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GERALDO VITALI NETO QUANDO AS FRONTEIRAS POLÍTICAS NÃO COINCIDEM COM AS FRONTEIRAS CULTURAIS: A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA E OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS Londrina 2006

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GERALDO VITALI NETO

QUANDO AS FRONTEIRAS POLÍTICAS NÃO COINCIDEM COM AS FRONTEIRAS CULTURAIS:

A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA E OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS

Londrina 2006

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GERALDO VITALI NETO

QUANDO AS FRONTEIRAS POLÍTICAS NÃO COINCIDEM COM AS FRONTEIRAS CULTURAIS:

A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA E OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS

Monografia apresentada ao curso de Geografia da Universidade Estadual de Londrina como requisito à obtenção do título de bacharel em Geografia

Londrina 2006

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COMISSÃO EXAMINADORA ______________________________________

Orientadora: Profª Drª Ideni Terezinha Antonello

______________________________________

Profª Drª Maria del Carmen Matilde Huertas Calvente

______________________________________

Profª Drª Rosana Figueiredo Salvi

Londrina, 1º de dezembro de 2006

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Dedico este trabalho a quem,

em algum momento,

me quis bem.

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AGRADECIMENTO

Agradeço à minha orientadora e amiga Ideni que, com paciência e sabedoria,

soube conduzir a elaboração deste trabalho.

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LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Setor Público nos Países do G7 .............................................................................. 30

Tabela 2 – Indicadores dos Reagrupamentos Transnacionais da União Européia ................... 91

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – A Territorialização das Civilizações Contemporâneas ........................................... 49

Figura 2 – A Forma Territorial Francesa: Compacta................................................................ 73

Figura 3 – A Forma Territorial Italiana: Alongada................................................................... 73

Figura 4 – A Forma Territorial Norueguesa: Recortada........................................................... 74

Figura 5 – A Forma Territorial Japonesa: Fragmentada........................................................... 74

Figura 6 – As Fronteiras Políticas Européias Antes da Primeira Grande Guerra (1914) ......... 77

Figura 7 – As Fronteiras Políticas Européias Após a Primeira Grande Guerra (1921) ............ 78

Figura 8 – A Fronteira Oriental da Civilização Ocidental...................................................... 100

Figura 9 – O Território Ucraniano Cindido Pela Fronteira Cultural Entre o Ocidente e a

Ortodoxia ........................................................................................................................ 101

Figura 10 – A Divisão Cultural e Territorial Bósnia .............................................................. 111

Figura 11 – A Divisão Cultural e Territorial Sudanesa .......................................................... 115

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LISTA DE SIGLAS APEC Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico

ASEAN Associação de Nações do Sudeste Asiático

CECA Comunidade Européia do Carvão e do Aço

EUA Estados Unidos da América

FMI Fundo Monetário Internacional

G7 Grupo dos Sete

MERCOSUL Mercado Comum do Sul

NAFTA Tratado Norte-Americano de Livre Comércio

OMC Organização Mundial do Comércio

ONU Organização das Nações Unidas

OTAN Organização do Tratado do Atlântico-Norte

PIB Produto Interno Bruto

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SUMÁRIO

1. OS CONCEITOS-CHAVE ................................................................................................ 12

1.1. A GLOBALIZAÇÃO..................................................................................................... 12 1.2. O ESTADO .................................................................................................................... 20 1.3. A CULTURA, A CIVILIZAÇÃO, A IDENTIDADE E AS CIVILIZAÇÕES .............. 34

1.3.1. AS CIVILIZAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ............................................................ 49 1.3.1.1. A Civilização Ocidental................................................................................... 50 1.3.1.2. A Civilização Ortodoxa ................................................................................... 54 1.3.1.3. A Civilização Africana .................................................................................... 55 1.3.1.4. A Civilização Hindu ........................................................................................ 55 1.3.1.5. A Civilização Sínica ........................................................................................ 56 1.3.1.6. A Civilização Japonesa.................................................................................... 56 1.3.1.7. A Civilização Islâmica..................................................................................... 57

2. AS FRONTEIRAS .............................................................................................................. 59

2.1. OS TIPOS DE TERRITÓRIO........................................................................................ 70 2.2. A EVOLUÇÃO DAS FRONTEIRAS............................................................................ 76

3. A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA NA ORDEM MUNDIAL DO PÓS-GUERRA FRIA ...................................................................................................................... 84

3.1. A CULTURA E OS BLOCOS ECONÔMICOS ............................................................ 86 3.2. A CULTURA, OS IDIOMAS E OS ALFABETOS ....................................................... 93 3.3. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS EUROPEUS................................ 96

3.3.1. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NA UCRÂNIA ....................... 101 3.3.2. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NOS BÁLCÃS ....................... 105

3.4. UM CASO ESPECIAL: O SUDÃO............................................................................. 112

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 116

5. BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 121

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VITALI NETO, Geraldo. Quando as Fronteiras Políticas Não Coincidem Com as Fronteiras Culturais: a Territorialização da Cultura e os Conflitos Territoriais e Culturais. Monografia (Bacharelado em Geografia) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.

RESUMO Esta pesquisa, ao realizar o estudo de conceitos essenciais ao seu desenvolvimento, como Estado, globalização, cultura, civilização, civilizações e fronteira, analisa a ascensão da cultura na ordem mundial do pós-Guerra Fria e os conflitos que surgem da incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais, sobretudo na Europa. O exame de cada um desses conceitos e sua justaposição formam a base teórica para a análise da ordem mundial que ascendeu após a desintegração da União Soviética e da extinção da Guerra Fria e dos conflitos subseqüentes. Dessa forma, constata-se o vigor adquirido pela cultura, sem que essa proeminência, entretanto, ofuscasse completamente os outros componentes que engendram a ordem mundial do pós-Guerra Fria: a economia, a política e a ideologia. Assim, efetua-se análise dos conflitos territoriais e culturais na Ucrânia, nos Bálcãs e, embora africano, no Sudão, por ser um caso emblemático. Infere-se, então, que a territorialização da cultura é forma salutar para compreender a ordem mundial emersa da extinção da Guerra Fria. Palavras-chave: cultura; fronteiras; territorialização da cultura; conflitos territoriais e culturais; incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais.

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VITALI NETO, Geraldo. Cuando las Fronteras Políticas No Coinciden Con las Fronteras Culturales: la Territorialización de la Cultura y los Conflictos Territoriales y Culturales. Monografía (Bachillerato en Geografía) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006.

RESUMEN

Esta pesquisa, al realizar el análisis de conceptos esenciales a su desarrollo, como Estado, globalización, cultura, civilización, civilizaciones y fronteras, analiza la ascención de la cultura en el orden mundial de la post-Guerra Fría y los conflictos que surgen de la incongruencia entre las fronteras políticas y las fronteras culturales, especialmente en Europa. El examen de cada uno de esos conceptos y su yuxtaposición forman el fundamento teórico para el análisis del orden mundial que ha ascendido después de la desintegración de la Unión Soviética y de la extinción de la Guerra Fría y de los conflictos subsiguientes. De esa forma, se constata el vigor adquirido por la cultura, sin que esa prominencia, sin embargo, ofuscara completamente los otros componentes que engendran el orden mundial de la post-Guerra Fría: la economía, la política y la ideología. Así, se efectúa análisis de los conflictos territoriales y culturales en la Ucrania, en los Balcanes y, aunque africano, en Sudán, por ser un caso significativo. Se infiere, entonces, que la territorialización de la cultura es forma buenísima para comprender el orden mundial emergido de la disolución de la Guerra Fría. Palabras clave: cultura; fronteras; territorialización de la cultura; conflictos territoriales y culturales; incongruencia entre las fronteras políticas y las fronteras culturales.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta uma maneira de compreender a ordem mundial do pós-Guerra Fria.

Assim, analisa-se a nova ordem mundial sob a óptica cultural e da perspectiva da

territorialização da cultura, o que envolve a questão das fronteiras políticas e das fronteiras

culturais e da incongruência entre elas.

Discutem-se alguns conceitos essenciais ao tema da pesquisa para, então, empreender exame

de alguns conflitos territoriais e culturais: dois europeus, o caso ucraniano e o caso balcânico,

e um africano, o caso sudanês. O centro da pesquisa é a Europa, por tratar-se do continente em

que os conflitos territoriais e culturais revelam-se mais fortemente. Há, entretanto, um conflito

muito significativo na África e, por este motivo, sua inclusão neste estudo.

Assim, a territorialização da cultura produz a incongruência entre as fronteiras políticas e as

fronteiras culturais, um dos principais motores dos conflitos mundiais contemporâneos.

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1. OS CONCEITOS-CHAVE

Para que se realize um estudo acerca de determinado tema faz-se necessário,

antes de tudo, empreender exame de alguns conceitos que com ele se relacionam intimamente

e, partindo desse feito, tecer argumentação coerente que os una e estabeleça entre eles relações

efetivas. Dessa maneira, para que se possa discorrer sobre a incongruência entre as fronteiras

políticas e as fronteiras culturais e os conflitos advindos desse fato e esquadrinhá-los, faz-se

imprescindível efetuar análise dos vários conceitos que são análogos à temática da pesquisa.

1.1. A GLOBALIZAÇÃO

Ao contrário de algumas das idéias acerca da globalização, notadamente

aquelas que propugnam o fim do Estado-nação e a ascensão de uma cultura mundial, tecer-se-

ão algumas asserções a respeito delas. Tem-se, primeiramente, que examinar o âmago do

significado de globalização. Pode-se, assim, falar de duas acepções principais. A primeira é

uma fábula que se sustenta sobre a ideologia dominante. Vê-se a globalização como um

processo recente, que se materializa sobretudo no livre mercado e na sociedade informacional.

Divulga-se exaustivamente o fim do Estado-nação, o enfraquecimento das fronteiras e o

surgimento da cultura mundial e da pretensa aldeia global, em que os benefícios de um mundo

moderno alcançariam a todos, em todas as partes. Faz-se crer na existência da cidadania

planetária, sustentada pela universalização dos valores e da democracia ocidentais pelo orbe

terrestre.

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A segunda acepção aniquila a primeira, ao revelá-la um conceito leviano, que

se presta, primordialmente, à dissimulação da internacionalização do capital. Desde que

surgiu, na década de 1990, a palavra globalização tem se posto cada vez mais em evidência.

Tornou-se palavra da moda, com grande poder de persuasão, ela “está na ordem do dia; uma

palavra da moda que se transforma rapidamente em lema, uma encarnação mágica, uma senha

capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros”1. Complexo conceito, por

fluido que ainda é e por vulgar que o tornam, a despeito de análises múltiplas, não possui

“uma caracterização coerente ou simples. [...] Nenhuma explicação singular da globalização

atingiu o status de uma ortodoxia. Ao contrário, as avaliações rivais continuam a ordenar a

discussão”2. Provida de notável imprecisão conceitual, não é, todavia, somente esse fato que

torna a discussão acerca da globalização intrincada.

Há hesitação até mesmo para denominar o fenômeno. O vocábulo inglês é

globalization. Tem origem nele o termo usado pelos países lusófonos: globalização. Seguem o

mesmo raciocínio os que falam alemão, que utilizam Globalisierung e os que falam espanhol,

que dizem globalización. Os franceses, no entanto, relutam em realizar a tradução literal do

inglês, que seria globalisation, e, para referirem-se ao mesmo fenômeno, utilizam o termo

mondialisation. Com efeito, “esses termos [global e globalização], [...] não são neutros. Eles

invadiram o discurso político e econômico cotidiano, com tanto maior facilidade pelo fato de

serem termos cheios de conotações [...] e, ao mesmo tempo, vagos”3. É possível, contudo,

tecer algumas críticas ao termo mundialização. Se é verdade que globalização é passível de

1 BAUMAN apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 15. 2 HELD e MCGREW apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 16. 3 CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 24.

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distorções ideológicas intencionais, nada garante que mundialização se mantenha a salvo

dessas maquinações.

Outrossim, a controvérsia parece ganhar ares semânticos, condição que pouco

contribui para clarificá-la. Há autores que realizam distinção entre globalização, vocábulo

ligado a aspectos econômicos, e mundialização, vinculado à cultura. Outros não forjam

distinção nenhuma, e somente utilizam globalização, tanto para fatos econômicos como para

culturais. Outros, ainda, utilizam indistintamente globalização e mundialização para aludirem

a aspectos econômicos e culturais.

Porventura, uma tal distinção, se fosse exeqüível e útil, seria tal que a palavra

globalização fosse reservada para referir-se à “capacidade estratégica de todo grande grupo

oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais atividades de

serviços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta ‘globais’”4 e a todas as

conseqüências produzidas por essa estratégia, bem como à arma ideológica do poder

monetário internacional, que planeia dissimular tal estratégia, materializado pelas empresas

transnacionais; e que o vocábulo mundialização fosse utilizado como instrumento de

contraposição, em outras palavras, para que se expusesse peremptoriamente que a

globalização é, em verdade, um processo que produz benefícios aos que a comandam, e

somente a eles, e é também a arma ideológica que intenta dissimular os desígnios do poder

monetário internacional.

Contudo, forjar diferenças semânticas nunca foi uma atitude digna de elogio ou

que obtivesse grande êxito, por artificiais que resultam. Veja-se o caso de história e estória.

Tomando como modelo a língua inglesa, que estabelece diferença entre history e story,

4 CHESNAIS, ibid., p. 17.

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propôs-se que estória designasse, no campo do folclore, a narrativa popular, o conto

tradicional. Alguns intelectuais afeiçoaram-se à idéia e consideraram por bem instituir tal

diferença na língua portuguesa escrita utilizada no Brasil. Cometeram um equívoco. Primeiro

porque essa distinção é inútil, é uma estupidez, porquanto até agora nunca se confundiram os

vários significados de história. O contexto e a situação têm sido mais do que suficientes para

que se distingam os vários significados; segundo porque não é grande feito para a língua

inglesa ter estabelecido distinção entre history e story e a língua portuguesa não a ter criado.

Ao contrário, a língua portuguesa estabeleceu diferença muito mais essencial, entre ser e estar,

distinção fundamental na vida e na Filosofia, diferenciação que a língua inglesa não pôde

igualar e por isso tem de se contentar com um parco to be; e terceiro que essa distinção

estabelecida por intelectuais nunca se tornou de uso popular e, onde alcançou sê-lo, somente

provocou confusão. Destarte, é necessário ter consciência de que não se pode tentar impor

diferenciações semânticas entre os vocábulos. As diferenciações formam-se espontaneamente,

pelo uso popular.

Há, ademais, estudiosos que simplesmente negam a existência da globalização.

Para eles o capitalismo não passou por nenhuma significativa mudança nas últimas décadas

que justificasse a adoção de novo termo para designar realidade que não passa das já

conhecidas noções de internacionalização do capital e de imperialismo. Crêem que a

globalização seja simplesmente uma nova aparência para o imperialismo, tal como foi descrito

por autores de inspiração marxista. Deveras, chegou-se a afirmar que “caberia até indagar se a

chamada globalização não seria a continuação da colonização por outros meios”5. Há também

outros que vêem a globalização como um projeto hegemônico dos Estados Unidos para lograr

5 BATISTA JR. apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 30.

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mais eficiente domínio mundial. Seja como for, é importante evidenciar que essas concepções

que preconizam a inexistência da globalização possuem todas cunho economicista, que

despreza ou ignora outros aspectos da realidade, como a cultura, a política e o

desenvolvimento das técnicas. Apesar dessa negligência, devem ser analisadas, mas, por causa

também dessa desatenção, não devem ser levadas tão a sério.

Pode-se, contudo, compreender a globalização como o ápice de um processo

que teve origem na própria formação do capitalismo. Ela é, então, um processo histórico que é

resultado de “dois” movimentos conjuntos, estreitamente interligados, mas

“distintos”. O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação

ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo diz respeito

às políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de

desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o

início da década de 19806.

Durante os mais intensos debates, na década de 1990, opuseram-se duas

vertentes principais, os que viam a globalização com bons olhos e a celebravam e os que a

enxergavam com desconfiança e a rejeitavam. Com o advento das agudas crises econômicas

da década de 1990 e do início da década de 2000 ficou mais claro que a globalização possuía

mais aspectos negativos que positivos, principalmente nos países que executavam cegamente

políticas neoliberais e que foram acertados em cheio pela crise. Assim,

tornou-se cada vez mais claro, não só para cidadãos comuns, mas também para aqueles

que formulam as políticas, não só para os que vivem nos países desenvolvidos, que a

globalização, da maneira como tem sido praticada, não satisfez as expectativas 6 CHESNAIS, op. cit., p. 34.

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conforme seus defensores prometeram que iria satisfazer – nem realizou o que pode e

deve realizar. Em alguns casos não resultou nem mesmo em crescimento, mas quando

isso aconteceu, não trouxe benefícios para todos; o efeito líquido das políticas

estabelecidas pelo Consenso de Washington tem sido, com relativa freqüência,

beneficiar alguns à custa de muitos, os ricos à custa dos pobres. Em muitos casos,

interesses e valores comerciais têm substituído a preocupação com o ambiente, a

democracia, os direitos humanos e a justiça social7.

O tão cultuado livre mercado é, verdadeiramente, “o domínio de grandes

oligopólios e de blocos econômicos protecionistas, concentrando entre seus parceiros a maior

parte do comércio mundial, deixando à margem uma imensa periferia e provocando com isso

uma desigualdade social inédita na história”8. De fato, não pode haver livre mercado e

desregulamentação econômica quando se verifica a formação de grandes oligopólios e de

blocos econômicos com legislações protecionistas.

Assim, a lógica do mercado, que tudo transforma em mercadoria ao atomizar as

sociedades e a suposta cultura mundial que, ao contrário de fazer surgir efetivamente a

cidadania e a consciência planetárias, engendra a percepção das diferenças, tanto econômicas

quanto culturais, prestam-se, sobretudo, a proporcionar condições para que renasça a cultura

como fator identitário. Com efeito, vêem-se cada vez mais demonstrações de reafirmação

cultural e de retorno às tradições, em um devir que faz com que os indivíduos se espelhem e se

reconheçam na identidade mais ampla de um povo: as civilizações. Esse devir é produto da

própria globalização. Dela é indissociável, nasce de dentro dela porque ela o carrega em sua

essência e porque ela o engendra. E é ela mesma que, em um movimento de reflexão, intenta

7 STIGLITZ apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 33. 8 HAESBAERT, Rogério. Questões e Mitos sobre a Globalização. In: STROHAECKER, Tânia Marques et al., Org. Fronteiras e Espaço Global. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre, 1998, p. 11.

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encobrir o que já foi revelado, propagando a idéia traiçoeira do relativismo cultural. Com

efeito, ele é “uma maneira cômoda de se evitar o drama da desigualdade”9.

Faz-se salutar, então, compor breves asseverações a respeito da ideologia.

Modernamente, o conceito de ideologia tornou-se conceito impregnado de impressões

negativas. Foi a concepção marxista de ideologia que contribuiu enormemente para que assim

fosse. Segundo essa concepção, ela é a maneira pela qual a classe dominante de uma

sociedade representa a si mesma, ou seja, a idéia que ela projeta a respeito de si, que se torna a

maneira pela qual todos os membros dessa dada sociedade deverão pensar. A idéia que a

classe dominante projeta para as outras classes não é necessariamente a idéia verdadeira que

ela tem de si, como se simplesmente se vislumbrasse em um espelho e reproduzisse o que lhe

aparece. Ao contrário, essa idéia pode conter ardis para dominar o restante da sociedade.

Assim, “a ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de

todas as classes sociais, se tornam idéias dominantes”10. Essas idéias são a expressão ideal das

relações materiais, são, em suma, as relações materiais dominantes concebidas como idéias.

A ideologia “consiste precisamente na transformação das idéias da classe

dominante em idéias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que

domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano

espiritual”11. Ela é, então, segundo a teoria marxista, um mascaramento da realidade, uma

ilusão, uma imagem invertida, que somente se sustém porque separa os indivíduos dominantes

das idéias dominantes, fazendo com que pareça verossímil a separação entre eles e porque cria

a ilusão de que a realidade sempre foi como é, a deprimente ilusão de que desde sempre houve

9 ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 97. 10 CHAUI, Marilena. O que É Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 92. 11 CHAUI, ibid. p. 93.

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dominantes e dominados e que, por conseguinte, é inútil lutar contra ela. Destarte, com o véu

da ideologia, também a globalização é vista como um processo inexorável, inelutável e não-

histórico quando, na verdade, é um processo histórico-econômico, criado pelas mãos humanas.

Quando “processos são retratados como coisas, ou como acontecimentos de um tipo quase

natural, de tal modo que o seu caráter social e histórico é eclipsado”12 tem-se sua reificação. É

exatamente o que se dá com a globalização quando se enxerga nela nada mais que um

processo natural e implacável.

Com o fito de proporcionar lucros cada vez maiores, a internacionalização do

capital, com seus mecanismos arrasadores, que transformam as relações sociais e as relações

de produção, acaba por exacerbar as diferenças. A tecnologia produzida para dar

exeqüibilidade à internacionalização do capital urde a percepção das diferenças quando

possibilita que a opulência e a penúria apareçam próximas uma da outra. É a gana do capital,

que é “um valor [...] cujo objetivo é a auto-valorização, a obtenção de lucro”13, que concebe o

poder monetário internacional, exercido pelas empresas transnacionais.

Desse modo, pode-se verificar quão vigorosa apresenta-se a internacionalização

do capital e como é a nova infra-estrutura, propiciada pela tecnologia produzida pelos Estados

de capitalismo avançado, que engendra o ardil da perceptibilidade das diferenças e,

conseqüentemente, do outro. É então que se fortalece o sentimento de alteridade e o que era

simplesmente diferente passa a afrontar e a ameaçar, constituindo-se, muitas vezes, no

deflagrador de um movimento migratório, nacional ou internacional, ou no irrompimento de

lutas por mais liberdade. Prova de que a informação e a alteridade são bens valiosos é a

12 THOMPSON, apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 54. 13 CHESNAIS, op. cit., p. 81.

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anacrônica proibição aos iranianos, por parte do regime de Teerã, da posse de antenas

parabólicas ou o abjeto controle que a China tenciona exercer sobre a rede mundial de

computadores dentro de seu território.

1.2. O ESTADO

Propugna-se, igualmente, o fim das fronteiras e do Estado-nação. O Estado

teria sido engendrado, segundo uma dada teoria, pela divisão do trabalho entre o homem e a

mulher. Essa divisão é “a primeira divisão do trabalho [...] a que se fez entre o homem e a

mulher para a procriação dos filhos”14. Ulteriormente a essa divisão do trabalho teria emergido

a monogamia. Outrora ela não era praticada. A filiação dentro dos clãs realizava-se segundo a

linha materna e somente por ela, pois não era possível determiná-la segundo a linha paterna. A

relativa liberdade sexual de que homens e mulheres gozavam, então, impossibilitava que se

reconhecesse a paternidade exclusiva.

A concentração de riqueza nas mãos de um homem e o desejo de transmiti-la,

por herança, aos seus próprios filhos, excluídos os filhos de qualquer outro homem, produziu a

monogamia. A riqueza passou a ser

valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens (sic) são

pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência.

Faltava apenas uma coisa: uma instituição que não só assegurasse as novas riquezas

individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não só

consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa

14 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 70.

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consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas

também imprimisse o selo geral do reconhecimento da sociedade às novas formas de

aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras – a acumulação,

portanto, cada vez mais acelerada, das riquezas – ; uma instituição que, em uma

palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o

direito de a classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre

a segunda15.

Essa instituição era o Estado. Segundo outra teoria, o Estado “existe em virtude

de suas finalidades, entre as quais figura o desejo de sobrevivência e liberdade de ação –

estratégia; de autoridade e legitimidade – direito; de identidade – história. Em outras palavras,

não há Estado sem estratégia, direito e história [...]”16. Ainda, segundo ela, o Estado moderno

teria surgido mais como uma reação, como uma resposta à guerra e a suas conseqüências do

que por razões filosóficas ou sociais. As novas técnicas de guerra, que propiciaram a expansão

dos exércitos e das esquadras e o melhoramento das dispendiosas fortificações teriam incitado

os inúmeros pequenos Estados principescos europeus, por volta de 1450, a gastar mais

dinheiro e a desenvolver estruturas mais eficientes para obter aumento da receita. Por

intermédio do Estado que se incrementava, os príncipes puderam desenvolver equipamentos

de segurança mais modernos e, atrelados a ele, puderam legitimar seus atos. Efetivamente, a

estrutura do Estado europeu “surgiu basicamente como um subproduto dos esforços dos

governantes para adquirir meios de travar guerras”17.

