05. a Discriminação Nas Relações de Trabalho - A Possibilidade de Inversão Do Ônus Da Prova...

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A DISCRIMINAÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: A POSSIBILIDADE DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA COMO MEIO EFICAZ DE ATINGIMENTO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Elaine Machado Vasconcelos' SUMARIO: Introdução; I A discriminação. Uma visão histórica e principiológica; 2 A discriminação e os princípios constitucionais relevantes; 3 A discriminação nas relações de trabalho; 4 O tratamento da distribuição do ônus probatório no processo do trabalho; 5 A inversão do ônus probatório no processo do trabalho; 6 Dimensão da abordagem judicial; Referências bibliográficas. INTRODUÇÃO A s várias acepções das questões discriminatórias constituem assunto incluso na pauta do dia. Observa-se no cenário nacional uma grande movimentação em torno do tema, não só nas academias como também nos palcos do Legislativo e do Judiciário. A mídia, entendida por muitos como quarto poder da República, tem o cuidado de propagar a discussão da sociedade em torno da problemática, trazendo a lume procedimentos e práticas reveladoras de uma nação que sofre com a discriminação e clama por posturas endereçadas ao afastamento deste mal, que nasceu com a história do povo brasileiro, sem grandes progressos no atual patamar temporal. A par disso, encontramos a definição de discriminação, valendo registrar a precisa lição de Souza Cruz: “... entendemos a discriminação como toda e qualquer forma, meio, instrumento ou instituição de promoção da distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em critérios como a raça, cor da pele, descendência, origem nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade, religião, deficiência física, mental ou patogênica que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer atividade no âmbito da autonomia pública ou privada.”1 * Juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 10aRegião. I Souza Cruz, 2003, p. 21. 94 Rev. TST, Brasília, vol. 71, nQ2, maio/ago 2005

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  • A DISCRIMINAO NAS RELAES DE TRABALHO: A POSSIBILIDADE DE

    INVERSO DO NUS DA PROVA COMO MEIO EFICAZ DE ATINGIMENTO DOS

    PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS

    Elaine M achado Vasconcelos'

    SUMARIO: Introduo; I A discriminao. Uma viso histrica e principiolgica; 2 A discriminao e os princpios constitucionais relevantes; 3 A discriminao nas relaes de trabalho; 4 O tratamento da distribuio do nus probatrio no processo do trabalho; 5 A inverso do nus probatrio no processo do trabalho; 6 Dimenso da abordagem judicial; Referncias bibliogrficas.

    INTRODUO

    As vrias acepes das questes discriminatrias constituem assunto incluso na pauta do dia. Observa-se no cenrio nacional uma grande movimentao em torno do tema, no s nas academias como tambm nos palcos do Legislativo e do Judicirio. A mdia, entendida por muitos como quarto poder da Repblica, tem o cuidado de propagar a discusso da sociedade em torno da problemtica, trazendo a lume procedimentos e prticas reveladoras de uma nao que sofre com a discriminao e clama por posturas endereadas ao afastamento deste mal, que nasceu com a histria do povo brasileiro, sem grandes progressos no atual patamar temporal.

    A par disso, encontramos a definio de discriminao, valendo registrar a precisa lio de Souza Cruz:

    ... entendemos a discriminao como toda e qualquer forma, meio, instrumento ou instituio de promoo da distino, excluso, restrio ou preferncia baseada em critrios como a raa, cor da pele, descendncia, origem nacional ou tnica, gnero, opo sexual, idade, religio, deficincia fsica, mental ou patognica que tenha o propsito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exerccio em p de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos poltico, econmico, social, cultural ou em qualquer atividade no mbito da autonomia pblica ou privada.1

    * Juza do Tribunal Regional do Trabalho da 10aRegio.I Souza Cruz, 2003, p. 21.

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    A discriminao no escolhe lugar ou hora; est presente nas ruas, nas relaes sociais, familiares, conjugais. A mulher, o menor, o negro, o asitico, o homossexual, o feio, o bonito, o alto, o baixo, o gordo, o magro, o operrio, o patro: todos discriminamos e somos discriminados. Inclusive o juiz agente passivo e ativo desse processo; mesmo quando tenta desvincular-se de todas modalidades de preconceito e assumir a ideal postura da eqidistncia, ainda assim est compromissado com o seu inconsciente, ao qual muito raramente tem acesso. Como bem salientado por um atento membro do ministrio Publico do Trabalho, que se dedica ao estudo do tema: A discriminao a materializao do preconceito, um sentimento irracional e ilgico, que costuma estar to arraigado em nossos prprios valores culturais que no temos sequer conscincia dele .2

