#07 Desvios

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Revista NU #07 Desvios

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[ editorial ]

road moviePedro Jordão *

km 23. O sinal assinala um desvio e é obrigatório.Desviarmo-nos para percebermos que existem outrasrealidades para além da monotonia da estrada degrandes rectas e curvas suaves em que aceleramosdistraidamente. Que se visite menos e se viaje mais.Viajar é olhar para os lados, tirar os olhos do tracejadoda estrada, dispensar o folheto turístico, abandonaro conforto do conhecido, do já vivido. A segurançaé boa para atravessar passadeiras, mas há momentosem que só se vive se for sem rede.

km 571. Nada é mais oculto do que as coisas comque continuamente andamos na boca.1 Na corridapara palavra da década, a globalização continuadestacada à frente, de tão gasta que foi nos últimosanos. É também uma fonte inesgotável de polémicase equívocos. Um dos mais frequentes nos dias quecorrem, prende-se com a ingenuidade com queparecemos acreditar que vivemos todos numa aldeiaglobal, que já não oferece segredos, um mundo semfronteiras. Aparentemente, só não se conhece o queainda não foi inventado. Já fomos todos à Índia, aoJapão e já todos atravessámos os Estados Unidospela 66 num Cadillac de pneus carecas. Porque jávimos os postais, os documentários, os filmes e atéfizemos um grande esforço para descolar o olhardas imagens e ler uns quantos livros. E já poucomais há a saber. É a desvalorização total daexperiência. Entretanto, acreditamos viajar pelomundo num ecrã, enquanto nos sentamosconfortavelmente com um refresco na mão. Tudonos parece familiar e próximo, como se o mundofosse mais um adereço que se arruma todos os diasao lado das pantufas.

[ editorial ] road movie p02Pedro Jordão

sobre cidades, belgas e afins p04Bart Melort + Frederic Vandoninck + Miguel Steel Lebre

joão santa-rita p10Irina Sales Grade

guerra e paz p18Luísa Correia + Pedro Canotilho

air oom p20Pedro Ganho

japão – espaço e artifício p22Sebastião Resende

quero uma casa só para mim, com parede, chão e tecto p24Carolina Ferreira + Pedro Canotilho

[ 1º acto ] casa js, coimbra p26Luís Miguel Correia + Vanda Maldonado Correia

[ 1º acto ] capelas mortuárias, pereira p28Luís Miguel Correia + Susana Constantino

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Sobre belgas, cidades e afins…Bart Melort + Frederic Vandoninck + Miguel Steel Lebre *

INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje, em que a globalização se tornou um fenómeno inevitável que tende aabranger todos os ramos da sociedade em todos os cantos do mundo, é cada vez maisproblemático e menos evidente fazer comparações de diferentes culturas. Ao falar de cultura,pensa-se quase automaticamente nos aspectos mais tradicionais que dela fazem parte, masa verdade é que começam a ser uma fracção cada vez menor da nossa verdadeira cultura.A difusão generalizada de enormes redes de contacto e comunicação entre os cinco continentestorna cada vez mais eminente uma aproximação, e até fusão, das diferentes culturas mundiaisem direcção a uma só cultura global. Neste âmbito, é também cada vez mais difícil fazeruma distinção entre os elementos originais e próprios a uma cultura e os que provêm decontactos com outras culturas. Fazer este tipo de comparações dentro do contexto europeué ainda mais crítico, dado que as influências multilaterais são tantas que se torna impossívelfazer distinções restritas. À partida, seria mais fácil falar de uma cultura europeia em geraldo que das culturas belga, francesa, holandesa, alemã ou portuguesa por si sós.

NOTÍCIAS EM DIRECTO DA BÉLGICA

A Bélgica é um país problemático, não só do ponto de vista arquitectónico e urbanístico, masespecialmente ao nível político. Nos últimos anos, vários acontecimentos trágicos de origensmuito diversas marcaram profundas mudanças, não só na paisagem política, estrutural esocial do país, como até na mentalidade e na confiança dos eleitores para com o mundopolítico. Desde que a evasão da cadeia do famoso pedófilo Dutroux recolocou a Bélgica nomapa mundial, o país sofreu profundas reformas da segurança pública e da justiça. Também

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as galinhas com as suas dioxinas têm ajudado nas mudanças políticas ao colocar os Verdesno governo. Aparentemente são precisas tragédias para forçar reformas e mudanças profundas.A desvantagem deste sistema é que as mudanças ocorrem de forma completamenteimprevisível, sem uma linha de visão planeada. A evolução da sociedade contemporâneanuma lógica crescente de individualismo tem também consequências no mundo político, comuma desfragmentação cada vez maior dos partidos, o que dificulta muito a formação degovernos e torna praticamente impossível a tomada de decisões rígidas, como são as doplaneamento urbano. Não só a tendência de individualização, mas também a evolução daeconomia mundial, as revoluções tecnológicas (como a clonagem de seres humanos) e osfenómenos de globalização, fazem com que os governos não tenham, muitas vezes, capacidadede resposta a tamanhas evoluções de suas sociedades. São como gigantes com sapatos desalto alto a correr atrás de lebres. É um fenómeno comum na Bélgica… também o vemosaqui, em Portugal. Noutros tempos a situação era diferente… ou nem por isso… Façamos umpequeno ensaio para analisar o contexto belga.

Este pequeno país do centro da Europa, só há relativamente pouco tempo (1830) deixou deser território concorrido por todos os países vizinhos, para se tornar independente. Dessemodo, é compreensível a necessidade que o país mostrava nesse momento em se evidenciarpara o mundo como uma nação merecedora da sua independência. Todos os esforços foramfeitos para sublinhar todo e qualquer tipo de unidade e autenticidade cultural deste pequenonovo país. Cinco anos após a independência, era já fundada uma comissão de protecção demonumentos, visando, não só a protecção do património cultural, como a investigação deestilos próprios da região que evidenciassem uma cultura belga: o estilo gótico de Brabantou o estilo neo-gótico belga… Ao mesmo tempo, o país realçava as suas ambições, ao sero primeiro a trazer o caminho-de-ferro à Europa continental (depois da estreia em Inglaterra).Devido à política inovadora do jovem governo, a rede ferroviária alastrou a grande velocidadepor todo o território e é hoje a mais densa de todo o mundo. O mesmo fenómeno aconteceumais tarde com as auto-estradas.

Hoje em dia, no início do século XXI, olhamos para este país e perguntamo-nos quem é quetransformou a Bélgica no caos que é. As auto-estradas apresentam constantes sinais desobrelotação, os centros das cidades tornam-se museus históricos enquanto que as periferiase subúrbios crescem como ervas daninhas. Fenómenos como o desenvolvimento urbanolinear ao longo das vias principais ou a poluição luminosa são apenas dois exemplos deproblemas que nasceram na Bélgica e lhe são muito característicos. A Bélgica pode, no fundo,ser vista como uma grande cidade em que, para além de alguns núcleos importantes, se vêtodo o território existente entre esses núcleos completamente ocupado por enormes redesde infra-estruturas viárias e ferroviárias, por expansões periféricas sem limites e por umaenorme especulação imobiliária, com zonas agrícolas, industriais, culturais e naturais semqualquer forma aparente de ordenamento urbano. A Bélgica é, desse modo, o país das cemcidades, mas ao mesmo tempo poderíamos falar de uma enorme não-cidade. As cidades

projecto de Cristiaan Kieckens | desníveis dentro do parque de estacionamento da estação de Lovaina (projecto de Manuel de Solà Morales) | pátio de acesso ao parquede estacionamento da estação de Lovaina | idem | projecto de habitação social Hollainhof em Gent (Neutelings-Riedijk architects) | projecto de Cristiaan Kieckens

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evoluíram até grandes agregados urbanos que há muito funcionam independentemente.Como descreve o crítico Maarten Delbeke, a condição urbana belga não se situa numa fasepré-metropolitana, antes passou simplesmente essa fase à frente. Toda a paisagem podeser vista como uma cidade névoa em que as fronteiras se tornam difusas… cheias depotencialidades para os arquitectos darem asas à sua imaginação.

Com tal rede de infra-estruturas, que faria inveja a muitos países do mundo, não é difícilentender a razão da densidade de ocupação do território com que o país se confronta. Nãoexiste no país um único local onde não se ouça a auto-estrada. Tudo fica perto de tudo, nãosó em quilómetros como, talvez até mais importante, em minutos. Em todo o lado, a auto-estrada ou o comboio levam-nos a qualquer ponto do país, a qualquer momento do dia. Umapessoa com capacidade económica prefere viver fora da cidade, num subúrbio, sem carácterpróprio mas com suficiente espaço individual, a partir do qual todos os dias parte de automóvelem direcção ao trabalho, em vez de viver todo o ano no caos da cidade.

O grave problema de falta de ordenamento urbano deve-se, do nosso ponto de vista, a umafalta de rigor e de linearidade de ideias dos vários governos ao longo dos anos. E a grandeinstabilidade política, que é uma característica quase constante do país, foi-se traduzindoao longo dos tempos numa instabilidade da organização do espaço urbano. Com a enormefragmentação do mundo político nos últimos anos, a situação tem vindo a agravar-se. Cadavez menos mudanças radicais a nível do planeamento urbano deverão ser esperadas porparte de um governo. Este problema é, aliás, comum a muitos outros países, não sendopreciso olhar para muito mais longe do que Portugal…

Mas qual é o ponto de situação da arquitectura e urbanismo no nosso país? Façamos umapequena síntese. No início do século XX, nasceu na Bélgica um movimento arquitectónicomuito específico que mais tarde se viria a expandir um pouco por toda a Europa: a chamadaArt Nouveau (antes da Primeira Grande Guerra) e a Art Deco (no período entre as duasguerras mundiais), tendo como principais protagonistas Victor Horta e Henry van de Velde.Embora estes movimentos tivessem tido um período de vida limitado, estas viriam a ser, atéhoje, as únicas formas de arquitectura tipicamente belgas. No entanto, nos últimos anostêm-se registado algumas novas tendências, normalmente muito esporádicas e sem serelacionarem com uma determinada escola ou professor, mas mesmo assim com um carácterpróprio muito definido. Por enquanto, a este fenómeno ainda nenhum nome foi atribuído,embora na crítica e nas exposições se costume falar dos jovens arquitectos belgas. Nãopodemos negar a este recente movimento a grande influência dos vizinhos holandeses (quetêm, de resto, influenciado toda a arquitectura mundial) mas conseguimos, ainda assim,distinguir uma atitude muito própria. São caracterizados pela sua simplicidade, introversãoe, muitas vezes, por um sentido de humor irónico proveniente de uma reinterpretação dasregras urbanísticas. É uma arquitectura que não tenta fugir aos compromissos, mas ser, emsi mesma, um hiper-compromisso. Nomes como Xaveer de Geyter, Stephane Beel, Willem-Jan Neutelings e Luc Deleu não sonham ser conhecidos fora do país, mas são eles os pioneirosque deram novos passos e novas noções daquilo que é possível dentro das legislações elimitações do contexto belga. O modo como investigam os limites do possível para os redefinir,e assim criar um espaço de liberdade quase ilimitada, é exemplar no âmbito da arquitectura.

