”. Nos anos 80, o autor se voltou, na vida pessoal, para o misticismo e, especialmente, para o Tarô, de que se tornou um especialista. Mas não abandonou sua artilharia de diálogos rápidos e explosivos, nem os temas sociais e culturais. São dessa fase obras como Madame Blatavsky e Balada

de um Palhaço, que lidam com o misticismo em uma experiência autoral mais introspectiva, mas também A Mancha Roxa, de 1988, em que Plínio trata da disseminação da AIDS entre as mulheres em uma época em que essa doença era considera-da como predominantemente masculina. Outra batalha que escolheu com o advento da Nova República foi a denúncia de novos e mais sutis métodos de censura. Por um lado a importação ou, como chamava, ocupação cultural, que, segundo ele, impunha modelos importados da cultura de massa americana, encolhendo assim o espaço da arte brasileira e ameaçando a capacidade do ho-mem brasileiro de expressar pela arte suas próprias questões. Por outro lado, o processo de autocensura passava a se tornar mais claro na grande mídia. Não

era mais possível sublimar todo tipo de escolha de não permitir liberdade editorial no governo castra-dor, que agora não mais proibia, subvencionava. Para Plínio, o financiamento governamental da cul-tura mataria na fonte a função social da arte, afinal, a dependência material mina a força do que a arte deve ser, uma “tribuna livre onde se possa discutir o homem e a realidade até as últimas consequências”. Plínio acreditava que o “amesquinhamento do mercado de trabalho do artista nacional” causa-do pela ocupação cultural estrangeira e as políticas de concessão de incentivos governamentais ao teatro formavam um ciclo perverso que ameaça-va a capacidade do artista brasileiro de pensar e

exprimir as questões culturais genuínas do homem brasileiro. Mais uma vez, Plínio não fez compromis-sos, recusou-se a voltar a participar de novelas e a trabalhar com propaganda, e, para sanar as dificul-dades financeiras que atravessava, apesar da fama e dos prêmios que continuava recebendo, voltou ao camelô, deu palestras pelo interior e aulas de tarô. As últimas peças de Plínio, já na década de sua morte, mostram o momento da maturidade e, também, de retrospectiva artística e pessoal. Incluem A Dança Final, que aborda a relação de um casal de classe média após 25 anos juntos; O Assassinato do Anão do Caralho Grande, que retoma a temática do circo, mostrando a deca-dência da arte em que ele começou; O Homem do Caminho, monólogo também retrospectivo; e O

culturaBote da Loba, cujo tema é o prazer feminino, mas também sob a perspectiva da meia idade. Lutando com problemas cada vez mais sérios de saúde – era portador de diabetes, além de sofrer de problemas do coração – Plínio tinha consciência de que estava no fim de sua jornada, e a tendência à introspecção e ao balanço final se afirmava de maneira sólida. A caminhada de Plínio pode ser vista como uma guerra, pela quantidade de batalhas que dispu-tou, mas também tem muito de idílio, pois o Palhaço Bobo Plin jamais se rendeu à amargura, vivendo a experiência mágica e transcendente da vida, com todos os seus conflitos, externos e internos, da ma-neira mais intensa. Mostrou a todos os cenários mais

crus e violentos, retirou o véu e descobriu o mundo de violência e opressão que se escondia por trás do cenário cor-de-rosa pintado pelos brasileiríssimos mitos do povo ordeiro e bom, ainda quando sofre-dor, da democracia racial e do caráter benfazejo, em geral, que cercaria desde nossa natureza até nossos

senhores de engenho – incluindo aí, com ecos na literatura, coloridíssimas prostitutas e pachorrentas e benévolas cafetinas. Não saiu, no entanto, desencan-tado desse processo de desmistificação que levou a cabo. Pelo contrário, tomou-o como estímulo para lutar, com alegria e sem fazer compromissos, pelas causas em que acreditava. Plínio Marcos morreu em São Paulo, no dia 19 de novembro de 1999 aos 64 anos, deixando um grande legado artístico, em suas peças, livros e crô-nicas, mas também político e humano, que não será esquecido. Ao mirar a realidade histórica em que es-tava submerso, atingiu elementos de universalidade na sua ácida crítica das relações de poder, que pode

ser lida como uma crítica ao funcionamento de toda e qualquer dinâmica social. Cabe a nós, brasileiros, em nossa experiência concreta, tentar desatualizar sua obra, finalmente fazendo com que o país evolua. Mas mesmo que consigamos (e oxalá conseguire-mos), não há mais jeito. Plínio Marcos virou clássico.