    Durante os ltimos dois anos, esta magistrada tem-se dedicado ao estudo do tema discriminao, com reflexes supedaneadas na multidisciplinaridade que o envolve, mais retidamente sob o questionamento jurdico-constitucional. Para tanto, imperioso o trabalho de pesquisa acerca da jurisprudncia trabalhista brasileira (sentenas, acrdos regionais e do Tribunal Superior do Trabalho), defluentes de questionamentos de prticas discriminatrias nas relaes laborais.3 O interesse pela temtica ensejou a elaborao da monografia final no Curso de Especializao em Direito Constitucional - convnio TR-10a Regio e Universidade de Braslia (UnB), sob o ttulo: A Discriminao nas Relaes de Trabalho - Uma Leitura da Jurisprudncia Trabalhista Brasileira luz do Liberalismo de Ronald Dworkin e do Comunitarismo de Charles Taylor.

    No transcurso da anlise dessa jurisprudncia, restou observada questo de relevncia de natureza processual, com desdobramentos constitucionais. Trata-se da adstrio dos julgadores ao exame e valorao da prova, freqentemente sob a influncia de regras do processo civil, como forma ltima de buscar solues e respostas para a entrega da prestao jurisdicional, nas hipteses em que discutida a discriminao nas relaes de emprego (e trabalho, segundo a competncia estabelecida no art. 114 da Constituio Federal).

    Explicando melhor, a pesquisa constatou na jurisprudncia a busca da soluo das lides de uma forma arraigada ao princpio da distribuio da prova, conforme delineado no Cdigo de Processo Civil, fonte subsidiria do Processo do Trabalho, porm sem maiores preocupaes acerca da relevncia do tema sob o prisma filosfico, social e jurdico-principiolgico. Os juzes trabalhistas, de uma forma geral, tratam o tema como muitos outros que se tornaram domsticos na labuta

    2 Mello, 2000, p. 62.3 Foram pesquisados dentre outros os seguintes processos: Proc. TRT10, RO 0684/2002, Ac. Ia T.,

    01166.2001.001.10.00.4, DJU 06.12.2002; Proc. TST-RR 381531/97, Ac. U T., DJU 15.02.2002; Proc. TST ROMS 110056/94, Ac. SDI, DJU 31.03.1995; Proc. TRT12, RO-V 10186/2000, Ac. 1aT., n. 04475, DJU 10.05.2001; Proc. TRT3, RO 5207/99, Ac. 1a T, DJU 19.05.2000; Proc. TRT3,RO-9371; Proc. TST-RR 48478/92, Ac. 5 a T., DJU 19.08.1994; Proc. TRT3, RO 3790, Ac. 3 a T., DJMG 20.07.1999; Proc. TRT12, RO 10186/2000, Ac. 1a T., n. 4475, DJ 10.05.2001.

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    forense - a exemplo do labor extraordinrio - equalizando questes de relevante indagao sob o enfoque simplrio da efetivao da prova.4 E mais: muitas vezes as provas (especialmente depoimentos) colhidas poderiam perfeitamente levar a concluso diversa daquela alcanada pelos tribunais, caso houvesse uma viso menos atrelada aos rigores do processo civil, focalizando o indcio de prova, conjugado com as peculiaridades do caso, a satisfazer a caracterizao da discriminao, como si acontecer nas diversas situaes de fraude, porque esta e aquela so normalmente perpetradas com indcios de burla de difcil deteco.

    I A DISCRIMINAO. UMA VISO HISTRICA E PRINCIPIOLGICA

    Sempre que nos referimos ao tema discriminao, vem a lume o iderio igualitarista advindo da Declarao Universal dos Direitos do Homem - ONU - 1948: a) Princpio da Igualdade - Art. 1o Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos ; b) Princpio da No-Discriminao - Art. 2 Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declarao, sem distino alguma, nomeadamente de raa, de cor, de sexo, de lngua, de religio, de opinio poltica ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou qualquer outra situao (...). Art. 1 Todos so iguais perante a lei e, sem distino, tm direito a igual proteo da lei. Todos tm direito a proteo igual contra qualquer discriminao que viole a presente Declarao e contra qualquer incitamento a tal discriminao .

    Impende mencionar tambm a Declarao da OIT relativa aos princpios e direitos fundamentais no trabalho de maior relevncia - 1998: a) a liberdade de associao e a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociao coletiva; b) a eliminao de todas as formas de trabalho forado ou obrigatrio; c) a abolio efetiva do trabalho infantil; d) a eliminao da discriminao em matria de emprego e ocupao. (grifo nosso).

    Por outro lado, a Constituio brasileira de 1988 estabelece, em seu art. 5, caput, que todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade . Alm disso, nos 11 incisos do mesmo artigo, a Carta elenca os direitos individuais e coletivos a serem preservados sob tal temtica.