15 ENGELS, ibid., p. 119. 16 BOBBITT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna: o impacto dos grandes conflitos na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 4. 17 TILLY apud BOBBITT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna: o impacto dos grandes conflitos na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 89.

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Por volta de 1500 havia na Europa aproximadamente 500 Estados

principescos18. Entretanto, muitos deles já exibiam indícios do que seria a nova forma

constitucional dos Estados europeus: o Estado régio. Suécia, França e Inglaterra

personificavam o potencial sucessor do Estado principesco, pois já haviam expandido em alto

grau a burocracia permanente, haviam introduzido e mantido exércitos fixos e haviam

centralizado a tributação voltada para o financiamento da guerra. Nota-se, e esta é a essência

desta teoria, que o desenvolvimento de novos formatos constitucionais ocorre paralelamente a

uma revolução na tática militar. Infere-se, por isto, que uma das diferenças entre o Estado

principesco e o Estado régio é a diferença de escala, uma vez que o Estado régio exalta os

desígnios do Estado principesco e exacerba os meios para realizá-los. Aliás, é essa também a

grande vantagem do Estado régio sobre o Estado principesco, pois a forma constitucional que

não logra adaptar-se é arrasada pela forma vindoura, que se ergue sobre a base de sua

predecessora.

Deveras, outra importantíssima diferença entre essas duas formas

constitucionais é a admirável transição política engendrada por cada uma delas com relação ao

status anterior. No Estado principesco, a grande transição é a do príncipe como pessoa excelsa

e suprema que governa com um aparato burocrático muito débil, para o príncipe associado a

uma estrutura administrativa que se vinha fortalecendo, o Estado. A trajetória do Estado

principesco para o Estado régio reverte essa associação entre o monarca e o Estado, que então

já se objetivara, e o transforma na deificação do Estado. Assim, “o Estado principesco separou

a pessoa do príncipe de sua estrutura burocrática e militar, criando, assim, um Estado com

atributos até então reservados a seres humanos; o Estado régio volta a unir os dois elementos,

18 BOBBITT, op. cit., p. 88.

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monarca e Estado, e transforma o rei no próprio Estado [...]”19. Em torno do rei constroem-se

relações sociais, e a partir dele constrói-se o território da soberania. Assim, a soberania do

Estado régio é uma soberania compreendida socialmente, em outras palavras, expressa-se a

soberania do Estado por meio dos súditos, que seriam uma extensão imaginária do corpo do

soberano. Infere-se, então, que para o Estado régio, o território não era um território nacional,

mas apenas um território dominado20. Já consolidado, o Estado régio, caracterizava-se por

cinco estruturas institucionais: um exército permanente; uma burocracia centralizada; um

sistema de tributação regular, vigente em todo o Estado; representações diplomáticas

permanentes no estrangeiro; políticas de Estado sistemáticas para a promoção do comércio e

da prosperidade econômica. O Estado régio, por fim, graças à Guerra dos Trinta Anos,

consolidar-se-á, mas, ao mesmo tempo, preparará o caminho ao seu sucessor, o Estado

territorial.

A Guerra dos Trinta Anos, que se estendeu de 1618 a 1648, constituiu-se de

uma série de conflitos religiosos e políticos ocorridos especialmente nos domínios germânicos,

nos quais rivalidades entre católicos e protestantes e assuntos constitucionais germânicos

foram gradualmente transformados em uma luta européia. Apesar de os conflitos religiosos

serem a causa direta do conflito, ele envolveu grande esforço político da Suécia e da França

para procurar diminuir a força da dinastia dos Habsburgo, que governava a Áustria. A guerra

causou sérios problemas econômicos e demográficos à Europa. Encerrou-se a guerra com uma

série de tratados conhecidos como a Paz de Vestfália.

O Estado territorial possuía características próprias, diferentes das

características do Estado régio. Enquanto o Estado régio estruturava-se em torno de um

19 BOBBITT, ibid., p. 94. 20 ESCOLAR, Marcelo. Crítica do Discurso Geográfico. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 142.

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indivíduo, que era a encarnação do próprio Estado, o Estado territorial definia-se por sua

indivisão e, por isso, nutria um profundo zelo por suas fronteiras. Elas eram tudo para ele: a

legitimidade, o perímetro defensivo, a base tributária. Esses Estados necessitavam objetivar

seu território, quer dando sentido jurídico às possessões, quer delineando seus contornos e

seus detalhes21, pois somente assim poderiam realmente empreender tanto a ação política

quanto a ação econômica em seus domínios. Visavam ainda à racionalidade das fronteiras, à

liberdade de navegação e à abertura dos mercados. Começava a sobrevir o consenso

internacional de que nenhum Estado poderia ingerir-se em assuntos de outros Estados. Os

Estados territoriais passaram a depender, então, de uma sociedade internacional que, embora

não fosse uma organização formal, definiria a legitimidade dos constantes ajustes territoriais

imprescindíveis ao equilíbrio de poder europeu. Assim, tem-se no Tratado de Utrecht, que pôs

fim à Guerra de Sucessão Espanhola, o primeiro tratado europeu a assumir explicitamente o

equilíbrio de poder como objetivo.

A Guerra de Sucessão Espanhola foi disputada entre 1702 e 1713 pelo direito

de sucessão da coroa espanhola depois da morte do último monarca da casa de Habsburgo,

Carlos II. Filipe de Bourbon, neto do rei Luís XIV, da França, fora nomeado herdeiro do trono

espanhol, mas uma aliança anglo-germânica insurgiu-se para evitar a união dinástica da

França e da Espanha. O Tratado de Utrecht permitia que ajustes marginais fossem executados,

mas não consentia a anexação de um Estado por outro, nem a divisão de um Estado por outros

e a conseqüente partilha entre eles; nesse momento, tornara-se importante se os habitantes de

um dado território eram franceses, alemães ou austríacos. O Estado régio formara-se, em

grande medida, para sustentar e aprimorar o esforço de guerra constante que havia na Europa.

21 ESCOLAR, ibid., p. 133.

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Era mais vigoroso e especializado que o Estado principesco. Ainda assim, não era capaz de

sustentar por longo período o esforço de guerra. Embora dispusesse de exército permanente,

com grande contingente e pago com o produto da tributação regular, grande parte dos soldados

era composta por mercenários, que somente se dispunham a batalhar e a arriscar a vida pelo

dinheiro. Não havia, para esses mercenários, sentimento nenhum de identidade que os unisse

ao Estado pelo qual lutavam. Sua única paixão era o dinheiro. Ao contrário, o Estado

territorial passou a ser capaz de manter o esforço de guerra por longo período, pois dispunha

de “forças coesas em termos sociais, originárias de um mesmo território, recrutadas para lutar

‘por seu país’”22. O Estado territorial, portanto, fazia coincidir “o Estado com o país, a terra”23,

e substituiu o monarca como personificação da soberania pelo monarca como ministro da

soberania.

Ao Estado territorial sucedeu-lhe a nação-Estado, que é “um Estado que

mobiliza uma nação – um grupo nacional ou étnico-cultural – para agir em benefício do

Estado”24. Assim, a nação-Estado não serve aos interesses da nação, mas apropria-se de seus

talentos humanos e de suas receitas tributárias em seu próprio benefício, mobiliza e explora

todo e qualquer recurso nacional de que se vê encarregada. Não é responsável perante a nação,

mas é, mais exatamente, por ela responsável. É essencial, então, estabelecer distinção entre

Estado e nação. O Estado é a

máquina político-administrativa, instituição que detém o monopólio da violência sobre

um território determinado. [...] Possui uma origem remota. A novidade está na nação

como sendo um espaço integrado a um poder central, mas, [...] articulando uma

22 BOBBITT, op. cit., p. 121. 23 BOBBITT, ibid., p. 126. 24 BOBBITT, ibid., p. 136.

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‘unidade mental e cultural’ de seus habitantes. Neste caso não é a violência ou a

coerção administrativa do poder que importa, mas a existência de um ideal comum

partilhado por todos25.

O Estado que elevou ao mais alto grau a nação-Estado foi a França

napoleônica: assenhoreou-se de todos os recursos disponíveis, tanto humanos como

financeiros dentro das fronteiras francesas e das fronteiras dos territórios conquistados e os

mobilizou em favor do Estado. Concomitantemente à mobilização nacional, deu-se a

supressão dos nacionalismos, à exceção do nacionalismo francês, presumivelmente.

A transição da nação-Estado para o Estado-nação não deve, contudo, ser vista

como uma transição em seu sentido lato; antes, deve ser compreendida como uma mudança

constitucional, uma alteração interna. Com efeito, o Estado-nação deriva sua legitimidade do

fato de o Estado ser posto a serviço da nação; a nação-Estado, por sua vez, exige que a nação

sirva ao Estado. A nação-Estado fornece uma nova base constitucional para a colonização,

idéia que se choca violentamente contra os preceitos do Estado-nação, segundo os quais todas

as nações têm direito ao seu próprio Estado. Com a realização do Congresso de Viena, de 1º

de outubro de 1814 a nove de junho de 1815, as potências européias intentaram conter os

vários nacionalismos que iam surgindo e tomando força na Europa, bem como buscaram frear

o liberalismo. Entretanto, foi o duro golpe que a França, com a anuência da Inglaterra,

desfechou contra o sistema vienense, em 1870, quando determinou que a Áustria não se

ingerisse mais nos interesses da Itália, ainda em processo de unificação, que abriu caminho

para o estabelecimento do Estado-nação. Ao enfraquecer a Áustria, a França permitiu que a

Prússia empreendesse seu ideal de unificação germânica. Dessa forma,

25 ORTIZ, op. cit., p. 43.

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o tigre do Estado-nação, todavia, exigia uma alimentação generosa. Províncias e povo

não podiam mais ser tratados com casualidade, como as fichas do jogo da política

dinástica; eram os filhos da nação. Assim, à medida que a guerra crescia em eficiência,

liberando o poder de todo o povo, também a paz tornava-se mais difícil26.

Pôde-se, então, engendrar “um Estado-nação moderno, definido pela etnicidade

de sua gente”27. Um Estado-nação que estenderia sua influência e sua responsabilidade por

todos os âmbitos da vida da sociedade, prometendo melhorar as condições de vida em todos os

aspectos e em que a “posse e a defesa do território nacional tornam-se imperativas”28. Dessa

forma o Estado-nação fortalecer-se-ia e atravessaria incólume quase todo o século XX.

Entretanto, o fim da Guerra Fria não teria feito somente desvanecer ideologias poderosas que

produziam o mundo bipolar, mas teria engendrado também uma nova ordem constitucional.

Ter-se-ia começado a esboçar as formas do Estado-mercado. Enquanto o Estado-nação,

com sua educação pública gratuita de massa, voto universal e políticas de previdência

social, propunha-se a garantir o bem-estar da nação, o Estado-mercado promete, por

sua vez, maximizar as oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas

atividades estatais, bem como a restringir a influência do voto e do governo

representativo, tornando-os mais sensíveis ao mercado29.

Divisar-se-iam, assim, os Estados Unidos como o Estado que mais tem inovado

e avançado na construção do Estado-mercado. De fato, o governo dos Estados Unidos

conseguiu não somente que os estado-unidenses aceitassem a introdução de algumas medidas

26 DOYLE, apud BOBBITT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna: o impacto dos grandes conflitos na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 171. 27 BOBBITT, op. cit., p. 190. 28 MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 15. 29 BOBBITT, op. cit., p. 199.

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neoliberais na década de 1980, como também logrou impor essa tendência a vários outros

Estados sob sua influência. É notório, entretanto, que, se para alguns Estados de capitalismo

avançado o neoliberalismo e a globalização produziram alguns resultados satisfatórios, para a

imensa maioria dos Estados de capitalismo tardio as “reformas neoliberais fracassaram de

forma retumbante”30. Não obstante a hipótese do surgimento do Estado-mercado, considerar-

se-á, nesta investigação, o Estado-nação como, por enquanto, o último estágio do

desenvolvimento do Estado.

É significativo, ainda, constatar que o Estado, assim como todas as associações

políticas precedentes, é uma relação de dominação de homens sobre homens. Política

significaria então “a tentativa de participar no poder ou de influenciar a distribuição do poder,

seja entre vários Estados, seja dentro de um Estado entre os grupos de pessoas que este

abrange”31. Dessa forma, não se poderia definir um Estado por aquilo que ele executa, uma

vez que suas atribuições, em algum momento qualquer, já foram assumidas por alguma

associação política. Por outro lado, não há nenhuma atribuição que tenha sido própria ao

Estado em todos os momentos e exclusivamente. Somente se pode definir o Estado, tal qual é

contemporaneamente, por uma característica que lhe é peculiar: a coação física. De fato, “se

existissem apenas complexos sociais que desconhecessem o meio da coação, teria sido

dispensado o conceito de ‘Estado’; ter-se-ia produzido aquilo a que caberia o nome de

‘anarquia’”32. Assim, o Estado caracteriza-se por ser uma comunidade humana que dispõe de

um território e que reclama para si o monopólio da coação física legítima. Apenas ao Estado

cabe exercer a coação física, uma vez que a todas as demais associações ou indivíduos

30 SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 33. 31 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 526. 32 WEBER, ibid. p. 525.

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somente se lhes atribui o direito de exercer a coação física na medida em que o Estado o

permita.

O anúncio da morte do Estado surgiu na década de 1990, sobrevindo-lhe, então,

“a pressão das grandes potências e do capital financeiro a favor da abertura das economias e

desregulação (sic) dos mercados periféricos”33. Além disso, quando se observa o século XX,

constata-se que ocorreu a universalização, e não a morte do Estado-nação. O mundo nunca

teve tantos Estados e, conseqüentemente, problemas por definição e redefinição de fronteiras.

Durante o século XX houve três fases de aumento expressivo do número de Estados: o fim da

Primeira Grande Guerra, com o esfacelamento do Império Austro-Húngaro e do Império

Otomano; o fim da Segunda Grande Guerra, com a destruição dos impérios coloniais europeus

na África e na Ásia; e a desintegração da União Soviética depois de 1991. Outrossim, divulga-

se que alguns Estados estejam restringindo seu papel econômico. Esta afirmação pode até ser

verdadeira para os países em declínio econômico, mas é completamente falsa com relação aos

Estados de capitalismo avançado. Na maioria desses países a atuação do Estado na economia

aumentou, em plena época do suposto triunfo do neoliberalismo, o que é possível observar na

tabela 1:

33 FIORI, José Luís. Brasil no Espaço. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 65.

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Tabela 1 – Setor Público* nos Países do G7 (Médias dos períodos em % do PIB nominal)

Países Período Gasto Público** Carga Tributária***

EUA 1978-1982 1991-1995

31,2 33,6

30,1 30,5

Japão 1978-1982 1991-1995

31,8 33,2

27,4 32,7

Alemanha 1978-1982 1991-1995

48,0 48,9

45,0 45,7

França 1978-1982 1991-1995

46,9 53,0

45,4 48,6

Itália 1978-1982 1991-1995

44,0 54,1

33,7 45,0

Reino Unido 1978-1982 1991-1995

42,8 42,7

39,6 36,9

Canadá 1978-1982 1991-1995

39,9 48,5

33,5 42,2

G7 1978-1982 1991-1995

36,3 39,4

33,5 35,9

Fonte: BATISTA JR., Paulo Nogueira. Mitos da “Globalização”. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da USP, 1997, p. 27-A * Inclui governos centrais, estaduais e locais. ** Despesas correntes mais despesas líquidas de capital. *** Receitas correntes. Exclui receitas de capital.

Pode-se comparar os dados médios do período que marca o início do domínio

neoliberal, 1978-1982, com os dados mais recentes, do período 1991-1995. Assim, vê-se que o

gasto público, como proporção do PIB, nos Estados Unidos e no Japão aumentou. Na

Alemanha permaneceu mais ou menos estável e na França, na Itália e no Canadá o aumento

foi considerável. Somente no Reino Unido o gasto público diminuiu, mesmo assim, somente

0,1%. Na média do G7 o gasto público em relação ao PIB aumentou de 36,3% para 39,4%. Ou

seja, esses países, em conjunto e, contradizendo o que amplamente se faz divulgar, passaram a

gastar mais. Difunde-se, também, que os países estão sendo obrigados a recuar em matéria de

tributação, que têm de aceitar uma diminuição dos encargos tributários. Não é, todavia, o que

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explicita a tabela. A carga tributária macroeconômica, definida como a relação entre as

receitas correntes do setor público e o PIB não diminuiu no período recente. Aumentou

consideravelmente em todos os países do G7, menos no Reino Unido. No conjunto do G7,

teve aumento de 2,4%.

Realmente, é significativo constatar que nem todos os Estados são afetados da

mesma maneira pela globalização. A vaga modernizante, face bela e traiçoeira da

globalização, tende a atingir com mais força os Estados de capitalismo tardio que alcançaram

certo grau de desenvolvimento econômico e, concomitantemente, puderam ser cooptados,

ainda que perifericamente, pelo poder monetário internacional. Os Estados que assumiram

cegamente as políticas neoliberais prescritas pelos Estados de capitalismo avançado e pelos

organismos intergovernamentais como o FMI e a OMC, viram, sim, o poder do Estado

diminuir, obviamente porque o próprio Estado abriu mão de algumas de suas prerrogativas.

Entretanto, basta examinar minuciosamente alguns Estados de capitalismo avançado, como já

se fez na área econômica, para verificar, novamente, que o Estado não está esmorecendo. Ao

contrário, dá demonstrações de poder. Os Estados Unidos, em 2003, decidiram

unilateralmente atacar o Iraque, mesmo tendo sido censurados pelo Conselho de Segurança da

ONU. O Estado japonês, desde o início da industrialização do Japão, sempre interferiu na

economia, e o Ministério da Indústria e do Comércio Internacional constantemente era visto

como órgão de planejamento central. A França, outrossim, não depositou muita confiança nos

preceitos neoliberais, e o Estado francês não desmantelou seu sistema de bem-estar social e

continuou freqüentemente a intervir na economia.

Todavia, há que se fazer outra observação com relação à maneira pela qual

alguns Estados são afetados pela globalização, pois ela é um processo espacial e temporal

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desigual, que se dá por meio de redes e de fluxos. Muitos desses Estados, localizados

sobretudo na África e na Ásia, são tão fracos economicamente e dispõem de tão parca infra-

estrutura que, ao fim e ao cabo, praticamente não sentem os efeitos da globalização. Isto

significa que, devido à debilidade econômica, à exaustão dos recursos naturais

comercialmente exploráveis, à inexistência de infra-estrutura adequada e ao reduzido mercado

interno, esses Estados correm o risco de serem sumariamente esquecidos pelo poder monetário

internacional. Em outras palavras, não se verá neles nenhuma utilidade, não haverá por que

investir neles ou fazer com que sejam enredados pela globalização porque “sua [da

globalização] operação e estrutura reais dizem respeito só a segmentos de estruturas

econômicas, países e regiões, em proporções que variam conforme a posição particular de um

pais ou região na divisão internacional do trabalho”34.

A hegemonia que se exerce por meio das redes e dos fluxos se instala nos

locais em que há maior densidade de objetos técnicos. Não se deve estranhar, então, que os

Estados de capitalismo avançado, que desenvolvem a ciência, que criam e mantêm os avanços

técnicos, comandem a globalização e que os Estados de capitalismo tardio localizados na

África e na Ásia praticamente não participem das redes e não sejam atingidos pelos fluxos

hegemônicos. São as cidades globais, plenas de objetos técnicos e localizadas nos Estados de

capitalismo avançado, que comandam as redes e os fluxos. O poder da globalização cumpre-se

sobremaneira, mas não de forma exclusiva, nas megalópoles da América do Norte, na do

Nordeste e na da Califórnia, na megalópole do Japão, comandada por Tóquio e na megalópole

da Europa Ocidental, que se estende da planície do Pó até Londres, passando pela ilha

parisiense. Constata-se que “o poderio mundial se exerce numa concentração geográfica dos

34 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 120.

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33

poderes”35. Assim, verifica-se que não há espaço global, mas espaços da globalização, que são

ligados por redes, cujos nós principais são as cidades globais36.

Faz-se salutar, aqui, realizar uma distinção. Cidade global não é o mesmo que

megacidade. A ONU considera megacidade a aglomeração de mais de dez milhões de

habitantes. Assim, Zurique, na Suíça, com aproximadamente um milhão de habitantes,

desempenha papel importante na rede de fluxos da globalização; é, portanto, uma cidade

global, mas não é uma megacidade. Ao contrário, Daca, capital de Bangladexe37, com cerca de

doze milhões de habitantes, dispõe de escassos objetos técnicos, por isso desempenha papel

pouco expressivo em termos de serviços globais, sejam financeiros, comerciais ou turísticos, e

não é considerada uma cidade global. Verifica-se, portanto, que cidade global é um conceito

qualitativo e megacidade, um conceito quantitativo. Mesmo entre as cidades globais há uma

hierarquia. Há as cidades globais de nível beta: São Paulo, Zurique, Madri, Cidade do México

e Bruxelas, para citar algumas delas; e as cidades globais de nível alfa, que são em menor

número: Nova Iorque, Tóquio, Paris, Londres, Milão, Chicago, Los Angeles, Frankfurt,

Hongue Congue e Cingapura, que são os nós principais da rede de cidades globais.

35 DOLLFUS apud SENE, Eustáquio de. Globalização e Espaço Geográfico. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 134. 36 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2004, p. 261-279 passim. 37 Optou-se, sempre que houvesse amparo em documentos impressos ou na rede mundial de computadores, pelo aportuguesamento dos nomes estrangeiros.

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1.3. A CULTURA, A CIVILIZAÇÃO, A IDENTIDADE E AS CIVILIZAÇÕES

Cultura, assim como sua congênere globalização, padece do mesmo mal: o de

estar na moda. Por si só cultura é termo complexo. Os dicionários, para tentar defini-la,

apresentam, em média, quinze acepções. Pesquisadores já chegaram a transcrever, classificar e

comentar 164 definições diferentes para cultura: descritivas, normativas, psicológicas,

estruturais e histórias38. Esta admirável abundância demonstra quão importante e estratégico é

o papel do conceito. Não obstante sua já nebulosa origem, passou a ser utilizada

indistintamente, como se fosse um curinga que a tudo pode representar. Cultura procede da

língua latina, e tinha por significado lavoura ou cultivo agrícola. Vinculado ao substantivo

cultura havia o verbo colo, colere39, que significava cultivar, habitar, adorar, proteger. Pode-

se, então, vislumbrar o longo caminho que o vocábulo percorreu para abandonar os antigos

significados e atingir as outras noções que contemporaneamente se lhe atribuem.

De um processo completamente material, o cultivo, passou a designar também

o intangível, as questões do espírito. Passou-se a compreendê-la como todo o conhecimento

que uma sociedade tem de si mesma e de outras sociedades, como o conhecimento do

ambiente em que tal sociedade se desenvolve e como o conhecimento de sua própria

existência. Esse processo é, da mesma maneira, a imagem da transição da humanidade da

existência rural para a existência urbana40. Tampouco é lícito ignorar que cultura, em sua

acepção etérea, é sempre social e histórica, e nunca natural. Entretanto, se não é natural como

38 VELHO, Gilberto; CASTRO, Eduardo Viveiros de. O Conceito de Cultura e o Estudo de Sociedades Complexas: uma perspectiva antropológica. Artefato, Rio de Janeiro, n. 1, p. 1-18, jun. 1978. 39 Os verbos latinos devem, primeiro, ser enunciados em sua forma flexionada, sempre na primeira pessoa do singular do tempo presente do modo indicativo, e somente então deve-se expor o infinitivo do verbo. 40 EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: UNESP, 2005, p. 10.