[ eDen cLaBuchar martinGO (turma 2009-2011) é Bacharel em fIlosofIa pela faculdade de fIlosofIa, letras e cIêncIas humanas da unIversIdade de são paulo e pós-graduado em negócIos InternacIonaIs pelo centro unIversItárIo da cIdade, no rIo de JaneIro. ]

Para saber mais:Coleção Melhor Teatro – peças: BARRELA, DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, NAVALHA NA CARNE, ABAJUR LILÁS, QUERÔ. Editora Global, setembro 2003; prefácio Ilka Marinho Zanotto.CONTRERAS, Javier; MAIA, Fred e PINHEIRO, Vinícius (org.). A crônica dos que não têm voz. 2002. Boitempo Editorial.MAGALDI, Sábato. Moderna Dramaturgia Brasileira. 1998. Editora Perspectiva.MENDES, Oswaldo. Bendito Maldito: Uma biografia de Plínio Marcos. 2009. Editora LeYA.Sítio Oficial – http://www.pliniomarcos.com/

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cultura

Villa-Lobos é um lodaçal. Dar sentido a suas peças é sempre tarefa tortuosa, que demanda atenção constante e entusiasmo que não hesite. É música que não se presta a performances me-cânicas, mesmo se de extrema competência, como se se fizesse pelo seguimento das instruções da partitura. Se mecânica ou interpretada sem grande esforço, só pode soar medíocre, quando não confusa e estereotipada, na qual sobra muito e faltam conexões adequadas. Tentar interpre-tá-las adequadamente é, porém, dificuldade grande, pois não é música que permita performan-ce confortável, na qual os instrumentistas imponham um ritmo: seguir a partitura é tarefa que consome excessivamente, pela escrita intrincada e pouco ortodoxa e pelo fôlego que demanda. Não poucos reputam a questão à desorganização do compositor, que compunha numa velocidade impressionante e de forma desordenada. É anedótico como compunha: numa mesa enorme e bagunçada, várias peças ao mesmo tempo, rádio ligado, às vezes alguém ao piano, crianças correndo. E aos que se espantavam com esses eventos em teoria desconcen-trantes, Villa-Lobos dizia que, se escutava um pássaro, uma música no rádio, os metia na música também. Nota-se, pelo comentário, que, ainda que sua maneira quase caótica influenciasse no resultado final (o que não deve ser considerado ruim), reduzir o problema à incapacidade ou ao desleixo do compositor impede que se perceba a importância desse ambiente para uma organização musical particular, em que a linearidade estrita e temática perde parte de seu sentido e na qual diversos tipos de material de qualidade variada podem ser utilizados para re-lativizar o senso de plasticidade da obra. Impede, também, que se notem os desafios que Villa impôs ao intérprete. A anedota parece não deixar clara a imensa concentração do compositor, capaz de escrever música extremamente complexa em ambientes inesperados. Prefere-se reputar à

WeLLingtOn BuJOkasFOtOs ceDiDas peLO museu viLLa-LOBOs / acaDemia BrasiLeira De música

As vantagens do lodaçal

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inspiração o que é sobretudo um trabalho ár-duo e constante – para não falar em obsessão. Também transforma-se o desafio da sua música em uma falha de execução. Não é isso isso, sem dúvida. A dificuldade de tocá-la e fazê-la soar bem – sobretudo pela dificuldade de equilibrar a massa sonora – não pode ser vista simplesmente como resultado de um erro, de tão banal que seria mesmo a um compositor pouco competente, que poderia, se quisesse, reformular a peça, após ter tido a oportunidade de escutá-lo ao vivo. Villa-Lobos insistiu nesse caminho, mesmo após reger ou acompanhar músicos que executavam suas peças, demonstran-do que não o via como problema. Por trás dessa escolha, parece residir, primeiro, uma percepção de que não valia a pena insistir no acabamento, como se não fosse ge-rar resultado superior significativo. É similar à abordagem que Glauber Rocha, mais tarde, daria ao cinema, em que a linearidade, apesar de existir de forma grosseira, não é refinada, sobretudo porque já havia atingido seu objetivo e, portanto, a intenção de insistir nesse caminho seria apenas uma forma de evitar críticas ao buscar perfeição (pela plasticidade). Segundo, vencer esses desafios proporciona uma experiência acústica única: os graves excessivos modificam a percepção acústica e, dissociados de clichês sotur-nos, ganham expressão e dinâmica inesperadas

para instrumentos que, em geral, constroem a base para os agudos. Terceiro, a escolha parece ser fruto de uma tentativa de fundir características que não se associam com facilidade, ao exigir que o músi-co alcance naturalidade e flexibilidade dentro de uma estrutura intrincada e que se mantenha em sincronia com outros que devem mostrar a mesma espontaneidade, fazendo da empatia um elemento essencial para a execução musical. A decupagem

poderia inclusive dificul-tar a empatia, ao garantir resultado mais eficiente de forma mecânica. Conciliar, no entanto, obra que é complexa o bastante para que mesmo intérpretes muito expe-rientes a sigam meca-nicamente com a forte dependência de espon-taneidade e da intensi-dade emocional é um risco bastante alto, quase sempre desastroso, dada a frequência com que a obra pode falhar em seus propósitos. É um risco que, julgo, o compositor decidiu claramente correr (mesmo que por instin-to). Muitos, ao contrário,

julgam que a questão de acabamento formal é mais consequência de um problema de formação: autodi-data, o compositor sofreu as limitações de não domi-nar formas clássicas e técnicas para os instrumentos; produzia de uma maneira razoavelmente anárquica, ainda que fosse de uma constância impressionan-te durante toda a vida (como se nota pelo imenso catálogo); e não tinha muita paciência para revisar partituras, com impacto óbvio sobre as obras.