    O legislador constituinte, em outros dispositivos,5 cuidou tambm do conceito de diversidade, quando enfatiza que, dentro do referencial de igualdade, homem e mulher so diferentes; os afro-descendentes, sob o enfoque da descendncia e tradio, diferem das raas europia, asitica e indgena; a orientao sexual dos homossexuais diversa dos heterossexuais, mormente do ponto de vista da aceitao

    4 Para uma discusso geral, ver Mallet, 2000.5 Por exemplo, art. 215, Io; art. 216, 5o; art. 231; art. 232.

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    familiar e social; o portador de necessidades especiais difere daquele que desfruta da plenitude de suas capacidades fsicas; o pobre diferente do rico, tendo em vista a questo relativa ao acesso a bens e servios, merecendo referncia a progressividade do imposto de renda; o catlico diferente do evanglico, do budista, do taosta, do gnstico ou do ateu. Este conceito de diversidade tornou-se referencial jurdico- normativo como ponto de partida para se viver numa sociedade plural e democrtica.

    Malgrado o legado universal histrico e terico, bem como a elevao da igualdade condio de princpio constitucional pelo povo brasileiro, atravs de seus representantes que elaboraram a Carta Maior, observamos a presena de atitudes discriminatrias diretas e indiretas na dinmica de nossa sociedade. A primeira (direta), cada vez menos manifestada, opera-se na adoo de disposies estabelecedoras de distines fundamentais em critrios proibidos, a exemplo do que aconteceu com o Clube Fluminense no Rio de Janeiro nos idos de 1970, que proibia a presena de scio de cor negra. A segunda (indireta) relaciona-se com situaes, revelaes ou prticas aparentemente ntegras, mas que, na realidade, estabelecem a possibilidade de tratamento desigual em relao a pessoas com as mesmas caractersticas.6

    2 A DISCRIMINAO E OS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS RELEVANTES

    No trato da discrim inao, encontram os autores que sustentam suas argumentaes basicamente em determinados princpios fundamentais: igualdade, liberdade, dignidade humana e razoabilidade.7

    O princpio da isonomia encontra-se enunciado desde o axioma aristotlico. Contudo, naquele patamar histrico, a idia de igualdade limita-se concepo formal, ou seja, uma vez compreendido que no seria justo tratar diferentemente o escravo e seu proprietrio; s-lo-ia se se tratassem senhores entre si, ou escravos entre si, desigualmente .8

    A concepo embrionria do Estado Liberal relativa isonomia esteve adstrita ao aspecto formal, traduzido na idia de que todos so iguais perante a lei. Entretanto, esse enfoque tornou-se insuficiente diante das desigualdades socioeconmicas derivadas do prprio liberalismo.

    Repassando o caminho do constitucionalismo no Brasil, observamos que o princpio da igualdade esteve presente desde os primeiros textos - Constituio Imperial de 1824 e Republicana de 1891 - at a Emenda Constitucional de 1969. Contudo, foi a Constituio de 1988 que tratou da igualdade no somente do ponto de vista formal, mas tambm material, pois enuncia igualdade de tratamento,

    6 Gugel, 2000, p. 25.7 Ver, por exemplo: Marques, 2002; Raupp, 2001; Correia de Mello, 2000; Barroso, 2000; e Souza

    Cruz, 2003.8 Afonso da Silva, 2002, p. 27.

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    superando a mera considerao da igualdade de todos perante a lei - concepo formal obtusa.9

    Neste sentido, Jos Afonso da Silva acentua: Nossas Constituies, desde a do Imprio, inscreveram o princpio da igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicao trata a todos igualmente, sem levar em conta as distines de grupos.10

    J a referida isonomia material, observada na ordem constitucional brasileira vigente, no cuida somente da chamada igualdade perante a lei. Para alm disso, o art. 5o da Carta de 1988 deve ser congregado com outras normas constitucionais, que trazem em seu bojo o resultado da preocupao do legislador constituinte com as perquiries da justia social, o que se tornou relevante para a tarefa do intrprete. Assim que o referido dispositivo, conforme consignado alhures, preceitua que a lei punir qualquer discriminao atentatria dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5, inciso, XLI), fulcrando-se em razes impeditivas da concretizao do preconceito de raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao (art. 3, IV). No mesmo sentido, encontramos no art. 7, incisos XXX e XXXI, concepes pontuais relativas isonomia material, a saber, vedao diferena de salrios, de exerccio de funes e de critrio de admisso por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e qualquer discriminao no tocante a salrio e critrio de admisso do trabalhador portador de deficincia ; e, ainda, o inciso XXXIV, do mesmo artigo, trata da igualdade de direitos entre o trabalhador com vnculo empregatcio permanente e o trabalhador avulso .11