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produto, o é na essência, pois é construída pela incessante interação da humanidade com a

natureza: o trabalho. Assim, na ação recíproca entre natureza e cultura, evidencia-se o caráter

dialético entre o natural e o artificial, porquanto é necessário enxergar “o que fazemos ao

mundo e o que o mundo nos faz. [...] Trata-se menos de uma questão de desconstruir a

oposição entre cultura e natureza do que de reconhecer que o termo ‘cultura’ já é uma tal

desconstrução”41.

A humanidade não é mero produto do ambiente. Nem o ambiente é massa

informe que pode ser moldada ao bel-prazer da humanidade. Se a cultura transforma a

natureza é somente a duras penas que o logra, pois vários obstáculos lhe são impostos. A

cultura, entretanto, não é uma potência que somente a humanidade, de forma coletiva e

imediata, pode exercer. Ela também pode ser exercida pelo Estado. Assim é que o Estado

encarna a cultura, tornando-a uma

espécie de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política ao liberar o eu

ideal ou coletivo escondido dentro de cada um de nós, um eu que encontra sua

representação suprema no âmbito universal do Estado. [...] O Estado encarna a cultura,

a qual, por sua vez, corporifica nossa humanidade comum42.

Esta é, certamente, ação empreendida pela nação-Estado, no seu intento de

fazer tudo e todos convergirem a si mesma. Igualmente, o Estado-nação vale-se da potência da

cultura ao institucionalizá-la. Há instituições públicas encarregadas de defini-la, de

compreendê-la e de controlá-la. No século XVIII cultura começou a ser utilizada como

sinônimo de civilização, no sentido de um processo geral de progresso intelectual, espiritual e

41 EAGLETON, ibid., p. 11. 42 EAGLETON, ibid., p. 16.

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material. Essa idéia de civilização equipara costumes e moral, uma vez que, para ser

civilizado, não se permitia comer com as mãos nem decapitar os prisioneiros de guerra.

Assim, cultura e civilização, tomadas indistintamente uma pela outra, estavam plenas do

espírito do Iluminismo e de seu culto ao desenvolvimento secular e progressivo. Todavia,

civilização era em grande medida uma noção francesa que incluía a vida política, econômica e

técnica e também os modos das classes superiores e as conquistas tecnológicas do Ocidente; e

cultura era uma noção germânica que se relacionava mais à vida religiosa, artística e

intelectual. No início do século XIX cultura começa a disjungir-se de civilização e passa a ser

seu antônimo. Como

“cultura”, a palavra “civilização” é em parte descritiva e em parte normativa: ela pode

tanto designar neutramente uma forma de vida (“civilização inca”) como recomendar

implicitamente uma forma de vida por sua humanidade, esclarecimento e refinamento.

O adjetivo “civilizado” faz isso hoje em dia da maneira mais óbvia. Se civilização

significa as artes, a vida urbana, política cívica, tecnologias complexas [...], e se isso é

considerado um avanço em relação ao que havia antes, então “civilização” é

inseparavelmente descritiva e normativa. Significa a vida como a conhecemos, mas

também sugere que ela é superior ao barbarismo. E se civilização não é apenas um

estágio de desenvolvimento em si, mas um estágio que está constantemente evoluindo

dentro de si mesmo, então a palavra mais uma vez unifica fato e valor. Qualquer

estado de coisas existente implica um juízo de valor, já que deve ser logicamente uma

melhora em relação ao que havia antes. Aquilo que é não apenas é correto, mas muito

melhor do que aquilo que era43.

Desenvolvendo-se sob o signo da dualidade, cultura e civilização atravessarão

todo o século XIX imiscuindo-se na disputa entre a tradição e a modernidade. No início do

43 EAGLETON, ibid., p. 20.

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século XX, ver-se-á a civilização como “abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista,

utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso material”44, e tomar-se-á a cultura por

“holística, orgânica, sensível, autotélica, recordável”45. É surpreendente verificar, então, que

cultura se tenha tornado quase o oposto de civilização. Ironicamente, cultura converteu-se em

modo de descrever a forma de vida de povos quase desconhecidos pelos antropólogos. Assim,

poder-se-ia asseverar que os selvagens eram cultos, e os civilizados, não. A cultura passou,

doravante, a ser um “livre e autodeleitante jogo do espírito no qual todas as capacidades

humanas podem ser desinteressadamente estimuladas e desenvolvidas”46. A cultura passaria,

assim, a negar o partidarismo, pois estar comprometido com alguma posição é ser inculto.

Pode-se, então, tomar cultura por diversos aspectos. Ela pode ser compreendida

como modo de vida e como cosmovisão, como arte, como civilidade, como erudição, como

ideal de perfeição. Enfim, pode-se enxergar nela várias faces e não se pode restringi-la a um

único conceito, pois a evolução do vocábulo dá provas de que ela foi compreendida de

diversas maneiras outrora e ainda atualmente o é. Tem-se, entretanto, que evidenciar uma

outra proposição sobre a cultura: segundo essa idéia, não pode haver cultura separada de

religião. Com efeito, “nenhuma cultura apareceu ou se desenvolveu a não ser em conjunto

com uma religião; segundo o ponto de vista do observador, a cultura parecerá ser o produto da

religião; ou a religião, o produto da cultura”47.

Faz-se digna de atenção tal asseveração. Realmente, e assumindo-se como

verdadeira a primeira declaração contida no excerto, é admirável como cultura e religião se

entrelaçam e influenciam-se mutuamente. Dessa forma, a “religião não é efetiva porque diz

44 EAGLETON, ibid., p. 23. 45 EAGLETON, ibid. 46 EAGLETON, ibid., p. 30. 47 ELIOT, T. S. Notas para uma Definição de Cultura. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 26.

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respeito ao outro mundo, mas porque encarna esse caráter de além-mundo numa forma de vida

prática. Ela pode, assim, fornecer uma ligação entre [...] valores absolutos e vida prática”48.

Basta lançar um breve olhar para a Europa para constatar tal afirmação. A Europa, sob muitos

aspectos, é uma terra singular. Essa singularidade se faz evidente no seu status de continente,

uma vez que, em termos físicos, não passa de uma enorme península da Ásia. Entretanto, Ásia

e Europa tomaram rumos diferentes; cada qual constituiu culturas distintas. Assim, “a Europa

é uma herança ou, mais precisamente, um conjunto de heranças superpostas, formadas pela

atividade das sociedades e pelas idéias inventadas pelos homens”49. Entre as heranças culturais

sobre as quais se erige a Europa, duas, neste momento, chamam mais a atenção: a primeira

delas, coluna sobre a qual desenvolveu-se toda a cultura ocidental, é a cultura greco-romana.

A segunda herança que constitui o âmago da Europa é o cristianismo. A Igreja de Cristo,

estabelecida desde muito cedo na capital do império, sobreviveria não só à queda de Roma,

mas também a todas as convulsões sociais, políticas e econômicas que se sucederiam no

tempo para chegar ao século XXI como a mais longeva de todas as instituições. Foi a

conversão dos bárbaros que lançou o cristianismo no futuro europeu e reforçou o sentido de

unidade dos povos do continente.

Assim, é inegável que a cultura européia seja uma cultura cristã. Incontestável,

igualmente, é a íntima relação entre elas, de tal modo forte que, quando a União Européia

preparava o projeto de seu tratado constitucional, o papa João Paulo II defendeu a herança

religiosa do continente. Em outras palavras, ele exigiu que se reconhecesse o cristianismo

como componente essencial da Europa. Com efeito, a candidatura da Turquia à União

Européia lança um enorme desafio à Europa e à sua cultura cristã, a saber: fazer com que um

48 EAGLETON, op. cit., p. 103. 49 MAGNOLI, Demétrio. União Européia. História e Geopolítica. São Paulo: Moderna, 1994, p. 5.

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Estado-nação muçulmano integre-se plenamente a uma instituição que, desde a assinatura do

Tratado de Roma vem reafirmando sua identidade cristã. A religião, além de um poderoso

meio de identidade é também um meio eficaz de resistência. Foi na cultura islâmica que os

indonésios buscaram, antes do século XX, força para resistir à dominação holandesa50.

Outrossim, afirmou-se que a cultura é “incapaz, de certo modo, de dizer uma

coisa sem dizer qualquer coisa, a cultura não diz o que quer que seja, eloqüente a ponto

extremo de ser muda”51. Dessa forma, para afastar esse impasse conceitual assumir-se-á

apenas um dentre os conceitos de cultura e com ele trabalhar-se-á daqui por diante. Admite-se,

então, que cultura seja a soma de atitudes, de costumes e de crenças que distingue um grupo

de pessoas, que pode ser uma civilização, uma nação ou uma pequena comunidade, dos

demais grupos.

A cultura, compreendida como soma de atitudes, de costumes e de crenças

constitui um processo social, da existência de uma sociedade que é “um conjunto de

subgrupos cujos modos particulares se distinguem no interior de um modelo comum52”. Ela

“não diz respeito apenas a um conjunto de práticas e concepções, como por exemplo se

poderia dizer da arte. Não é apenas uma parte da vida social como por exemplo se poderia

falar da religião”53. Assim, cultura é uma construção histórica, independente de leis físicas ou

de leis biológicas. É resultado de processos seculares de trabalho e de produção, de lutas

sociais, conseqüência do modo como o Estado-nação construiu-se. A cultura é, então, mais do

que a língua, do que os costumes e do que as tradições de um grupo. É uma construção

histórica, dinâmica e coletiva. Tão histórica que é por meio do processo histórico de um

50 RAFFESTIN, Claude. Por Uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993, p. 126. 51 EAGLETON, op. cit., p. 33. 52 ORTIZ, op. cit., p. 32. 53 SANTOS, José Luiz dos. O Que É Cultura. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 44.

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Estado-nação que se pode compreender as particularidades de sua cultura, e tão coletiva que

somente ganha força quando é coletivamente reconhecida e assumida. Com efeito, a cultura

inerente a um dado grupo que compõe, com outros grupos, um Estado-nação, nunca será

assumida pelo Estado-nação integralmente porque os outros grupos se recusarão a fazê-lo.

Para compreender melhor a noção de cultura nacional, tem-se que introduzir a idéia da

dominância. Assim, no caso de coexistência, dentro de um mesmo território, politicamente

delimitado, de culturas distintas, mas com algum grau de similitude, é primordial admitir que

inexiste homogeneidade e examinar as relações entre essas culturas. Faz-se necessário ainda

especular se há predomínio de uma sobre as outras e como e quando se dá essa

preponderância. Por conseguinte, mesmo dentro de um único Estado-nação, há divergências e

contradições, mas a cultura nacional, que é uma comunidade imaginada, contribui para unir as

diferenças em uma única identidade.

A cultura, entretanto, é incompleta no sentido de proporcionar uma identidade

nacional, uma vez que necessita do Estado para realizar seu potencial. Ela necessita da força

política unificadora do Estado para realizar-se plenamente. É por isso que, para o

nacionalismo romântico, apoiado no princípio tacanho da autodeterminação dos povos, toda

população étnica, arrogando a si o status de nação, teria direito ao seu próprio Estado.

Segundo esse princípio, então, a Espanha deveria desmembrar-se em Galícia, Catalunha e

Andaluzia; os bascos tomariam território tanto da Espanha quanto da França, que teria de

ceder ainda a Córsega, a Bretanha e talvez a Provença; a Bélgica dividir-se-ia entre Flandres e

Valônia; a Itália e a Alemanha espatifar-se-iam. É verdade, no entanto, que grande parte dos

conflitos e da destruição modernos advêm do fato de dois ou mais grupos culturais muito

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distintos estarem reunidos sob um único Estado, o que os faz disputarem tenazmente a

soberania sobre o território.

Mesmo sendo a cultura um devir, um processo histórico, ela não se realiza

separada de um território, que é

um produto socialmente produzido, um resultado histórico da relação de um grupo

humano com o espaço que o abriga. Tal característica diferencia esse conceito em

comparação com outros comumente utilizados pela geografia (sic) (como região ou

paisagem), que podem manifestar-se adjetivados por fenômenos naturais. O território

é, portanto, uma expressão da relação sociedade/espaço, sendo impossível de ser

pensado sem o recurso aos processos sociais54.

Infere-se, então, que espaço e território não são termos equivalentes. Mesmo

assim, os geógrafos, durante muito tempo, utilizaram-nos sem critério nenhum, criando

grandes confusões em suas análises e privando-se de distinções úteis e necessárias55.

Efetivamente, não há cultura sem território. As culturas se materializam em

suas territorialidades56. Neste momento faz-se imprescindível realizar análise acerca de Israel.

Os judeus consideram a região em que atualmente situa-se Israel como sua terra santa há

aproximadamente 3000 anos. Houve ali uma série de reinos judaicos por mais de 1000 anos,

até que os judeus sucumbissem aos persas e depois, sucessivamente, passassem ao domínio

dos gregos, dos romanos, dos bizantinos e, finalmente, dos turcos. Foi em 638 da era cristã

que os muçulmanos dominaram definitivamente a área, e em 1517 incorporaram-na ao

Império Otomano. Com o fim da Primeira Grande Guerra e a desintegração do Império

54 MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da Formação Territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no “longo” século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 18. 55 RAFFESTIN, op. cit., p. 143. 56 ORTIZ, op. cit., p. 72.

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Otomano, a província da Palestina, que compreendia então o território que pertencera a Israel,

passou a ser administrada pelo Reino Unido.

Em 1896 inicia-se o movimento sionista. Esse movimento propugnava a

criação de um Estado judaico como única forma de fazer cessar o anti-semitismo existente.

Assim, em 1917, Londres promulga a Declaração Balfour, em que o Reino Unido se

comprometia a ceder uma parte do território da Palestina para a instituição de um Estado

judaico. França, Itália e Estados Unidos, aliados do Reino Unido na ocasião, ratificaram a

declaração. Ao longo de toda a Segunda Grande Guerra, o número de imigrantes judeus

aumentou consideravelmente na Palestina, embora as determinações britânicas impusessem

limites a essa imigração. Ao término da Segunda Grande Guerra havia inúmeros refugiados e

sobreviventes judeus que desejavam estabelecer-se na Palestina. Com os crescentes conflitos

entre árabes, judeus e britânicos, a ONU decidiu votar projeto de partilha da Palestina. O

projeto foi aprovado e determinou-se a divisão do território entre árabes e judeus. Então, em

14 de maio de 1948, com intensa oposição árabe, David Ben Gurion assinou a Declaração de

Independência do Estado de Israel.

Poder-se-ia indagar, então, como foi possível para os judeus não somente

manter sua cultura, mas fazê-la florescer mesmo alijados do território pelo qual nutriam

profundo zelo. A resposta deve ser encontrada na religião e na cultura judaicas, que se

entrelaçam e se confundem constituindo, muitas vezes, um todo indivisível que fundamenta a

identidade dos judeus. Dessa maneira, ainda que não pudessem controlar o território que

consideravam seu, os judeus já haviam criado sua cultura com base nele quando ainda o

controlavam, e obtiveram êxito ao não permitir que ela esmorecesse. Ademais, eles sempre

sustentaram uma forte relação com a cidade de Jerusalém, para eles uma cidade santa, plena

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de importância e de significado religioso e cultural. Também os muçulmanos mantêm uma

relação desse tipo, que se pode denominar extraterritorial, com a cidade de Meca, situada na

Arábia Saudita. Mesmo espalhados ao redor do globo e detendo grande extensão territorial, os

muçulmanos necessitam de um território comum, simbolizado por Meca. Há, entretanto, uma

diferença entre a extraterritorialidade judaica e a extraterritorialidade muçulmana. Os judeus,

por um longo período, perderam o controle sobre Jerusalém, ao passo que os muçulmanos

sempre controlaram Meca. Ainda que esteja sob domínio muçulmano, Meca desempenha o

papel proeminente que a extraterritorialidade lhe proporciona ao fazer convergir a si

muçulmanos do mundo inteiro e ao simbolizar a união deles. Jerusalém está para os judeus

assim como Meca está para os muçulmanos. As duas cidades, embora com a diferença já

explicitada, exercem a mesma função extraterritorial. Vê-se, desse modo, que a cultura e a

identidade são conceitos e idéias poderosos. A tal ponto responsáveis pela manutenção da

unidade judaica e pela extraterritorialidade tanto judaica quanto muçulmana.

Dessa forma é possível relacionar cultura e nação. Se os Estados-nação são

invenções políticas da história moderna e se cultura é um processo social, pode-se falar em

cultura nacional, que é produto e dimensão de um processo histórico singular. A cultura

nacional, então, é composta

não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma

cultura nacional é um “discurso” – um modo de construir sentidos que influencia e

organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]. As

culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais

podemos nos “identificar”, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas

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estórias (sic) que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente

com seu passado e imagens que dela são construídas57.

A identidade, entretanto, é ainda conceito demasiadamente complexo, pouco

desenvolvido e pouco compreendido pela ciência social contemporânea58. Sabe-se que ela é

verdadeiramente forjada, ou seja, é construída ao longo do tempo, por meio de processos

inconscientes. Isto significa que ela não é inata, que ela inexiste na consciência no momento

do nascimento do indivíduo. Está aí seu vínculo com a cultura como processo histórico. Dessa

forma, a identidade não é algo acabado, mas igualmente à cultura, é um processo. Os

significados coletivos compostos por cores, imagens, sons, frases axiomáticas e outros

símbolos importantes se vão construindo ao longo de várias gerações. São as disputas em

torno da criação do hino, da criação da bandeira, da seleção dos heróis da pátria, da defesa das

fronteiras que configuram o processo identitário. Assim é que “a identidade surge não tanto da

plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de ‘uma falta’ de

inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso ‘exterior’, pelas formas através das quais nós

imaginamos ser vistos por ‘outros’”59.

A construção da identidade, sempre dominada pela idéia da comparação, pela

busca incessante da diferença, depende de um paradigma de valores que vai revelar quem é

melhor e quem é pior, pois somente assim pode-se estabelecer uma relação qualitativa, que

muitas vezes possui um componente quantitativo, de superioridade ou de inferioridade. A

comparação entre as culturas nacionais, então, somente pode haver mundialmente, uma vez

que devem comparar-se a identidade de um Estado-nação com a identidade de outros,

57 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 5. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 51. 58 HALL, ibid., p. 8. 59 HALL, ibid., p. 38.

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localizados em outros territórios e que, comumente, possuem outros idiomas. Realmente, a

identidade que tem dominado a contemporaneidade é a identidade nacional, calcada na cultura

nacional. A identidade nacional tende a sobrepor-se a outras formas, mais particulares, de

identificação cultural. Politicamente tende a ser insignificante ser inglês ou mexicano ou

tailandês, mas culturalmente isso faz toda a diferença. Pertencer a uma nação é sumamente

importante, tanto que “as pessoas muitas vezes estão preparadas para matar ou morrer por

essa questão60”. Essa preferência por uma identidade cultural a outra é arracional61, ao passo

que escolher entre pertencer a uma ditadura ou a uma democracia não o é62.

Assim, se a identidade é constantemente assediada pela torpe idéia da

comparação, as novas tecnologias que engendram meios de comunicação cada vez mais

sofisticados e velozes são, seguramente, o meio que possibilita a comparação. Cada “povo

concentra-se agora em si mesmo, posicionando-se contra os outros em sua linguagem, suas

artes, sua literatura, sua filosofia, sua civilização, sua ‘cultura’”63. Os meios de comunicação,

entretanto, possuem outra especificidade, qual seja, a de engendrar identidades. Com efeito,

primeiramente a imprensa escrita e depois o rádio e a televisão infundem a idéia de todo entre

os habitantes de um Estado-nação. Com a comunicação possibilitada, facilitada e imediata,

torna-se possível aos indivíduos compreender a real dimensão do seu Estado, bem como

possuírem a sensação de que estão unidos uns aos outros, uma vez que os fatos que sucedem

em um dado lugar logo se fazem conhecer em todos os outros.

É mediante os meios de comunicação também que se poderia construir a idéia

do patrimônio público comum. Bens que pertenceriam a todos os grupos constituintes do

60 EAGLETON, op. cit., p. 89. 61 Termo forjado por EAGLETON para significar aquilo que não é nem a favor nem contra a racionalidade. 62 EAGLETON, ibid. 63 BENDA apud EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: UNESP, 2005, p. 60.

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Estado-nação, independentemente de classe social ou de raça64. Há, amplamente disseminada,

uma idéia que se julga indefectível e inerentemente boa, a idéia do relativismo cultural.

Realmente, uma vez que a construção da identidade se faz mediante a diferença e a

comparação, não é abstendo-se de realizar um juízo de valor acerca do outro que um indivíduo

pode compreendê-lo, pois então não haveria o que comparar.

Tem-se, então, não somente a comparação cultural, que coteja símbolos,

cosmovisão e modos diferentes de realizar o mesmo intento, mas também a comparação que

trama a percepção da opulência e da penúria. Faz-se importante evidenciar que as identidades

não são mutuamente excludentes. Um indivíduo pode possuir várias identidades, mas uma

hierarquia entre elas estabelecer-se-á, necessariamente. Assim, a identidade que tem

predominado contemporaneamente é a identidade nacional, a despeito de tantas outras que a

um indivíduo são inerentes. Com a emersão da nação-Estado e com sua ulterior transformação

no Estado-nação, a identidade nacional tornou-se a mais poderosa identidade a nortear os

indivíduos. Pode-se afirmar, então, que a identidade nacional é a fidelidade pessoal que se

torna lealdade coletiva e que são territorialmente determinadas.

Prova cabal da força com que surge a identidade nacional foi a infrutífera

tentativa da Internacional Socialista de fazer emergir o internacionalismo operário, uma

identidade baseada no simples condição de operário e desprovida de território, que se

colocaria acima da identidade nacional. Contudo, e embora o internacionalismo operário tenha

atraído milhares de pessoas, o apego à nação e à tradição foi maior. Efetivamente, instituir o

internacionalismo operário não seria tarefa simples, principalmente porque era eivado de um

cosmopolitismo ingênuo que dava mais importância aos problemas internacionais do que aos

64 WASSERMAN, Claudia. Identidade: Conceito, Teoria e História. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 7, n. 2, p. 7-19, jul./dez. 2001.

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problemas locais e específicos do operariado. O internacionalismo operário falhou

retumbantemente durante a Primeira Grande Guerra, quando os operários alemães foram

conclamados a não aderirem ao esforço de guerra alemão e, mesmo assim, lançaram-se à

guerra65. Foi a vitória da identidade nacional e de tudo o que ela assume para si e representa: a

nação, o povo, o território, as glórias passadas e as conquistas futuras, sobre uma identidade

incipiente e débil que acabou por ser relegada.

Contemporaneamente tem ganhado força uma outra identidade. Pode-se

enxergá-la como uma continuação da identidade nacional, como um seu prolongamento: é a

identidade civilizacional. Já se expôs que civilização, modernamente, é a crença no progresso

social, político, artístico, econômico e científico, no desenvolvimento mecanicista

desenfreado, nos hábitos requintados e polidos. É, então, o oposto de barbárie, equipara

costumes e moral e pode, como de fato o é, ser utilizada como pretexto para segregar: os que

pertencem à civilização e, portanto, são civilizados e os que não pertencem à civilização e, por

conseguinte, são bárbaros. Entretanto, civilizações, no plural, ganha um significado distinto

desse que se atribui a civilização. As civilizações seriam, então, grandes grupamentos

humanos com cultura comum. É preciso levar em consideração o conceito de cultura que se

assumiu previamente. Assim, a identidade civilizacional tem a potência de ultrapassar a

identidade nacional, fazendo convergirem a um único grupamento vários Estados-nação.

No devir de sua existência, a cultura não engendra a identidade somente dentro

das fronteiras políticas de um Estado-nação. Ela extravasa essas fronteiras e colige todos os

Estados-nação que compartilhem dessa cultura comum. As sociedades integrantes desse

grande território cultural, embora tenham suas particularidades, espelham-se e reconhecem-se

65 WASSERMAN, ibid.

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em uma entidade maior, superior, que é o último limite identitário aquém do considerar-se

humano: as civilizações. Engendradas durante toda a história humana, as civilizações

sucederam-se umas às outras, nascendo, desenvolvendo-se e morrendo. Legaram, no entanto,

suas marcas, suas singularidades às outras que as sucederam no tempo e no espaço. É

impossível pensar no desenvolvimento da humanidade sem considerar as civilizações66.