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No campo da arquitectura é este o cenário belga de hoje: um grupo de guerrilheirosdesarmados que desenvolvem novas tácticas para partir para o campo de batalha. Mas qualé o cenário do urbanismo existente? Por enquanto, ainda não há indícios de uma novageração, embora se registem já algumas tentativas de expansão da escala arquitectónicapara a escala urbana. O exemplo mais claro, e um dos únicos já realizados, é a remodelaçãoda zona da Estação de Lovaina, projectada pela equipa de Marcel Smets com a colaboraçãode nomes como Manuel de Solà-Morales, Samyn & partners e Gonçalo Byrne. Outros projectosde grandes dimensões, como o sul de Antuérpia, por Toyo Ito, ou a zona portuária a nortede Antuérpia, por Solà-Morales, tiveram grandes problemas relacionados com mudançaspolíticas que os levaram directamente às gavetas de arquivo. Um outro projecto, como ode Stephane Beel para CM, formula respostas a problemas tipicamente urbanísticos, mastem uma escala irrelevante…

Supomos que nos próximos dez anos surgirá um novo movimento nesse campo: um grupode pessoas vindas de diferentes contextos, com diferentes interpretações mas com umavontade comum de mudança e intervenção. Estas pessoas irão fazer o que nenhum sistemapolítico poderá copiar, trabalhando individualmente, cada um com a sua estratégia numaprocura contínua de inovação. A única coisa em comum será o campo de trabalho. Inovaçãosó será possível partindo de uma aversão geral a tudo o que é tipicamente belga.

maqueta da nova cobertura da estação (Samyn & partners) e do novo interface (Manuel de Solà Morales) | Raveelmuseum de Stephane Beel |projecto de Gonçalo Byrne para a casa da província na zona da estação de Lovaina | projecto de Xaveer de Geyter, casa de habitação em Braaschaat

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POTENCIALIDADES

Tal como foi acabado de referir, é necessário o arquitecto distanciar-se das influências culturaispara chegar à essência da arquitectura inovadora. Obviamente, existirão enormes diferençasentre um projecto realizado em Portugal e um projecto similar realizado na Bélgica. Cadaprojecto de arquitectura terá um contexto histórico, económico e social muito específico parao local em que se situa. Mas todo esse conjunto de dados não é mais que uma base referencialpara a prática da arquitectura. É curioso verificar que, no fundo, os conceitos a partir dosquais a qualidade da arquitectura é avaliada, ao contrário do que seria de esperar, não têmraízes na base cultural em que estes surgem. Por muito subjectiva que a avaliação de umprojecto possa parecer, ela corresponde a uma lógica universal que transcende todo o âmbitocultural e até mesmo o contexto em que cresce um projecto. Por detrás de um projecto dequalidade encontra-se, para além de uma resposta coerente a todos os aspectos contextuaise funcionais, uma dimensão extra, um momento poético que faz distinguir esse projecto damaioria dos outros. E é exactamente essa poesia que é escrita numa língua universal, umalíngua que foi liberta de todas as influências culturais para desse modo atingir a essênciada obra. Esta poesia é o que se pode chamar a dimensão artística da arquitectura. Destemodo evitamos uma visão estática da arquitectura, em que os edifícios são sacralizadoscomo objectos de arte, de tal forma que se torna demasiado limitado o seu uso. A poesiapode ser escrita em várias línguas, essas sim com um grande peso cultural, mas o momentopoético permanece e sobrevive até eventuais traduções.

Os melhores exemplos da existência desta linguagem universal são os concursos internacionaisde arquitectura e urbanismo como o Mies van der Rohe Award, o Prix de Rome ou ainda osconcursos EUROPAN. Sem a existência de critérios universais para a selecção dos projectosconcorrentes, um concurso como o Mies Van der Rohe Award nunca poderia ser levado acabo com sucesso. O facto de, entre centenas de projectos realizados na Europa, conseguiremser nomeados cerca de quarenta projectos espalhados por toda a Europa, dos quais o Kursaalde San Sebastian, de Rafael Moneo, foi o último vencedor, revela a existência de um consensoentre os elementos do júri que excede qualquer influência cultural. O desafio para o arquitectoé a procura incessante desses momentos poéticos e o reconhecimento da linguagem poéticapara além das respostas dadas ao contexto. O esforço pedido é, por vezes, enorme, mascostuma valer a pena. De falta de potencialidades não nos podemos queixar… temos ummundo delas pela frente. Não é apenas na Holanda ou na Suíça que se faz boa arquitectura.Potencialidades tanto se podem encontrar na remodelação de um convento português comona construção de palhotas em África ou no desenvolvimento da periferia belga ou na invençãode iglos no Alasca ou na remodelação de bairros de lata em Buenos Aires. As potências domundo urbano são infinitas… aproveitemo-las!!!

PAUSE

Paremos por momentos o desenrolar das coisas, façamos uma pequena pausa para reflectir.Muitas vezes dominados pela paixão e interesse pelo ofício perdemo-nos em sessõesintermináveis de projectos e apresentações sem darmos tempo às ideias para assentarem.

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De quando em quando, é essencial distanciarmo-nos um pouco do trabalho para observar,não só o conjunto, mas toda a realidade à sua volta, de modo a criarmos novos campos devisão, maior profundidade e até um maior grau de compreensão do próprio trabalho. Osarquitectos gostam de se evidenciar para o mundo exterior como especialistas profissionaisem conferir forma ao espaço físico. Mas todo o processo de projectar contém sempre umenorme grau de dúvida e insegurança acerca de decisões tomadas. Essa insegurança tenta-se muitas vezes resolver recorrendo a disciplinas que, muitas vezes, pouco ou nada têm aver com arquitectura. No âmbito destas inseguranças, todo o tipo de experiências epossibilidades de reflexão e de contactos entre diferentes opiniões deveriam ser incentivadose estimulados para que, em conjunto, pudéssemos chegar a uma noção de arquitectura maisrica, mais ampla e ao mesmo tempo mais profunda. Mas agora voltemos ao trabalho… PRESSTHE START BUTTON!

PLAY

* alunos belgas do 5º Ano do Departamento de Engenharia e Arquitectura da Universidadede Lovaina (Bélgica) e do 5º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade deCoimbra no âmbito do Programa Erasmus

casa da musica de Bruges (Robrecht & Daem architects) | Conceito e maqueta do projecto de Neutelings-Riedijk para o museu MAS em Antuérpia | projecto de bOb van Reethno cais de Antuérpia | projecto de Gonçalo Byrne para a casa da província na zona da estação de Lovaina | projecto urbano de Xaveer de Geyter para o norte de Bruxelas

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João Santa-RitaIrina Sales Grade *

retomando desenhos, maquetes de estudo,mas muitas vezes é complicado, não existemdatas. O desenho cria um elo que vaicomunicando através do tempo. É possívelpegar num processo e retirar não sei quantosdesenhos que poderão vir a ser retomadosnoutros momentos. Possuo um elo muito fortecom o desenho, entre o modo de pensar e deregistar.

E as maquetes?

JSR_ As maquetes são muito engraçadas eúteis, porque sempre constituiram umprivilegiado instrumento de avaliação e deanálise de um trabalho. O que percebi desdecedo é que a maquete é um objecto fabulosode avaliação das escalas, dos espaços, das

é um modo de pesquisa. Sinto-me mais próximodos problemas se estiver a desenhar. O desenhointeressa-me meramente como um processo,evolução de um trabalho, como um processode investigação.

Na base de todos os projectos está patenteuma profunda reflexão acerca do programa,do sítio, dos temas, das hipóteses, reflexãoesta que é depois aproveitada como elementode articulação do programa com o terreno, coma envolvente, e na própria articulação internado edifício. A naturalidade com que explica oprojecto para o parque de estacionamento emBeja é reveladora de uma enorme maturidadeprojectual - não é obvio desenhar um parquede estacionamento trapezoidal, que surge dochão e ocupa um espaço circunscrito poredifícios. Nota-se que neste projecto se adquiriuum grande domínio do que é um parque deestacionamento, de como este se articula e decomo este novo edifício se envolve com oespaço em seu redor. A articulação entre várioselementos é outro dos temas essenciais dareflexão - articular espaços de circulação,percursos e várias formas de percursos ou demeios de se percorrer um espaço.

Em teoria, todos os edifícios com pelo menosdois níveis possuem escadas, agora a resoluçãoda escada é que é um problema complicado.E isso quanto a mim é que está muito na géneseda arquitectura, para um determinadomomento, numa dada realidade. Na próprianatureza da construção da arquitectura é isso

O que eu mais gosto em Lisboa? O que meagrada mais é a topografia. Além de ser umatopografia bastante acidentada tem sobre sicoisas muito diferentes. É uma cidade muitorica, tem muitos bocados, alguns deles muitofeios, mas não importa, é mais um bocado, ummodo diferente de se instalar. Para mim ogrande desafio de Lisboa há-de ser semprecomo articular isto tudo. Sem destruir umas,sem tomar umas como negativas, há zonascomo Olivais e Chelas que durante anos ficaramcomo zonas expectantes. Depois, há uns cincoou seis anos, houve aquela esperançainstitucional de ocupar a zona de Chelas comprogramas mais nobres para aquilo não ser sóum local de realojamentos. Lisboa é uma cidademuito desarticulada, com muitos problemascomplicados. A grande aposta é como relacionartudo isso. Como relacionar Monsanto, comocrescer até Monsanto, nas franjas do rio é amesma coisa. Como se relacionar com o rio,em ambas as margens. Só se criam locais dediversão, não há a tentativa de se criaremlocais com actividades. Depois há zonasesquecidas, tais como a Av. Almirante Reis,que tem edifícios de grande qualidade erepresentativos de muitos períodos e onde

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formas, do dimensionamento, da luz, de coisasque por vezes o desenho não materializa e nãorepresenta de uma forma tão evidente eimediata. Por outro lado, permitem umapesquisa manual espontânea no modo detrabalhar e dimensionar as coisas. Permitemtambém interpretar e simular trabalhos emdeterminadas escalas num grau de aproximaçãoà realidade. As maquetes são representaçõespessoais, são leituras muito concretas de umdeterminado problema.

Na exposição que está no Centro Culturalde Belém (CCB), há uma brincadeira, asplantas dos diversos pisos para o projectode Cacilhas desenvolvem-se em maquetee relacionou esses objectos com asmaquetes de estudo. Qual a relação entre estas duas formas de representação?

JSR_ Essas maquetes foram todas fabricadaspara a exposição. Este conjunto é muitoestimulante porque se trata de um projectocomplexo difícil de explicar apenas através dodesenho. É complexo mesmo na sua estruturade pensamento e de invenção, do ponto devista de como é que todo aquele mundo deviaexistir. É um projecto que nasce muito coladoàs representações e ideias de Constant ou dePiranesi. É uma reconstituição fantástica deuma ideia para toda aquela área. Nasce dessaideia de que Cacilhas podia ser um centro dooutro lado do rio Tejo, com muito maisintensidade do que a Praça do Comércio. Trata-se da construção de um local com uma enormecomplexidade em termos funcionais, em termosde vida, em termos de gestão, com muitassituações diferentes, art iculando-se,sobrepondo-se e cruzando-se actividades muitodiversas: escritórios, equipamentos, carros porcima de autocarros, táxis a passar pelo meio.E as maquetes que lá estão, surgem de umaforma didáctica, para demonstrar que o desenhotambém pode assumir um valor tridimensional,e por outro também existe o meu fascínio pela

que é interessante, por um lado são respostasespaciais e construídas a determinadosproblemas. O que nos faz desenhar uma escadadiferente da dos outros, ou melhor que a dosoutros ou mais ajustada aquele programa?

Nesta entrevista ao arquitecto João Santa-Ritaconversámos sobre o passado, o presente e ofuturo, sobre os seus desenhos, sobre museus,sobre concursos, sobre algumas preferênciaspessoais, sobre todas as perguntas para asquais ainda não há resposta.

Como se articulam desenhos tão pessoaise íntimos no trabalho de equipa, naelaboração do projecto?

JSR_ O desenho é um instrumento, umalinguagem que nos permite uma visualizaçãoe avaliação constantes daquilo que procuramos.Penso que num trabalho de equipa, quando seproduzem desenhos poderá existir um contributomais forte. É através do desenho que eu maisfacilmente me exprimo, mas não significa quemarque mais um trabalho, um percurso maisdo que outros modos. São registos quepermanecem, pois as palavras não ficamregistadas. Em arquitectura, uma das formasde se registar e evoluir num processo é também

coexistem muitas actividades. Há um grandesalto a dar para que se torne numa cidade quepossa ser lida no seu todo e não em váriosfragmentos. Neste momento há um certo virarde costas de umas coisas para as outras. Achave está em ver como se vai construir noseio desses espaços todos, a cidade precisa deuma certa reclassificação, sem que a cidadefique sem história.