    D esta feita, certo afirm ar a inconstitucionalidade das form as de discriminao no autorizadas pelo texto da Carta Maior, ou seja: so vedadas as pr ticas de d iscrim inao negativa, sendo en tendidas como positivas as discriminaes de pessoas, coisas, fatos e situaes na medida em que so admitidas as diversidades de traos entre eles. Conforme salienta Gugel, a correlao lgica entre o descrmen e a equiparao pretendida justifica a discriminao positiva em favor das minorias, posto que esto contidas na prpria ordem constitucional do Estado brasileiro .12

    A doutrina tem atrelado o princpio da igualdade ao princpio da razoabilidade (ou princpio da proporcionalidade), entendido como um controle da discricionariedade legislativa e administrativa. Conforme bem preceitua Barroso, ao discorrer sobre o tema, esse princpio oferece um parmetro de avaliao dos atos do Poder Pblico para aferir se eles esto informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurdico: a justia .13 Contudo, dada a abrangncia dessa noo, segundo o mesmo autor, []

    9 Cf. Lima, 1993, p. 16.10 Afonso da Silva, 2002, p. 27.11 Idem, ibidem.12 Gugel, 2000, p. 24.13 Barroso, 2000, p. 29.

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    preciso buscar terreno mais slido e elementos mais objetivos para a caracterizao da razoabilidade dos atos do poder pblico, dando ao tema densidade jurdica, tal que lhe permita ser adequadamente utilizado por juzes e tribunais.14 Assim, esclarece que o princpio constitui base para invalidao de atos legislativos e administrativos nas hipteses (a) de falta de adequao entre os fins colimados e os meios empregados para obteno de tais fins; (b) houver caminho alternativo, menos gravoso, para obteno dos fins em questo; ou (c) ausncia de razoabilidade em sentido estrito, a saber, as desvantagens decorrentes da medida impugnada sobejam as vantagens por ela visadas.15

    Falar em discriminao significa dar relevo, tambm, ao princpio da dignidade humana. A realizao deste princpio encontra espao no art. 3, IV, da Constituio de 1988, o qual tem por finalidade promover o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminao. Assim, exige-se no s do Estado, como tambm da sociedade, a proteo de todos os outros, diferentes de ns, pelas suas particularidades individuais e coletivas consubstanciadas na origem, sexo, opo sexual, raa, idade, sanidade.16

    O juslaborista mexicano De La Cueva pontua a elevada importncia deste princpio nas relaes laborais. Em suas palavras: ... o trabalhador tem o indiscutvel direito de ser tratado com a mesma considerao que pretende o empresrio para si. Sem dvida, as duas pessoas tm posies distintas no processo de produo, mas sua natureza como seres humanos idntica nos dois e seus atributos so tambm os mesmos .17

    Por derradeiro, impende assinalar, tambm por sua relevncia para o tema da discriminao, o princpio da liberdade, consagrado no art. 5, XV, da Constituio de 1988.

    A liberdade da pessoa fsica, segundo Jos Afonso da Silva, consiste na possibilidade jurdica, que se reconhece a todas as pessoas, de atuar segundo tal vontade e de locomover-se desembaraadamente dentro do territrio nacional, compreendida a possibilidade de sair e de entrar no territrio nacional.18

    Observamos que o legislador constituinte ocupou-se de assegurar a liberdade de ao profissional, quando estabeleceu no art. 5, XIII, que livre o exerccio de qualquer trabalho, ofcio ou profisso, atendidas as qualificaes profissionais que a lei estabelecer. Desta feita, congregado o princpio enunciado com os demais anteriormente mencionados, toda pessoa livre para escolher seu trabalho, seu ofcio ou profisso, bem como de exerc-lo, sem qualquer interferncia, inclusive do poder pblico, sendo vedada qualquer atitude discriminatria relativa a esta opo.

    14 Idem.15 Idem, p. 35.16 Cf. Souza Cruz, 2003, p. 17.17 De La Cueva, apud Marques, 2002, p. 142.18 Silva, 2002, p. 31.

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    3 A DISCRIMINAO NAS RELAES DE TRABALHO

    Feitas tais digresses, observa-se que tambm o Direito do Trabalho tem absorvido a noo do necessrio combate discriminao, considerando-se que a sociedade democrtica moderna distingue-se pela preocupao em estabelecer processos de incluso social.

    O trato da discriminao no Direito do Trabalho brasileiro, muito embora venha adquirindo maior espao para debates e produes - textos, atos, manifestos, legislao, decises judiciais etc. - , caminhou lentamente at a promulgao da Carta Constitucional de 1988.