Na contemporaneidade consideram-se, em um relativo consenso entre

pesquisadores, oito civilizações: a ocidental, a ortodoxa, a islâmica, a africana, a sínica, a

japonesa, a hindu e a latino-americana. Entretanto, considerar-se-ão, neste trabalho, apenas

sete civilizações, pois a civilização latino-americana será incorporada à civilização ocidental,

da qual se originou e hauriu sua base e com a qual mantém admirável singularidade, que não

se dobra ao peso do argumento contrário, qual seja, o de que a América Latina não conheceu o

protestantismo como o conheceram as outras partes da civilização ocidental. Efetivamente,

engana-se quem concebe “a América Latina como uma cultura à parte do Ocidente e, dessa

forma, como um inimigo em potencial”67. Faz-se necessário esclarecer ainda que as

civilizações não são organizações políticas. Elas não possuem um comando único, um poder

central. São um conjunto de Estados-nação que compartilham de uma cultura comum e que

tendem a unir-se. Dessa forma, pode-se observar a territorialização das civilizações

contemporâneas:

66 HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 44. 67 SCHELP, Diogo. Choque de Culturas. Veja, São Paulo, v. 1942, n. 5, p. 64-70, fev. 2006.

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1.3.1. AS CIVILIZAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

De acordo com o que já se expôs, sete são as civilizações contemporâneas. É

preciso, no entanto, refletir sobre a possível civilização judaica. A maioria dos estudiosos nem

sequer menciona uma civilização judaica68. Em termos populacionais a civilização judaica não

seria, obviamente, importante. Historicamente os judeus estiveram associados tanto ao

cristianismo quanto ao islamismo, e preservaram sua identidade no seio da civilização

ocidental, da civilização ortodoxa e da civilização islâmica. Há judeus que se identificam

totalmente com o judaísmo e com Israel, e há aqueles que se identificam apenas nominalmente

com ele, identificando-se muito mais com a civilização no interior da qual vivem,

principalmente se for a civilização ocidental69. Proceder-se-á, então, ao estudo mais detalhado

das sete civilizações contemporâneas:

1.3.1.1. A Civilização Ocidental

A civilização ocidental possui características particulares que a distinguem de

todas as outras civilizações. Essas características são:

• O legado clássico: o Ocidente tem por base a cultura greco-romana, também

denominada clássica. A filosofia grega, originária da vida contemplativa dos gregos, o

direito romano, surgido dos aspectos práticos em que se detinham os romanos, o latim

e o cristianismo formaram o alicerce sobre o qual erigiu-se o Ocidente. A civilização

68 HUNTINGTON, op. cit., p. 54 69 HUNTINGTON, ibid. p. 55.

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islâmica e a civilização ortodoxa também herdaram a cultura greco-romana, mas em

grau muito menor do que o Ocidente70.

• O cristianismo: o cristianismo, primeiramente catolicismo e ulteriormente catolicismo

e protestantismo conferiram senso de unidade e de identidade à civilização ocidental.

Com efeito, durante todo o primeiro milênio houve somente uma religião cristã, o

catolicismo. Com o Grande Cisma de 1054, quando, por disputas envolvendo a

natureza do Espírito Santo, a Igreja de Constantinopla separou-se da Igreja de Roma, a

cristandade cindiu-se profundamente pela primeira vez. Posteriormente

Constantinopla, dominada pelos muçulmanos, perderia a primazia política para a

Rússia, que constituiria, assim, o núcleo da civilização ortodoxa. Mesmo com a perda

da primazia política, o chefe espiritual de todas as igrejas ortodoxas, uma vez que há

14 igrejas ortodoxas autocéfalas, continuou sendo o patriarca ecumênico de

Constantinopla, a atual Istambul, localizada na Turquia. Ainda, foi pelo ouro e pela

prata, mas também por Deus que a civilização ocidental lançou-se, no século XVI, à

conquista do mundo. A Reforma Protestante, movimento que se iniciou no século XVI

com uma série de tentativas de reformar a Igreja Católica, mas que acabou por dividi-

la e por fazer surgir várias seitas protestantes provocou uma reação católica conhecida

como Contra-Reforma, movimento de reafirmação dos princípios, da doutrina e da

estrutura da Igreja Católica e de combate à expansão do protestantismo. É nesse

contexto de conflito religioso que tanto católicos quanto protestantes empenham-se por

garantir cada qual seu domínio nas terras que iam sendo descobertas.

70 HUNTINGTON, ibid., p. 83.

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• A separação entre a autoridade espiritual e a autoridade temporal: durante toda a

história do Ocidente, a religião se manteve separada do Estado. É verdade que nem

sempre de forma muito nítida, mas nunca houve a instituição de uma teocracia.

Excetuando-se a civilização ocidental, a única outra civilização em que religião e

Estado estiveram sempre separados é a civilização hindu. Assim, “no Islã, Deus é

César; na China e no Japão, César é Deus; na Ortodoxia, Deus é o sócio menor de

César”71. No Ocidente, a divisão da autoridade contribuiu enormemente para o

desenvolvimento da liberdade.

• O império da lei: a noção de que a lei é um elemento essencial para a vida em

sociedade adveio dos romanos. Mesmo durante o Absolutismo, quando o império da

lei foi mais violado do que respeitado, prevaleceu a idéia de que todos deveriam

subordinar-se a algum controle externo. Nas demais civilizações, o império da lei,

quando houve, não se constituiu de maneira vigorosa ou por um longo período.

• O pluralismo social: na civilização ocidental, já no século VI, mas principalmente no

século VII, ocorreu a ascensão de diversos grupos autônomos que não estavam

baseados em relações de sangue ou em relações de casamento. Eram as associações,

particularmente de caráter religioso; essas associações posteriormente expandiram-se e

diversificaram-se. Ao pluralismo associativo sucedeu-lhe o pluralismo de classe. Em

todo o Ocidente, havia uma aristocracia relativamente forte e autônoma, um

campesinato considerável e uma pequena, mas importante, classe de comerciantes e de

mercadores. Esse pluralismo ocidental contrasta fortemente com a pobreza da

71 HUNTINGTON, ibid., p. 84.

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sociedade civil, com a debilidade da aristocracia e com a força dos impérios

burocráticos centralizados que dominaram a Rússia, a China e a Turquia.

• Os corpos representativos: o pluralismo social logo fez surgirem no Ocidente

assembléias, parlamentos ou outras instituições que representassem os interesses da

aristocracia, do clero, dos mercadores e dos comerciantes ou de outros grupos. Foram

essas instituições que evoluíram e deram origem às formas de representação da

democracia moderna. O mais antigo parlamento do mundo ainda a funcionar é o

Althing, o parlamento da Islândia, fundado em 910. Nenhuma outra civilização

contemporânea possui um legado de corpos representativos que contem, em média,

1000 anos.

• O individualismo: foi também no Ocidente que a noção de individualismo mais

fortemente surgiu. Seguiu-se a ela uma tradição de direitos e de liberdades individuais

única entre as civilizações. O individualismo desenvolveu-se durante o século XIV e o

século XV, e a aceitação do direito de escolha individual impôs-se no Ocidente no

século XVII. Em algumas civilizações a noção de coletivismo ainda prepondera sobre

a idéia de individualismo.

É importante esclarecer que essas características ora apresentadas não foram

exclusivas da civilização ocidental. Elas estiveram presentes também em outras civilizações e

algumas delas não fizeram sempre parte do Ocidente, havendo períodos, por exemplo, em que

o império da lei não foi respeitado. Contudo, o que as torna peculiares ao Ocidente e o que fez

com que o Ocidente se constituísse tal qual é, foi a combinação delas. Essas concepções,

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práticas e instituições estiveram mais presentes na civilização ocidental do que em qualquer

outra.

1.3.1.2. A Civilização Ortodoxa A civilização ortodoxa tem a Rússia como centro. Desde há muito tempo as

terras orientais da Europa distinguiam-se do restante do continente por motivos políticos e

religiosos. Efetivamente, a civilização ortodoxa construiu um aparato político burocrático e

despótico e expôs-se limitadamente ao Renascimento e ao Iluminismo. Com relação à religião,

os ritos orientais diferenciaram-se do rito latino já nos primeiros séculos do cristianismo,

contudo, ainda perdurava a submissão ao bispo de Roma. Com o advento do Grande Cisma de

1054, porém, constituíram-se duas igrejas separadas: a Igreja Católica Apostólica Romana,

centrada em Roma, de rito latino majoritário, mas também reunindo vários ritos orientais cujos

patriarcas mantiveram-se fiéis ao papa, e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa,

espiritualmente conduzida pelo patriarca ecumênico de Constantinopla mas, de fato,

governada pelo patriarca de Moscou e com liturgia oriental. A primazia política do patriarcado

de Moscou, embora os próprios ortodoxos neguem que haja realmente tal primazia, deve-se ao

fato de Constantinopla, conhecida como a Segunda Roma, ter caído nas mãos dos

muçulmanos. Os russos, então, passaram a chamar Moscou de Terceira Roma, porque,

segundo a crença, manteria intactas a sagrada tradição e a pureza da fé.

À primeira vista, entre as razões que engendraram a civilização ortodoxa,

sobressaem as de feição política. Evidentemente que elas foram decisivas na constituição da

civilização ortodoxa. Contudo, seria negligência menosprezar a força que a religião deteve

sobre a Rússia e as demais regiões que abraçaram a ortodoxia. Com efeito, a Igreja Ortodoxa

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influenciaria as artes e a literatura. Se, no Ocidente, grandes obras de arte foram realizadas

tendo como fonte de inspiração a religião, do mesmo modo aconteceu nos domínios

ortodoxos, em que se desenvolveram uma belíssima liturgia e uma fantástica iconografia.

1.3.1.3. A Civilização Africana Poder-se-ia imaginar, ao vislumbrar a fragmentada África, que ela não constitui

uma civilização. É verdade que o norte da África faz parte da civilização islâmica e que ela foi

retalhada e posteriormente reorganizada ao bel-prazer dos colonizadores europeus que nela

introduziram características da civilização ocidental. Apesar de o cristianismo ter sido

introduzido e de ter se disseminado por toda a África subsaariana, o animismo72 ainda

permanece forte em muitos países. É importante considerar que os africanos estão

desenvolvendo cada vez mais a noção de uma identidade africana73, e o núcleo dessa

civilização que vem ganhando força é a África do Sul.

1.3.1.4. A Civilização Hindu Sabe-se que houve, no subcontinente indiano, sucessivas civilizações que datam

de pelo menos 1500 antes da era cristã. A mais recente delas chama-se civilização hindu. Nela

o hinduísmo ocupa posição central. Com efeito, “mais do que uma religião ou um sistema

social, ele é o núcleo da civilização indiana (sic)74. Seria desatenção relevar a importância do

hinduísmo como sistema social. Deveras, com suas castas e subcastas, o hinduísmo marcou

72 O animismo é uma manifestação religiosa em que se atribuem aos astros, aos fenômenos meteorológicos, aos animais, às plantas e até mesmo a acidentes geográficos, como montanhas e rios, um princípio vital e pessoal. Assim, todos esses elementos teriam emoções, desejos e inteligência. 73 HUNTINGTON, ibid., p. 54. 74 BRAUDEL, apud HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 51.

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indelevelmente a civilização hindu, centrada na Índia, e, embora desde muito cedo estivesse

apartado da política, engendrou uma sociedade em que a mobilidade social é praticamente

nula. Apesar das várias leis criadas na tentativa de eliminar ou amenizar os problemas que o

sistema de castas acarreta, tudo demonstrou-se impotente diante do peso da tradição do

hinduísmo, e assim o sistema de castas subsiste.

1.3.1.5. A Civilização Sínica A existência da civilização sínica remonta a pelo menos 1500 anos antes da era

cristã. A civilização sínica, cujo centro é a China, baseia-se amplamente no confucionismo.

Ele não é propriamente uma religião, mas um sistema filosófico criado pelo filósofo e teórico

político Confúcio. Entre as preocupações do confucionismo estão a moral, a política, a

pedagogia e a própria religião. Esse sistema filosófico, desde antanho, obteve êxito entre os

imperadores chineses e logrou estabelecer-se na corte. O passo seguinte, expandir-se e seduzir

o restante da sociedade, não tardou a cumprir-se. Entretanto, embora o confucionismo seja um

dos principais componentes da civilização sínica, ela é mais do que ele, e transcende as

fronteiras do Estado chinês, seja por haver comunidades chinesas grandes e atuantes em vários

Estados do Sudeste Asiático, seja por esses mesmos Estados haverem, há muito tempo,

assimilado a cultura emanada da China.

1.3.1.6. A Civilização Japonesa A civilização japonesa foi fruto da civilização sínica e emergiu no período

compreendido entre 100 e 400 da era cristã. Da civilização sínica ela recebeu, principalmente,

o budismo e os ideogramas, símbolos gráficos utilizados para representar uma palavra ou um

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conceito abstrato. Contudo, o confucionismo, que tão fortemente influenciou a civilização

sínica, não logrou estabelecer-se definitivamente no Japão. É interessante notar também que a

civilização japonesa é a única das civilizações contemporâneas que possui somente um

Estado. Em outras palavras, a civilização japonesa coincide totalmente com as fronteiras do

Estado japonês. Essa particularidade confere ao Japão um certo grau de isolamento quando

surgem questões de alinhamento civilizacional, uma vez que, por não haver outros Estados

pertencentes à civilização japonesa, o Japão não possui a quem coligar-se.

1.3.1.7. A Civilização Islâmica A civilização islâmica originou-se na península Arábica, durante o século VII

da era cristã. Disseminou-se rapidamente para o norte da África, para a península Ibérica, para

a Ásia Central, para o subcontinente Indiano e até mesmo para o Sudeste Asiático. De todas

essas áreas, a única em que a civilização islâmica não exerce mais influência é a península

Ibérica, pois espanhóis e portugueses reconquistaram-na totalmente dos muçulmanos, em uma

série de conflitos armados que tiveram início em 718 e encerraram-se em 1492 com a

expulsão dos muçulmanos. Essa luta secular recebe o nome de Reconquista. O grande fator de

aglutinação da civilização islâmica é o islamismo. Pode-se notar que a civilização islâmica e o

islamismo surgem ambos no século VII, e que a partir de então ele influenciaria sobremaneira

a nascente civilização.

O islamismo se relaciona com todos os aspectos da atividade humana, sejam

políticos, econômicos, sociais, legais, militares e até mesmo interpessoais. A consagrada

separação ocidental entre o Estado e a religião é simplesmente alheia ao islamismo.

Efetivamente, a maior teocracia do mundo é o Irã, em que a religião dita os caminhos do

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Estado. Contudo, não se deve imaginar que o islamismo, embora seja uma poderosa força

aglutinadora, seja também homogeneizador. Ou que todos os árabes sejam muçulmanos. Com

efeito, há árabes que não são muçulmanos e há muçulmanos que não são árabes. Muitos

libaneses, que são árabes, são cristãos, e a maioria dos iranianos, que são persas, é

muçulmana.

Uma importante característica da civilização islâmica é o fato de não possuir

um centro. Haveria três possíveis centros para ela: a Arábia Saudita, o Irã e a Turquia. Porém,

os três padecem de problemas que atrapalhariam uma eventual liderança. A Arábia Saudita,

embora riquíssima em petróleo e protetora da cidade sagrada de Meca não é suficientemente

populosa e está muito ligada ao Ocidente por motivos econômicos e políticos. Tanto o Irã

quanto a Turquia atendem aos principais requisitos para ser o centro de uma civilização.

Possuem grande território, são populosos e dispõem de poderosas forças militares. Contudo, o

Irã é xiita75, e a imensa maioria dos muçulmanos, em torno de 90% deles, é composta por

sunitas, o que tornaria problemática a liderança iraniana. A Turquia, ao contrário, é sunita,

mas iniciou, nas primeiras décadas do século XX, um processo de ocidentalização que acabou

por desviar sua atenção para a civilização ocidental, mais precisamente para a Europa, em

detrimento da civilização islâmica. Prova disto são as constantes tentativas realizadas por

Ancara para tornar a Turquia membro da União Européia.

75 O islamismo possui dois grandes ramos, mas não apenas, o ramo xiita e o ramo sunita. A dissensão ocorreu quando Maomé morreu e não deixou claro quem o deveria suceder. Depois de Maomé houve três califas, Abu Becre, Omar e Otomão, sem que a autoridade de nenhum deles fosse contestada. Com a morte de Otomão iniciou-se a disputa pela sucessão: havia os que desejavam que Ali, primo e genro de Maomé, pois era casado com sua filha Fátima, fosse o novo califa e havia os que queriam que um primo de Otomão assumisse o califado. Os xiitas são os partidários de Ali (em transcrição do árabe, shiat Ali). Os sunitas (sunna significa a prática exercida por Maomé) são os que adotam posição menos radical do que a dos xiitas.

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2. AS FRONTEIRAS

Desde outrora as fronteiras evoluíram consideravelmente sem, no entanto,

nunca desaparecerem. É verdade que sua popularidade tem oscilado constantemente, pois é

possível verificar fases em que enfrenta relativo esquecimento, e outras em que parece

definitivamente estar em voga. O Estado territorial guindou pela primeira vez o termo

fronteira, e junto com ele a categoria fronteira, a uma posição de real importância, pois

fundamentava-se inteiramente em suas próprias fronteiras, uma vez que era delas que extraia

sua soberania. De fato, o que há verdadeiramente são as fronteiras, e praticamente nunca a

fronteira, porquanto não se pode conceber uma fronteira isolada, mas umas em relação às

outras. Evidentemente que antes do surgimento do Estado territorial já havia a preocupação

com as fronteiras. Basta pensar no Império Chinês que, tencionando conter o avanço das

hordas vindas das estepes do norte, erigiu uma muralha. Primeiramente utilizaram-se barro e

terra. Mas esse material revelou-se incapaz de deter os invasores. Muito tempo depois os

governantes chineses consideraram por bem iniciar a construção de outra muralha, desta vez

construída de alvenaria. É essa segunda muralha que se conhece modernamente, mas que

tampouco revelou-se capaz de impedir a invasão nômade.

Desses acontecimentos é possível constatar dois fatos: o primeiro evidencia que

as fronteiras também são construídas, que elas também podem ser artificiais. Para os chineses

uma obra de engenharia militar passou a confundir-se com a própria noção de fronteira. As

muralhas construídas por eles serviram muito bem a um dos propósitos pelos quais foram

erguidas, o de dividir, de estabelecer uma segmentação: ao norte as estepes dominadas pelos

bárbaros, e ao sul o território controlado pelos soberanos chineses. Contudo, não eram

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inexpugnáveis e, conseqüentemente, não cumpriram o outro propósito, o de conter o inimigo.

Surge então o segundo fato relacionado à ineficiência das muralhas chinesas: a superioridade

bélica da mobilidade contra a rigidez. A agilidade e a mobilidade dos ginetes bárbaros revelar-

se-iam superiores à força rígida das muralhas. Modernamente pôde-se verificar novamente a

ineficiência da rigidez frente à mobilidade na Segunda Grande Guerra, em que a Linha

Maginot revelou-se anódina.

A Linha Maginot foi uma linha de fortificações e de defesas construída pela

França ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e com a Itália. A construção durou de

1930 a 1936. Embora muitas vezes o termo Linha Maginot designe todo o sistema de

fortificações, as defesas contra a Itália são mais comumente denominadas Linha Alpina. Foi,

entretanto, o planejamento de guerra com relação à linha de defesa e não exatamente ela que

falhou. Os alemães, em vez de atacarem direta e maciçamente a linha, contornaram-na, uma

vez que ela não alcançava o mar do Norte, e invadiram a França. Os poucos pontos da linha

que foram atacados pelos alemães resistiram bem. A neutralidade da Bélgica, que

supostamente seria respeitada pela Alemanha, contribuiu para que o planejamento de guerra

francês falhasse, pois não se acreditava em uma invasão alemã à França por meio do território

belga.

Ainda com relação ao Império Chinês, poder-se-ia argumentar que sem a

construção das muralhas o florescente império ter-se-ia extinguido haveria muito tempo. A

verdadeira virtude das muralhas, no entanto, foi propiciar a unificação do império76. Quando o

Império Chinês sucumbiu aos invasores vindos do norte, previu-se a transitoriedade do

domínio bárbaro sobre o império, dada sua superioridade econômica, cultural e demográfica.

76 MARTIN, André Roberto. Fronteiras e Nações. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1998, p. 26.

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Nota-se a superioridade da agricultura sobre o pastoreio, do sedentarismo sobre o nomadismo,

idéia que contraria a noção bélica da superioridade da mobilidade contra a rigidez.

Modernamente esse tipo de oposição manifesta-se no “conflito entre uma razão defensiva que

procura dificultar o acesso às fronteiras, e outra mercantil que, ao contrário, pretende facilitar

ao máximo os contatos com os vizinhos”77.

Também o Império Romano preocupava-se com suas fronteiras. Mas não eram

elas exatamente que o definiam, uma vez que somente as havia por necessidades militares, ao

marcar o final de uma etapa de invasão ou barrar a penetração inimiga. O Império Romano,

durante muito tempo, expandiu-se indefinidamente, conquistando e incorporando territórios.

Dessa forma compreende-se que as fronteiras do império estavam sempre em mutação,

constantemente sendo deslocadas, na maioria das vezes para além, em um movimento de

expansão; algumas vezes para aquém, em um movimento de retração provocado pelos

inimigos. Um império cujas fronteiras eram tão inconstantes não podia definir-se,

evidentemente, por elas. O que garantia a sobrevivência do império era seu expansionismo e o

domínio que exercia sobre os territórios conquistados. Efetivamente, quando a pressão bárbara

ao norte, no século III, tornou-se forte demais, o império abandonou a Armênia, a Dácia e a

Mesopotâmia, para concentrar-se precisamente nos pontos em que os bárbaros poderiam

ultrapassar as fronteiras e invadir o império. Nem por alterar de maneira significativa suas

fronteiras ele deixou de haver, mas transformou-se. Posteriormente, ainda, o império dividiu-

se em dois, o Império Romano do Ocidente, com capital em Roma e o Império Romano do

Oriente, com capital em Constantinopla. Quando, finalmente, os bárbaros obtiveram sucesso

em suas tentativas de invasão, o Império Romano do Ocidente, já enfraquecido e

77 MARTIN, ibid.

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desestabilizado internamente, não conseguiu guerrear e sucumbiu aos bárbaros. O Império

Romano do Oriente sobreviveria até 1453, quando cairia sob o ataque dos turcos.

Durante a Idade Média, sem contar com instrumentos adequados nem com

técnicas avançadas para estabelecer com precisão as fronteiras, e dado o caráter fragmentário

dos feudos, elas permaneceriam, de certo modo, como uma ficção. Com efeito, foi a evolução

do Estado, de principesco a régio e depois a territorial, que estabeleceu a necessidade, e o

desejo, por organizar as fronteiras. Com o tempo, as técnicas cartográficas desenvolveram-se

extraordinariamente, e tanto a representação quanto a projeção das fronteiras tornaram-se mais

precisas. A primeira tentativa de estabelecer uma fronteira baseada em uma linha imaginária

deu-se com o Tratado de Tordesilhas, celebrado entre Portugal e Espanha. Segundo o tratado,

um meridiano passaria a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, as terras a leste desse

meridiano pertenceriam a Portugal, e as terras a oeste, à Espanha. Somente o desenvolvimento

das técnicas cartográficas permitiria tamanho avanço na delimitação das fronteiras. É verdade

que houve alguns problemas cartográficos com relação ao tratado. Por exemplo, nele não se

especificou a partir de que ponto do arquipélago dar-se-ia a contagem das 370 milhas. Mesmo

assim, não se pode negar que a delimitação firmada pelo tratado tenha sido um avanço

cartográfico.

É preciso, então, estabelecer distinção entre delimitação e demarcação. A

delimitação é, primordialmente, objeto de geógrafos, mas também de cientistas políticos, de

economistas, de políticos e de militares. É “o estabelecimento da linha de fronteira [...], a qual

é determinada a partir de um tratado assinado entre as partes envolvidas”78. Ocupam-se da

demarcação, principalmente topógrafos, cartógrafos e até mesmo astrônomos. Ela é a

78 MARTIN, ibid. p. 49.

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“locação da linha de fronteira no terreno [...] através (sic) do estabelecimento de marcos e

balizas”79. Assim, pelo menos teoricamente, a demarcação deveria subordinar-se à

delimitação, embora muitas vezes não é o que aconteça, devido à facilidade com que se pode

realizar a demarcação, antes da delimitação.