A questão fundamental é, de facto, questionar-se, reflectir, articular, não esquecendo que oarquitecto constrói no tempo. Entre o passadoe o presente, o trabalho do arquitecto JoãoSanta-Rita situa-se no presente, comexpectativas para o futuro. O seu trabalhoapresenta um carácter muito pessoal, o que otorna, por um lado, quase intemporal e, poroutro, caracteriza-o por um desenvolvimentoconceptual que o atira para o futuro.

[...] Os arquitectos do presente são uns tiposdesgraçados que se consideram melhores emais completos e informados do que os dopassado mas que têm uma tarefa grande queé a de construir o futuro [...]

Os desenhos que produz vão surgindo ao longode todo o processo de conceptualização, eapesar de serem infinitamente íntimos, são nofundo instrumentos de trabalho, de discussãopara toda a equipa, são conversas que ficamregistadas. Não tenho nada o habito de desenharaquilo que vejo. Chateia-me imenso andar adesenhar coisas na rua. Gosto de andar commáquina fotográfica e bloco de notas. E muitomenos desenhar coisas que construí! O desenho

1. Casas Mortuárias junto à ermida de Santo André, Beja (2001/...) 2. e 3. Centro Interpretativo das Ruínas Megalíticas de Alcalar, Algarve (1997/2000)

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sua volta. Isso é um pouco verdade para outrosprojectos. Por exemplo, o caso do edifício paraa sede do Instituto das Comunicações dePortugal é muito interessante porque é umvolume que nasce daquilo que está próximo.Nós não fizemos mais nada do que fundir osdois edifícios que estavam ao lado. E foi issoque nos interessou. O resultado é uma entidadenova e única. Isto é um modo de escolher ede fazer uma análise a posteriori. Esta análisefez-nos pensar: o que é que de mais forte teveeste trabalho? O que é que de facto teria sidomais importante se o trabalho se tivesseconcretizado? Por exemplo, o projecto para asCasas Mortuárias, em Beja, é feito com poucascoisas, são quatro espaços muito idênticos, amesma área, o mesmo número de ocupantes,as mesmas necessidades, aquilo não é umcemitério, são quatro casas mortuárias. O quenós procurámos foi que estas casascompletassem, em si mesmas, um dosambientes de cemitério. Por um lado elas sãosemi-enterradas, mas ao mesmo tempo surgemna paisagem como jazigos que ocupam eestruturam o terreno. É um programa que serevela das duas maneiras, é como se virássemostudo do avesso e o programa e as formasinteriores se afirmassem em relevo napaisagem. Produzindo um passeio/percursoentre jazigos, que surge um pouco como umaantecipação do que é a envolvente espacial deum cemitério. Procura-se também uma relaçãovolumétrica com uma ermida que está à entrada

escultura, de transformar aqueles desenhosem modelos, numa coisa um pouco ambígua,um desenho que vai evoluindo, que se vaicompletando. Estes desenhos/maquetes forampensados para criar a vontade de tocar, paraestimular os sentidos. Depois possuem algomuito curioso, que é ter-se pegado numa sériede maquetes de estudo e tentar refazê-las comoutro sentido sem perder as suas qualidades,formais e plásticas, resultantes de um modode fabrico mais espontâneo, característico dasmaquetes de estudo. É uma operação um poucodifícil porque este tipo de modelos é por vezesum pouco manipulável, às vezes são objectosmuito gestuais, que às vezes se elaboram emcinco minutos e por vezes levam horas ou diasa refazer.

Há uma enorme complexidade degeometrias que ordenam os seuspro jec tos , mas por vezes essacomplexidade só aparece em pequenosdetalhes. Isso nota-se bem na Estação deMetro Rotunda I. Como se processa essasimplificação?

JSR_ Não nego que esteja subjacente umariqueza muito grande na complexidade espacial,

compartimentos, é apenas acerca do espaço eda circulação neste. É uma estrutura, são lajese pilares, que quando ganha uma formainesperada, ganha uma grande espacialidade.Mas cá está, nasceu um pouco dessanecessidade de resolver um programa racionaldentro de uma forma irracional e inadequada.Esta forma um pouco descolada permitiuinventar estruturas espaciais que repusessemessa racionalidade programática e espacial queera necessária. Um parque de estacionamentoé dos programas mais rígidos e positivos queexiste, é aparentemente igual para todos oscasos. Há regras de trânsito, há métricas eratios a cumprir... Tudo isso obrigou a umagrande ginástica mental e de desenho. Istopara dizer que o Metro, pelo contrário, é pornatureza um espaço que nós herdamos. Nuncadesenhámos as estações de raiz. Fazer umaestação de raiz é diferente de herdar um estudoprévio, com uma preexistência, e arranjá-la.

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de Beja, onde não há quase nada, só umasconstruções de muito pequena dimensão. Esteé um edifício muito grande, e então a nossaintenção foi destruí-lo e fragmentá-lo emunidades mais pequenas. São locais onde osprogramas permitem especular um pouco maissobre essa expressividade. Mas há duas coisasque interessam: por um lado há umacomplexidade mais estrutural, o projecto parao Parque de Estacionamento em Beja mostrabem isso, e por outro há uma complexidademais volumétrica e espacial, que é o caso dasCasas Mortuárias.

Quais foram as suas preocupações noprojecto para o Museu Machado de Castro?

JSR_ Na altura em que fizemos o concurso parao Museu Machado de Castro tínhamos feitomais alguns concursos para vários museus,pelo que tínhamos vindo a experimentar umasérie de coisas. Este projecto beneficiou dessaexperiência e do encanto enorme que tivemospor esse edifício, do que ele representava e doque era a intensidade da paisagem naquelelocal. Foram questões que nos levaram a pensare repensar, como é que se poderia intervir semo destruir demasiado, sem nunca destruir asmuitas leituras que ele tinha e proporcionava.Por isso é que ele aparece na exposição comuma certa presença, foi um exercício muitodifícil de resolver. É um espaço curto para oqual é pedido muita coisa, um terreno pequeno

sobretudo na relação inter-espacial. Se meperguntassem o que é que mais me interessana arquitectura... É perceber como é que osprogramas podem ser transformados numasolução espacial, o que implica uma existênciageométrica interpretativa e geradora doprojecto. Aquilo que mais me interessa naarquitectura não são tanto as questões deresolução do desenho, questões formais. Emlimite, fascina-me muito mais uma boa estruturaespacial do que uma boa forma. Fascina-memais a complexidade dos elementos estruturais,o modo como permitem a existência de espaçono seu interior, que por vezes nem são espaçoshabitáveis, são espaços residuais. Por exemplo,o que distingue um edifício de uma escola é aforma como o corredor articula as salas e comoestas se articulam entre si. Quando isso éapenas resolvido com um marco de pedra ouum lambril, isso não me diz praticamente nada,é um aspecto acessório. A chave está nosespaços da galeria que conduz às salas e naarticulação destas com a galeria. Por exemplo,neste momento estamos a fazer um parque deestacionamento para Beja, o que pode parecerà partida um programa desinteressante, poucovisível, que não tem grande ciência, por sermuito regrado e quantificado, mas felizmenteou infelizmente coube-nos um lote com umforma trapezoidal. O que nos levouinsistentemente a procurar atingir a economiade uma forma rectangular ou quadrada nessaforma menos económica mas muito maisespeculativa do ponto de vista do espaço. Então,inventámos uma espiral, um estacionamentoque se vai desenvolvendo numa pista que sesobrepõe, desenrola sobre si mesma paraconseguir cruzar os pisos de estacionamento.Isso obrigou-nos a testar uma série de coisas.É um projecto feito sem salas, sem

Na Estação de Cabo Ruivo ainda conseguimosfazer algumas alterações ao estudo prévio, masde qualquer modo o modelo estava definido.O que nos pediam era o revestimento, otratamento do interior e, apesar de tudo, nósconseguimos mudar estruturalmente algumascoisas e fazer algumas propostas de novasrelações espaciais na estação. A Estação deMetro da Rotunda I era também quase umprojecto de revestimento. Só que como erauma estrutura muito mais híbrida, queconquistava espaços de circulação. De qualquermodo, não deixam de ser sempre estruturasprimárias na sua realização espacial. Em algunsmomentos da estação há um acumular deacontecimentos, mas tudo o resto já lá estava.Foi tentar articular tudo o que existia e quandonão se podia fazer em volume fazia-se emdesenho. Há um discurso que vai passando deuma coisa para a outra com elementos maissólidos ou mais subtis. Há coisas mais aparentese há restos que vão ficando registados. Há, defacto, alguns trabalhos em que se procura queesta densidade de informação resulte numaprocura mais exaustiva e mais visível.

Achei curioso, na exposição do CCB, terassociado conceitos aos vários projectos.Como e quando surgiram esses conceitos?

JSR_ A exposição procura mais ou menosestabelecer uma ponte e reflectir sobre o modocomo se pode intervir em diversos locais. Oque ali se procura não é tanto demonstrar osconceitos que estiveram na génese dosprojectos, mas mais uma leitura, uma avaliaçãoa posteriori, de como é que os diversos projectosse poderiam articular entre si. No caso deCoimbra, o conceito apresentado é adissimulação, mas ninguém diz que o projectoé sobre isso. Esteve sempre presente na nossaaposta que o que nos interessava fazer erauma construção que se misturasse com todaa volumetria existente daquela encosta. Estavasubjacente um conceito daquele tipo. Em quepraticamente desaparecesse nalguns momentose que fosse confundida com tudo o que está à

1. e 2. Revitalização do Centro Histórico de Cacilhas, Almada - Concurso Internacional em 2 fases, 6º prémio (1998)

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e entalado, escalas muito diversas, umaacumulação de história fabulosa, situaçõesespaciais históricas muito mais fortes do quealgumas que se conseguiriam eventualmentelá criar, é um exercício de facto estimulantemas muito complexo. O que aquilo nos levoutambém a pensar o que são e o querepresentam os museus neste momento emPortugal. Em Portugal parece que se acredita que há modelos espaciais que resolvem tudo.Que são bons para hospitais, que são bonspara museus, que são bons para universidades,não querendo no entanto transformar aarquitectura numa coisa de relacionamentoimediato entre forma e função. O que me pareceé que um país como Portugal, que tem acapacidade de pôr em marcha uma quantidadede programas diversos e de quase reformulara sua construção, não o pode fazer sem umareflexão e pesquisa constantes. O que nosinteressou pesquisar foi como é que se podepensar um museu neste momento para teruma certa identidade em Portugal. Temoscolecções que não são tão importantes para ogrande publico como são noutros países, emtermos da sua dimensão e da suarepresentatividade. Como é que este museudifere do outro? Ou seja, porque é que salascom pé direito duplo em betão com clarabóiasservem para um museu mas não servem paraoutros? Porque algumas pinturas exigem umadeterminada forma de serem expostas, umasexigem distância, outras proximidade, umasum percurso labiríntico para lá chegar e outrasuma galeria directa. E, como experimentámosvários museus, fomos obrigados a reflectir umpouco sobre isso. Sobre os espaços, a suanatureza, o seu modo de comunicação com osvisitantes e ainda o modo como, para além dacolecção, o museu revela e narra a sua história,os seus diferentes tempos e arquitecturas. Nocaso do estacionamento em Beja, eraevidentemente mais fácil fazer um quadrado

Os concursos são bons para isso, são bons paraquestionar os preconceitos de quem os promove.Por exemplo, no Museu Judeu do Liebeskindem Berlim, o problema não reside no facto denão se conseguir lá fazer nada. O problema éque ninguém sabe como lá fazer alguma coisa.O que o Liebeskind criou foi uma dificuldadepara uma série de pessoas, que julgavam queiam receber umas salas brancas para exporfotografias dramáticas de uns judeus e eleinventou muito desse dramatismo logo com omuseu. Portanto, ele destruiu logo uma partedaquilo que as pessoas queriam comunicar epassou logo pela arquitectura a representarisso. Depois criou-lhes um problema adicional,porque aquilo não são os espaços convencionaisque as pessoas esperariam poder ocuparimediatamente. A reacção passa mais pelaincapacidade do que pela impossibilidade. Osmuseus valem hoje quase tanto pelo que contêmcomo pelo que representam. Justamente o casodo museu vazio do Liebeskind, que mesmosem conteúdo expositivo se tornou umareferência no universo dos museus. O LeCorbusier tem aquele museu fantástico, o Museude Crescimento Contínuo, aquela experiênciade um espaço que vai crescendo com o tempo...Aquilo poderá colocar problemas complicados,mas não deixa de ser uma tentativa dequestionar como é que se pode representar eapresentar a arte, de como o próprio espaçose transforma também ele num elemento vivoe marcante.