    Volto a ressaltar que os textos constitucionais brasileiros, a partir de 1946, consignaram a valorizao do trabalho como condio da dignidade humana. Contudo, somente a Carta de 1988, trazendo a lume o tratamento da isonomia na sua acepo m aterial, com preocupao em estabelecer a possibilidade de discriminao positiva (tratamento desigual para pessoas em situaes comparveis), consolidou a inconstitucionalidade do que passou a poder ser entendido como discriminao negativa (a que fere princpios constitucionais atinentes ao tem a).19

    Congruente com a argumentao do constitucionalista retrocitado, Gugel assinala que, referendando o princpio da igualdade inscrito na Carta de 1988, esto os direitos sociais dos trabalhadores fundados na igualdade de oportunidades: a proibio da diferena de salrios, de exerccio de funes e de critrio de admisso por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7o, XXX) .20

    Desta feita, urge a necessria sensibilizao de juzes, assessores, advogados, membros do Ministrio Pblico, sindicatos, enfim, agentes importantes na jurisdio trabalhista para o trato da discriminao no contexto das relaes laborais.

    De efeito, observa-se a elevao do princpio da isonomia uma concepo mais ampla - material - , no mais limitada obtusa acepo formal, vigorante nas cartas anteriores carta de 1988 - , como tambm a preocupao do novo texto constitucional em proteger e garantir expressamente a igualdade de tratamento e a oportunidade de acesso dos indivduos aos postos laborais. Contudo, prticas discriminatrias persistem em muitas circunstncias na vida dos trabalhadores brasileiros. Poder-se-iam enumerar infindveis condutas discriminatrias na atividade laborativa brasileira, entre as quais, podem-se citar as seguintes situaes:

    a) Os negros, homossexuais de portadores do vrus HIV, tm acesso dificultado e muitas vezes negado nas selees para vagas de determinados empregos;

    b) Os negros, as mulheres e os homossexuais so preteridos nas ascenses funcionais;

    c) As mulheres sofrem assdio sexual como instrumento de presso no trabalho;

    19 Cf. Silva, 2002, p. 29.20 Gugel, 2000, p. 29.

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    d) Sob a alegada responsabilidade familiar especial da mulher, esta sofre discriminao no acesso a postos de trabalho;

    e) Mulheres so demitidas ou no admitidas por motivos de gravidez;f) O pretexto da boa aparncia tem permeado a seleo de trabalhadores

    bonitos , para determinados cargos, configurando a discriminao esttica no trabalho;

    g) A boa aparncia tambm tem servido de pretexto para a excluso de obesos, pessoas de baixa estatura, pessoas tatuadas, adornadas por piercing , pessoas com cicatrizes, quelides, queimaduras, feridas ou manchas, homens que usam cabelos e barbas longos, caracterizando tambm casos de discriminao esttica;

    h) Os portadores de deficincia fsica ou mental, ou ainda os portadores de certas doenas (como o diabetes) no tm o tratamento especial que lhes assegure o ingresso no mercado de trabalho;

    i) A utilizao do direito de ao por trabalhadores, mediante o ajuizamento de reclam atrias trabalh istas contra seus ex-em pregadores, tem significado bice obteno de novas colocaes no mercado laboral;21

    j) Os idosos so praticamente excludos do mercado de trabalho e compelidos, conseqentemente, a destinarem-se ao mercado informal de trabalho;

    k) Certas enfermidades, mesmo assim consideradas pela medicina, no so aceitas como tais por muitos empregadores, que insistem em classific- las como desvio de carter, a exemplo do alcoolismo, ensejando a demisso motivada em preterio das recomendaes de suspenso do contrato de trabalho para tratamento de sade do empregado.

    Ao lado do elenco das prticas derivadas de discriminao direta por parte de empregadores, preciso lembrar ainda a discriminao de empregados em relao a colegas, no que se refere a aspectos concernentes opo sexual, raa, gnero etc., que importam na responsabilizao concorrente do empregador. Exsurge nestas hipteses a discriminao indireta do empregador, quando o seu dever de zelar para que o ambiente de trabalho seja seguro e disciplinado.

    Alm disso, imperioso ressaltar neste trabalho a ocorrncia de discriminao, tambm, do Poder Pblico. Por exemplo, o acesso a determinadas funes pblicas administrativamente dificultado a mulheres, negros, homossexuais, como ocorre nas Foras Armadas.22

    21 O Tribunal Superior do Trabalho proibiu a disponibilizao de dados via Internet, atravs da pesquisa pelo nome das partes (principalmente o nome do reclamante), mediante resoluo do ento presidente dessa Corte, Min. Francisco Fausto, denotando a preocupao com a formao de listas negras discriminatrias de candidatos a postos de trabalho.

    22 Ver, por exemplo, matria jornalstica intitulada: MP Vai Investigar Racismo no Exrcito, publicada no Jornal do Brasil em 21.03.2002. A matria destaca: O Ministrio Pblico Federal no Rio de Janeiro instaurou inqurito para apurar as denncias de racismo no Exrcito, mostradas pelo Jornal

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    Ressalte-se, ainda, que, curiosamente, a prpria Constituio de 1988 no conferiu empregada domstica os mesmos direitos dos demais trabalhadores brasileiros (ver art. 1, XXXIV, pargrafo nico).