Faz-se necessário também reconhecer que, uma vez surgidas, as fronteiras

demoram a desvanecer. Embora muito se diga que o Tratado de Tordesilhas nunca tenha sido

realmente respeitado, o que em parte comprova-se pelo avanço português em direção ao oeste,

a verdade é que até hoje o Brasil não possui uma saída para o oceano Pacífico, da mesma

forma que a América Espanhola detém pouca influência no oceano Atlântico.

Cumpre, então analisar mais detalhadamente a essência da fronteira. Quando

finalmente consolida-se o Estado territorial e as fronteiras expõem toda a sua importância,

surge um outro conceito, o de limite que, a partir de então, acompanhará, inseparavelmente a

fronteira. O limite é linha, e não pode ser habitado. É a linha que separa dois Estados,

demarcando a extensão da soberania de cada um deles. A fronteira acompanha o limite, mas

ela é faixa, e é habitada. Nela desenvolvem-se normalmente atividades econômicas, culturais e

políticas, tanto de um lado quanto de outro. Assim, “a caracterização jurídica da fronteira é a

linha, a sua realidade cultural ou administrativa (instalação de postos de controle, alfândegas,

elementos de vigilância o defesa) é a faixa”80.

Percebe-se, também, que o limite, embora mais preciso que a fronteira, por

aquele ser linha, e esta, faixa, não passa de uma abstração, a não ser quando tomada

juridicamente, pois pontos, linhas e planos são abstrações geométricas. Então, faz-se

importante constatar que a soberania do Estado não se restringe ao plano. Em outras palavras,

79 MARTIN, ibid. 80 MATTOS, op. cit., p. 34.

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ela não é plana como sugerem os mapas, mas volumétrica81. Há que explicitar também que um

outro conceito sobrevém à discussão quando se fala de fronteiras e de limites, é o conceito de

divisa. Ela é o aspecto visível do limite, materializando-se principalmente sob a forma de

marcos e de balizas que, alinhados, demarcam o território soberano de um Estado.

As fronteiras não expressam uma realidade imediata. Não foram sempre como

são modernamente. Elas evoluíram no tempo e aprimoraram-se. Pode-se, então, esboçar os

estágios pelos quais passaram as fronteiras:

• Os anecúmenos: caracterizavam a antigüidade, em que a povoação era escassa

e os núcleos populacionais estavam separados por enormes vazios

demográficos. Não havia, então, conflitos tendo como causa principal as

fronteiras.

• As largas zonas fracamente povoadas: não abrigavam nenhum poder político

capaz de ameaçar os interesses dos núcleos populacionais aos quais separavam.

• As faixas relativamente estreitas: caracterizavam as áreas em que o

povoamento das entidades políticas não era capaz de pressionar

demograficamente um ao outro.

• As fronteiras modernas: delimitam o território e a soberania dos Estados e,

portanto, colocam em contato permanente o interesse deles, mesmo em áreas

pouco povoadas.

Sabe-se que “a fronteira é um ato de vontade política”82, as fronteiras culturais,

no entanto, não são um simples ato de vontade política. A questão das fronteiras, então,

81 MARTIN, op. cit., p. 55. 82 RATZEL apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 6.

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confunde-se com a questão das nacionalidades, com a questão da cultura e das civilizações. Os

conflitos religiosos que assolaram toda a Europa durante o século XVI contribuíram, não

somente para fazer aparecer as diferenças entre católicos e protestantes, mas também para

guindar o nacionalismo, quando instituiu-se o culto protestante e abandonou-se o latim em

favor das línguas nacionais. A primeira tradução da bíblia para o alemão foi realizada por

Lutero, tendo por base a Vulgata Latina83, quando a Reforma Protestante já entrara em curso.

E assim, lentamente, a tradução da bíblia foi-se executando na língua de cada um dos

territórios que adotaram o protestantismo, a um só tempo afastando-os de Roma e reforçando a

identidade e o nacionalismo.

Empreender uma taxonomia das fronteiras é tarefa das mais complexas, dada a

enorme variedade de casos individuais, o que faz com que seja difícil agrupá-los

significativamente. Tantas são as tentativas de estabelecer uma taxonomia das fronteiras que

uma multiplicidade de classificações surgiu. Algumas possuem caráter histórico, outras

privilegiam os aspectos naturais. Algumas têm por base o tipo de Estado e outras o tipo de

território. Entretanto, algumas classificações obtiveram mais êxito que outras. Assim, entre os

alemães, apegados às idéias deterministas, obterá notoriedade a tese da fronteira linear, e não a

tese da fronteira natural. Isto se explica por crerem que quanto mais desenvolvida fosse uma

sociedade, mais rígidas e precisas deveriam ser suas fronteiras. Entretanto, o expansionismo

alemão, na busca por seu espaço vital, ignoraria as fronteiras, tornando-as meras linhas

imaginárias.

83 A Vulgata Latina é a tradução do grego para o latim realizada no século IV por São Jerônimo a pedido do papa Dâmaso I. A tradução teve de ser realizada porque o grego vinha perdendo sua proeminência e o latim efetivamente tornava-se a língua da liturgia. A Vulgata Latina também foi produzida para ser mais exata e mais fácil de ser compreendida do que as versões anteriores.

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Por outro lado, os teóricos franceses sempre consideraram as fronteiras

construções artificiais. Mas são os mesmos teóricos franceses que, talvez percebendo a força

do expansionismo alemão, propugnarão o caráter concreto e não abstrato das fronteiras. Nas

discussões acerca da taxonomia das fronteiras, pode-se perceber a velha rivalidade franco-

alemã manifestando-se. Essa rivalidade ora é puramente teórica, ora materializa-se sob a

forma de guerra, como nas duas guerras mundiais. Mesmo assim, é interessante notar que é a

teoria que acaba fundamentando a prática. Afinal, a expansão alemã não se deu ao léu, mas foi

legitimada pela teoria.

É possível expor, sem, no entanto, esgotar as classificações, alguns tipos de

fronteira dignos de atenção. As fronteiras podem ser, quanto à natureza:

• Fronteiras naturais: compostas por acidentes geográficos como rios, montanhas,

lagos, desertos e mares.

• Fronteiras artificiais: compostas por linhas imaginárias, astronômicas ou geodésicas.

Quanto ao grau de ocupação:

• Fronteiras ocupadas: quando são habitadas.

• Fronteiras vazias: quando são desabitadas.

Quanto à situação jurídica:

• Fronteiras de jure: quando delimitadas de comum acordo entre os Estados.

• Fronteiras em litígio: quando contestadas por um ou por ambos os Estados, mas em

processo de negociação.

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• Fronteiras em conflito: quando contestadas por um ou por ambos os Estados, mas em

estado de tensão, com a negociação interrompida.

Quanto à origem:

• Fronteiras antecedentes: quando são alheias aos habitantes dos territórios em questão,

ou seja, quando são produto de uma ingerência externa. Caracterizam-se pelas grandes

linhas retas.

• Fronteiras subseqüentes: são conseqüência de um desenvolvimento econômico

anterior.

• Fronteiras superimpostas: são aquelas que cortam territórios em que há unidade

cultural.

• Fronteiras conseqüentes: são aquelas fixadas em territórios escassamente povoados ou

até mesmo desabitados.

É preciso esclarecer ainda que as fronteiras não se estabelecem somente em

terra firme. Basta considerar as questões que envolvem a fronteira marítima para confirmar tal

afirmação. Desde antanho, os Estados sentiram a necessidade de levar a fronteira marítima

para além do litoral. Intentava-se, assim, estabelecer o mar territorial, com o fito de defender

melhor o território. Durante séculos vigorou o uso de estender a soberania do território até

uma faixa de três milhas84 da costa. Assim se deu até a Segunda Grande Guerra, quando os

Estados Unidos passaram a reivindicar o limite de 200 milhas85 para o mar territorial, pois

pretendiam proteger seu território contra as armas de longo alcance. Seguindo os Estados 84 Aproximadamente cinco quilômetros. 85 Aproximadamente 320 quilômetros.

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Unidos, vários outros Estados americanos também adotaram o critério das 200 milhas de mar

territorial. Entretanto, essa prática mostrou-se inexeqüível para Estados que possuíssem litoral

em mares fechados ou limitados, como é o caso dos Estados que possuem litoral mediterrâneo.

Então, em 1958, a ONU reuniu a Conferência Sobre o Direito do Mar, buscando encontrar

solução harmoniosa para o impasse. Assim, após realizar vários estudos e debater

internacionalmente o tema, convencionou-se adotar mar patrimonial de 200 milhas e mar

territorial de 12 milhas86. Como mar patrimonial entende-se a área em que o Estado tem

direito de exploração exclusiva dos recursos minerais, energéticos e pesqueiros sem, no

entanto, impedir o direito de passagem estrangeiro87. O mar territorial, por outro lado,

incorpora-se efetivamente ao território soberano do Estado, que nele pode exercer sua plena

soberania.

Ao mesmo tempo em que se estudam as fronteiras, um outro conceito há que

deve também ser analisado. É o conceito de Estado-tampão. Ele tem “concepção e criação

moderna, é sempre um instrumento artificial – visando amortecer possíveis choques, evitar

conflitos, oriundos do confronto direito entre Estados rivais”88. O Estado-tampão é um

território ao qual se lhe atribui o status de Estado. Como já se expôs, ele é artificial,

estabelecido entre Estados antagônicos. Assim, dotado de soberania, o Estado-tampão é

reconhecido pelos Estados em conflito e também pela comunidade internacional. Clássico

exemplo de Estado-tampão, o Uruguai foi engendrado para conter a ambição do Brasil e da

Argentina pelo controle do rio da Prata. A independência uruguaia, contudo, era já almejada

86 Aproximadamente 20 quilômetros. 87 MATTOS, op. cit., p. 39. 88 MATTOS, ibid., p. 34.

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pela população que, unida em torno de Artigas89, anelava a liberdade. Houve também a

influência britânica no surgimento do Uruguai. O Reino Unido desejava garantir a livre

navegação no rio da Prata, e para isso incitou a criação de um Estado pequeno, mas que fosse

capaz de controlar uma das margens do rio da Prata, no caso a margem oriental90, impedindo

efetivamente que os dois maiores Estados da América do Sul, a Argentina e o Brasil,

controlassem a navegação no rio da Prata.

A partir da análise mais abstrata das fronteiras, pode-se reconhecer duas

abordagens fundamentais em sua teoria, uma dialética, que busca perscrutar o fenômeno como

um todo, e outra analítica, que procura isolar e decompor o fenômeno a partir de seus

elementos91. Com base na abordagem dialética surgiu a idéia de fronteiras vivas e de

fronteiras mortas. A diferenciação entre ambas dar-se-ia pela densidade do povoamento e pelo

vigor do intercâmbio entre os dois lados da fronteira. À abordagem analítica correspondem as

tentativas mais detalhadas de classificar as fronteiras. Assim, a taxonomia que se expôs

anteriormente representa a abordagem analítica, uma vez que elege um dos aspectos das

fronteiras e busca examiná-lo minuciosamente para poder classificá-las.

Assim, faz-se imprescindível explicitar e reforçar a idéia de que as fronteiras,

apesar de serem o envoltório do Estado e, por essa razão, sua primeira linha de defesa e a

expressão jurídico-territorial de sua soberania, não se prestam somente à segregação. As

fronteiras entre Estados que estabeleceram relações cordiais entre si prestam-se muito mais à

integração do que à separação. Tal proposição pode ser constatada ao observar quão profícuo é

89 O uruguaio José Gervasio Artigas foi político e militar. Reuniu em torno de si a população uruguaia que desejava a independência, por fim proclamada por ele em 1825 e reconhecida internacionalmente em 1828. Embora independente, o Uruguai surgia como um Estado-tampão, premido entre a Argentina e o Brasil. 90 O nome oficial do Uruguai é República Oriental del Uruguay, e os uruguaios são comumente conhecidos como orientales, por habitarem do lado oriental do rio da Prata. 91 MARTIN, op. cit., p. 57.

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o intercâmbio cultural e econômico ao longo das fronteiras dos Estados que mantêm relações

amistosas uns com os outros.

2.1. OS TIPOS DE TERRITÓRIO

A fronteira é comumente vista como uma linha periférica que contorna o

território de um Estado ou de uma divisão administrativa como uma província ou um

município. Entretanto, como já se expôs, sua caracterização e sua realidade são muito mais

complexas. Frederico Ratzel e Rodolfo Kjellén, considerados os precursores da Geopolítica,

superestimaram a forma, a extensão e a posição relativa do território. Consideraram que esses

três fatores eram essencialmente determinantes na extensão do poder político e militar de um

Estado. Se é verdade que Ratzel e Kjellén deram valor exagerado a esses fatores, também é

verdade que eles detêm, ainda, importância, embora atualmente ela esteja esvaecendo por

causa do desenvolvimento tecnológico.

Com efeito, desde o século XV, quando a efetivação da máquina de guerra teria

compelido o Estado a engendrar-se, até o início do século XX, a conformação territorial era de

suma importância. Durante todo esse período, a extensão territorial era tida como um

componente essencial no jogo de forças da guerra, uma vez que subjugar um território

pequeno era muito mais fácil do que conquistar um vasto território. Pode-se dizer, então, que

os Estados que detinham grande extensão territorial ofereciam mais dificuldade ao inimigo

para conquistá-los, ao passo que os Estados que possuíam pequena extensão territorial eram

mais facilmente sobrelevados. Dessa forma, vê-se que a Rússia nunca caiu conquistada pelos

inimigos, ao contrário da Bélgica, que por duas vezes foi invadida e ocupada pela Alemanha.

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Obviamente que não se deve atribuir a incolumidade russa ou a fragilidade belga somente à

extensão do território; deve-se, sim, creditá-las a todo um conjunto de fatores, entre eles a

população e o desenvolvimento bélico.

Ainda com relação à Rússia, é interessante observar que, a despeito de seu

enorme território e de seu considerável litoral, tem extrema dificuldade para atingir o mar

aberto. Pode-se dividir o litoral russo em três partes: a primeira e mais extensa abrange todo o

norte da Rússia, abrindo-se totalmente para o mar Glacial Ártico, até sua porção mais oriental,

a partir da qual volta-se para o oceano Pacífico até encontrar a fronteira com a Coréia do

Norte. É o denominado litoral norte-oriental. A segunda parte, e menor delas, abre-se para o

mar Báltico; é, por essa razão, o litoral báltico. A terceira parte corresponde ao litoral do mar

Negro.

O obstáculo impõe-se à Rússia no inverno, quando o litoral norte-oriental e o

litoral báltico são freqüentemente tomados pelo gelo, restringindo o acesso russo ao oceano.

Assim, a única saída para o oceano permanentemente livre do gelo é o litoral do mar Negro.

Surge, então, um segundo empeço. Para chegar até o mar Mediterrâneo e então ao oceano

Atlântico, é necessário antes atravessar o estreito de Bósforo, o mar de Mármara e o estreito de

Dardanelos, totalmente controlados pela Turquia que, estendendo-se pela Anatólia, na Ásia, e

pela Trácia, na Europa, obteve pleno controle do acesso do mar Negro ao oceano Atlântico.

Esse obstáculo ao acesso russo ao oceano vem desde os tempos da União Soviética e da

Guerra Fria. A União Soviética e os Estados Unidos sabiam muito bem disso e tomaram

medidas, a União Soviética para obter acesso, mesmo que forçado ao oceano, e os Estados

Unidos para dificultar ao máximo a passagem russa. É dessa época o ingresso turco na OTAN

e sua aproximação aos Estados Unidos e ao Ocidente, visto que se fazia necessário constituir a

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primeira linha de defesa contra a União Soviética no mar Negro, e a Turquia constituiria essa

linha de defesa. Nesse contexto, o governo soviético estabeleceu grande força naval no mar

Negro, que ficou conhecida como Frota do Mar Negro, uma força naval que tinha como

principal objetivo, em caso de guerra, destruir o bloqueio turco e abrir passagem até o oceano

Atlântico.

Retomando a questão da extensão territorial, sua relativa perda de importância

dá-se por causa do desenvolvimento tecnológico a serviço da guerra. O aprimoramento de

aviões, cada vez mais velozes e menos perceptíveis aos radares inimigos, e o desenvolvimento

de mísseis dotados de extrema precisão e, principalmente, de mísseis intercontinentais fizeram

diminuir a influência da extensão territorial em uma guerra. Por outro lado, é errôneo crer que

os fatores geográficos estariam sob o jugo da tecnologia. Ao contrário, o que a tecnologia

criou foi a capacidade de guerrear sem, contudo, estar fisicamente presente, pois as armas são

controladas de longe; em outras palavras, a distância foi vencida, mas não os fatores

geográficos. Com efeito, o clima e a topografia ainda são fatores importantes a serem levados

em consideração em uma guerra. E a eles a tecnologia ainda não dominou completamente.

Estabeleceu-se, tomando como base a conformação territorial, uma

classificação dos Estados92. Eles teriam, então, quatro formas principais:

92 MATTOS, op. cit., p. 26.

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• Forma compacta: França, Espanha, Austrália, Rússia, Estados Unidos, Brasil.

• Forma alongada: Itália, Portugal, Suécia, Chile.

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• Forma recortada: Noruega, Grécia, Canadá.

• Forma fragmentada: Japão, Indonésia, Filipinas, Reino Unido.

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Essa classificação leva em consideração o aspecto predominante do território,

assim, o território brasileiro, apesar de possuir um alongamento para o sul, seu aspecto

predominante é o de compactação. O território chileno, embora apresente forma alongada,

também revela a forma recortada, notadamente em sua porção meridional. É notório que a

forma do território influi na administração e na segurança do Estado93. Dessa maneira, a forma

compacta apresenta grande extensão territorial em relação à extensão das fronteiras. Ademais,

a forma compacta torna difícil a secção do território em caso de guerra. A forma alongada do

território exibe grande extensão de fronteiras em relação à área territorial e torna o território

vulnerável. É mais fácil, assim, seccionar esse tipo de território, não somente em caso de

agressão estrangeira, mas também em caso de grave crise interna, como uma guerra civil.

A forma recortada, repleta de saliências e de reentrâncias em seu território

torna a extensão das fronteiras ainda maior. A defesa do território, neste caso, faz-se mais

complexa e penosa em razão da multiplicidade de pontos vulneráveis. A forma fragmentada

possui o mais complexo traçado de fronteiras e é também a forma territorial que apresenta a

maior vulnerabilidade militar. Assim, o Brasil possui forma compacta, extensão territorial de

8.514.876 quilômetros quadrados e 23.127 quilômetros de fronteiras, dos quais 15.719

quilômetros são de fronteiras terrestres e 7.408 quilômetros de fronteiras marítimas. O Japão,

por sua vez, possui forma fragmentada94, extensão territorial de 377.835 quilômetros

quadrados e fronteira marítima de 29.751 quilômetros. É evidente, então, quão maiores se

tornam as fronteiras quando a forma territorial do Estado é a forma fragmentada.

93 MATTOS, ibid., p. 28. 94 O Japão é formado pelas quatro ilhas maiores, Honshu, Hokkaido, Kyushu e Shikoku e por mais de três mil ilhas menores.

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2.2. A EVOLUÇÃO DAS FRONTEIRAS

Convencionou-se atribuir a três fatores a evolução das fronteiras95:

• Convencionalidade: estabelece que somente se delimita e, posteriormente, demarca-se

uma fronteira se houver acordo entre os Estados confinantes.

• Instabilidade: as fronteiras são marcos inconsistentes, cuja fixidez depende de um

equilíbrio. Sendo expressão da vontade política, elas não possuem nem nunca

possuíram valor próprio, mas somente refletem a força, a passividade ou a audácia dos

Estados.

• Mutabilidade: a mutabilidade das fronteiras é uma constatação histórica96. Basta

comparar as alterações fronteiriças européias, principalmente a partir da Primeira

Grande Guerra, para comprovar quão significativas elas foram. Observem-se as figuras

6 e 7:

95 MATTOS, ibid., p. 39. 96 MATTOS, ibid., p. 40.

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Entretanto, “aceitar-se a evidência do ‘caráter extremamente instável e mutável

das fronteiras’ não é suficiente. É mister se examinar suas causas [...]”97. Assim, entrelaçado à

questão das fronteiras surge o expansionismo, que é a política de expansão territorial de um

Estado sobre outros. Há dois tipos de expansionismo, o pacífico, que se opera por amálgama e

anexação natural de territórios desabitados ou fracamente povoados com consentimento da

população e o imperialista, que se processa por imposição de força política e militar mais forte

e poderosa98.

97 MATTOS, ibid. 98 MATTOS, ibid., p. 41.

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Dessa maneira, houve quem criasse leis que embasassem o expansionismo, na

tentativa de atribuir-lhe caráter científico, como efetivamente o fez Ratzel, que sistematizou as

Sete Leis do Expansionismo, pretendendo legitimar a expansão do Império Alemão. Com

relação às leis estabelecidas por Ratzel, convém analisar a primeira delas, que enuncia que “o

espaço (sic) dos Estados cresce com a expansão de sua cultura”99. Com efeito, a primeira das

leis sobre o expansionismo exprime a proeminência da cultura na expansão territorial de um

Estado. Assim, pode-se verificar que foi a existência de populações de origem germânica na

99 RATZEL apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 41.

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Boêmia e na Morávia, duas regiões administrativas da Checoslováquia, que legitimou a

anexação delas pela Alemanha.

No início do século XX, as populações de origem germânica que habitavam a

Boêmia e a Morávia perfizeram 36% da população das duas regiões administrativas juntas, e

desde antes da formação da Checoslováquia essas populações já anelavam que fossem

anexadas à Alemanha e à Áustria. Assim, apesar das concessões dadas aos alemães dessas

regiões pelo governo de Praga, a Alemanha deu um ultimato à Checoslováquia e exigiu que se

realizasse um plebiscito para decidir sobre a anexação. No entanto, no dia seguinte ao dia em

que se estabeleceu que se realizaria o plebiscito, as tropas alemãs invadiram a Checoslováquia

e anexaram a Boêmia e a Morávia100, retirando, assim, cerca de 30.000 quilômetros quadrados

da Checoslováquia.

Também Arnoldo Toynbee dedicou-se a criar leis acerca do expansionismo.

Ele tomou por base a cultura e a irradiação física da luz. As três leis são101:

• 1ª lei: um raio de cultura integral, como um raio de luz, refrata-se em espectros de seus

elementos componentes ao penetrar no objeto refringente.

• 2ª lei: essa refração pode dar-se sem choque com o outro corpo social se a sociedade

refringente já houver entrado em colapso cultural e caminhar para a desintegração102.

• 3ª lei: a velocidade e o poder do raio de cultura integral é igual à média das diversas

velocidades e poder de penetração que os componentes político, econômico e cultural 100 O nome mais comum que se dá a esse episódio é anexação dos Sudetos. Entretanto, os Sudetos não designam efetivamente uma região administrativa, mas sim uma cadeia montanhosa que serve de fronteira natural entre a Boêmia e a Morávia, pertencentes à República Checa, e a Silésia, pertencente à Polônia. Foi somente a partir do século XX que vingou designar a Boêmia e a Morávia por Sudetos. 101 TOYNBEE apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 43. 102 Uma sociedade em colapso cultural é aquela em que a economia, a cultura e a política estão em discordância.

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desenvolvem quando, em virtude da refração, atuam independentemente. A política e a

economia penetram mais depressa que a cultura.

As leis de Toynbee, embora possam ser, cada uma delas, amparadas por

exemplos históricos, não devem ser encaradas como acabadas ou como leis que possuam valor

nomotético. Mesmo assim, é importante perceber a importância que se atribui à cultura: é por

meio dela, nas leis de Toynbee, que se realiza o expansionismo.