É habitual questionar-se acerca de tudo oque rodeia um projecto?

JSR_ Entre nós querermos questionar e sermoscapazes de questionar vai uma grande distância.Eu não sou capaz de partir para um novoprojecto com a ideia de que está tudo ditosobre esse programa e que se trata apenas deuma nova formalização. No caso das estaçõesde metro tentamos fugir a um enunciadosimples, que era decorar umas paredes. Quandome dizem: está aqui a estação, está aqui ocais, estão aqui as dimensões, está aqui tudo,é quase um programa de revestimento. É umprograma que, em si mesmo, fácil, é um espaço

Qual seria para si um bom exemplo demuseu?

JSR_ Acho que há muitos bons exemplos demuseus. Acho o Museu de Arte Romana deMérida, do Rafael Moneo, bastante interessantepela forma como está implantado sobre o centroarqueológico. Cá está, acho que é uma respostamuito singular para a singularidade do queexistia no local, pela maneira como teve quese acomodar, como cruza as duas estruturas:a nova e a arqueológica. Aqueles museus queo Le Corbusier fez para o Japão são semprememoráveis como exemplos do que é ainvenção do espaço público, como é que aspessoas se podem deslocar dentro do museu,como é que observam, como é que podemcircular. São extremamente inovadores desseponto de vista, distanciavam as pessoas dosobjectos. Há uma coisa fabulosa do Álvaro Sizapara a Guernica de Picasso, em Madrid, queesteve exposto naquela exposição no CCB,Artistas e Arquitectos. Era uma maquete embalsa, muito pequena, que mostrava bem oque era a aproximação a um objecto daqueladimensão, e com aquele grau de intensidade,como é que ele se revelava, como é que se iadescobrindo ao longo do percurso, iam-se vendoexcertos.

Nessa exposição estavam subjacentes doistemas: museus em que o edifício pode serentendido como objecto artístico e museusem que o edifício dá primazia às obras dearte que recebe. Qual é a sua opinião?

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com três clarabóias no meio, mas o que meinteressou foi pensar como é que esteestacionamento iria deixar de ser umestacionamento para passar a ser um poucomais do que isso na cidade, deixar de ser umespaço amorfo, onde só vou estacionar o carro,onde não tenho oportunidade de criar quaisquerafinidades espaciais. Um parque deestacionamento é um local em que se tem deandar, nem que sejam cinquenta metros a pépara sair, tem que ter algo que motive e crieuma afinidade com aquele espaço. As cidades,apesar de muitas delas terem sido construídasespontaneamente, têm um encanto qualquerque nós não conseguimos por vezes reproduzir.Agora andamos muito fascinados com asestruturas fabris, durante anos foramconsideradas intervenções pesadas a demolir,são as leituras da nossa geração. Acho é quehá uma oportunidade histórica, que foi umpouco inibida em Portugal. Dos muitosprogramas que se fizeram, não é fácil retirardois ou três exemplos paradigmáticos de cada.

grande, não tem muito mais, o desafio estájustamente em questionar isso. Por que é queisto não pode ser outra coisa, porque não háde questionar-se o espaço... Na Estação deCabo Ruivo introduzimos uma nova casca, umanova arquitectura no interior da estrutura. Talcomo duas peles que se vão diluindo e fundindopor um processo de osmose. Está ali umprocesso de passagem de uma coisa para aoutra que, em Cabo Ruivo, nos interessouquestionar. Interessa sempre pensar um pouconas coisas, não as dar como adquiridas. Olharpara o que foi feito antes acho que é essencial,perceber as experiências que foram feitas, masprocurar sempre um apport, acho que qualquerprograma tem sempre um apport possível.

JSR_ Acho que os arquitectos parecem tersempre muito medo de ser arquitectos, nãosei porquê! Querem sempre ser arquitectos,querem fazer coisas mas depois têm medo,não sei porquê. Há uma ideia errada de quehá materialidades que se anulam oudesaparecem. Acho que uma parede brancacom dez metros de comprimento e dez dealtura é tão neutra como uma parede cheia deformas estranhas. E interfere tanto no espaçocomo outras, depende como é que são feitas.Não acredito nada em arquitecturas neutras.A arquitectura existe para ser construída,impondo-se fisicamente no espaço. Eu nãoacho que o Frank Gehry seja mais ostensivoque aquela caixinha do Peter Zumthor. OZumthor tem uma coisa que à noite se vê, umacoisa que à noite imite luz, não é neutro, tema sua materialidade. A arquitectura é feita paraexistir, não é feita para fingir que não existe,que não está lá. Faz-me muita impressão assistira uma geração de pessoas que se empenharamem destruir academias, a destruir os dogmas,criaram certamente outros, não sei, e depoischegamos nós e conseguimos criar tantosdogmas. Só se vive bem assim: paredesbrancas, pavimentos de madeira, janelasgrandes rasgadas, edifícios sem coberturasinclinadas... Faz-me uma certa confusão,parecem coisas de marketing, preconceitos.

1. Pousada do Convento da Graça, Tavira (2000) 2. Sede do ICP, Lisboa (2001) 3. Ampliação do Museu Machado de Castro, Coimbra, 3º prémio ex-aequo (1999)

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No projecto The Gate Of The Present, quems ã o o s a r q u i t e c t o s d o p r e s e n t e ?

JSR_ Os arquitectos do presente são uns tiposdesgraçados que se consideram melhores emais completos e informados do que os dopassado mas que têm uma tarefa grande queé a de construir o futuro. A arquitectura é aarte menos imediata que existe.

A imagem dos arquitectos perdidos entrepilares e vigas é algum percurso ou é oestado dos arquitectos do presente? O queé q u e e s t a i m a g e m r e p r e s e n t a ?

JSR_ Essa imagem representa um estado dehisteria saudável da arquitectura. No sentidoem que cada arquitecto é uma aposta ou tentaser uma aposta. Em que há várias posturas de

por exemplo, esta caixa que encontrei no outrodia à venda, que achei interessante por ter umpuxador que é um batente de porta, uma pegaque é uma pega de não sei quê. Como é quese pode construir um objecto tão fora do vulgarcom coisas tão banais e díspares? Agora tenholá aguarelas, mas não foi para isso que ela foicriada. Digamos que tenho um certo prazer nomodo como os objectos se apresentam e nomodo como proporcionam várias utilizações eleituras. A escultura tem a qualidade de permitiruma existência mais objectual que a pintura enesse sentido pode ser apropriada de outraforma. É algo que eu transporto muito para aarquitectura. O carácter escultórico daarquitectura interessa-me bastante, mas não

história da arquitectura!... Quer dizer, já marcouhá dez anos, quando foi desenhada, mas sóagora é que nós a vemos e tomamos consciênciadesse facto. Isso é muito interessante naarquitectura, analisar a diferença entre o tempoem que ela é pensada e o tempo em que elaexiste e depois o tempo em que ela marcaefectivamente a História e o Homem pela suaexistência física no contexto do mundoconstruído. Porque, para um mundo restrito,ela pode marcar mais cedo, mas para o grandepúblico esse reconhecimento é muito maistardio. Há edifícios que estão agora a seracabados e que nós os tomamos como grandesmonumentos, que representam temas muitoactuais, que já conhecíamos há 15 anos atravésdas maquetes e dos desenhos publicados. Háum lado de surpresa que nos é retirado, mascomo é que isso influi é uma capacidadeinteressante. Como é que a arquitectura temessa capacidade de existir, de ser actual e capazde alterar a História, às vezes passado décadas.

Mas para a classe dos arquitectos, o factode um projecto existir nos desenhos,mesmo que não tenha sido construído, jámuda qualquer coisa?

JSR_ Sim, acho que muda qualquer coisa.Quando o projecto é construído comprovam-se as modificações que se esperavam. Por

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se fazer arquitectura que derivam depois emvários modos singulares, em várias abordagenspessoais. E, de facto, somos capazes deestabelecer diferenças entre elas. Representatambém que quem quer construir, quem querser arquitecto, tem que saber muito bemanalisar a realidade com a sua profusão enormede coisas que circulam à sua volta. Tem queescolher muito bem o local por onde quer seguir.Este projecto tem talvez treze anos e tambémrepresenta um pouco aquilo que eu sentia naaltura a esse respeito. Eu não sou uma pessoamuito selectiva. O Le Corbusier foi um homemcapaz de olhar para tudo e capaz de fazersempre algo a partir do mundo que o rodeava.Acho que essa lição é sempre um desafio, nesseaspecto não selecciono muito as coisas, gostode muitas, e há inúmeras que me interessam,mesmo as mais díspares. Essa disparidade temalguns riscos. Há processos que podem sermuito selectivos e há personagens que sãomuito selectivas. Eu não, sofro do processo deacumulação. E então, no meio disto, procuramosencontrar uma saída e estabelecer um percurso?Nós temos modos de nos expressarmos maisou menos pessoais e isso acaba por se reflectirnaquilo que estamos a fazer. Não é precisopreocuparmo-nos em inventar um percurso, asensibilidade é capaz de pôr em marcha umasérie de caminhos de invenção e criatividadeque fazem diferir uma determinadapersonalidade de outra. O arquitecto projectano tempo presente para coisas que se tornamrealidade no futuro.

Está sempre atrasado!

JSR_ É engraçado, está sempre atrasado! Oprojecto, quando é construído, quando sematerializa, já foi projectado há uns tempos,já se encontra no passado, e o mais interessanteé como é que ele ainda é capaz de influirpassado seis ou sete anos, é algo que me fazmuita impressão. Esta obra agora marca a

num sentido gratuito, meramente formal. Outracoisa que me interessa perceber é a agregaçãoformal da arquitectura. Como é que conjugandoformas diversas, se obtém uma só? Como éque um volume quadrado encaixado numamalha acidentada e recortada se acomoda.Voltando ao Machado de Castro, como é quese anicha uma ampliação numa cidade comuma topografia tão acidentada, feita de ruasque se acomodam, ruelas que inflectem 30vezes? Como é que se encosta a um edifícioque foi todo cortado à faca, para caber direitinho,com as ruas todas decepadas? Como é que sefaz essa agregação? O projecto do Machadode Castro é quase um exercício acerca disso,de como é que se articulam formas comgeometrias regulares num terreno irregular,como é que se encaixam espaços que exigemformas regulares num contentor irregular. Comoé que arquitecturas, objectos regulares seencaixam num trecho de cidade irregular,orgânica? Isto é uma coisa que sempre mefascinou muito. Umas das coisas que gosteiquando desenhámos o Centro Interpretativodas Ruínas Megalíticas de Alcalar, no Algarve,foi que o projecto nasceu de questões quedepois vieram a ser muito comuns, foi umprojecto recentemente construído debaixo deterra, foi feito sem nenhum preconceito, semnenhuma ideia formada. Quando nós éramoscrianças, utilizávamos peças de Lego, e estaspeças, quando coleccionadas ou simplesmentelançadas, pareciam que faziam sempre sentido,porque eram todas feitas com o mesmo espírito,qualquer que fosse a posição em que asderramávamos, quando estabilizavam tinhamuma lógica de agregação própria. Acho que aarquitectura tem muito haver com isto. Nofundo, trata-se da produção de uma série deobjectos através de coisas que existem. Nósintervimos sucessivamente em realidades comuma identidade própria, e esse jogo dejustaposição e encaixe é uma constante e umacaracterística específica da arquitectura.