cultura Sem desconsiderar que as limitações técni-cas impediram certos desenvolvimentos na obra de Villa-Lobos (mormente quando tentou mostrar que sabia trabalhar com formas clássicas), deve-se notar que o risco e a instabilidade não podem ser vistos necessariamente como parte do problema. As críticas nessa direção partem do princípio de que essas características não se adequam com clareza ao que se convencionou chamar música clássica, que buscou, ao longo de sua história, criar mecanismos para garantir a reprodução fiel das intenções do autor – pelo menos até o surgi-mento da música aleatória. Por isso o desenvolvi-mento da música escrita. No caso do Villa, mesmo que, por vezes, surjam problemas técnicos sérios na execução, sua prática estética permite que a música seja interessante e intensa mesmo nos ca-sos de erro (o que não acontece no acerto mecâ-nico) e, mais, cria horizonte quase infinito para os músicos, que sempre podem tirar mais das peças, não apenas em detalhes, mas criando uma con-cepção nova e significativa conforme o empenho, o talento e a sensibilidade. Se o compositor tivesse expressado essas opções em base teórica clara, seria claro não se tratar de limitação (ainda que, de fato, isso não alterasse o trabalho em si). Não a expressou, no entanto, em nenhum momento e não era, de forma alguma, teórico interessado em demonstrar na prática de suas peças alguma concepção abstrata que buscava defender. Ao contrário, suas opiniões eram ambíguas e cambiantes, provavelmente mais preocupadas em garantir-lhe um lugar ao sol no cenário da música clássica, dominado como era – e talvez ainda seja – pela percepção de que os euro-peus são superiores nessa modalidade. Aproveita-va, num primeiro momento, a boa recepção que o exotismo tinha em Paris nos anos 1920 e, mais tarde, optava por se aproximar de um neoclassicis-mo para agradar o público norte-americano. Não

é para menos que não deixou seguidores, salvo residualmente, em questões como nacionalismo e colorido orquestral, pois não é muito claro o que se deve seguir. Acima de tudo, o que mais interessa em Villa-Lobos – e o faz muito moderno – é sua ca-pacidade de residir em uma área cinzenta, onde praticamente nada é categórico e onde não há maiores possibilidades de sistematização, senão pelo ânimo que permeia toda sua produção. Apli-car um modelo útil a Stravinsky, embora factível também a Villa, que estava tecnicamente e, em certos pontos, mesmo esteticamente próximo ao russo, significa reduzir suas possibilidades expres-sivas e, mais grave, dificulta a tentativa de nós, ouvintes, avaliarmos a importância estética de um nome essencial para a música do século XX. Tome-se como exemplos suas obras mais próximas da Sagração da Primavera, como Ui-rapuru, Amazonas e Choros 8. Ainda que óbvia a influência, a concepção interpretativa é outra. Enquanto Stravinsky simula ataques e pede que os músicos simplesmente toquem a peça, sem buscar interpretações profundas que possam deturpar o sentido – de acordo com ele – explícito da obra, as músicas villa-lobianas dependem for-temente de verdadeiros ataques, que são insupor-tavelmente difíceis de serem sustentados – por serem longos e sinuosos, dada sua preferência pela assimetrias – sem perder de vista as nuances da obra e o equilíbrio orquestral. Grosseiramen-te, a obra de Stravinsky é sempre a mesma, salvo pequenos detalhes, se os intérpretes conseguem acompanhar a intrincada partitura. As obras de Villa não podem jamais soar da mesma forma, mesmo se perfeitamente tocadas, ao exigir que o regente escolha o que destacar na trama comple-xa – já que o compositor não definia – e encontre uma inflexão adequada, enquanto os intérpre-tes buscam a empatia possível para fazer a obra

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fluida, quando tudo tende à ruptura. Uma abor-dagem emocional, portanto, opõe os dois com-positores: o risco que se corre na prática estética do brasileiro devia ser insuportável a Stravinsky, procurando garantia e reprodução. Mesmo seus melhores e mais fiéis intérpretes alcançam sucesso bastante variado. O Momopreco-ce gravado por Eleazar de Carvalho nem parece re-gido pelo mesmo maestro da grande gravação dos Choros 8. Orquestras de alto nível por vezes não ex-trapolam o mediano – quando o atingem – mesmo depois de terem realizado interpretações soberbas. Mesmo quando miniaturas, mesmo peças simples, guardam sempre uma surpresa. Essa não se resume a “detalhes” como um andamento mais lento ou mais rápido ou uma questão de equilíbrio entre os instrumentos, mas atinge em cheio a compreensão da obra. O volume de detalhes a serem escolhidos é tão grande que alteram significativamente o trecho tocado e exigem que se procure uma outra formu-lação para trechos seguintes, dada a maneira como Villa concebia uma coesão por fluidez (que acabava por significar uma música em contínua transição). Se se perde a consciência de um encadeamento interpretativo, corre-se o risco de fazer da música um amontoado de notas caóticas. Importante é notar que o sentido não-evi-dente no progresso da obra não é característica que surge na década de 1920, mas se desenvolve em suas obras desde o início da carreira erudita do compositor (por volta de 1910) e atinge resul-tados importantes em sua primeira década, com o Quarteto de cordas nº3, o Trio nº2, a Sonata nº3 para violino e piano, a Dança dos Mosquitos e a Sinfonia nº4, além de em peças conhecidas, como a Prole do Bebê nº1. Já nesse momento, Villa-Lobos estrutura suas obras com uma dicotomia pouco congruen-te, em que potencializa a fluidez (e com isso dá asas largas ao lirismo e à melodia, características