    Por derradeiro, cumpre reconhecer a discriminao s vezes promovida pela prpria Justia do Trabalho, no obstante ser ela mesma depositria das esperanas do jurisdicionado na correo da discriminao praticada no seio da sociedade. Neste sentido, com propriedade destaca o sempre mencionado Mrcio Tlio Viana: a Justia discrimina, do mesmo modo que a lei discrimina, o processo discrimina, o Estado discrimina, a sociedade discrimina. Prossegue o autor: O prprio juiz, pessoalmente, discrimina, e o faz quase sempre sem saber, sem sentir e, por isso, sem querer .23

    4 O TRATAMENTO DA DISTRIBUIO DO NUS PROBATRIO NO PROCESSO DO TRABALHO

    Conforme consignado preambularmente, constatou-se a dificuldade do magistrado trabalhista em lidar satisfatoriamente com a questo da discriminao nas relaes laborais, diante de sua adstrio dogmtica ditada pela distribuio do nus probatrio, com esteio nos parmetros do processo civil.

    Acrescento, ainda, a ocorrncia de vises distorcidas, acerca da interpretao do art. 818 da CLT, que foi elaborado como tal, justamente para no necessitar da utilizao estreita do Cdigo de Processo Civil. Como bem enunciado pelo legislador, o art. 169 da CLT somente autoriza a aplicao subsidiria do CPC nos casos omissos e naquilo em que for compatvel com as normas daquele diploma. Ou seja, o dispositivo consolidado estabeleceu um a interpretao m uito m ais am pla, possibilitando a efetividade da busca de justia social no Processo do Trabalho, pois este de cunho essencialmente protetivo. Assim, poder o julgador distribuir o nus da prova de acordo com as peculiaridades de cada caso, sem estar jungido aos critrios formais do processo civil, sendo, inclusive, autorizado a perpetrar sua inverso (do nus da prova).

    Importa reconhecer que, no direito, a atividade interpretativa no tem formato estanque, pois vem tratar de uma cincia no qual no existem verdades absolutas.

    No constitucionalismo contemporneo, encontramos espao para pontuar que a atividade legislativa se ultima com a interpretao, pois esta se traduz em concretizao. Assim, ganha significado de justeza o entendimento segundo o qual o contedo da norma s finalizado quando o intrprete lhe atribui o significado no caso concreto.24

    Com muita propriedade e clareza, Reis de Paula leciona:

    do Brasil, na ltima segunda-feira. O capito Ailton Moraes Barros, que negro, acusa oficiais da Fora de discriminao racial. Publicado na Internet, disponvel em: http://www.palmares.gov.br/ ClippingEletronico/Cliping2002/mar02/120-marco-21-03-02.htm. Acesso em: 6 out. 2003.

    23 Viana, 2000, p. 271.24 Ver Coelho, p. 158-159.

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    A apreciao do art. 818 da CLT nos levou concluso que no h um conflito frontal da norma com o disposto no art. 333 do CPC. De outra sorte, o artigo da Consolidao geralmente interpretado levando-se em conta a normatizao do cdigo processual civil. A generalidade do disposto no texto consolidado - prova quem alega - permite que o critrio geral de distribuio do nus da prova - a prova do fato constitutivo incumbe ao autor, ao passo que ao ru cabe a prova dos fatos extintivos, modificativos ou impeditivos - no seja seguido. o que se denomina inverso do nus da prova, que no processo trabalhista tem justificativas prprias, alm de manifestaes peculiares.25 No mesmo diapaso, Viana ressalta: Um dos particularismos do processo

    do trabalho a possibilidade de inverter-se o nus da prova . Prossegue o jurista aduzindo que, segundo o princpio traduzido na expresso in dubio pro misero, na dvida, deve-se decidir a favor do empregado. Acrescentando a lio de Trindade, no referente prova, consigna em seu artigo: No Direito do Trabalho, a prova falha, insuficiente ou dividida autoriza a aplicao do princpio, visto que inteiramente consentneo com as bases da lei do trabalho, de carter tutelar.

    Viana refere-se, ainda, concluso do IV Congresso Ibero-americano de Direito do Trabalho: O princpio in dubio pro operatio incide nos processos trabalhistas, quando no esprito do julgador no exista uma convico absoluta derivada da anlise das provas produzidas.