Como já se expôs, as fronteiras são ato de vontade política, excetuando-se as

fronteiras culturais, certamente. Assim, não há problemas de fronteiras, mas problemas entre

Estados. Efetivamente, trata-se de questão política. Levando-se em consideração que o ânimo

humano imprime à questão das fronteiras, Everardo Backheuser criou as seguintes leis103:

• Lei da vontade ou força: a localização da fronteira é um ato de vontade dos dois

Estados envolvidos na questão, ou é um ato de força de um deles ou de outros Estados

suficientemente poderosos para intervir no conflito.

• Lei do equilíbrio dinâmico: por causa das pressões recíprocas, a fronteira é a expressão

de um equilíbrio dinâmico e transitório, resultante das ações que exercem os Estados

confinantes.

• Lei da fricção: a fronteira é sempre uma zona de atrito entre os Estados.

• Lei da pressão: a pressão que se exerce nas fronteiras é função da vitalidade relativa

dos confrontantes e dos elementos de força à sua disposição.

103 BACKHEUSER apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 44.

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Houve também estudiosos que unissem em uma mesma teoria de fronteiras

componentes culturais e componentes demográficos. Assim, F. Supan criou o quociente de

pressão: considerando-se uma fronteira FF entre os Estados A e B e imaginando que haja uma

situação de equilíbrio dinâmico, submeter-se-á essa fronteira à pressão de cada um desses

Estados. Se houver equivalência de forças, a fronteira permanecerá estável. Porém, quando um

dos Estados for mais forte que o outro, romper-se-á o equilíbrio. O Estado mais forte é aquele

que é demograficamente mais vigoroso104 e, portanto, mais robusto militarmente, ou ainda

aquele cuja sociedade não estiver em colapso cultural.

Dessa forma, se o Estado A for o mais forte, a tendência é que a fronteira se

desloque e penetre no território do Estado B, configurando nova fronteira F’F’. Se esse

desequilíbrio de força mantiver-se a favor do Estado A, é provável que nova alteração da

fronteira dê-se, configurando, então, nova fronteira F”F”. Convém, agora, analisar a sétima

das leis do expansionismo de Ratzel, que declara que “a orientação geral até a amálgama

transmite a tendência de crescimento territorial de Estado a Estado e aumenta esta tendência

em processo de transmissão”105. Nesse caso pode-se citar o exemplo dos Estados Unidos que,

das Treze Colônias atlânticas, expandiram-se em sucessivas ondas em direção ao oeste,

penetrando em território indígena, britânico, francês e mexicano, até alcançarem o oceano

Pacífico e o golfo do México.

Primordialmente, o motor do quociente de pressão tem sido o fator político

combinado ao fator militar e ao fator demográfico. Há, entretanto, outros fatores envolvidos,

104 Note-se que esta proposição está muito próxima à idéia de Ratzel, segundo a qual um Estado demograficamente vigoroso seria robusto e assim deveria expandir seu Lebensraum. 105 RATZEL apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 41.

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tais como o fator econômico, o fator cultural e até mesmo o fator religioso. Assim,

normalmente está sempre presente o fator político, unido a um ou a mais dos outros fatores.

Faz-se necessário ainda tecer algumas considerações a respeito do vigor

demográfico. Ele, por si só, não garante que haja vigor militar equivalente. Em outras

palavras, não é porque um dado Estado é populoso e possui altas taxas de crescimento

demográfico que se torna forte militarmente. Observe-se o caso de Israel e dos Estados árabes

em seu entorno. Contando aproximadamente 7 milhões de habitantes, Israel é insignificante

em termos demográficos quando comparado aos seus vizinhos como o Egito, que possui mais

de 70 milhões de habitantes, a Síria, com mais de 17 milhões de habitantes e a Arábia Saudita,

com cerca de 27 milhões de habitantes. O vigor demográfico também diz respeito à taxa de

crescimento populacional mas, ainda nesse quesito, Israel detém taxas menores do que seus

vizinhos. Mesmo territorialmente, Israel é muito menor do que eles. A Síria, que não é um

Estado de grande extensão territorial, tem 185.180 quilômetros quadrados. Israel possui

somente 21.900 quilômetros quadrados. Assim, o que permite a Israel manter suas fronteiras é

a tecnologia, que lhe proporciona armas sofisticadas, até mesmo atômicas.

Para Supan a causa principal do desequilíbrio fronteiriço é o fator demográfico.

Ele criou uma fórmula que determinaria se um Estado poderia ter seu território repartido por

Estados vizinhos. Eis a fórmula106:

106 SUPAN apud MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Teoria de Fronteiras: Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1990, p. 51.

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Assim, QP é o quociente de pressão; P é a população do Estado A; p, p’, p”, p’”

e p”” são a população dos Estados B, C, D, E e F, respectivamente. Se o numerador for

equivalente à soma dos valores do denominador deverá haver equilíbrio fronteiriço, e o Estado

A não será desagregado. Se, no entanto, o denominador for maior que o numerador, a

tendência é que o território do Estado A seja sucessivamente desmembrado. Outrossim, se o

numerador for maior que o denominador, o Estado A deverá iniciar movimento expansionista.

Novamente faz-se necessário lembrar Israel. Como já se revelou,

demograficamente, Israel é inferior aos Estados com que compartilha fronteiras. Todavia,

permanece incólume, quebrando suposta validade geral da teoria de Supan. Criada há várias

décadas107, não levou em consideração o desenvolvimento tecnológico. Assim, embora dotada

de certo valor científico, essa teoria não deve ser totalmente corroborada.

107 MATTOS, op. cit., p. 51.

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3. A TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA NA ORDEM

MUNDIAL DO PÓS-GUERRA FRIA

Quando, em 25 de dezembro de 1991, a União Soviética esfacelou-se,

desmoronou com ela a ordem mundial que se engendrara após o término da Segunda Grande

Guerra. A ordem mundial bipolar estabelecera-se opondo o bloco capitalista, liderado pelos

Estados Unidos, ao bloco socialista, comandado pela União Soviética. Durante todo esse

período, ao qual se denominou Guerra Fria, em que se opunham as duas superpotências

mundiais, quais sejam, os Estados Unidos e a União Soviética, havia três formas de

alinhamento a que um Estado poderia submeter-se. Assim, um Estado poderia fazer parte do

bloco capitalista ou do bloco socialista, ou ainda do Movimento Não-Alinhado. Dá-se a esse

conflito o adjetivo fria porque se tratava de um conflito não-deflagrado entre as duas

superpotências, em que havia oposição, mas insuficiente para que se iniciasse uma guerra no

sentido estrito do termo.

O Movimento Não-Alinhado surgiu na década de 1960 por iniciativa de alguns

Estados asiáticos. Reuniram-se, então, na Indonésia, 29 Estados, primordialmente africanos e

asiáticos, cuja finalidade era manter posição neutra com relação à oposição entre as duas

superpotências e a seu conflito. Intimamente unido à lógica da Guerra Fria, o movimento tem

encontrado dificuldade para manter-se relevante após o fim dela. Mesmo assim, continua

reunindo-se periodicamente. Sua última reunião ocorreu em Cuba, em setembro de 2006.

Logo em seguida à desintegração da União Soviética o mundo viveu grande

mutação. Esse acontecimento deu-se em quatro domínios diferentes: no tecnológico, no

econômico, no sociológico e no político. No domínio tecnológico assistiu-se ao esplêndido

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desenvolvimento da tecnologia. A digitalização do som, da imagem e do texto guindou a

criação, a economia, o trabalho e o lazer à era da comunicação instantânea. Assim, no domínio

econômico, o desenvolvimento da tecnologia propicia, aos que a detêm, a expansão do

controle econômico. Da nova tecnologia vale-se o poder monetário internacional para realizar

seus projetos. No domínio sociológico vislumbrou-se o poder transformar-se. Ele que era

vertical, autoritário e hierárquico tornou-se horizontal, materializado pelas redes e pelos

fluxos. No domínio político presenciou-se o desvanecimento da ordem mundial que até então

vigorara. Com efeito, na década de 1990, após algumas reformas econômicas e atenuação da

censura, a União Soviética entrou em colapso e fragmentou-se. Extinguia-se, assim, a ordem

mundial bipolar e a Guerra Fria. Com o fim do conflito e o conseqüente desaparecimento da

oposição entre as duas superpotências, a força ideológica, econômica e política que

engendrava os dois blocos antagônicos esfacelou-se e deixou em seu lugar uma lacuna. Então,

“desorientadas, as sociedades [...] [lançaram-se] desesperadamente em busca de sentido e de

modelos”108.

Estabelecer-se-ia, inexoravelmente, a ordem mundial multipolar, composta

pelos Estados Unidos, pelo Japão e pela União Européia, a denominada tríade, sem, contudo,

possuir a força política, econômica e ideológica que possuía sua predecessora bipolar. Os

conflitos, então, passariam a ser compreendidos como conflitos culturais, como conflitos que

oporiam civilizações, materializando-se, sobretudo, territorialmente, pois, como já se

evidenciou, a cultura somente se materializa em um território, e o controle dele pode significar

o triunfo ou a decadência dessa cultura. Assim, “é muito apropriado que os conflitos

108 RAMONET, Ignacio. Guerras do Século XXI: novos temores e novas ameaças. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 18.

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[culturais] [...] sejam denominados ‘guerras de identidade’”109, porque, efetivamente, basear-

se-iam na comparação cultural e no suposto perigo que o outro passaria a representar. A

ordem mundial, a partir de então, territorializar-se-ia, principalmente, segundo critérios

culturais.

3.1. A CULTURA E OS BLOCOS ECONÔMICOS Bloco econômico pode ser definido como união de Estados cujo objetivo é a

integração econômica e a cooperação entre si. A constituição do primeiro grande bloco

econômico moderno data de 1951, quando Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Bélgica e

Luxemburgo criaram a CECA. Assim, por intermédio do Tratado de Paris, os signatários do

acordo teriam a exploração e as indústrias nacionais do carvão e do aço integradas e postas sob

o controle direto da Alta Autoridade110, encarregada de elaborar as políticas relativas ao

carvão e ao aço e que concentrava poderes delegados pelos Estados-membro. A reunião dos

recursos sob controle comum introduzia a noção de soberania compartilhada, dissolvendo

parcialmente os nacionalismos europeus. Era um passo que apontava para um horizonte

amplo: a expansão do controle comum para outros campos da economia e da política. A

CECA constituía-se, dessa forma, na precursora da União Européia.

109 HUNTINGTON, op. cit., p. 338. 110 A Alta Autoridade era o órgão central e decisório da CECA e era composta por um número igual de indivíduos por Estado-membro. Cada um dos seis Estados-membro designava diretamente seus representantes. Ela possuía a faculdade de agir com plena independência. Além da Alta Autoridade, completavam a gerência da CECA o Conselho Especial de Ministros, a Assembléia Comum e a Corte de Justiça.

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Os blocos econômicos possuem, normalmente, quatro níveis de integração

econômica111. Partindo-se da mais elementar forma de associação para a mais complexa tem-

se:

• Área de livre comércio: caracteriza-se pela isenção das tarifas de importação de

mercadorias entre os países-membro do bloco. O NAFTA encontra-se neste estágio.

• União aduaneira: possui objetivos mais amplos do que os da área de livre comércio,

como estabelecer regras comuns de comércio com Estados exteriores ao bloco e criar

tarifa externa comum. O MERCOSUL é um bloco econômico que constituiu uma

união aduaneira.

• Mercado comum: caracteriza-se no bloco econômico em que os países-membro, já

tendo efetivado a união aduaneira, decidem permitir a livre circulação de mão-de-obra

e de capital entre eles.

• União monetária: é o estágio em que alguns ou todos os Estados-membro do bloco

econômico optam por unificar as moedas nacionais ao submeterem-se ao controle de

um banco central supranacional. A União Européia atingiu este estágio.

Assim, faz-se interessante notar que as organizações econômicas internacionais

que prescindem de unidade cultural ou, mais precisamente, dispensam a unidade

civilizacional, defrontam-se com sérios obstáculos à sua viabilização. A ASEAN, composta

por dez Estados do Sudeste Asiático112, é exemplo da limitação com que uma organização

multicivilizacional opera. Ela é formada por Estados pertencentes à civilização ocidental, à

111 HUNTINGTON, ibid., p. 161. 112 Compõem a ASEAN: Birmânia, Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Tailândia e Vietnã. Possuem status de observador: Papua Nova Guiné e Timor Oriental.

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civilização sínica e à civilização islâmica. Freqüentemente mencionam-na como uma

organização eficaz. Porém, conquanto eficaz, é limitada. Fundada em 1967, a ASEAN tem

como principais objetivos acelerar o crescimento econômico e fomentar a paz e a estabilidade

regionais. Entretanto, o que se observa é uma expansão dos orçamentos militares e um

engajamento em programas de rearmamento113, em contraste com os membros da União

Européia e do Mercosul que, salvo exceções, como a Venezuela, têm buscado diminuir os

gastos militares.

Ainda, em 1992 os Estados-membro da ASEAN decidiram transformá-la em

uma área de livre comércio, que se concretizaria somente em 2008. Em outras palavras, a

ASEAN levou 25 anos para decidir-se pela área de livre comércio, e consumiria ainda mais 16

anos para implantá-la. O que ainda não ocorreu. Ao contrário, os Estados que compõem o

MERCOSUL, todos pertencentes à civilização ocidental, criaram-no em 1991, já sob a forma

de área de livre comércio e, em 1995, transformaram-no em união aduaneira. Vê-se, assim,

que se tudo correr bem, a ASEAN multicivilizacional atingirá, em pouco mais de 40 anos, o

que o MERCOSUL unicivilizacional teria alcançado em apenas quatro114.

Atualmente, uma das maiores organizações econômicas do mundo é a APEC.

Ela foi criada em 1989, reunindo 21 Estados115, e era inicialmente apenas um fórum de

discussões entre os Estados da ASEAN e alguns de seus principais parceiros comerciais. No

entanto, em 1993, tornou-se um bloco econômico que congrega Estados da Oceania, da Ásia e

da América, pertencentes à civilização ocidental, à civilização sínica, à civilização islâmica, à

113 HUNTINGTON, ibid., p. 162. 114 O MERCOSUL, embora nominalmente componha uma união aduaneira, na prática vem enfrentando problemas para efetivar os dispositivos dessa forma de união. 115 Fazem parte da APEC: Austrália, Brunei, Canadá, Cingapura, Chile, China, Filipinas, Formosa, Hongue Congue, Indonésia, Japão, Coréia do Sul, Malásia, México, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Peru, Rússia, Tailândia, Estados Unidos da América e Vietnã.

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civilização japonesa e à civilização ortodoxa. A APEC decidiu em 1994 transformar-se

também em área de livre comércio. Essa transformação, contudo, não se daria de forma

homogênea. Primeiramente comporiam a área de livre comércio os Estados de capitalismo

avançado, estabelecendo-a em 2010. Posteriormente, em 2020, integrá-la-iam os Estados de

capitalismo tardio116. Alguns dos Estados-membro têm questionado os objetivos da APEC

que, segundo eles, funcionaria como um mecanismo para desregulamentar mercados e

aumentar o lucro dos Estados-membro de capitalismo avançado, sem que a organização

promovesse o desenvolvimento conjunto de todos seus Estados-membro. Dessa forma, é

provável que “só surgirão organizações regionais de peso na Ásia Oriental se houver aspectos

culturais comuns asiático-orientais suficientes para sustentá-las”117.

Com relação à Europa, a situação é menos problemática. A principal

organização do continente europeu, a União Européia, não é somente uma organização

econômica; é também uma organização política, e é referência mundial em questões de

integração regional. Ela atingiu o mais alto nível a que pode ascender uma organização

econômica, ou seja, a união monetária. Compõem-na 27 Estados118, todos da civilização

ocidental, com exceção de quatro, a Grécia, Chipre, que aderiu à união em 2004, e Bulgária e

Romênia, recentemente admitidos. Esses quatro Estados pertencem à civilização ortodoxa, e

116 A APEC, em seu sítio, não informa quais Estados seriam os de capitalismo avançado nem quais seriam os de capitalismo tardio e, para referir-se a eles, utiliza-se, respectivamente, das expressões developed economies e developing economies. Optou-se pelas expressões capitalismo avançado e capitalismo tardio por atualmente serem consideradas mais corretas do que as expressões economias desenvolvidas e economias em desenvolvimento, que fazem lembrar a anacrônica e aparentemente estanque Teoria dos Três Mundos. 117 HUNTINGTON, ibid., p. 163. 118 Fazem parte da União Européia: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Espanha, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Romênia e Suécia.

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Chipre possui ainda uma minoria turca119 bastante influente. Alguns dos mais importantes

distúrbios diplomáticos por que passou a União Européia foram causados pela Grécia. Assim,

na sua oposição aos turcos, os gregos historicamente se consideraram como os

lanceiros do Cristianismo. Ao contrário dos sérvios, romenos e búlgaros, sua história

está intimamente entrelaçada com a do Ocidente. No entanto, a Grécia também é uma

anomalia, o estranho ortodoxo nas organizações ocidentais. Nunca foi fácil para ela ser

membro quer da UE quer da OTAN, e ela teve dificuldades em se adaptar aos

princípios e costumes de ambas. [...] Seus dirigentes freqüentemente parecem se

esforçar por desviar-se das normas ocidentais e por antagonizar os governos ocidentais.

Ela era mais pobre do que os outros membros da Comunidade e da OTAN [...]. Seu

comportamento na presidência do Conselho da UE, em 1994 exasperou outros

membros, e autoridades européias ocidentais, em privado, consideram um erro tê-la

como membro.

No mundo pós-Guerra Fria, as políticas da Grécia se afastam cada vez mais das do

Ocidente. [...] No contexto de seus conflitos com a ex-Iugoslávia, a Grécia se separou

das políticas adotadas pelas principais potências européias, apoiou ativamente os

sérvios e violou flagrantemente as sanções das Nações Unidas a eles impostas120.

Vê-se que paulatinamente a Grécia tem negligenciado alguns de seus

compromissos firmados com seus aliados ocidentais e se tem voltado para seus pares

ortodoxos. Agora, outros dois Estados pertencentes à civilização ortodoxa aderiram à União

Européia em janeiro de 2007, pois a Comissão Européia121 assim deliberou: a Bulgária e a

Romênia. Assim, são quatro os Estados que não pertencem à civilização ocidental. Dois deles

119 A minoria turca de Chipre concentra-se na autoproclamada República Turca de Chipre do Norte, reconhecida somente pela Turquia, e pertence à civilização islâmica. 120 HUNTINGTON, ibid., p. 203. 121 A Comissão Européia é o motor do sistema institucional comunitário, é seu órgão executivo. Seu presidente é indicado por cada um dos Estados-membro da União Européia e o Parlamento Europeu ratifica a indicação ou não. Os restantes membros da comissão são também indicados pelos Estados-membro mas, além da aprovação do Parlamento Europeu, dependem da aprovação do presidente da comissão. Ela é nomeada por um período de cinco anos e pode ser demitida pelo Parlamento Europeu.

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emersos de décadas de planificação econômica que minou a base econômica e tornou a infra-

estrutura obsoleta. Ainda atualmente Bulgária e Romênia buscam desvencilhar-se do passado

sob a planificação econômica. Com relação à riqueza dos Estados-membro da União Européia

é ainda possível realizar uma observação de suma importância. Observe-se a tabela 2:

Tabela 2 – Indicadores dos Reagrupamentos Transnacionais da União Européia* (1991)

Região

Superfície

(%)

População

(%)

Densidade (hab/km2)

PIB per capita

(Europa dos 12 = 100)

Desemprego

(%)

Centro das Capitais 11,2 25,9 337 116 7,6

Arco Alpino** 13,6 15,9 184 122 4,6 Diagonal

Continental 18,8 6,0 47 87 10,1

Novos Bundesländer*** 4,7 4,6 242 33 14,1

Arco Latino 12,9 11,0 125 91 15,3 Mediterrâneo

Central 9,8 8,4 126 62 18,9

Arco Atlântico 21,1 13,5 94 80 10,0 Mar do Norte 8,4 13,4 232 99 8,6 Europa dos

Doze**** 100 100 153 100 9,4 Fonte: GURISATTI, Paolo. O Nordeste Italiano: nascimento de um novo modelo de organização industrial. In: COCCO, Giuseppe; URANI, André; GALVÃO, Alexander Patez (Orgs.). Empresários e Empregos nos Novos Territórios Produtivos: o caso da Terceira Itália. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, p. 77-99. * A tabela apresenta pequenas incoerências com relação ao somatório das porcentagens da população e da superfície e com relação à taxa de desemprego da Europa dos Doze. Tampouco se especifica claramente a regionalização adotada. ** Áustria e Suíça excluídas. *** Bundesländer é uma palavra alemã, e é também o plural de bundesland, que significa, literalmente, Estado da federação. É o nome que se dá às maiores divisões administrativas da Alemanha. Os Novos Bundesländer são, portanto, aqueles que constituíam a Alemanha Oriental. Há, atualmente, 16 bundesländer. **** Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Espanha, Países Baixos, Bélgica, Dinamarca, Portugal, Grécia, Irlanda e Luxemburgo.

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Dessa forma, tratando-se apenas da Europa dos Doze, antes, portanto, da

adesão da Áustria, da Finlândia e da Suécia, muito se divulga que Portugal, Grécia e Irlanda

são os Estados mais pobres da União Européia. Há uma certa verdade nisso, uma vez que

Portugal, Grécia e Irlanda constituem, juntamente com grande parte da Espanha, com o sul da

Itália, com a Irlanda do Norte e com a Córsega, uma periferia européia. Mas pouco ou nada se

diz que, considerando-se ainda somente a Europa dos Doze, a região mais pobre é a região

correspondente à Alemanha Oriental. Obviamente que esse relativo atraso se deve à

obsolescência econômica e estrutural herdada das décadas sob o regime socialista de economia

planificada, mas é interessante notar que, se a média do PIB per capita da Europa dos Doze

for fixada em 100122, o PIB per capita dos novos bundesländer não passa de 33, enquanto na

região em que se encontra a Grécia, esse valor é de 62. Deste fato deduz-se que há que se fazer

uso de circunspecção quando for necessário discorrer acerca de ricos e de pobres dentro da

União Européia. Infere-se também que a pujança econômica alemã mascara o atraso dos novos

bundesländer.

Observa-se, assim, que no passado, o padrão do comércio internacional tendia a

acompanhar o padrão das alianças estabelecidas segundo a lógica da Guerra Fria, entretanto,

atualmente tem se fortalecido movimento que propende a alterar esse padrão e a estabelecer

outro, que privilegie o comércio internacional entre Estados culturalmente semelhantes123.

Faz-se possível, também, perceber que quanto mais um bloco econômico é culturalmente

homogêneo, tanto mais sua organização e efetivação tornam-se fáceis e proveitosas.

122 Esta cifra é mero quantificador que representa uma média do PIB per capita da União Européia e não se expressa por nenhuma moeda nacional. 123 HUNTINGTON, ibid., p. 166.

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3.2. A CULTURA, OS IDIOMAS E OS ALFABETOS

Quando a ordem mundial engendrada durante a Guerra Fria ruiu, os Estados

sentiram-se livres para realinhar-se entre si e estabelecer novas parcerias, novos blocos e

novas associações. Ao refletir acerca da identidade que forja as civilizações e as estrutura, é

interessante notar as mudanças lingüísticas proporcionadas pela falência da ordem mundial da

Guerra Fria, pois a escrita e o idioma, então, tornaram-se ainda mais instrumentos de poder e

de identidade cultural.

Durante quase um século, sérvios e croatas, unidos pela federação iugoslava,

denominavam seu idioma comum de servo-croata. O servo-croata era, na verdade, um

diassistema124, mas havia consenso em denominá-lo dessa maneira, e não separadamente:

sérvio e croata. Ainda assim, os croatas o escreviam com o alfabeto latino, e os sérvios com o

alfabeto cirílico. Todavia, essa relativa harmonia acabou quando os dois Estados entraram em

guerra, em 1991. Imediatamente aconteceu a ruptura, e o servo-croata não mais haveria. A

partir de então, haveria dois idiomas separados: o sérvio e o croata. Ainda com relação ao

sérvio e ao croata, é interessante notar que, “essencialmente, é a crença religiosa que decide

quais dos povos que falam eslavo se utilizam do alfabeto cirílico. Os eslavos ortodoxos

escrevem no cirílico e os outros no latino. A linha divisória se faz sentir em uma língua: o

‘servo-croata’”125.