que guardam muito do Romantismo e do Impres-sionismo), mas esvazia a plasticidade ao tornar essa fluência extrema quase inexecutável, ao po-tencializar também o contraste e a cor, fragilizan-do sempre a fluidez com a ameaça iminente de ruptura. Essa ameaça, curiosamente, permite que o lirismo possa ser ainda mais desbragado que o do Romantismo sem que se caia num sentimenta-lismo brega, já que é feito praticamente para não funcionar e, ao funcionar, é tão inesperado que não parece clichê. A linearidade temática, ainda que pretendida naquele momento, não é bem tra-balhada, e o elemento de coesão mais importante acaba por ser a manutenção do ataque (que cria uma sensação de foco constante) e da densidade musical (seja pela densidade da massa sonora, seja pela dramaticidade). A música não relaxa e dificilmente respira, num contínuo que parece não ter fim (e por isso flui de forma extrema). Isso, apesar de o clima da peça estar em constante mu-dança, passando por temas burlescos, explosões festivas e melodias delicadas, alegres ou melancó-licas. A Sinfonia nº4 e a Sonata nº3 para violino e piano são obras que expressam categoricamente o frescor estrutural da música de Villa-Lobos e mostram que, apesar de sua proximidade com movimentos anteriores, nem se pode dizer que o compositor se alinhasse a eles, nem que essas obras sejam apenas prenúncio de um compositor maduro que surgiria na década seguinte, ao final-mente abarcar o nacionalismo. Ao entrar de cabeça na vanguarda, nos anos 1920, essas características seriam exacerbadas. A linearidade temática foi praticamente abandonada, assim como as formas clássicas; os temas se diver-sificam, o material facilmente vai do sublime ao duvidoso, os contrastes atingem nível ainda mais alto, as dificuldades técnicas aumentam conforme os instrumentos são explorados de maneira cada vez mais inusitada. O compositor dirige-se a uma liber-

culturadade cada vez mais larga, com direito a peças com forte sabor dadaísta, como o Noneto, a Suíte para voz e violino, o Pensées d’Enfant e a Suíte Sugestiva. As duas primeiras são percebidas como centrais de seu nacionalismo, mas o antropofagismo que nelas está contido não permite “encaixá-las no rótulo”. A liberdade, no entanto, não é fim último, muito menos a paródia. Ao contrário de Ives, em busca da liberdade de associação e do prazer que essa liberdade poderia trazer, em Villa há um sentido de grandeza e emoção que não pode ser desconsiderado. Ou seja, mesmo o brega só pode

fazer parte de uma de suas peças se falso, pela transcendência que deve carregar. Ilustrativa dessa questão é outra frase de Villa, em que ele se com-para a outro grande compositor brasileiro, Camar-go Guarnieri, nos seguintes termos: “Eu voo com qualquer líquido combustível, o Guarnieri só com gasolina de primeira”. O comentário buscava ressal-tar o refinamento do segundo, que era obcecado por encontrar a expressão na forma estabelecida, no material visto como elevado, sem qualquer infiltração nociva. No entanto, é a percepção do Villa sobre sua própria produção que dá interesse à frase. A ideia de que se pode voar com qualquer tipo de material e ainda assim atingir o céu que, a princípio, estaria guardado para os que se refinas-

sem ao máximo, expurgando suas peças do que é menor (para que não prejudique o resultado final), possui uma contemporaneidade impressionante. O compositor se mantinha preocupado com o fim maior que espera da música, uma crença naïve construída, absurdamente, sobre base irônica (ao recusar a pureza), como quem recusa utilizar seu bom senso e se lança ao voo como um Ícaro. Numa mostra de oportunismo (portanto, de bom senso) com um absurdo ainda maior, Villa-Lobos criaria um certo mito de retorno ao neoclassicismo a partir dos anos 1930. De volta

ao Brasil, ambiente mais conservador, bem como tendo em conta que o neoclassicismo estava em voga na Europa, o compositor passava a se empe-nhar em uma produção formalmente mais clássi-ca, seja recuperando Bach, nas famosas Bachianas Brasileiras, seja dialogando com Palestrina na adorável Missa São Sebastião, seja usando for-mas consagradas, como sinfonias e quartetos de cordas. Era, naquele momento, importante para o compositor mostrar que era capaz de dominar as formas estabelecidas e, não se entende bem o porquê, estabelecer fases em sua obra, pré--datando músicas para costurar uma trajetória com momentos bem definidos. Passaria, assim, da fase pré-nacionalista inicial, ainda eivada de

“Eu voo com qualquer líquido combustível, o Guarnieri só com gasolina de primeira”.

Villa-Lobos.