    Congruente com o entendimento exposto caminha o magistrio de Manoel Antnio Teixeira Filho:

    A grande tarefa da doutrina trabalhista brasileira, que tanto se tem empenhado em cristalizar o princpio da inverso do nus da prova, em benefcio do trabalhador - cuja preocupao, alis, tem unido pensadores de diversos pases - consistir em encontrar, no prprio contedo do art. 818 da CLT, os fundamentos que at ento vm procurando, abstratamente, para dar concreo ao princpio da inverso do encargo da prova em prol do trabalhador. Vale dizer: o caminho sugerido o da elaborao de uma precisa exegese daquele artigo, cujo verdadeiro sentido ainda no foi idealmente apreendido pela inteligncia doutrinria.26O tratamento principiolgico das questes de direito nsitas nas condutas

    discriminatrias abre a possibilidade de superao da postura estrita do positivismo na construo jurisprudencial. O direcionamento do nus da prova para o acusado da prtica de atitude discriminatria se afigura mais assente com o necessrio equilbrio entre o capital e o trabalho e, conseqentemente, com o princpio da proteo, mormente diante das dificuldades encontradas pelo discriminado em realizar a prova de suas alegaes, quando normalmente indisponveis os meios

    25 Reis de Paula, 2001, p. 131.26 Teixeira Filho, 2003, p. 234.

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    probatrios para tanto. Esta foi a orientao que permeou a possibilidade de inverso do nus da prova no Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei t f 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 6o, inciso VIII).

    Vale ressaltar que o referido art. 6o, inciso VIII, da Lei t f 8.078/90 (Cdigo do Consumidor), com fito na idia da hipossuficincia e dificuldades de acesso aos meios probatrios, consagrou o princpio da inverso do nus probatrio, o que foi um avano para o cidado brasileiro.

    Nesta esteira,a Unio Europia firmou acordo entre os Pases-membros, aprovando

    a inverso do nus da prova na hiptese do assdio sexual. Nessa mesma direo trilhou o legislador francs, na lei que cobe o assdio moral no trabalho. Admite-se a inverso do nus da prova, revertendo para o agressor o encargo de provar a inexistncia do assdio, na medida em que o autor da ao j tenha apresentado elementos suficientes para permitir a presuno de veracidade dos fatos narrados.27

    5 A INVERSO DO NUS PROBATRIO NO PROCESSO DO TRABALHO

    Feitas tais consideraes, com espeque no direito francs, e a exemplo do que estabelece o art. 6, inciso VIII, da Lei n 8.078/90, sustento a urgente necessidade de se dar uma postura judicante direcionada a uma interpretao criativa do art. 818 da CLT, para fins de tornar recomendvel a inverso do nus da prova, nos casos de prticas discriminatrias por parte do empregador ou seus prepostos, na relao de emprego. Assim, por meio de interpretao judicial, o encargo de provar a inexistncia da conduta discriminatria ficaria com os acusados de praticarem a discriminao no mbito do contrato de trabalho, quando o reclamante (empregado) tiver apresentado elementos de presuno acerca da veracidade dos fatos narrados na petio inicial.

    Em outras palavras, concluo por uma proposta de uma postura judicante diferenciada nas hipteses de alegao de prtica discriminatria por parte do empregador (reclamado) ou seus prepostos, no mbito do contrato de trabalho, em havendo indcios suficientes a autorizar a presuno em favor do empregado (reclamante). Assim, entendo que dever o juiz aplicar o art. 818 da CLT conjugado com o princpio protetivo, como derivao do princpio constitucional da isonomia. Por conseguinte, determinar o julgador a inverso do onus probandi, revertendo ao empregador a obrigao processual de provar a inexistncia da conduta discriminatria.

    Assinalo a improcedncia do contra-argumento presente proposta, segundo o qual a possibilidade de inverso do nus probatrio nas hipteses de questionamento de condutas discriminatrias no contrato de trabalho estaria partindo do pressuposto da culpabilidade, e no da inocncia, o que feriria princpio basilar do

    27 Guedes, 2003, p. 112.

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    direito. Aqui no se est presumindo a efetividade da conduta aleatoriamente; para alm disso, prope-se a atribuio de provar a inexistncia do ato discriminatrio quando o julgador identificar elementos condutores da presuno daquela prtica. Justifico: o empregador e seus representantes podem tomar eficazes providncias para coibir a prtica discriminatria no mbito do trabalho, como tambm de se precaver contra possveis acusaes desfundamentadas, pois dele o poder diretivo.

    6 DIMENSO DA ABORDAGEM JUDICIAL

    Por derradeiro, e de uma forma bem simplria, gostaria de mencionar a expectativa do jurisdicionado que se sente discriminado e busca o reconhecimento do desvio de conduta perpetrada pelo empregador ou seus prepostos atravs de uma ao judicial. o Judicirio depositrio das energias, sonhos de justeza, concreo da restaurao de um bem da vida aviltado, ou seja, a ele cumpre colocar os limites sobre as argumentaes das partes para o equacionamento das causas.