* aluna do 6º Ano do Departamento deArquitectura da Universidade de Coimbra

exemplo, a Zaha Hadid durante anos apenasdesenhou, sem ter construído rigorosamentenada. Há uma capacidade da arquitectura degerar conhecimentos e os conhecimentos vêmdaquilo que aparece desenhado. No fundo, odesenho é também a expressão de novasreflexões, de uma nova visão das coisas, deuma nova relação com a História. Assim comohouve livros que também marcaram a História,é o caso do Venturi. Temos tanta coisa emconstrução e não sei quantas delas marcarãoa História. É interessante analisar as coisasassim, ver um pouco como é que a arquitecturavai influindo sobre aquilo que se faz e seconstrói, muito à margem daquilo que são ascoisas fáceis de apreender. O mais fácil e directode aprender são as imagens, a coisa maissimples é aquilo que se vê. Aquilo que leva àprodução de imagens, para nós arquitectos, éque é essencial. Uma das coisas que mais meinteressava perceber é quais são os mecanismosda concepção, o que é que nos leva a produzirde uma determinada maneira, porque é quenos orientamos num determinado sentido,porque elegemos determinadas coisas em vezde outras. Ou será que uma coisa é melhor doque outra, ou será que só a forma comopegamos numa coisa é que é melhor? Voltandoum pouco à questão dos museus, tenho umgrande fascínio por escultura, por coisasesculpidas, que não são necessariamenteesculturas. Uma escultura, para mim, pode ser,

1. Parque Estacionamento no Jardim da Av. Miguel Fernandes, Beja (2002/...) 2. e 3. Empreendimento Príncipe Perfeito, Parque das Nações (2001)

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Guerra e PazLuisa Correia + Pedro Canotilho *

Antónimos inseparáveis que nos colocam a questãointemporal do porquê da guerra e por que não apaz. WChurchill responder-nos-ia que o caminhopara a paz se faz pela guerra. Não conseguimos,nem pretendemos, encontrar uma solução paraeste dilema. Pretendemos sim, apresentar novasquestões, numa reflexão sobre o binómioguerra/ arquitectura.

No século do World=City, é a cidade que aguerra escolheu como tabuleiro de jogo. Um jogocaótico, que, apesar de tudo, apresenta umaregra muito simples: o vencedor é aquele que

verdadeiro sentido. Nada é estável, tudo é mutável.Depois disso, qual a metamorfose da Arquitectura?

Estará o antagonismo destruição/reconstruçãodirectamente interligado com guerra/paz? Jávimos que a guerra pressupõe destruição, masserá que podemos falar da reconstrução comoconsequência da paz? De certo modo, o processode reconstrução tem sido uma tentativa derecriação da paz, através de uma revalorizaçãodo símbolo deposto pela guerra. Mas e se, pelocontrário, ao sobrevalorizar a construção do íconese constitui uma nova declaração de guerra?

A Arquitectura vinculada, antes e agora, ashierarquias da autoridade, sejam de esquerda oude direita, falharam na revolução do conhecimento.O apagar de velhas cidades para construir ummundo melhor e mais humano é hoje um conceitodesacreditado, pois a sua destruição despedaçouos seus modelos de ordem espacial e conceptual,uma vez que os modelos existentes foramreduzidos, pela violência, a um só modelo. Estenovo modelo será aquele que promove a auto-identidade e identidade sincrética (formada poruma diversidade de experiências e culturas)criando sociedades complexas e ricas em

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possui o maior potencial de destruir. A guerrabusca o símbolo como alvo, arrasando tudo aquiloque represente a razão e a promessa de umavida humana civilizada. Destruindo o ícone, marca-se o fim de uma era, abalando o paradigma doespaço/tempo. Constitui-se o antes e o após: Jáfoste a NYC? Antes ou depois do 11Setembro? Basta-nos pensar neste caso maisrecente em que ruíram, não só as torres, comosímbolo da economia, mas também a moral doscidadãos. Isto introduz-nos um novo conceito, oda arquitectura ser o reflexo do ego. A destruiçãodo espaço é mudança de vidas, vivências ecostumes.

Arquitectura e Guerra não são incompatíveis.Arquitectura é Guerra. Guerra é Arquitectura. Euestou na Guerra com o meu tempo, com a história,com toda a autoridade que reside nas formasfixas e assustadas. (...) Eu declaro guerra a todosos ícones e finalidades, a todas as histórias queme podiam acorrentar à minha própria falsidade,aos meus próprios lamentáveis receios. (...) Euconheço apenas momentos e vidas que são comomomentos, e formas que aparecem com umaforça infinita e depois derretem no ar. 1

A Arquitectura do tudo-o-que-é-sólido-se-dissolve-no-ar assume agora, mais do que nunca, o seu

A manipulação da Arquitectura deve então, nanossa opinião, assumir novos contornos. Isto é,considerando que a Arquitectura e a suametamorfose são o reflexo directo de umdeterminado ideal de sociedade. Assim, como aGuerra muda a Arquitectura, a Arquitectura mudaa Guerra. Deste modo, a Arquitectura tem queaprender a transformar a violência, tal como aviolência sabe transformar a Arquitectura.

A construção de novos tecidos urbanos, onde osantigos foram despedaçados pela guerra é umponto crítico, que compromete a luta para formarnovas sociedades hierárquicas. 1

A complexidade dos edifícios, ruas e cidadesconstruídos ao longo do tempo e sobre o espaçode inúmeras vidas nunca poderá ser substituído.É natural querer apagar as memórias de tragédiae perda, substituir o tecido da cidade destruídae degradada pela violência, por outra inteiramentenova e melhor. Este era o principal objectivo dosprincipais modernistas que enfrentaram a tarefade reconstruir uma cultura devastada pela 2ªGrande Guerra. Estes arquitectos vanguardistasembarcaram numa guerra deles próprios,empregando a violência da renovação urbanacontra o caos das velhas cidades.

diversidade de escolha. No entanto, enquantopersistir o sistema de espaço totalitário, impostoem nome da causa comum, sobrevive a ideia defazer tabula rasa da cidade do pós-guerra parase inscreverem novos planos.

Vamos, nós, declarar guerra ao ícone. AArquitectura de reconstrução não pode ser aArquitectura de recriação. Não podemos continuarfechar os olhos. Reconstruir o símbolo não apagaas feridas de guerra, mas evoca, sim , as suasmemórias. Temos que assumir que a metamorfoseda Arquitectura e a sua relação entre o espaçoe cultura mudou radicalmente e essa relaçãoimpõe uma necessidade da arte estarinterrelacionada com a sociedade de todosconstruída por todos.

Eu sou um em um milhão que não encaixa, quenão tem lugar/casa, nem família, nem doutrina,nem lugar firme que possa considerar meu, nemcomeço ou fim conhecido, nem sítio primordial esagrado (...) Eu não posso saber o teu nome.Nem tu podes saber o meu. Amanhã, podemoscomeçar em conjunto a construção da cidade. 1

* alunos do 3º Ano do Departamento deArquitectura da Universidade de Coimbra

1. Lebbeus Woods

1. Lebbeus Woods

Hiroshima e Nagasaki após as explosões nucleares de 1945 . desenho de Lebbeus Woods . ruínas do World Trade Center, New York, após o atentado de 11.09.01

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Air OomDe Las Vegas a Bombaim, sem escala nem reabastecimento.Pedro Ganho *

Entra-se no Vennetian. Um paquete cumprimenta-nos em italiano, beijaa mão às senhoras, trauteia uns acordes de Verdi enquanto nos explicaque o mármore do chão é o mesmo do Palácio dos Doges. Depois do check-in é para lá que nos devemos dirigir, de gôndola é claro, ao som do inevitávelSole Mio. Estamos em Veneza: onde os gondoleiros têm um curso rápidoem hotelaria e falam três línguas; onde nunca chove nos canais; não hááguas altas na praça de S. Marcos; onde raia um constante pôr-do-sol ea viagem de gôndola é uma cortesia do casino ao lado. Estamos na Venezacoberta e climatizada de um hotel em Las Vegas. Uma Veneza melhor queela própria, mais limpa, com mais comoditas, mais classe-económica. Éeste o espectacular e hiper-realista corolário da tese de Umberto Eco noseu Viagens na Irrealidade Quotidiana de 1965.

Para viajar em Las Vegas, fica-se alojado num hotel. E muito mais: é passar

fotografia é capaz de gerar. Um aparente paradoxo que se verifica quasesem excepção.

* * *

Sai-se do Taj Mahal, hotel de todas as estrelas e todos os luxos de Bombaim.Sob a pala da entrada, estão dois Sihks a chamar os poucos táxis com arcondicionado e a cumprimentar clientes. Embora estejam vestidos demarajás, à maneira dos paquetes do Vennetian, não se pode atravessar arua à procura de outras maravilhas sintéticas. Primeiro por que não existem– as sintéticas – depois porque qualquer simulação de conforto pasteurizadocairia sob o peso do piano de cauda que é a realidade na Índia. Mesmo quese tivesse sido teleportado do aeroporto – também ele cheio de plasticismoocidental – para o hotel, sem ver os 10 km de barracas de papelão pintadas

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da Itália do Vennetian para o Egipto das pirâmides do Caesar’s, atravessandoa avenida. Ou ir a Nova Iorque – o único sítio onde ainda se podem ver asTwin Towers – num hotel um pouco mais acima. Tudo sem sair da lição deVenturi. Viajar em Las Vegas tem o sabor pasteurizado e uniforme do caféStarBuck, é visitar o mundo num parque temático com slot-machines, éo verdadeiro vá para fora cá dentro. Mas, ao contrário do que viu Eco em65, hoje a experiência da Veneza-real, do Cairo-real, da Nova Iorque-realnão é tão distante do brique-a-braque pós-moderno de Las Vegas (assimcomo Las Vegas não nos parece tão surreal como pareceria na década de60).

Não é apenas no deserto do Nevada que a simulação em gesso cartonadopretende, não só representar o real, como proteger-nos do real, tornandoo mundo confortavelmente deslocado e por isso homogéneo. Os franchisingsde roupa ou de restaurantes, em todas as cidades ocidentais, não servemtambém eles de pontos-âncora, simulações de domesticidade no estrangeiro?De confortos do lar num lugar estranho? De tal modo o são que, nos nossosdias e por mais longe que nos desloquemos, desde que aterremos numacidade do hemisfério Norte, estamos também cá dentro, lá fora. Qualqueridiossincrasia como a língua ou um par de costumes estranhos são-nosculturalmente tão confrontantes como as eventuais nuances de menu noMcDonalds. Mesmo uma viagem a um país menos primeiromundista esseconfronto é atenuado pela constante dos duty-free aeroportuários – tambémeles franchisados. Até a obscenidade dos preços dos Patek Philippe, dosMonte Cristo nº2, não serve para desconfortar a nossa carteira exígua maspara assegurar a alguma civilidade do país que visitamos. Idem aspas paraa Prada na Nevsky Prospect, para a Adidas em Damão, para a Moschinoem Pequim. Não é assim de estranhar que, nos últimos anos, tenhamaumentadas as fobias relacionadas com aviões. Se não há que recear aviagem, o confronto cultural – algo que nos é inato – há que recear o meiode transporte, se calhar com razão.

O Vennetian é o triunfo do turismo sobre a viagem, do conforto sobre oconfronto – mais inteligente do que a frase feita do encontro entre culturas.É o triunfo da casca sobre o conteúdo, de uma maneira mais trágica eshowbiz, mas nem por isso menos longínqua das visitas ao Guggenheimde Bilbao, da Berlim turistificada e anunciada como destinoarquitectonicamente renovado, ou o Parque das Nações indeciso entre sercidade ou parque temático urbano.