124 Diassistema é o termo da Lingüística que designa um supersistema virtual que há na base de dois sistemas contíguos que compõem as variantes do diassistema. Em outras palavras, um diassistema é o sistema virtual estabelecido na base de dois ou mais idiomas cujo grau de inteligibilidade mútuo é muito grande. Assim, o português e o galego compõem um diassistema, pois o português, de um lado, e o galego, de outro, formam as variantes do diassistema e há, na base de cada um dos idiomas, o sistema virtual que os dota de alta inteligibilidade mútua. Formam outros diassistemas o búlgaro e o macedônio; o catalão e o valenciano; o dinamarquês, o norueguês em sua variante bokmål e o sueco; o hindi e o urdu; o romeno e o moldavo. 125 STÖRIG, Hans Joachim. A Aventura das Línguas: uma história dos idiomas do mundo. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2003, p. 53.

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Vários outros Estados realizaram mudança semelhante, notadamente aqueles

que compunham a União Soviética. Demonstrando conhecer a força subjugadora que detém a

cultura, o governo de Moscou impôs o russo e o alfabeto cirílico a algumas das repúblicas que

faziam parte do Estado soviético. Assim, com a desintegração da União Soviética, não tardou

para que o Azerbaijão, o Turcomenistão e o Uzbequistão126 abandonassem o alfabeto cirílico e

adotassem o alfabeto latino de seu modelo cultural maior, a Turquia. Ela, aliás, em um enorme

esforço, tanto estatal quando humano para aproximar-se da civilização ocidental, deixaria o

alfabeto árabe, com que o turco era escrito, e adotaria o alfabeto latino ainda na década de

1920.

Essa foi apenas uma das mudanças a que a Turquia foi submetida por Mustafá

Kemal Atatürk para ocidentalizá-la. As imposições do Tratado de Sèvres ao Império Otomano

fizeram com que os nacionalistas, liderados por Atatürk, se levantassem e buscassem revogar

o tratado, que fora assinado pelo sultão. Entre outras medidas, o tratado previa a repartição do

império entre a França, o Reino Unido e a Grécia. Assim, em setembro de 1922, os

nacionalistas conseguiram expulsar as forças estrangeiras que já ocupavam o território turco e,

dois meses depois, a Grande Assembléia Nacional Turca proclamou a república ao depor o

sultão e abolir o califado127. Então, em 1923, designou-se Atatürk para a presidência da

república.

Ao ascender, Atatürk deu início a uma série de reformas políticas e culturais

que deveriam modernizar e ocidentalizar a Turquia. Assim, as escolas teológicas foram

126 O turco, o azerbaijano, o turcomeno e o uzbeque são línguas altaicas, mais precisamente do ramo turco. Guardam, por isso, certa similaridade. 127 O califado era a posição de liderança nominal no islamismo, exercida pelos sultões otomanos, quando de sua abolição.

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fechadas, a xariá128 foi substituída pelo código civil suíço. Adotaram-se também princípios do

código comercial alemão e do código penal italiano. O uso do fez129 pelos homens foi

proibido, bem como o do véu pelas mulheres. Elas, ainda, foram encorajadas a usar roupas de

estilo ocidental e a ingressar no mercado de trabalho. A representação visual de formas

humanas, proibida pelo islã, foi reintroduzida por Atatürk, que abriu escolas de arte, tanto para

homens quanto para mulheres. Revogou-se a proibição islâmica do consumo de álcool.

É nesse contexto que se abandonou o alfabeto árabe e adotou-se o alfabeto

latino. Por causa dessa mudança, todos os cidadãos, dos seis aos 40 anos foram obrigados a

freqüentar a escola para aprender o novo alfabeto. Com o tempo, tornar-se-ia impossível às

novas gerações, que somente haviam sido ensinadas com o alfabeto latino, entrar em contato

com a vasta literatura tradicional. Pouco a pouco a Turquia abandonava seu passado islâmico e

buscaria ser admitida na civilização ocidental.

A Romênia, outrora conhecida como Dácia, permaneceu romana por apenas

dois séculos. Foi, no entanto, tempo suficiente para que o latim dos dominadores romanos se

impusesse e constituísse a base da língua romena. Ao permanecer isolada das outras línguas

latinas até meados do século XVI, conservou vocabulário único. Sua gramática permaneceu

similar à do latim e preservou, ao contrário de suas irmãs ocidentais, um sistema de

declinações, embora ínfimo, e o gênero neutro que, no português, somente é reconhecido nos

pronomes isto, isso, aquilo, al, nada, algo e tudo. Pertencente à civilização ortodoxa, em que o

alfabeto cirílico é de longe o majoritário, a Romênia utilizou-se primeiramente dele para grafar

seu idioma. Entretanto, na segunda metade do século XIX, talvez por deferência a seu passado

128 A xariá é a lei canônica islâmica, ou seja, é um conjunto de preceitos morais presentes no Alcorão que serve de orientação para a vida civil e religiosa dos muçulmanos. 129 O fez é um pequeno chapéu de feltro ou de pano. Tornou-se muito popular no Império Otomano, quando foi incorporado ao traje oficial do governo.

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romano ou buscando timidamente ocidentalizar-se, aboliu o alfabeto cirílico em favor do

alfabeto latino.

Da mesma forma que os Estados da Ásia Central, a Moldávia, vítima de uma

russificação violenta, ao livrar-se do jugo soviético, abandonou o alfabeto cirílico que lhe fora

imposto e adotou o alfabeto latino tal qual fizera a Romênia. É preciso esclarecer ainda que a

região separatista da Transnístria, composta predominantemente por russos e por ucranianos,

não abandonou o alfabeto cirílico, e continua a grafar o moldavo como sempre fora grafado

desde os tempos da União Soviética. Nota-se, assim, o apego à cultura e à identidade que, por

fim, manifesta-se territorialmente, pois a Transnístria declarou unilateralmente a

independência e recusa-se a integrar a Moldávia.

3.3. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS EUROPEUS Quanto à questão da diversidade civilizacional, o mais diversificado continente

é a Ásia. Nela há fragmentos da civilização ocidental, há grande parte da civilização islâmica e

da civilização ortodoxa e a totalidade da civilização hindu, da civilização japonesa e da

civilização sínica. É na Europa, contudo, que os conflitos territoriais e culturais evidenciam-se

mais fortemente e é principalmente a ela que se voltará a atenção deste trabalho.

A Europa divide-se, primordialmente, entre duas civilizações, quais sejam, a

civilização ocidental e a civilização ortodoxa. Há, no entanto, três Estados da civilização

islâmica na Europa, a Albânia, a Bósnia e a Turquia. Assim, a confluência européia dessas três

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civilizações, dá-se nos Bálcãs130. Os conflitos que marcam os Bálcãs surgiram há séculos. A

região é a tal ponto problemática que apareceram, em diversos idiomas131, um verbo e um

substantivo derivados de seu nome. Em português diz-se: balcanizar e balcanização. Então,

balcanizar, ou levar à balcanização, seria sinônimo de promover conflitos, de exacerbar

rivalidades culturais e de incitar e provocar o separatismo. De outra maneira, balcanização

seria a “confusão de nacionalidades ou etnias, culturas e religiões, consubstanciada na

ocorrência frequente (sic) de litígios fronteiriços”132. Atualmente, sobretudo nos próprios

Bálcãs, tem-se abandonado essa denominação e tem-se adotado uma outra, vista como menos

pejorativa: Europa do Sudeste.

Os dois termos teriam surgido no início do século XX com a deflagração das

Guerras Balcânicas, que se estenderam de 1912 a 1913. Esse conflito consistiu, na verdade,

em duas guerras curtas entre a Bulgária, a Grécia, Montenegro, a Romênia, a Sérvia e o

Império Otomano. Em 1912 configurou-se a Liga Balcânica, aliança entre a Bulgária, a

Grécia, Montenegro e a Sérvia, com o estímulo da Rússia, contra o Império Otomano, que já

estava em evidente declínio político, cultural e econômico. Assim, a Liga Balcânica pôde

vencê-lo sem grandes dificuldades. Entretanto, quando a diplomacia das potências européias

passou a intervir para redesenhar as fronteiras balcânicas em favor da Bulgária e em

detrimento da Sérvia, a liga rompeu-se.

130 A palavra bálcãs, originalmente, designava uma cadeia de montanhas que, freqüentemente é vista como uma extensão dos Cárpatos. Os Bálcãs, entretanto, estão separados dos Cárpatos pelo rio Danúbio. Posteriormente, passou-se a designar grande parte do sudeste da Europa por Bálcãs. Assim, fazem parte dos Bálcãs a Albânia, a Bósnia, a Bulgária, a Croácia, a Grécia, Montenegro, a Macedônia, a Sérvia e a porção européia da Turquia. Alguns estudiosos incluem também a Eslovênia e a Romênia. 131 Em espanhol: balcanizar e balcanización; em inglês: to balkanize e balkanization; em italiano: balcanizzare e balcanizzazione; em francês: balcaniser e balcanisation, para citar alguns exemplos. 132 BOM, João Carreira. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Balcanização / mexicanização. Lisboa, 2001. Disponível em: <http://ciberduvidas.sapo.pt/php/resposta.php?id=7708>. Acesso em 29 set. 2006.

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A Bulgária, antevendo que seria alvo da cobiça de Atenas e de Belgrado por

conta de suas conquistas territoriais, pois havia ocupado a Macedônia e a Trácia, lançou-se,

em um ataque preventivo, contra a Grécia e contra a Sérvia. Sua estratégia teria sido bem

sucedida se a Romênia, até então neutra, não a tivesse atacado, ocupado parte de seu território

e ameaçado marchar até Sófia. Dessa forma, em 1913, a Grécia e a Sérvia obtiveram os

ganhos territoriais a que tanto ansiavam, a Romênia tomou uma parte do território búlgaro e a

Albânia, até então subjugada pelo Império Otomano, tornou-se independente.

A Sérvia, por fim, conseguira realizar um de seus maiores intentos, o de

constituir a Grande Sérvia, um Estado que reunisse grande parte das populações eslavas

dispersas pelos Bálcãs. Assim, o Império Austro-Húngaro passou a sentir-se ameaçado pelo

nacionalismo sérvio, que recebia, novamente, o apoio russo. O assassinato do arquiduque

Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húngaro em Saraievo, por um sérvio, tornou-se o

pretexto para que o Império Austro-Húngaro invadisse a Sérvia. Alguns meses depois

irromperia a Primeira Grande Guerra.

Faz-se imprescindível, então, analisar as alianças que se constituíram desde as

Guerras Balcânicas. A Liga Balcânica reuniu quatro Estados ortodoxos contra um Estado

multicivilizacional133 mas predominantemente islâmico. A liga recebeu ainda o apoio da

Rússia, o principal Estado da civilização ortodoxa. Com o apoio dado à liga, os russos

almejavam dois objetivos: o primeiro era enfraquecer o Império Otomano militar e

politicamente, pois, como já se expôs, detinha o controle do acesso russo ao oceano através do

estreito de Bósforo, do mar de Mármara e do estreito de Dardanelos e ainda possuía grande

133 O Império Otomano, no início do século XX, dominava ainda vastos territórios em que se encontravam populações pertencentes à civilização ocidental e à civilização ortodoxa. Por isto considera-se que fosse um Estado multicivilizacional, embora predominantemente islâmico.

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influência sobre as populações islâmicas do Cáucaso134; o segundo, marcadamente

etnocultural, era livrar as populações ortodoxas dos Bálcãs do jugo otomano e, ao mesmo

tempo, promover sua união em torno da Sérvia, tradicional aliada dos russos.

Esse esforço fazia parte do movimento que buscava a união dos eslavos, o pan-

eslavismo. O movimento surgiu no século XIX e, inicialmente, agregou poloneses, checos,

eslovacos, croatas, sérvios, eslovenos e russos. A Rússia, entretanto, aproveitou-se do

movimento em benefício próprio, anelando expandir sua influência e constituir-se potência. A

partir de então as populações eslavas com identidade ocidental afastaram-se do movimento

que, progressivamente, tornava-se mais ortodoxo, antiocidental e antiturco. Pode-se perceber,

então, que a cultura, para as populações eslavas com identidade ocidental era mais importante

do que a etnicidade135 pois, caso contrário, não teriam abandonado o pan-eslavismo quando

tornou-se exageradamente ortodoxo, antiocidental e antiturco.

Além dos Bálcãs, outra região européia chama a atenção: a Europa Oriental.

Nela os conflitos são menos agudos do que nos Bálcãs, mas os há. Assim, tanto os Bálcãs

como a Europa Oriental possuem conflitos territoriais e culturais dignos de interesse porque a

fronteira entre a civilização ocidental e a civilização ortodoxa e a civilização islâmica os

divide, como se pode observar na figura 8:

134 O Cáucaso é uma cordilheira situada no extremo sudeste da Europa. Por extensão, designa também a região em seu entorno, em que há três Estados: a Armênia e a Geórgia, ortodoxas, e o Azerbaijão, predominantemente islâmico. 135 Cumpre fazer uma breve exposição acerca do uso de cultura e de etnia neste trabalho. O primeiro conceito, como já se expôs, refere-se a atitudes, costumes e crenças que são assumidos por um grupo de pessoas, independentemente de fatores biológicos. A etnia, ao contrário, refere-se a questões biológicas. Em outras palavras, um grupo de pessoas pode escolher a cultura a que queira pertencer, mas não pode escolher sua etnia. Assim, tem-se como exemplo os eslavos. Uma grande parte deles optou por ter identidade ocidental, a despeito de sua etnicidade eslava, enquanto outra parte escolheu ter identidade ortodoxa.

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A fronteira cultural entre a civilização ocidental e a civilização ortodoxa

coincide, de norte para sul, com as fronteiras políticas entre a Noruega, a Finlândia, a Estônia

e a Letônia, ocidentais, e a Rússia, obviamente ortodoxa. Contudo, a Bielorrússia, a Romênia,

a Sérvia e a Ucrânia têm, cada uma, seu território cindido entre o Ocidente e a ortodoxia. A

Bielorrússia, talvez por sua pequena população136 amplamente russificada, mesmo estando

dividida pela fronteira cultural, parece não apresentar conflitos intensos como apresenta sua

vizinha meridional, a Ucrânia. A situação da Romênia e da Sérvia é similar. A Transilvânia

romena e a Voivodina sérvia possuem expressiva população húngara e católica, e tanto o

governo de Bucareste quanto o governo de Belgrado esforçam-se diplomaticamente com a

136 A Bielorrússia possui pouco mais de dez milhões de habitantes.

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ajuda do governo de Budapeste para amenizar a tensão latente na Transivânia e na Voivodina.

A Ucrânia constitui assim, dada a intensidade de seus conflitos, um caso emblemático.

3.3.1. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NA UCRÂNIA

O território ucraniano, de mais de 600 mil quilômetros quadrados, abriga uma

população de aproximadamente 47 milhões de habitantes e é cindido pela fronteira cultural

entre a civilização ocidental e a civilização ortodoxa quase ao meio, como se pode observar na

figura 9:

Em outras palavras, as fronteiras políticas da Ucrânia não coincidem com as

fronteiras culturais. A porção oriental do território pertence à civilização ortodoxa, sua

população fala predominantemente o russo, submete-se ao patriarcado de Moscou ou ao

patriarcado de Kiev e politicamente alinha-se à Rússia. A porção ocidental da Ucrânia

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pertence à civilização ocidental, fala ucraniano, pertence à Igreja Católica Ucraniana137, em

plena comunhão com o bispo de Roma, embora conserve a liturgia oriental, e alinha-se ao

Ocidente.

Durante as eleições presidenciais realizadas na Ucrânia em novembro de 2004,

assistiu-se aos efeitos da incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais. Na

realização do primeiro turno nenhum dos candidatos obteve a maioria necessária para vencer

as eleições. Então elas seriam disputadas em segundo turno pelos dois candidatos mais

votados: Viktor Yanukovich, ligado ao leste da Ucrânia e à Rússia, e Viktor Yushchenko,

ligado ao oeste da Ucrânia e ao Ocidente.

Assim, após a apuração dos votos, a Comissão Central Eleitoral declarou que

Yanukovich recebera 49,46% deles e Yushchenko, 46,61%. Imediatamente observadores

internacionais denunciaram as eleições afirmando que houvera manipulação de votos e

intimidação de eleitores. Ao mesmo tempo, centenas de milhares de pessoas na capital, Kiev, e

no oeste da Ucrânia iniciaram protestos que durariam dias. A União Européia e os Estados

Unidos declararam que não reconheciam o resultado das eleições. A Rada Suprema138, então,

desqualificou-o, alegando que realmente houvera inúmeras fraudes. Essa declaração do

parlamento, no entanto, seria inócua legalmente, pois a ele não cabe julgar processos

eleitorais. A declaração, a despeito de não ter poder legal, seria o prenúncio dos graves

conflitos territoriais e culturais na Ucrânia.

137 Seu nome oficial é, no entanto, Igreja Greco-Católica Ucraniana (em ucraniano: Українська Греко-Католицька Церква). Simplificadamente diz-se apenas Igreja Católica Ucraniana. A designação uniata, que muitas vezes se lhe atribui, é considerada pejorativa e ofensiva pelos católicos ucranianos, pois denotaria oposição à plena comunhão com Roma. 138 A Rada Suprema é o parlamento ucraniano (em ucraniano: Верховна Рада України).

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Reagindo aos protestos em Kiev e no oeste, a população do leste e, em especial

do sudeste, alertou que não toleraria que tirassem a vitória de Yanukovich. Do mesmo modo,

os governadores de três províncias no sudeste ameaçaram separar-se da Ucrânia caso o

resultado das eleições fosse alterado. Por todo o mundo chegou-se a prever a balcanização da

Ucrânia, ao estilo iugoslavo. O governo de Moscou, que abertamente apoiou Yanukovich,

considerou as eleições transparentes e, devido às declarações do Ocidente, avisou que a crise

eleitoral era um problema interno ucraniano e que o Ocidente deveria abster-se. Ao tomar tal

atitude, a Rússia estava simplesmente reafirmando sua proeminência de Estado mais

importante da civilização ortodoxa e, ao mesmo tempo, demonstrando que ainda considera a

Ucrânia um Estado-satélite que deve permanecer sob sua influência139.

Quatro dias depois das eleições, com os conflitos já deflagrados, Yushchenko

apelou à Suprema Corte que cancelasse oficialmente o resultado das eleições. A Suprema

Corte iniciou o julgamento da apelação e das denúncias de fraude, mas imediatamente impediu

que a Comissão Eleitoral Central promulgasse o resultado140. Uma semana depois de iniciado

o julgamento, a Suprema Corte declarou as eleições inválidas e determinou que novas eleições

fossem realizadas. Novamente há o recrudescimento dos conflitos que, dessa vez, atingem a

Rússia, em que manifestantes saem às ruas para exigir de Moscou que faça confirmar

Yanukovich como presidente.

Assim, depois de realizadas as novas eleições, Yushchenko foi eleito presidente

da Ucrânia, em um pleito eleitoral que foi considerado normal pelos observadores

139 No atual território da Ucrânia, ainda no século IX, constitui-se o Principado de Kiev que, posteriormente, daria origem à Rússia, à Ucrânia e à Bielorrússia. Assim, a Rússia enxerga a Ucrânia, e também a Bielorrússia, como uma extensão de si mesma e procura tutelá-las. 140 A lei ucraniana determina que o candidato eleito tome posse até 30 dias depois da promulgação do resultado das eleições.

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internacionais. A resistência de Yushchenko e de seus partidários contra o resultado

manipulado das outras eleições ficou conhecida como Revolução Laranja, pois o laranja é

uma das cores da bandeira ucraniana e foi a cor escolhida para representar a luta dos

ucranianos por eleições justas.

É fácil, então, perceber quão presentes estavam os aspectos culturais nos

conflitos ucranianos e como eles se refletiram territorialmente. Tão fortemente presentes que

houve até ameaça de secessão do sudeste da Ucrânia. A exigência de Moscou para que o

Ocidente se mantivesse longe dos conflitos internos ucranianos revelou-se tentativa grosseira

da Rússia de manter a Ucrânia sob sua influência. Com efeito, o Ocidente simplesmente

explicitou que as eleições não foram honestas e que não reconheceria o resultado, mas a

Rússia, mesmo com a grande oposição ucraniana às eleições fraudadas, pressionou o governo

de Leonid Kuchma, então presidente da Ucrânia e aliado de Yanukovich, para que não se

realizassem novas eleições.

É preciso lembrar, ainda, que os conflitos ucranianos não são exclusivamente

culturais, como se somente a dualidade cultural ucraniana, expressada territorialmente, fosse a

responsável pelos conflitos. Praticamente indissociáveis, cultura e política permanecem

próximas uma da outra, alternando-se e mesclando-se, e determinando o rumo dos conflitos.

Seria reducionismo, da mesma forma, creditar os conflitos somente a causas políticas pois, se

assim fosse, a oposição entre a força que ansiava manter o statu quo e a força que o buscava

alterar não teria apresentado o caráter marcadamente territorializado pela cultura que

apresentou.

Ainda, fazem-se necessárias algumas observações a respeito dos conflitos

territoriais e culturais ucranianos. Como já se expusera, cultura e religião sempre estiveram

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profundamente ligadas. Durante os conflitos, os ortodoxos ucranianos que se submetem ao

patriarcado de Moscou apoiaram Yanukovich, e os católicos solidarizaram-se a Yushchenko.

Sabe-se que na eclesiologia141 oriental os acontecimentos políticos incidem diretamente na

estrutura da igreja. Com a independência ucraniana, muitos passaram a defender a idéia de que

a Igreja Católica Ucraniana deveria constituir-se em patriarcado142, pois consolidar-se-ia assim

mais um dos tantos desligamentos que Kiev teria de realizar em relação a Moscou para

efetivamente fortalecer a identidade nacional ucraniana e impossibilitar que a Rússia se

intrometesse tão facilmente nos assuntos da Ucrânia.

Entretanto, nem o governo russo nem o patriarcado de Moscou vêem com

satisfação a elevação da Igreja Católica Ucraniana à condição de patriarcado e,

conseqüentemente, de seu arcebispo-mor a patriarca, pois enxerga nessa mudança um

desligamento entre os dois Estados e uma afirmação da identidade nacional ucraniana, que

dificultaria ainda mais a ingerência russa na Ucrânia. Assim, a criação do patriarcado, em

essência uma alteração honorífica do status de uma igreja, teria conseqüências políticas e

culturais.

3.3.2. OS CONFLITOS TERRITORIAIS E CULTURAIS NOS BÁLCÃS

Os Bálcãs, como já se fez notar, dividem-se entre três civilizações: a civilização

ocidental, a civilização ortodoxa e a civilização islâmica. A constituição, em 1918, da

141 Eclesiologia é o ramo da Teologia que trata da doutrina da Igreja sobre si mesma. Em outras palavras, estuda como a Igreja vê a si própria, como entende sua missão e sua presença no mundo, sua estrutura e sua forma de governo. 142 O patriarcado é a circunscrição eclesiástica de um patriarca, que é um título honorífico concedido a um hierarca que possui ascendência jurídica ou honorífica em relação a um território, a um rito ou a uma igreja.

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Iugoslávia, que reunia sob um mesmo Estado bósnios, sérvios, montenegrinos, macedônios,

eslovenos e croatas, seria o início de alguns dos maiores e mais violentos conflitos territoriais

e culturais não só da Europa, mas de todo o mundo, porquanto, tal como na Ucrânia, as

fronteiras políticas da Iugoslávia não respeitariam as fronteiras culturais.

Em 1941 as forças do Eixo143 invadiram e repartiram entre si algumas partes do

território iugoslavo. Com a expulsão do Eixo, em 1945, a Iugoslávia foi formalmente

restaurada, mas logo a república seria proclamada e o Estado tornar-se-ia socialista. Então

Josip Broz Tito ascenderia ao cargo de primeiro-ministro, posição que manteria até 1953,

quando far-se-ia, por meio de eleições, presidente. Em 1963 seria indicado presidente

vitalício. Durante todo o tempo em que comandou a Iugoslávia, tanto como primeiro-ministro

quanto como presidente, Tito soube mitigar os nacionalismos latentes e controlá-los. É preciso

recordar ainda que os conflitos que fragmentaram a Iugoslávia possuíam todos origem nos

nacionalismos habilmente enfraquecidos por Belgrado, e estes, por seu turno, eram claramente

engendrados pelas fronteiras culturais dos Bálcãs.