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música francesa, para a experimentação dos anos 1920 e desembocaria nos anos 1930 mais maduro na fusão de uma música elevada com as raízes brasileiras. Ainda que, muito grosseiramente, se possa tecer essa linha, a verdade é que Villa-Lobos parece ter tentado reforçá-la não só produzindo obras desse cunho, mas também falsificando as datas de peças que estava escrevendo naquele momento que não se coadunavam com a fase estética de então. Nisso perderam destaque, curiosamente, peças com soluções extremamente modernas, mas ligadas à música francesa, como se nota na Sinfonia nº 3, cujo último movimento apresenta músicas simultâneas, ou no Quarteto de cordas nº 3, com um movimento praticamente só para pizzicato. E o que se depreende é que Villa queria mostrar que seu experimentalismo estava concen-trado nos anos 1920, ainda que aparecesse aqui e ali na sequência de sua obra (em sua defesa, o compositor costumava dizer que uma música estava pronta quando ele a desenvolvia em sua cabeça, não quando a botava no papel). Deixando de lado a questão biográfica, interessa aqui notar que os anos 1940 são um grande momento de sua carreira, talvez mais im-portante do que os anos 1920. Ao mesmo tempo em que escrevia as últimas Bachianas, Villa-Lobos também compôs uma série de peças arrojadas, como o Mandú-Çarará, os Quartetos de Cordas 7, 8 e 9, seus melhores e mais arrojados quartetos, o Trio para cordas e, provavelmente, os Choros 6, 9, 11 e 12 (datados da década de 20). Todas figuram necessariamente entre suas obras-primas. Destaque-se o Choros 11, para piano e orquestra, verdadeira síntese da obra villa-lobiana. Obra insana enquanto construção, embalada num lirismo mais doce e menos tipicamente vanguardista

que o Choros 8, mas que leva ao limite caracterís-ticas descritas acima. Com uma hora de duração, sem nenhuma linearidade clara (ainda que, grosso modo, siga uma organização movimento rápido - lento - rápido), passeia por todo tipo de tema, clima e material, mas mantém um senso de coesão extremo ao se manter numa execução contínua, quase sem criar respiros para a orquestra, e ao exalar tensão pela densidade da massa sonora. É música em constante transição, em que um tema é sistema-ticamente abandonado na primeira oportunidade de introduzir outro, como se a música, num exemplo linguístico, fosse um texto gerado numa sucessão enorme de orações subordinadas. A música é uma compulsão que segue em frente como se não tives-se fim. Sente-se que há base, mas não se sabe exata-mente onde está. O regente, no entanto, precisa ser capaz de não perder o foco (já que a manutenção da densidade depende do ataque), desafio que a peça continuamente impõe. Mesmo nos momentos mais ligeiros, um misto de ânimo (diversão), ataque e escrita intrincada cria enorme densidade. A orques-tra parece uma grande festa, e o compositor desde o início exige o máximo de todos. O piano tem que so-lar ao mesmo tempo em que adere à massa sonora e dialoga com todos. É música que facilmente esgota quem a toca em meia hora, se bem tocada (e o ouvinte em menos, se mal tocada), mas, ainda assim, Villa-Lobos deixa o momento mais animado para a hora em que os músicos já não aguentam mais. Para a hora em que o senso de obra só se mantém com muito esforço ou num ânimo irracional. Quando só se consegue continuar mecanicamente – ou preser-vando-se física e mentalmente – é que Villa exige mais de ataque, de paixão. É nesse momento que ele deixa claro o desejo, a obsessão, de continuar a fazer música e lança os músicos, mais do que nunca, em seu imenso lodaçal.

cultura

[ WeLLinGtOn muLLer BuJOkas (turma 2009-2011) é BachareL em cOmunicaçãO sOciaL (JOrnaLismO) peLa uFpr. ]

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O nome de Zanzibar evoca lembranças carregadas de “exotismo orientalista” e traz a mente imagens de especiarias, de escravos e de explorações. Em parte devido a essa fama e também devido a sua beleza estonteante, o local é hoje um dos pontos turísticos mais visitados da Tanzânia. Politicamente, Zanzibar é um arquipélago semi-autônomo do país, no qual se destacam duas ilhas, Unguja, a maior e informalmente chamada apenas de “Zanzibar”, e Pemba, menor e um pouco mais dis-tante da costa. A história de Zanzibar (do persa, Zangi-bar, a “costa dos negros”) é rica e sincrética, e séculos de interação entre africanos, árabes e eu-ropeus estão presentes em todo o lugar. Durante os Descobrimentos, os portugueses apoderaram-se do arquipélago. O controle de Zanzibar acabaria nas mãos dos árabes e o Sultanato de Zanzibar faria da ilha o maior mercado de escravos da costa oriental africana. Ainda no XIX, sua principal ilha serviria de ponto de partida para as explorações europeias de Burton, Specke e de Livingstone, que adentrariam o continente africano em busca das lendá-rias fontes do Nilo. A herança dessa história é facil-mente perceptível, do suko ou mercado local de origem árabe ao Mercury´s, um dos bares mais frequentados pelos turis-tas e batizado em homenagem ao mais famoso zanzibariano de todos os tempos, Farrokh Bulsara, mais conhecido como Freddie Mercury. Com uma população de mais de 90% de muçulmanos, o clima é de tolerância, e mesquitas encontram-se ao lado de igrejas cristãs, como a catedral construída sobre o local do antigo mercado de escravos, e os templos indianos que po-dem ser encontrados perdidos em um canto de rua.