O turismo que faz da arquitectura, local de peregrinação e simultaneamente,abrigo de gift-shops, é recente. Pelo contrário os arquitectos semprevisitaram a casca nas suas viagens. O Grand Tour não terá sido mais doque uma visita a invólucros desprovidos de conteúdo – só assim oNeoclassicismo fez do vocabulário dos ornamentos da casca aquilo quequis. Assim como os últimos 40 anos de viagens de arquitectos terão sidomaioritariamente visitas a edifícios privados, em obras, de interiorsimplesmente inacessível. São estas visitas, como todos sabemos, mais doque a experiência física da arquitectura, a verificação da fantasia que a

com as cores da Pepsi, os separadores da avenida onde se habita empermanência, a realidade aspira-se pelas narinas mal saímos porta fora.Aspira-se em golfadas de ar tépido, arenoso, viscoso de diesel e fétido dedecomposição. Um ar auto-colante. É-se atropelado por táxis em estiloneo-Cuba, riquexós atados por bocados de fita isolante. Assaltado porpassadores de haxixe, proxenetas das suas próprias irmãs que sãoinvariavelmente very white, very white. Assaltado pela realidade de quenos querem proteger os operadores turísticos, confundindo-a – aqui compropriedade – por sujidade.

A Índia não se rende a pruridos ocidentais. Não por ser a última aldeiagaulesa a resistir às centúrias da globalização, mas porque se está nastintas para a assepsia ocidental. Por ter 3 mil anos de história civilizada,um classicismo musical igualmente milenar, provavelmente a arquitecturamais espectacular do mundo antigo, a sexualidade tudo menos gratuitados Saris. Mas também porque o simples acto de viver lhes custa carodemais para se vergarem ao turismo, mais do que o estritamente necessário.A Índia não limpa as suas ruas, não lava os monumentos depois da monção,a Índia não se democratiza socialmente. Nem à custa de 200 Taj Mahal de5 estrelas, nem de 20 Goas transformadas em Vilamoura pelo turismoinglês, nem 18 Keralas para bolsas Monegascas. Ao contrário de Marrocos,não é possível ir à Índia sem ver a Índia. Só sendo autista, cego e se respirepor guelras.

É esta a minha viagem. A locais que curto-circuitam a nossa ocidentalidade,onde não é preciso fazer ginástica para fugir ao very typical, aos rebanhosde sight-seeing. Locais que redimem a origem etimológica da palavraviagem, que lembra a mesma origem da palavra cidade, locais que, comodiz o Paulo Varela Gomes, nos fazem sentir super-homens. E a Índia faz-nos sentir assim: somos correspondentes de guerra na estação de ChurchGate e a multidão torna-se uma mole de refugiados afgãs; passamos aguarita de arame farpado e sacos de areia, em Chandighar e atravessamosa salto o Check Point Charlie, durante os primeiros dias da capitulaçãoalemã; a loucura pirotécnica dos festejos do Diwalli, em Deli, é um dia narevolução iraniana e somos reféns na embaixada americana em Teerão. Éesta a minha viagem. Super-homem nas ruas de Bombaim e Deli, nasviagens de comboio e pequeninos face às ruínas da cidade de Baçaím, ouà muralha de Damão Pequeno, ou aos palácios de Faterpur Sikri e Agra.É esta a minha viagem, arrogância ocidental com os taxistas indolentes,os vendilhões de rua e duas horas de conversa, sobre a chapa escaldantede um autocarro, com Xavier. Um motorista indiano, grande como umgigante e tímido como uma criança, de nome de santo cristão, seguidordos preceitos de Alá, fã incondicional de gurus Sihk. Incoerentes como aÍndia, o motorista Xavier e inevitavelmente, os super-homens.

* arquitecto licenciado pelo Departamento de Arquitectura da Universidadede Coimbra e co-autor do livro Hymalaian Express, resultado de uma viagemà Índia

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Jardins no Japão – Espaço e ArtifícioSebastião Resende *

Este texto testemunha mais um envolvimento emocionale estético do que a abordagem racional e científica destamatéria. Neste contexto, pareceu-me interessante mencionaros acontecimentos mais relevantes da história do Japãopara enquadrar uma breve apresentação dos seus jardins.Os característicos jardins japoneses são normalmenteagrupados em diversas classificações de acordo com ostipos de topografia e de chão. Um destes consiste emconstruções de montes artificiais, uma nascente e, porregra, uma corrente de água verdadeira – tsukiyama e ooutro, hiraniwa, num tipo de jardim plano, organizado pararepresentar um vale ou grande planície, sem lago. Unsconcebidos para serem vistos a partir de um ponto fixo –kansho, outros, talvez mais surpreendentes, para seremapreciados à medida que vão sendo percorridos – kaiyu.Todos estes jardins, tentando representar a natureza sema imitar nem bajular, conseguem, através de um espaçopequeno, captar sem ornamento a sua grandeza e asmudanças daquela; uns mais elaborados do que outros,afirmam-se por um tratamento profundamente conscientee deliberado na selecção, configuração, expressão eintensidade próprias para a melhor disposição dos diferenteselementos: nascente, bica, pia, fio de água, corrente deágua, catarata, catarata seca, riacho, riacho seco, rio, lago,mar, oceano, ilha, ponte, vale, encosta, monte, montanha,areia, areia grossa, cascalho, seixos, pedras, pedras lascadas,pedras roladas, rochas, rochedos, musgos, plantas, arbustos,árvores, caminhos, veredas, passagens. Aparecem aindaoutros estilos de jardim de significativa especificidade, deque destaco dois: um que aparece directamente relacionadocom os pavilhões de chá, preparando o ambiente adequado,onde singularidades como por exemplo a humidade sãoimportantes – roji, (caminho de orvalho em tradução literal)e outro que apenas propicia e encena para o visitante amelhor entrada de uma casa ou templo. O espanto maiorque podemos experimentar nos jardins japoneses viráprovavelmente daqueles cuja paisagem é organizada apenaspor aqueles componentes secos e alguns musgos, e quecorresponde ao carácter protagonizado pelosjardineiros/monges zen. O estilo kare-sansui , sendo seco,sugere a atmosfera geral de montanha e água num espaçopor vezes diminuto, organizando o plano do jardim de modoque este mais parece ter sido ajudado que plantado pormão humana, na verdade exigindo muito cuidado e destreza.O jardim é um processo nunca concluído de podas, aparas,libertação de ervas e folhas, ordenação de areias, conduzidopelo jardineiro com o espírito de tudo isso fazer parte dopróprio jardim e não como o gesto de um agente exterior;não interfere com a natureza porque ele é natureza. Assim,todo este processo é de uma extrema artificialidade mastambém profundamente natural. Uma particularidade que

é t t é f t d d difi õ

novos períodos de guerra civil e enormes devastações.Muitos dos mais mediáticos exemplos da arquitecturabudista tradicional, que incluem geralmente jardins, foramedificados nestas eras, como Myoshin-ji, Kinkaku-ji (pavilhãodourado), Ginkaku-ji, Chisaku-in, Nishi Hongan-ji, HigashiHongan-ji, entre outros, e Ryoanji, o mais referenciado dostemplos zen, estilo kare-sansui. Uma outra grande influênciazen está relacionada com o consumo de chá nas longassessões de meditação, prática que evoluiu, segundo umafilosofia unificadora singular, para uma etiqueta rigorosa,ritual esteticamente muito valorizado, dando origem àconstrução de pavilhões especialmente concebidos paraessa cerimónia, e que, sendo separados dos edifíciosprincipais se tornaram estruturantes dos percursos demuitos jardins. Os teatros noh e o kyogen (comédia),atingiram nessa altura o seu máximo esplendor. Duranteas convulsões militares muitos aristocratas e samuraisafastaram-se para os seus domínios e deu-se um grandedesenvolvimento das culturas locais. O período Momoyamafoi propício a algumas produções algo barrocas, por oposiçãoao rigor estético e à austera simplicidade zen. A chegadados portugueses em 1542 foi decisiva para a lentareunificação do país pela introdução das armas de fogo eoutras técnicas militares, assim como pela construção degrandes castelos com outros materiais, nomeadamente empedra, quando a tradição era serem de madeira. A era Edo,nome da cidade onde passou a residir o novo líder absoluto,actual Tokyo, começa no início do séc. XVII e termina nasegunda metade do séc. XIX. Por razões internas complexas,o país experimentou de novo um longo período de auto-isolamento; os nacionais não podiam viajar e todos osestrangeiros foram expulsos. Conseguiu-se uma época deestabilidade política, paz e riqueza que se traduziu emgrande desenvolvimento artístico, novas construções emuitos restauros de templos arruinados. O teatro bunraku(marionetas) teve grande desenvolvimento e o kabuki,(teatro caracterizado por cenários, guarda-roupa emaquilhagem exuberantes, música – representação deestilo e ritmo de gosto mais popular) atingiu o seu auge.Foi edificada Katsura Rikyu, residência imperial de verão,no distrito de Kyoto, uma das primeiras grandes construçõesapós a reunificação. Trata-se de um apurado complexo deedificações rodeadas de jardins, nas margens de um rio,o culminar de tradições que foram sendo aperfeiçoadas.Racionalidade, simplicidade, funcionalidade, economia,elegância, refinamento e espiritualidade são atributosqualificadores que têm atravessado a opinião de váriasgerações de artistas e público a respeito deste complexoresidencial. São edifícios que respondem às necessidadesespecíficas de um dos mais elegantes e subtis protocolos.Respondem também à necessidade de amenizar os excessosd ã t it hú id E t t õ

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p p qconvém ter presente é o facto de as grandes edificações– templos, palácios ou residências – serem compostas porvários edifícios separados, ainda que articulados entre si,e terem uma estrutura em madeira. Estas circunstânciaspermitem especiais relações interior/exterior, conferindoa essas grandes construções uma escala mais intimista queas equivalentes ocidentais, com naturais reverberações nosjardins. A génese e evolução dos jardins japonesesacompanha de perto todo o processo da história do Japão.Não há registos claros mas é comummente aceite que entreos séc. III e IV o país ganhou unidade como nação. Entreos séc. V e VI ocorreram pactos de poder que se revelaramdeterminantes para um maior ascendente chinês em relaçãoao coreano em diversas influências futuras, nomeadamentena escrita. A sociedade estava estratificada em váriasclasses sociais. O governo era composto por elementos daaristocracia que monopolizava o poder político. Datam destaépoca os primeiros jardins imperiais onde existem já umpequeno lago e uma ilha ligada por uma ponte, reflectindoessas abundantes aculturações. Nos séc. VII e início deVIII, as eras Asuka e Nara, surgiram importantes mosteiros,edificações em madeira de considerável complexidadeconstrutiva sem qualquer recurso a elementos metálicos;algumas delas ainda existem, hoje, ao fim de doze/trezeséculos, no material original. Na corte e à sua volta foisurgindo uma sociedade que revelava uma sofisticadasensibilidade cerimonial, um gosto de delicadeza protocolarque incentivou o desenvolvimento de vários objectos epráticas artísticas, como a caligrafia, o bonseki e o bonsai,mesmo em períodos de intermináveis intrigas e violentasdisputas pelo poder. A aristocracia desenvolveu-sesofisticando a sua cultura. Por razões internas ocorreu nestaépoca e até ao início do séc. XII uma experiência de auto-isolamento, originando uma singular japonização dossaberes, dos valores e das técnicas estrangeiros, criandodesignadamente o hiragana, um silabário que facilita aleitura dos ideogramas de origem chinesa, proporcionandouma grande divulgação da escrita literária e poética. Naera Kamakura, no início de séc. XII ao séc. XIV foramretomados os contactos com o exterior e ocorreu umagrande proliferação de seitas budistas e consequenteconstrução de templos próprios. A escultura, a caligrafia(praticada como expressão artística para além dacomunicação estrita) e as pinturas monocromáticas tiveramum grande incremento, assim como a poesia, o teatro noh,(forma teatral cortesã, escultura em movimento, commúsica, dança, texto, cenários, máscaras e guarda-roupade sofisticada contenção e rigor formal), o ikebana (específicoarranjo de flores) e os diversos do (via) das artes marciais.A cultura budista, confinada à aristocracia do início do séc.VI, passou entretanto a dominar todo o país. As erasMuromachi, de 1333 a 1573, e Azuchi-Momoyama até 1603,são caracterizadas por intensa actividade artística a par de