    Urge citar importante lio do Professor Lus R. Cardoso de Oliveira, quando discorre sobre as dimenses temticas usualmente presentes nas causas judiciais relativas a processos que envolvem discriminao.

    Para o eminente acadmico, so trs as dimenses: 1) a dimenso dos direitos vigentes na sociedade ou comunidade em

    questo, por meio da qual feita uma avaliao da correo normativa do comportamento das partes no processo em tela;

    2) a dimenso dos interesses, por meio da qual o Judicirio faz uma avaliao dos danos materiais provocados pelo desrespeito a direitos e atribui um valor monetrio como indenizao parte prejudicada, ou estabelece uma pena como forma de reparao; e,

    3) a dimenso do reconhecimento, por meio da qual os litigantes querem ver seus direitos serem tratados com respeito e considerao, sancionados pelo estado, garantindo, assim, o resgate da integrao moral de suas identidades.28 Pontuadas as dimenses observadas pelo pesquisador, tem-se que o processo

    relacionado com condutas discriminatrias envolve muito mais do que a insero do tipo no modelo legal e a mensura pecuniria da indenizao compatvel. Impe- se uma considerao muito mais ampla e sensvel, aliciada a princpios morais, normalmente eleitos na Carta Constitucional.

    Constantemente observamos nas decises judiciais a considerao das duas primeiras dimenses acima abordadas, ao passo que a terceira ou aparece de forma tcita ou totalmente excluda do processo judicial, o que denota uma ausncia de sensibilidade ao ponto de vista das partes. Bevilqua,29 quando escreve sobre os conflitos

    28 Cardoso, 2004, p. 127.29 Bevilqua, 2001, p. 326.

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    do consumidor, assinala que, em geral, a demanda no est adstrita ao contedo econmico pugnado como indenizao, pois os atores nestes processos tm necessidade de expressar suas emoes e de obterem um pronunciamento sobre tal aspecto.

    Nos processos cuja temtica a discriminao, na viso do pretenso agredido, houve uma quebra ou negao da equivalncia entre as partes. E, atravs do processo judicial, busca-se a restaurao desse status. Em muitos exemplos citados por Bevilqua, o consumidor faz questo de obter do fornecedor um pedido formal de desculpas na fase conciliatria, mesmo aps ter sua demanda de reparao material plenamente satisfeita.30 A importncia do reconhecimento ou reparao moral se faz muito mais presente nos processos de conduta discriminatria do empregador ou um de seus prepostos contra o empregado, pois este j se encontra em um estado de subjugao e fragilidade dentro da relao de emprego em um pas de distncias avassaladoras entre o capital e trabalho. Se tal situao agravada por uma conduta discriminatria, possivelmente se instala um verdadeiro drama psicolgico, dependendo da gravidade da situao.

    Assim, a preocupao do juiz com os aspectos singulares dos processos com a temtica epigrafada, tendo como pano de fundo os princpios norteadores do direito do trabalho, possibilitando a inverso do nus probatrio, quando verificada verossimilhana da acusao, conforme proposto alhures, denota um caminho mais prximo da busca da pacificao social, dando substncia e verdadeiro sentido moral atividade jurisdicional.

    Encerro minhas reflexes registrando que o tema da discriminao liga-se umbilicalmente proteo dos direitos humanos. A falha sistemtica em assegurar a sua efetividade contribui para a propagao das condutas desviadas (discriminatrias), aniquiladoras da dignidade humana.

    Hannah Arendt tece consideraes a este respeito, ao tratar das condies inerentes ao totalitarismo. Referindo-se existncia de campos de concentrao, assinala:

    A desvairada fabricao em massa de cadveres precedida pela preparao histrica e politicamente inteligvel de cadveres vivos. O incentivo e, o que mais importante, o silencioso consentimento a tais condies sem precedentes resultam daqueles eventos, que, num perodo de desintegrao poltica, sbita e desesperadamente, tornaram centenas de milhares de seres humanos aptridas, desterrados, proscritos e indesejados. enquanto o desemprego tornava m ilhes de outros economicamente suprfluos e socialmente onerosos. Por sua vez, isso s pode acontecer porque os Direitos do Homem, apenas formulados, mas nunca filosoficamente estabelecidos, apenas proclamados, mas nunca politicamente garantidos, perderam em sua forma tradicional, toda a validade.31 (grifo nosso)

    30 Bevilqua, op. cit., p. 319.31 Arendt, 2000, p. 498.

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    Que a labuta dos tribunais brasileiros, mediante a construo jurisprudencial calcada em princpios, mesmo avanando para alm das sustentaes tericas, saiba evitar contribuir para o silencioso consentimento no qual, segundo Hannah Arendt, radica o totalitarismo.

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