ZanzibarThiago T. vidal

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seu pescoço, entre as abas do colarinho alto, podem ser vistas mais nitidamente. Algo como um soluço mudo. Não chega a corar, ou o esconde a tez mulata. Sem tirar os olhos da folha de jornal, dirige-se a um homem baixo e gordo que retorna de atender os clientes do outro canto da sala: “Custódio, traga um café para o senhor Nabuco, por favor”. “Não. Um chá para mim”. “Velhos hábitos londrinos?” Nabuco lhe encara, fecha os olhos engolin-do uma resposta amarga e espessa e dirige-se ao dono da confeitaria: “Com açúcar e não muito quente, por favor, Custódio. Obrigado”. Ainda lendo o jornal, Rui, sem levantar a cabeça: “Sabes que eu nunca desejei que fosse desta forma, não?” “Não. Não sei. Na verdade estava relendo aquele teu artigo... acho que de uns dois dias antes da quartelada. Plano contra a Pátria. O nome foi muito condizente, tenho que admitir. Bem, e... o que tens aí? Cartas para alguma namorada, Ministro?” Rui põe o cotovelo sobre a mesa e apoia o queixo na mão, com dois dedos sobre a boca. Sus-pira. Espera passarem dois senhores recém-che-gados, que sentam-se a duas mesas de distância, em direção à parede do fundo. Entrega o maço de papéis escritos em que fazia anotações: - De certa forma. Pode-se dizer que se des-tinam à minha Eufrásia. Nabuco engole o ar mas não começa a frase. Ajeita a gravata borboleta antes de pegar o maço. Lê o título em voz alta: “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”. Como nota que os senhores recém-chegados o ouvi-ram, coloca as folhas sobre a mesa e encolhe-se levemente. Enquanto lê, folha a folha, Rui obser-va com atenção suas expressões, com particular atenção quando inclina o pescoço para ler as anotações nas margens.

*** “É uma bela tradução. Digna do autor”. “Boa tentativa. Mas decidi não mais discu-tir com o senhor”. “A complacência é muito mais fácil para quem está no poder”. “Acredito, sinceramente, que falas com experiência”. “Quando eu disse que farias a República com teus artigos, acharam que eu estava louco”. “E o que esperas fazer com os teus? Res-suscitar o sebastianismo? Levar o povo para as ruas, ao estilo francês? Poderíamos tranquilamen-te conviver – que Deus nos ouça – com um pouco mais de ordem”. “Creio que já deixaste Deus fora disso, ao retirá-lo da Carta. Além do mais, me parece que a ordem já estava estabelecida. Antes de convocares os soldados para marchar na sala do trono”. “...” “Não, não pretendo ser o Rui Barbosa do retorno. Nem concordo quando dizem por aí que só invertemos nossos papéis”. “Dizem isso?” “Esqueci que perdeste o contato com as ruas”. “E quando começaste a tê-lo? Digo, com as ruas do Rio, não da Europa”. Custódio traz o chá de Nabuco e o serve sob o silêncio dos clientes. “Algo mais?”

*** Enquanto Nabuco toma seu chá, Rui pare-ce folhear distraidamente o jornal, mas o observa de tempos em tempos. Subitamente, ajeita os óculos, respira fundo, toca na mesa para chamar a atenção de Nabuco e começa: “Caro amigo, compreendo perfeitamente tua apreensão e descontentamento. Particular-mente, tenho-me desdobrado para garantir que o novo governo seja forte e consequente no bem,

“Posso acompanhá-lo, senhor Ministro?” Rui Barbosa levanta lentamente os olhos do maço de papéis em que fazia anotações e ob-serva, por sobre os óculos redondos, o cavalheiro recém-chegado. O movimento lhe franze a testa. Depois de alguns segundos de hesitação intencio-nalmente explícita, puxa sem pressa sua xícara de café um pouco mais para perto: “Este é um espaço público e democrático, senhor Nabuco. Não posso impedi-lo”. Nabuco toma lugar e solta sobre a mesa, descuidadamente, um jornal dobrado ao meio. Cruza os braços e recosta-se. Também sem pressa. Inclina levemente a cabeça, observando Rui, que procura em seus papéis com a ponta do lápis o ponto onde estava. “Certamente é um espaço público, senhor Ministro. Talvez até volte a ser democrático. Notei que o Custódio ainda guarda a tabuleta da ‘Confei-taria do Império’ atrás do balcão. Talvez ele esteja mais informado do que eu. Mais preparado do que nós dois, talvez. A propósito, como vai o General?” Rui inspira devagar e profundamente. Solta o ar com algum barulho e deposita os pa-péis sobre a mesa. Olha novamente para Nabuco,