pde um verão quente e muito húmido. Estas construçõessão complementadas com vários e dispersos pavilhões:uns concebidos para a cerimónia do chá, outros com opropósito de se observar a lua. Integram percursos porcaminhos e veredas, em si meticulosamente preparados eoferecendo sempre vistas admiráveis em todas as estaçõesdo ano. Em 1854 o país foi obrigado pelos americanos aabrir as suas fronteiras, encetando a sua participação nacena internacional e os seus primeiros contactos com arevolução industrial, acabando pouco depois o regimefeudal, detentor do verdadeiro poder durante oito séculos.Seguiu-se a restauração da monarquia iniciando a era Meiji.Foi instaurado um regime democrático, ainda que tenhaadoptado em 1870 o shintoísmo como religião oficial,atribuindo ao imperador capacidades divinas influentes atéao final da Segunda Guerra Mundial. Num possível estudocomparativo haverá poucos povos a revelarem, num contextopolítico novo, uma tão rápida aceitação dos valores dovencedor, como a história do Japão testemunha.Generalizando, podemos dizer que após a abertura doregime, a atitude dos mais talentosos criadores tem estadode tal modo voltada para o ocidente, que é através desteque voltam a olhar de novo com orgulho para a grandetradição própria. Por outro lado, desde o início da era Meijie durante todo o séc. XX, muitos artistas ocidentais, detodas as expressões, mostraram interesse por essa tradição,particularmente a vertente zen, por encontrarem neladiferença, nível de encantamento e vigor conceptualdeterminantes para as suas procuras; outros, menores,ficaram-se pelo exótico. Como foi sendo aludido, a evoluçãoe lenta transformação dos jardins no Japão acompanhoua relevante especificidade dessa cultura, manifestandosempre uma estruturante dimensão religiosa, mística esimbólica que atravessa todo esse processo. O jardimjaponês zen, um jardim/altar, é deste modo a recriação deum espaço sagrado em que se articula a inconscientenecessidade humana de organização perceptiva do mundocom uma representação concreta do cosmos, da natureza,aqui simbolicamente representada1.

* artista plástico e docente do Departamento de Arquitecturada Universidade de Coimbra, tendo vivido no Japão

1. A este propósito, mais concretamente de Ryoanji, a revistaNature de 26.09.02 publica um artigo em que se procura dar umaexplicação científica para o misterioso encanto da composição destejardim. Existiria assim a estrutura ausente de uma árvore cujotronco seria, por aparente coincidência, convergente com o pontotradicionalmente considerado o melhor para contemplar o jardim.A meu ver esta análise, ainda que verificável em estudos neuro-fisiológicos da visão, como de resto o são outras chaves relativasàs inesperadas configurações estruturais escondidas em certaspinturas abstractas, resulta numa teorização estéril.

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Quero uma casa só para mim, com parede, chão e tectoCarolina Ferreira + Pedro Canotilho *

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Tábuas, carros abandonados, barris velhos, terra amassada, mais umpouco de imaginação... e voilá; constrói-se uma casa. Puro delírio criativoou mais um objecto de arte do faça você mesmo? Infelizmente, é umfacto que elementos como tubos, ferro velho ou outro tipo qualquerinimaginável de lixo é utilizado por milhões de pessoas em todo mundopara fazer as suas casas. Afinal, 1/5 da população mundial localiza-sehoje em áreas de margem e aglomerados humanos clandestinos,consequência dos rápidos aumentos demográficos e da carência dehabitação acessível.

Coloca-se, então, a questão: como é possível rebater um problema quenão aparenta ter nenhuma resolução possível? E não obstante, é precisofrisar que hão de existir cada vez mais pessoas e, consequentemente,uma necessidade cada vez maior de lhes proporcionar habitação. Poroutro lado, inverter este processo não pode passar simplesmente por umadiamento deste problema. Isto é, o que até agora tem sido feito consiste,basicamente, em reduzir o impacto da explosão urbana através daconstrução, por exemplo, de blocos de habitação económica, sem que seprocure realmente uma solução para o mesmo.

No entanto, nos últimos anos este assunto tem sido muito debatido e éponto assente que, neste momento, existe uma reflexão efectiva sobreas grandes aglomerações urbanas e todos os processos respectivos deautoconstrução. Na 8ª Bienal de Veneza esta foi, inclusivamente, atemática escolhida: Next pretende ser uma reflexão da arquitectura dapróxima década, em que a autoconstrução se assume como um assuntocomplexo, olhando especificamente para o Chile como representante dasconstruções das grandes megapolis dos países em vias de desenvolvimento.E o Brasil, no seu no pavilhão, exibiu uma amostra das suas tradicionaisfavelas.

Até há 40 anos, os objectos de autoconstrução tinham sido expostoscomo uma epidemia que era preciso eliminar. Mas foi nos anos 60 quea autoconstrução começou a ser abordada e entendida como um conceitoarquitectónico. John Turner lançou as premissas desta reflexão, ao defenderque a solução para este problema estava na génese do próprio problema,reforçando a sua tese com um forte trabalho de campo. Na sua primeiravisita a uma barriada em Lima, no Peru, Turner esperava encontrar umarealidade em que preponderava o caos e a miséria. Mas, em vez disso,encontrou um organismo coeso e complexo. Admiravelmente, as barriadasrepresentavam um estilo de vida alternativo onde, acima de tudo, existia

uma visão de comunidade e em que esta assumia um papel central nacriação do ambiente.

Assim, do mesmo modo, ou como já o fez Turner, é preciso observarestes processos espontâneos de crescimento sem ser à luz de paradigmasestéticos. Bidonvilles, favelas e bairros de lata são modelos complexosque em tudo se assemelham a outras estruturas autogeradas, existentesna natureza. E que, apesar da sua diversidade e irregularidade, ajustamo seu desempenho segundo determinadas regras e padrões genéricos.

A arquitectura de autoconstrução revela uma dinâmica própria e umacapacidade de reacção e interacção. Falar de autoconstrução é falar deuma nova estratégia que nunca está acabada, por estar em constantemutação, e que, deste modo, actua simultaneamente de forma local eglobal. Reconhecer que a operação de autoconstrução é uma colaboraçãoentre intenção e estímulo e que é aberta e orgânica. Só então será possívelencontrar a solução para o problema do crescimento urbano espontâneo,que combine autodeterminação e auto-organização, constituindo umaconfiguração funcional complexa. Já falámos de autoconstrução enquantoprocesso e já demos exemplos reais, o das favelas, como resultado directoda acção do autoconstruir. Mas é preciso dizer que é o proponente daacção, o autoconstrutor, que desempenhará o papel primordial em todaesta problemática. Porque falar de autoconstrução é falar das pessoasque autoconstróem. E, obviamente, não seria sequer coerente estar aencetar este artigo sem conferir uma responsabilidade ao arquitecto quenão deverá substituir ou sobrepor-se à do autoconstrutor. A função doarquitecto terá de ser a de criar ferramentas que enalteçam o indivíduoe a comunidade sendo, deste modo, mais activo e flexível na suaaproximação às necessidades arquitectónicas e sociais. O seu objectivoserá a de complementar um estilo de vida alternativo com ajuda técnicaque estimule a autoconstrução, assistindo as pessoas para que elas setransformem em autoconstrutores, promovendo a produção de casas apreços baixos.

Self-Build harnesses a potential to deliver cities as fabric, and also buildingcities as people.

Chinedu Umenyilora

* alunos do 3º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade deCoimbra

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Para Leibniz, bifurcações e divergências de séries são fronteiras genuínasentre mundos incompossíveis, de modo que os mónades que existemincluem completamente o mundo compossível que entra em existência.Para Whitehead, pelo contrário, bifurcações, divergências,incompossibilidades e desacordo pertencem ao mesmo mundo empoeiradoque não pode mais ser incluído em unidades expressivas, mas apenasfeito ou desfeito de acordo com unidades preênseis e configuraçõesvariáveis ou capturas em modificação. Num mesmo mundo caótico sériesdivergentes traçam incessantemente caminhos que bifurcam. É umcaosmos... O jogo do mundo mudou de forma única, porque agora é umjogo que diverge. Os seres são despedaçados, mantidos abertos atravésde séries divergentes e totalidades incompossíveis que os empurram parao exterior, em vez de estarem fechados no mundo compossível econvergente que expressam de dentro... É um mundo de capturas emvez de fechos.1

Ao lado de um grupo de turcos encostados à parede há uma loja demóveis de desenho minimalista. No cruzamento de duas ruas, numaesquina um restaurante formal familiar, noutra um néon vermelho queocupa toda a fachada de um bar de strip-tease, noutra um bar catita,noutra uma loja de ferramentas cheia de pó. Parece o resultado de umacolecção de objectos que ninguém catalogou, ninguém ordenou, não seimagina que história poderiam contar, um monte de tralha, sem relaçãode nada com nada, inútil, despropositado, a acumulação pura semobjectivo, os objectos pelos objectos, todos, muitos, uns em cima dosoutros, e não há lógica que se adivinhe, uma hierarquia, uma ordem, umcritério de escolha e de distribuição, um princípio regulador, para ondeé que foi aquilo a que chamam de urbanismo, aqui cada objecto diz eusou isto, eu sou um restaurante, eu sou um bar de strip, cada um porsi, e intrometem-se assim, sem se fazerem anunciar de antemão, numafalta de delicadeza burguesa, e mais do que se intrometerem irrompem,o cenário é ainda e cada vez mais o de catástrofe mesmo se está tudoconstruído e reconstruído de novo, mas o que se constrói são estilhaços,pedaços, bombardear tornou-se um processo de construção e não dedestruição, há qualquer coisa de trágico nisto tudo. Ao restaurante faltaa alameda, duas lojas de roupa e uma ourivesaria fechadas àquela horae um casal a passear o cão. Ao bar de strip falta uma rua estreita e umhomem de calças vincadas e dedos cheios de anéis a fumar um cigarroencostado à parede. Aqui todos os objectos destabilizam, não deixam

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A rua de Roterdão é decadente ou multifuncional ou perigosa ou lugarde passeios familiares ou central ou periférica? Sim a tudo. Não são osfactos que constróem histórias, mas a deslocação e recolocação dosfactos. Como posso contar este lugar? Não memorizo, lembro qualquercoisa daquilo tudo, destruo o que existe para construir outra coisa,destrói-se e constrói-se o que não se conhece. A história não acabou:estilhaçou-se, multiplicou-se, e duas histórias opostas são verdade.Recolocar é criar, não se avança no enredo, é o enredo que se muda,torna-se outro. Então invento princípios. O lugar não tem um significadoassim como a história não é apenas uma. Tudo o que tenho são objectos.O restaurante está ali talvez porque a rua faz ligação fácil com a saídade Roterdão e as torres de escritórios e a loja de ferramentas está alitalvez porque num raio percorrível a pé mora um número suficiente depessoas para que o negócio seja rentável. Cada coisa instala-se segundoas suas conveniências, cria o seu próprio sistema de relações e deprincípios, e a unidade de toda aquela massa é dada pelas relaçõescúmplices insuspeitadas entre as coisas, de continuidade, de resistência,de corte, de anulação,... de modo a que possa dizer-se que cada coisaé parte de todas as histórias. Um é igual a muitos, modelável, dissonante.A unidade como consequência de todos os objectos, como todos oshabitantes, serem intrusos mais ainda que estrangeiros, isto é, nãofragmentos isolados a tentar um todo enquanto elementos de composição,mas elementos implicados num jogo de ganhar e perder território, ganhare perder sentido e poder. Não uma cruzada, mas a guerrilha contínua,não a construção e consolidação de um domínio, mas a incessanteinstabilidade de se estar a chegar a um lugar5. A intrusão constrói umlugar abstracto, mas não uma abstracção que significa depurar, preocupadaem atingir uma ideia descartada de tudo o que é real ou representável;antes uma abstracção que não se deixa capturar numa forma porque amistura é sempre demasiado impura para se lhe poder chamar um nome,uma abstracção que não se preocupa com a ausência da narrativa masque vagueia pelas narrativas6. Como uma máquina deleuziana, que nãofunciona para representar, mesmo alguma coisa real, mas pelo contrárioconstrói um real que está ainda por chegar, um novo tipo de realidade7.Um casal de meia idade no passeio de fim de tarde com o cão e umhomem de calças vincadas e dedos cheios de anéis encostado a umaparede a fumar um cigarro. A questão está em não querer implementarum modelo ou fazer coexistir muitas histórias herméticas, cada uma como seu domínio de posse mas, na ausência de qualquer sistema harmonioso,