Tito proclamava com altivez que a Iugoslávia possuía “seis repúblicas, cinco

nações, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um só partido”144. Apostando no

abrandamento do rancor e da desconfiança entre as civilizações reunidas sob o Estado

iugoslavo, Tito não vislumbrou que a característica que mais lhe causava orgulho no Estado

que comandava seria o motivo principal dos conflitos territoriais e culturais que o

fragmentariam. Faz-se necessário, ainda, relembrar a importância que possuem os meios de

comunicação na comparação a que as diferentes identidades se lançam e, mais

143 O Eixo era composto por três Estados principais, as Potências do Eixo: Alemanha, Itália e Japão. Outros Estados, entretanto, faziam parte da aliança: Bulgária, Hungria e Romênia, efetivamente combatendo ao lado do Eixo, e Finlândia e Tailândia, cooperando intimamente com ele. 144 RAMONET, op. cit., p. 125.

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especificamente, na deflagração dos conflitos iugoslavos. Assim, “o vírus da televisão

espalhou, através de toda a Iugoslávia, o ódio interétnico como uma epidemia. Uma geração

inteira de sérvios, bósnios e muçulmanos foi estimulada, pelas imagens da televisão, a detestar

seus vizinhos”145.

Ao unir três civilizações sob um único Estado fez-se com que as fronteiras

políticas fossem incongruentes às fronteiras culturais. Assim, os croatas e os eslovenos,

ocidentais; os sérvios, os montenegrinos e os macedônios, ortodoxos; e os bósnios, islâmicos,

viram-se atrelados uns aos outros sob o poder de um governo central que se esforçava por

anular as diferenças culturais entre eles. Quando, em 1980, Tito morreu, a presidência da

Iugoslávia tornou-se um cargo rotativo que deveria ser ocupado por cada uma das seis

repúblicas componentes da Iugoslávia. Entretanto, sem a personificação da unidade iugoslava

que Tito representava, esse sistema mostrou-se débil, e as diferenças não tardaram a aparecer.

Iniciavam-se, então, os conflitos territoriais e culturais que poriam fim à Iugoslávia e

desestabilizariam novamente os Bálcãs.

No início da década de 1990, com a crise que o socialismo já vivia, a

manutenção da federação iugoslava tornou-se insustentável. Com efeito,

quando a identidade iugoslava, mais genérica, se desfez, [...] o multicomunitarismo se

evaporou e cada grupo se identificou cada vez mais com sua comunidade cultural

ampla, definindo-se em termos religiosos. Os sérvios da Bósnia se tornaram

nacionalistas sérvios extremados, identificando-se com a Grande Sérvia, a Igreja

Ortodoxa Sérvia e toda a comunidade ortodoxa. Os croatas da Bósnia passaram a ser

os mais fervorosos nacionalistas croatas, se consideraram cidadãos da Croácia,

145 ZIMMERMANN apud RAMONET, Ignacio. Guerras do Século XXI: novos temores e novas ameaças. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 126.

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acentuaram seu Catolicismo e, juntamente com os croatas da Croácia, sua identidade

com o Ocidente católico.

A mudança dos muçulmanos no sentido da consciência civilizacional foi ainda mais

marcada. Até que a guerra começasse, os muçulmanos da Bósnia eram profundamente

seculares em suas concepções, se viam como europeus e eram os mais firmes

defensores de uma sociedade e de um Estado bósnios multiculturais146.

Assim, em junho de 1991 a Croácia declarou independência. A Sérvia não a

aceitou e, intervindo em favor da minoria sérvia que lá residia, cerca de 12% da população,

iniciou uma ofensiva contra a Croácia, que resultou na tomada de aproximadamente 30% do

território croata. A guerra entre a Croácia e a Sérvia, entretanto, só terminaria definitivamente

em 1995, por ocasião da retomada dos territórios perdidos pela Croácia.

A Eslovênia, a exemplo da Croácia, também declarou independência em junho

de 1991. Porém, parte do exército esloveno, fiel à Sérvia, rebelou-se e passou a combater ao

lado do exército sérvio que buscava impedir a separação eslovena. Pouco tempo depois de

iniciada, a guerra entre a Eslovênia e a Sérvia terminou quando os rebeldes do exército

esloveno foram controlados e os sérvios foram expulsos. A Macedônia, ortodoxa, contrariando

a Croácia e a Eslovênia, ocidentais, que já haviam proclamado a independência, fá-lo-ia

apenas em 1992. Sua maior dificuldade não foi desvencilhar-se da Sérvia, que não se opôs

violentamente à independência macedônia, mas obter o reconhecimento internacional de sua

autonomia. Até hoje a Grécia vê com extremo desagrado que haja um Estado denominado

Macedônia, pois a parte setentrional de seu território é homônima dessa ex-república da

146 HUNTINGTON, op. cit., p. 342.

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federação iugoslava147, e este fato amedronta Atenas, que teme que a Macedônia reivindique a

anexação da Macedônia grega.

Montenegro, outra das repúblicas componentes da Iugoslávia, decidiu manter-

se unido à Sérvia e constituir a República Federal da Iugoslávia. Em 2003, entretanto, o nome

Iugoslávia foi definitivamente abolido, e o Estado passou a denominar-se Sérvia e

Montenegro. Enfim, em 2006, Montenegro decidiu romper a federação e obter independência.

Assim, Montenegro separou-se da Sérvia que, embora não seja mais uma federação, possui

duas províncias autônomas: a Voivodina e o Côssovo.

Contudo, foi na Bósnia que os conflitos territoriais e culturais revelaram-se

plenamente. A Bósnia era uma das mais pobres repúblicas da Iugoslávia. Majoritariamente

islâmica, encontra-se premida entre a civilização ocidental, representada pela Croácia, e a

civilização ortodoxa, representada por Montenegro e pela Sérvia. A população148 é composta

por 48% de bósnios, que são islâmicos; 37,1% de sérvios, que são ortodoxos; e 14,9% de

croatas, que são ocidentais149. Quando a Croácia e a Eslovênia já haviam declarado

independência, realizou-se na Bósnia um referendo em que os bósnios e os croatas decidiram

separar-se da Iugoslávia e constituir um Estado independente. Os sérvios opuseram-se a essa

decisão, pois anelavam manter-se unidos à Iugoslávia e, com ajuda da Sérvia, iniciaram uma

guerra baseada na cultura e no território, que tinha como principal objetivo exterminar os

147 A ONU recomendou à Macedônia que se denominasse, ainda que provisoriamente, Antiga República Iugoslava da Macedônia, para evitar mais atritos com a Grécia. 148 É necessário explicitar que, ao falar sobre a Bósnia, utilizar-se-á o termo bósnios para referir-se aos bósnios que são muçulmanos e que, portanto, pertencem à civilização islâmica; utilizar-se-á o termo croatas para referir-se aos bósnios de origem croata, que são católicos romanos e pertencem à civilização ocidental; utilizar-se-á o termo sérvios para referir-se aos bósnios de origem sérvia, que são católicos ortodoxos e pertencem à civilização ortodoxa. Eventualmente, para afastar peremptoriamente qualquer dúvida, utilizar-se-ão os termos bósnios islâmicos; croatas da Bósnia; sérvios da Bósnia. 149 WIKIPÉDIA. República Sérvia. 2006a. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Rep%C3%BAblica_S%C3%A9rvia&oldid=3606>. Acesso em 15 set. 2006.

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bósnios e os croatas dos territórios em que eram minoria ou, ainda, torná-los minoria onde

quer que estivessem e, concomitantemente, obter o controle do território da Bósnia.

Assistiu-se, a partir de então, ao genocídio de milhares de bósnios islâmicos e

de croatas da Bósnia pelos sérvios da Bósnia e pelo exército da Sérvia. O conflito seria o

maior e mais violento na Europa desde a Segunda Grande Guerra. Estima-se que morreram

mais de 100.000 pessoas, entre civis e militares, e que em torno de 1.800.000 pessoas

tornaram-se refugiados de guerra150. A pior dessas matanças foi o denominado Massacre de

Zebrenica, em que foram assassinados 8.373 bósnios islâmicos151. O conflito “assimilou cada

vez mais as características de uma luta religiosa, definida [...] [pelas] sobras das crenças

religiosas dos impérios cujas fronteiras colidiram na Bósnia”152. A guerra terminou somente

quando criou-se uma federação e dividiu-se o território bósnio. Dessa maneira, a Bósnia é

atualmente um Estado federal, composto por duas entidades politicamente autônomas, a saber,

a Federação da Bósnia-Herzegovina, formada pelos bósnios e pelos croatas, e a República

Sérvia, dominada pelos sérvios. Há ainda o distrito de Brico que, embora nominalmente

pertença às duas entidades autônomas, está sob a soberania da Federação da Bósnia-

Herzegovina. Brico constitui, na verdade, uma terceira entidade autônoma, pois goza dos

mesmos direitos das outras duas. Saraievo, situada entre o território de cada entidade

autônoma, permanece como capital de facto da Federação da Bósnia-Herzegovina e como

capital de jure da República Sérvia. A capital de facto da República Sérvia é a cidade de Banja

Luca. Procurou-se fazer na Bósnia com que as fronteiras políticas coincidissem com as

150 Ibid. 151 Ibid. 152 MISHA apud HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 344.

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fronteiras culturais, segregando os sérvios da Bósnia dos croatas da Bósnia e dos bósnios

islâmicos, como se pode observar na figura 10:

Ainda, é necessário recordar a Guerra do Côssovo. Nessa província

componente da Sérvia, a maioria da população, cerca de 88%, é de origem albanesa, fala

albanês e professa o islamismo. Ao fim das Guerras Balcânicas, o atual território cossovar, em

vez de ser anexado à Albânia e com ela obter independência, foi transferido para a Sérvia e

assim permaneceu até 1941, quando a Itália, ao anexar a Albânia, incorporou também o

Côssovo. Entretanto, em 1944, ele voltaria a pertencer à Sérvia.

Até 1990 o Côssovo gozou de uma autonomia relativamente grande com

relação a Belgrado. A partir de então a autonomia foi suprimida. Assim, em 1998, o Exército

de Libertação do Côssovo iniciou violenta campanha pela independência cossovar. Note-se

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que a luta armada cossovar teve início somente oito anos depois de a autonomia da província

haver sido cassada. Como forma de represália, o presidente iugoslavo, Slobodan Milosevic,

ordenou ao exército iugoslavo que atacasse o Côssovo. Entretanto, por trás da ofensiva militar

iugoslava havia outro intento: o genocídio cometido contra os cossovares de origem albanesa.

Tal qual na Bósnia, o genocídio no Côssovo buscava, pela eliminação de um grupo cultural,

impor a supremacia da minoria sérvia na província e controlar o território.

A guerra terminou com a intervenção da OTAN, que atacou a Iugoslávia em

1999. Inicialmente a repressão sérvia contra os cossovares aumentou, situação que forçou

quase um milhão deles a refugiar-se em Estados vizinhos. Entretanto, depois de 78 dias sob

ataque da OTAN, a Iugoslávia retirou suas tropas do Côssovo. A partir de então, a ONU

instalou um governo provisório. Em 2001 realizaram-se as primeiras eleições para a

Assembléia do Côssovo, que deve contar 120 assentos, dos quais dez reservados para a

minoria sérvia no Côssovo e outros dez reservados para minorias não-sérvias, como os bósnios

e os ciganos. Cabe à assembléia eleger o presidente e o primeiro-ministro do Côssovo.

Dessa forma, pode-se inferir que os Bálcãs, entrecruzados pelas fronteiras

culturais de três civilizações e cindidos entre vários Estados cujas fronteiras políticas não

coincidem com as fronteiras culturais, constituem o mais expressivo exemplo de conflitos

territoriais provocados por motivações culturais.

3.4. UM CASO ESPECIAL: O SUDÃO

A principal proposta deste trabalho é a análise dos conflitos territoriais e

culturais e dos fatores que estão a eles estreitamente ligados. Elegeu-se, assim, a Europa como

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área principal a ser investigada. Há, contudo, conflitos culturais e territoriais por todo o

mundo. Entretanto, chama a atenção o caso de um Estado africano, o Sudão, quer pela duração

dos conflitos quer por seu caráter evidentemente cultural e territorial. Assim, mesmo

localizado na África, investigar-se-ão os conflitos territoriais e culturais do Sudão.

Outrora o Sudão foi conhecido como Núbia, e resumia-se a algumas áreas no

vale do rio Nilo. Durante o século VII, é incorporado à civilização islâmica. O sul, todavia,

escapa ao controle islâmico. Entre 1820 e 1822 é conquistado e unificado pelo Egito;

posteriormente põe-se sob influência do Reino Unido para, em 1899, formalizar-se o domínio

anglo-egípcio no Sudão. Em 1930 promulga-se a Declaração do Sudão Meridional, em que se

define que o Sudão Meridional é cultural e racialmente distinto e, portanto, deve desenvolver-

se como uma entidade autônoma ou ser integrado à África Oriental Inglesa153. A autonomia

foi concedida a todo o Sudão em 1953, e a independência em 1956. Os norte-sudaneses, então,

rejeitam o estabelecimento de uma federação.

O domínio anglo-egípcio, tal qual o regime de Belgrado na Iugoslávia, reprimia

as diferenças culturais entre o norte, em grande parte desértico, e seus habitantes, árabes

pertencentes à civilização islâmica; e o sul, composto por savanas e florestas tropicais e sua

população esmagadoramente negra, que pratica o animismo ou professa o cristianismo e

pertence à civilização africana. Ao cessar o domínio anglo-egípcio, logo após a independência,

tiveram início os conflitos territoriais e culturais no Sudão.

O Exército de Libertação do Povo Sudanês, organização meridional do Sudão,

enceta os conflitos ao exigir de Cartum igualdade de tratamento entre o norte e o sul. Em

153 WIKIPÉDIA. Sudan. 2006b. Disponível em <http://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Sudan&oldid=85452746>. Acesso em 17 set. 2006.

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1969, um golpe militar liderado pelo general Gaafar Nimeriy instaura a ditadura. Ao tentar

impor a xariá, Nimeriy incita grande revolta no sul, e iniciam-se efetivamente os conflitos

territoriais e culturais no Sudão, sob a forma de guerra civil.

O levante dos sul-sudaneses, em 1985, acaba por derrubar Nimeriy e instala-se

um governo de transição que estabelece regime democrático. Porém, em 1989, novo golpe

militar leva ao poder o general Omar Hassan al-Bashir. Islâmico convicto, intensifica a

repressão islâmica contra os negros animistas e cristãos. Os melhores e mais importantes

cargos no governo sudanês são reservados aos islâmicos, e aos estudantes somente é permitido

freqüentar a universidade se prestarem serviços durante um ano e meio à Frente Islâmica

Nacional154. Finalmente, em 1991, impõe-se a xariá, que proíbe o consumo de bebidas

alcoólicas e prevê punições por enforcamento ou mutilação.

A imposição da xariá fez com que aproximadamente 600 mil sudaneses

fugissem para Estados vizinhos155. A resposta do Exército de Libertação do Povo Sudanês foi

o recrudescimento dos combates entre o sul e o norte. A guerra civil estender-se-ia, com

períodos mais intensos do que outros, até 1996, quando realizaram-se eleições legislativas e

presidenciais. A vitória de al-Bashir provocou nova intensificação dos combates.

Finalmente, em janeiro de 2005, depois de mais de 45 anos de guerra civil e de

genocídio, o governo do Sudão concordou em conceder autonomia ao sul do Estado sudanês,

constituindo assim a região autônoma do Sudão Meridional156. Observe-se, na figura 11, a

divisão territorial que se efetuou no território sudanês levando-se em consideração a cultura:

154 A Frente Islâmica Nacional é a organização política que conduziu o governo do Sudão quando da intensificação do genocídio perpetrado contra os negros do Sudão Meridional. 155 Ibid. 156 Ibid.

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Vê-se, dessa maneira, a cultura refletindo-se no território, determinando uma

alteração na estrutura territorial sudanesa. A autonomia, entretanto, chegaria um pouco tarde,

pois, primeiramente, o regime de Cartum optara pela homogeneização cultural do território,

impondo sua cultura por intermédio da xariá. Posteriormente, dada a resistência dos negros

animistas e cristãos, recorreu-se ao genocídio; optava-se, então, pela homogeneização cultural

do território do Estado sudanês por meio do extermínio do outro, ou seja, daquele que

representa a alteridade.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que se pudesse realizar estudo acerca da incongruência entre as fronteiras

políticas e as fronteiras culturais foi necessário, antes de tudo, examinar cuidadosamente

alguns conceitos e teorias que ao tema da pesquisa estivessem intimamente relacionados.

Assim, analisaram-se a globalização, a gênese do Estado moderno ocidental, sua

caracterização e evolução, a cultura, a civilização, a identidade, as civilizações, as fronteiras e,

finalmente, a territorialização da cultura na ordem mundial do pós-Guerra Fria e algumas de

suas conseqüências.

Ao efetuar a análise dos conflitos territoriais e culturais faz-se imprescindível

realizá-la cuidadosamente. Assim, é salutar considerar que, ao contrário do que pode parecer,

os conflitos mundiais não são exclusivamente culturais. Este trabalho evidencia a relevância

da cultura na ordem mundial do pós-Guerra Fria, porém, não a exalta à posição de única força

motriz de todos os conflitos. Tampouco compactua com a idéia simplista e fatalista da guerra

de civilizações, como se a humanidade caminhasse inexoravelmente a um conflito desse tipo.

O que há, efetivamente, é o despertar da cultura como componente essencial da

nova ordem mundial, e compreender sua territorialização faz-se primordial. A cultura é

elevada a tal categoria de relevância pela globalização e pelas novas tecnologias, que

engendram a percepção das diferenças e também do outro.

A etnicidade, outro fator relevante na formação da identidade, muitas vezes é

sobrepujada pela cultura, uma vez que ninguém pode escolher a etnia a que queira pertencer,

ao contrário da cultura, que independe de fatores biológicos ou físicos e é, efetivamente,

forjada, construída ao longo do tempo e à qual se pode renunciar e a outra abraçar.

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As outras forças que constituíam a ordem mundial anterior, a saber, a força

ideológica, a força econômica e a força política, cedem espaço agora à força cultural sem,

contudo, anularem-se. Em outras palavras, a nova ordem mundial combina esses quatro

componentes de forma diferente, dando a cada um deles uma nova importância, combinação

em que a cultura torna-se dia a dia mais importante. Também, faz-se necessário acrescentar

que ainda há alianças entre Estados que se baseiam mais na força política e na força

econômica do que na força cultural.

Dessa forma, a aliança entre os Estados Unidos, ocidentais, e a Coréia do Sul,

sínica, prova que, em determinados casos, a cultura ainda não assumiu o papel relevante que já

exerce em outras ocasiões. O caso japonês é, da mesma forma, digno de atenção. Único

Estado da civilização japonesa, o Japão, em princípio, não possuiria nenhum outro Estado a

que se coligar. Por isto alinha-se, na maioria das vezes, aos Estados Unidos, Estado com o

qual mantém intensa interdependência, tanto econômica quanto militar.

Ainda, é preciso esclarecer que as civilizações contemporâneas não são

organizações políticas no sentido estrito do termo, pois não constituem uma confederação,

muito menos um Estado. Elas não possuem um governo central que as una

incondicionalmente. Destarte, fazer parte de uma mesma civilização não significa tender a

uma homogeneização absoluta. As civilizações, como já se fez notar, são o último limite

identitário aquém do considerar-se humano. Detentoras de identidade tão ampla, seria difícil

que fossem plenamente homogêneas. Haverá, então, diferenças dentro das próprias

civilizações, mas essas diferenças serão menores dentro delas mesmas do que quando

comparadas umas com as outras.

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Haverá também afinidades entre as civilizações: algumas terão relacionamentos

relativamente tranqüilos e profícuos umas com as outras, enquanto outras terão relações

baseadas na desconfiança e na violência. Assim, por exemplo, a civilização hindu relaciona-se

harmonicamente com a civilização ocidental, ao passo que a civilização islâmica opõe-se

sistematicamente ao Ocidente.

Tampouco o fato de dois ou mais Estados pertencerem a uma mesma

civilização impede que eles tenham dissensões ou que entrem em conflito uns com os outros.

Assim, são notórios os conflitos existentes dentro da civilização islâmica. A guerra entre o Irã

e o Iraque, a ocupação do Líbano por tropas sírias e a invasão do Cuaite pelo Iraque são

exemplos de que pertencer a uma mesma civilização não impede os conflitos. Também disso

são exemplo as duas grandes guerras a que a civilização ocidental submeteu o mundo.

Por outro lado, se as civilizações são incapazes de garantir a ausência de

conflitos dentro de si mesmas, é formidável constatar como conseguem unir os Estados

quando há uma provável ameaça externa. Novamente, o caso da civilização islâmica é

emblemático. Quando, no início de 2006, um jornal dinamarquês publicou algumas charges de

Maomé, assistiu-se a intenso movimento islâmico contra o Ocidente e, principalmente, contra

a Dinamarca. É interessante notar que não foi apenas a população de Estados islâmicos que se

insurgiu contra as charges dinamarquesas ao sair enfurecida às ruas ou ao boicotar os produtos

dinamarqueses, mas também o governo desses Estados reclamou retratação formal por parte

do governo de Copenhague e exigiu punição aos responsáveis pelas charges.

O alinhamento dos Estados islâmicos configura-se de modo claramente cultural.

Um suposto insulto é tomado como um insulto a todos os islâmicos. Também os Estados

ortodoxos, sempre que se encontraram em conflito com Estados de outras civilizações

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apelaram principalmente à Rússia, maior Estado ortodoxo e centro da civilização ortodoxa. O

Ocidente, por sua vez, apresenta discordâncias dentro de si mesmo, em parte por possuir dois

centros, os Estados Unidos e a União Européia, mas, ao mesmo tempo, exibe certa consciência

de sua unidade civilizacional.

A incongruência entre as fronteiras políticas e as fronteiras culturais, assim,

torna-se o elemento deflagrador dos conflitos. Estados pertencentes a diferentes civilizações

que mantêm relações conflituosas, muito provavelmente, verão surgir conflitos ao longo de

suas fronteiras, principalmente se houver incongruência entre elas.

Ao tornar-se o componente essencial da ordem mundial do pós-Guerra Fria, a

cultura fortalece as identidades civilizacionais e evidencia sua própria territorialização. Então,

quando as fronteiras culturais não coincidem com as fronteiras políticas, as identidades podem

tornar-se o princípio desencadeante dos conflitos culturais e territoriais. Uma vez que a cultura

somente se realiza territorialmente, os conflitos culturais refletir-se-ão no território.

É dessa forma que a cultura faz com que os Estados propendam a redefinir-se

com base nela. Em outras palavras, os Estados tendem a alterar suas fronteiras e a reorganizar

sua estrutura territorial interna segundo linhas culturais. Os conflitos ucranianos, apesar de

extremamente agressivos e a despeito de uma ameaça de secessão, não foram suficientemente

fortes para alterar a estrutura territorial ucraniana, ao contrário do que aconteceu na

Iugoslávia, que se fragmentou, na Bósnia, que se viu forçada a transformar-se em uma

federação, e no Sudão, que teve de conceder autonomia à sua porção meridional, étnica e

culturalmente diferente do norte do Estado sudanês.

Assim, a cultura, desenvolvendo-se em turnos de ruptura conceitual, de

conceito estritamente material, passou a designar as questões do espírito. Da realidade rural,

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passou à vida urbana, para dela nunca mais dissociar-se. Agora assiste-se a nova mudança. De

componente secundário da antiga ordem mundial, passou a ser componente essencial. A

cultura tornou-se a parte elementar do sistema que compõe a ordem mundial do pós-Guerra

Fria. O território, estreitamente ligado à cultura, assume também nova importância. Destarte,

para empreender análise apropriada da ordem mundial do pós-Guerra Fria, é salutar examiná-

la sob a óptica cultural que, necessariamente, eleva consigo o território.

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