agora diretamente nos olhos: “O presidente está bem, muito obrigado”. A voz sai impostada. Desmonta a cena: “Pare com esta história de ‘Ministro’, Joaquim”. Nota que chamou a atenção de uma famí-lia – pai, mãe e um menino pequeno – que toma café em uma mesa ao outro lado da sala, próxima à porta. Num tom de voz mais baixo: “E o Imperador? Tens notícias?” “Algumas. Dom Pedro não está nem tão bem nem tão doente quanto o teu general”. Nabuco faz uma pausa, esperando a rea-ção de Rui. Como o Ministro permanece impassí-vel, continua, pegando o jornal que havia coloca-do sobre a mesa e correndo algumas páginas: “Creio que sabes que Sua Majestade ainda não desistiu de ti. Veja aqui o que ele escreveu: Nas trevas que caíram sobre o Brasil, a única luz que alu-mia, no fundo da nave, é o talento de Rui Barbosa...” “Deixa-me ver isso”. As mãos de Rui movem-se rápidas e sua voz novamente chama a atenção. Notando a descompos-tura, alinha-se e refaz a frase, quase num sussurro: “Posso ler, por favor?” Por um momento, enquanto lê, as veias de

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DESENCONTRO DA VIDA

Gira giro giro mudo: não mudaMundo, micro, sozinhoTento, verbo: grito.Me derramo, formo, me transformo: e nada além de mim.

Giro gira gira muda: não mudoEu, amor, fidelidadeMedo, verbo: nego.Me iludo, forma, transforma: e nada em mim.

E em todas as milhares de vinte e quatro horasMudo não mudaMuda não mudoE no encontro nunca nos encontramos.

Efemeridade da estática,Infinitude da inconstância:Se transformo ou me transformoNada muda nada mudo.

Sei, sou: nada além de mim.Amo, desamo, mudo, mudaCírculo sem fim.

Marcelo Hasunuma PONEIS

BALANÇO

vivendo a prestações

Por medo de não suportar emoções à vista

Com sentimentos pré-datados e

Dores vincendas tão pontuais quanto impostos

Nunca conseguirás nada além de limites

E beijos.

[ marceLO kOiti hasunuma (turma 2009-2011) é BachareL em DireitO peLa pOntiFícia universiDaDe catóLica De sãO pauLO (puc-sp). ]

para não o ver degenerar-se em mal. Não obstan-te, não me resta qualquer dúvida quanto à natu-reza e à importância do momento que nossa – se me permite incluí-lo – que nossa pátria atravessa”. Rui toma de um só gole o que resta de seu café. Por um instante, levanta levemente o queixo, mas retorna à posição anterior. Toma fôlego e continua: “Meu intento, não nego, era republicanizar a Monarquia. Para, assim, conservá-la. Labutando por sua salubridade, por sua cura, vi-me denun-ciado como seu arqui-inimigo. Como subversor republicano. Poucos – como Ouro Preto – reco-nheceram a gravidade da situação, a extensão dos atentados à liberdade, a urgência das reformas”. Nabuco olha, por sobre o ombro de Rui, para os dois senhores da mesa ao fundo, que ou-vem atentos. Custódio acerca-se da mesa, atraído pelo barulho. Rui vira discretamente a cabeça, observa-os de relance e segue, dirigindo-se a Na-buco, com o dedo em riste por alguns instantes: “Minha consciência não me permitiu, no entanto, ser conivente com a degradação. Minhas convicções são públicas, pois se demonstram não apenas em meus textos, mas em minha vida. E delas não posso apartar-me sob pena de ter-me amputada parte essencial. Acima de tudo, acre-dito na liberdade – mãe das nações verdadeira-mente sadias –, da qual emana a lei – fundamento e principal necessidade de uma nação. Essa lei, interpretada pelos tribunais e oriunda da vontade do povo, é que deve ser o verdadeiro soberano”. Nabuco aproxima-se de Rui e fala baixo, devolvendo o maço de papéis: “Se bem o entendo, senhor Ministro, este é o resultado da vontade do povo brasileiro, que se reu-niu no escritório de Vossa Senhoria na noite passada”. Por não ouvir a frase de Nabuco, Custódio

se aproxima ainda mais, chegando a menos de dois passos da mesa. Ao receber o olhar de Nabu-co, limpa as mãos no avental, recolhe a xícara de Rui e volta para a cozinha. Rui está com as duas mãos espalmadas so-bre a mesa, como se fosse levantar-se a qualquer momento: “Toda transição traz em si algum descon-forto. É necessário não perder de vista...” Nabuco, notando que continuam a atrair a atenção, finge um bocejo, levando a mão à boca: “Peço desculpa senhor Ministro, mas temo que tenho que retirar-me. Além do mais, tenho a firme impressão de já ter lido este discurso em algum lugar”. Levantando-se: “Peço sua licença. Tenha um bom dia, Mi-nistro”. Rui solta o ar e os ombros. Calma e terna-mente: “Vai, Joaquim. Vai com com Deus”. Rui fecha os olhos, respira. Volta a seus pa-péis por um instante, mas larga-os novamente e fica observando Nabuco, que ao sair cumprimenta com um suave aceno de cabeça a família na mesa próxima à saída. Os senhores, na mesa próxima, notam que Rui continua a balançar levemente a cabe-ça, num gesto de desaprovação, mesmo depois de Nabuco sair para a rua. O mais velho chama Custódio com um aceno: “O que foi aquilo? Eu nunca tinha visto o Ministro exaltado assim fora de uma tribuna”. “Foi nada, Ramiro. É só uma briga de ir-mãos. São dois órfãos do rei”. Os três sorriem. Custódio segue para servir mais um café – “Este é por conta da casa” – para o Ministro Rui Barbosa.

[ Jean rODOLFO maDruGa taruhn (turma 2009-2011) é BachareL em ciências Da cOmputaçãO peLa cOLumBia sOuthern university e em FiLOsOFia peLa FacuLDaDe De FiLOsOFia, ciências e Letras (FaFiL).]

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O que é que vem primeiro? O pensamento? Não! Será a linguagem? Não! Primeiro vem o ar,a terra, a água, o fogo – pobre da razão...(Mal sabiam os gregos no que iria dar).

Será possível definir o que é o ser?O signo tem um ser; a referência, não.A ontologia toda em festa... Ser é ser!Mas isso não nos dá uma definição.

Darwin, Marx, Nietzsche, Freud, puseram a razãoem dúvida. Não há real, não há ideiae tudo se baseia em interpretação...Sem nenhuma creencia, nenhuma alethéia:

no mundo pós-moderno houve um passo pra trás(recuo para o nível existencial).Com Heidegger, mentes obscuras, sem paz,apagaram as luzes, etcétera e tal.

Arcaico vem de arché. Ó ápeiron perdido!Já não sabemos nem o indeterminado...Aqui já não há phronesis, não há sentido,e logo voltaremos a ser pó e nada!

Sem descartar Descartes (cogito ergo sum!)nem as categorias tão transcendentaisde Kant – mas possuídos, talvez, por Oxum –,damos giros linguísticos e outros quetais,

tal qual um Tamagotchi em pleno Kagemusha!Individualizados em nossas cadeiras(entre uma frase e outra, o silêncio estrebucha),sonhamos ter em nossas mãos uma caveira

como Hamlet – que grande indivíduo moderno!Margaret Thatcher já dizia: a sociedadenão existe. Não: cada qual com seu cadernodesenha um crânio e o esmaga à saciedade...

Dos nazistas aos quinze minutos de fama,Hannah Arendt escreve e mete o pau, pois nadaexiste atualmente que não seja lama.Está tudo invertido... E, claro, tudo é nada...

Enquanto a teoria é muito inconclusiva,beirando a metafísica (louca alegria!),a prática, por sua vez, é dispersivase não se orientar por uma teoria...

Surgem grandes debates: Carr e Morgenthau,entre outros, em plena guerra fria, pensamque tudo está tranquilo e fazem um luau,chamando os próprios hippies para dar a benção.

Naquele tempo, Janis Joplin já dizia:“Há transnacionalismo, baby, em minhas veias– a interdependência não me assusta”, e ria(o Extremo Oriente bem guardado em suas meias)...

Depois de discutirmos as TRIs,pergunto: onde chegamos, o que concluir?Não existe uma essência fixa, esse é o Xda questão. Se pensavam poder atingir

algum centro, enganaram-se: a circunferência,como disse Pascal, não está em lugarnenhum, e o centro está em toda parte. A essência,portanto, não é uma: é múltipla. E pensar

de maneira absoluta, querendo chegarà teoria geral, é pouco realistaem termos de política. Como ignorarque o mundo é vasto e múltiplo, se está na vista?

Com o passar do tempo, os grandes ideaisse tornam opressivos, como as teoriasabsolutas e as belas ideias gerais,barrando o pensamento em grandes agonias...

O budismo seguiu da Índia para a China(depois para o Japão, atravessando o mar),obrigando Confúcio a tomar aspirina(pois China e Índia são dois modos de pensar).

Na Índia, o pensamento é universalista,muito espiritual, muito argumentativo,enquanto que, na China, é particularista,avesso às teorias e um pouco esquivo.

Os chineses, com pés no chão, sempre cultivama si mesmos – tal qual os gregos (ver “Paideia”) –,graças à concretude com que centralizamtudo no ser humano, e não em uma ideia.

Pai da razão de Estado, Maquiavel deu formaa muitos conceitos da diplomaciamoderna, do interesse de Estado (que é norma)ao próprio realismo, escrevendo o que via.

Alguém já viu um círculo? Viu a beleza?Ou talvez a justiça, ou a celeridade?Não viu – nem de relance, ou com pouca clareza –,pois são universais e não realidades...

Se, para os pré-socráticos, era a verdadeuma alethéia, um lúcido desvelamentodo todo, para Sócrates (em outra idade)o que importava mesmo era o seu pensamento

(não o objeto) além dos tais universais.E seguiu a verdade em tal transformação,até, enfim, tornar-se (mas isso bem maistarde) um enunciado, e até mesmo ficção...

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Notas de AulaLOurençO Dreyer

[ LOurençO FeLipe Dreyer (turma 2009-2011) é BachareL em Letras peLa uFrgs, pOrtO aLegre/rs. ]

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Instituto Rio Branco

Fundação Alexandre de gusmão