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Olhar|habitar: imagens de RoterdãoTeresa Silvestre *

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correr uma narrativa. Todos são estranhos àquele lugar. Mas o que éelemento estranho quando já não existe um princípio ordenador? Quandotudo é diferente de tudo o resto as questões que se põem já não são deoposição a, há uma espécie de poeira que cai em cima das coisas, quese acumula e torna tudo indiferenciado, a direcção a tomar é irrelevantemas para onde quer se vá, dependendo da direcção que se toma, é algode diferente que se tem à frente.2

Então ficamos com a invenção das histórias, desenrolar, desviar, tornarperceptíveis ou apagar as histórias: habitar, mas mudou-se-lhe o rumo,habitar não é preservar. Não há uma ideia a ser seguida ou a combater,não se persegue uma harmonia, a harmonia não existe, deixou de existir,o mais certo é nunca ter existido, a harmonia é ditadura, um dispositivoarmadilhado para enredar a realidade numa posição tão confortável aoponto de não se poder mexer. A harmonia pede serviços de manutenção,estabilizar, atingir um ponto e não deixar que ele se perca, há que fazercaber tudo no mesmo contentor ideal, há que seleccionar, há que padronizar,há que estruturar um sistema e pôr uma máquina a funcionar que reguleo todo harmonioso, há que prestar serviço a um fim, há que cuidar queesse fim se atinja, há que servir. Harmonizar é domesticar, é fazer ascoisas entrarem num ciclo, num ritmo, numa sucessão lógica deacontecimentos, será por isso que na Serra da Estrela o pastor perguntasempre quando alguém passa de onde são, vêm desde onde, vão atéonde, temos uma história, está o mundo de novo organizado, no sítiocomo sempre esteve, ao fim de mês e meio as cabras voltam às pastagensmais baixas, o caminho para a aldeia é o que passa pelos castanheirosonde a estas horas estará um homem em frente a uma casa e um cão,a informação confirma-se, reafirma-se, é verdade, o mundo está no sítio,podemos seguir caminho, passámos por ali e fomos embora, se algumacoisa mudou por causa disso, foi uma coisa que entrou na grande históriaque se desenrola, um facto que será contado e integrado, que ganharáum sentido naquele sistema.3 Mas agora estou em Roterdão a ver umturco na soleira de uma porta, encostado a uma loja de design minimalista.Já não há um estrangeiro que vem de fora e que é inserido numa históriadoméstica predominante, são todas as histórias que são estranhas àquelelugar, são todos os que o habitam que são estrangeiros, uma terra deninguém, não há posse, não há que integrar os contrastes e ajustar oscostumes, não há que aferir da manutenção do sistema, não há quechegar a um fim. Então o que fazer com as histórias (mundos) que sevão contando?

A memória tem a função de proteger as impressões recebidas; recordar,ao invés, aponta para a sua dissolução; a memória é essencialmenteconservativa, a recordação é destrutiva.4

em cada uma das histórias introduzir movimentos outros. O cenário éainda e cada vez mais o de catástrofe porque cada momento é sempreruína que se remodela numa inteligência aguda para se destruir8. Não éum jogo de acaso, é um jogo de perícia.

* arquitecta licenciada pelo Departamento de Arquitectura da Universidadede Coimbra

1. For Leibniz, as we have seen, bifurcations and divergences of series are genuineborders between incompossible worlds, such that the monads that exist whollyinclude the compossible world that moves into existence. For Whitehead, on thecontrary, bifurcations, divergences, incompossibilities, and discord belong to thesame motely world that can no longer be included in expressive units, but onlymade or undone according to prehensive units and variable configurations orchanging captures. In a same chaotic world divergent series are endlessly tracingbifurcating paths. It is a ‘chaosmos’ … The play of the world has changed in a uniqueway, because now it is a play that diverges. Beings are pushed apart, kept openthrough divergent series and incompossible totalities that pull them outside, insteadof being closed upon the compossible and convergent world that expresses themfrom within … It is a world of captures instead of closures. Deleuze, Gilles; The fold,Leibniz and the baroque; University of Minessota Press, Minneapolis; 1993 (publicaçãooriginal 1988); p812. When ‘difference’ is freed from making ‘distinctions’ or ‘oppositions’ within oramong the fixed classes of a tree, it discovers a complex sort of repetition – a wholecomplicated time and movement that includes a nonprobabilistic ‘nomadic’ kind ofchance, which no throw of categorical dice can ever abolish. Rajchman, John;Constructions; The MIT Press; 1998; p643. Ver Lyotard, Jean-François; Domus and the megalopolis in Leach, Neil; Rethinkingarchitecture: a reader in cultural theory; Routledge; 19974. memory has the function of protecting the impressions received; remembranceinstead aims at their dissolution; memory is essentially conservative, remembranceis destructive. Teyssot, Georges; History as a destructive remembrance in Lotus;p235. (…) It is a game of filling holes, in which emptiness is imagined and where playersrefuse to give way to absence. (…) You don’t catch your adversary in order to reducehim to absence, you encircle his presence to neutralize him, to make him incompossible,to impose divergence upon him. The Baroque is just that, at a time just before theworld loses its principles. It is the splendid moment when some thing is kept ratherthan nothing, and where response to the world’s misery is made through an excessof principles, a hubris of principles, and a hubris inherent of principles. Deleuze,Gilles; The fold, Leibniz and the baroque; University of Minessota Press, Minneapolis;1993 (publicação original 1988); p686. ver Rajchman, John; Abstraction in Constructions; The MIT Press; 19987. does not function to represent, even something real, but rather constructs a realthat is yet to come, a new type of reality. Deleuze, Gilles e Guattari, Felix; A thousandplateaus: capitalism and schizophrenia; The Athlone Press ltd; 1988 (publicaçãooriginal 1980); p1428. Fernando pessoa; Livro do desassossego

p 30.31nu [janeiro 2003]

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Viagens Vieira da SilvaFilipa Crespo Osório *

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A viagem é sempre um elemento fundamental para qualquer artista, fazconhecer novas culturas, novos ideais, novas maneiras de ver e fazer, ecom isto aguça as capacidades do viajante de pensar, ver, sentir, exprimir,e a obra de Vieira da Silva (1908-1992) é inquestionavelmente resultadodas percepções e sensações intensas que as suas inúmeras viagensprovocaram nesta pintora do séc. XX.

Nasce em Lisboa, terminando a sua vida em Paris. Basicamente, a suamorada varia entre estes dois locais, tendo também permanecido duranteum longo período no Brasil, mas nunca se fixa definitivamente em nenhumlocal. Durante toda a sua vida viaja constantemente por toda a Europa.

No entanto as viagens entre lugares não são as únicas que faz, desdecriança que se habitua a viajar pelo seu imaginário. O seu pai morrequando Vieira da Silva tem apenas dois anos. A partir daí leva uma vidadesligada do resto do mundo. Está-se na Primeira Guerra Mundial, e Vieirada Silva é ensinada em casa, sem amigos da sua idade, num mundo deadultos, de modo que a única viagem que lhe é permitida é através dasua imaginação e, assim, lê todos os livros e panfletos que pode, numabusca voraz de compreender e conhecer o mundo que lhe está vedado.

Desde cedo reconhece a sua paixão pela pintura. A sua instrução começaem Portugal mas termina-a em Paris, onde sabe existirem os meios deque precisa para evoluir, para além das escolas é onde se encontram osgrandes artistas e intelectuais da época. Trabalha com Dufresne, Waroquier,Friesz, Bissiére e Léger, aprende muito com eles mas não se deixa levar

em imitações, tem sempre a sua própria forma de representar, mantém-se resistente a influências.

Portanto, reconhece um terceiro tipo de viagem, a viagem peloconhecimento, aquela que a ajuda a compreender a sua própria maneirade ver o mundo e a encontrar a sua linguagem na representação destavisão.

Com a Segunda Guerra Mundial, Vieira da Silva vê-se forçada a ir parao exílio com o seu marido, Arpad Szenes, apátrida. Vão para o Brasil,uma vez que Portugal recusa dar-lhe a nacionalidade portuguesa se nãohouver divórcio, com receio de que Szenes seja comunista, e assimPortugal enjeitou um orgulho nacional.

Não se identifica nunca com nenhuma das correntes do Modernismo.Assume-se naturalmente como marginal da pintura do seu tempo, estuda-a, entende-a, mas não se alia a ela, a sua obra é uma busca constantede uma linguagem plástica que incida sobre a invenção da sua própriaespacialidade. Nesta busca o caminho é-lhe apontado por Cézanne eMatisse, um representando a abstracção e o outro a figuração, os doisextremos do Modernismo. Vieira da Silva encontra o seu caminho numasíntese de ambos.

* aluna do 4º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade deCoimbra

p 32.33nu [janeiro 2003]

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#7Vasco Pinto

Produções independentesO acontecimento daquela sexta-feira 13num apartamento da Av. Afonso Henriquesfez-me desviar um bocadinho da rotatraçada para esta NU. Planeava escreversobre alguns destaques editoriais, acabo afalar-vos de um outro fenómenosubterrâneo: o fantástico mundo das Zines.O happening chamava-se casa B (não meperguntem porquê) e a surpresa (por entreactuações, vídeos, snacks e obras expostas)foi dar de caras (numa arrecadação a parda cozinha e de magníficas serigrafias deArtur Varela) com as representações daZundapp e da Bíblia. Os números estavamespalhados em cima da banca, entrealgumas outras excentricidades de peso ea preço de saldo. Saí com uma boa selecçãodebaixo do braço.A vez a seguir foi em Lisboa, numa coisano Chiado chamada Espaço Vyrus, espéciede grande armazém super especial teenager.Lá dentro em open space uma

Peter Testa, arquitecto e crítico americano, é umdos mais destacados professores do Departamentode Arquitectura do influente Massachussets InstituteOf Tecnology (MIT), onde lidera um grupo deinvestigação cuja temática integra a arquitectura,a inteligência artificial e a ciência dos materiais.Autor de inúmeros artigos para publicações deprestígio internacional, Peter Testa é também oautor do livro da Birkhäuser sobre Álvaro Siza,com quem trabalhou em diversos projectos, antesde formar o seu próprio atelier, tendo igualmentecolaborado com Frank Gehry.

Escolha e relacione-se com:

uma cidade...

As redes de cidades são mais significativas do quequalquer cidade específica, já que vivemos numacultura de disseminação e dispersão. Constelaçõesinesperadas, como Los Angeles e o Porto, permitem-nos ver e sentir mais. Cada um de nós traça eixosque definem a cultura emergente.

uma obra de arquitectura...

Tem havido pouca inovação no desenho de arranha-céus, do ponto de vista material e tectónico. Esperomudar isso com o desenvolvimento de umaestrutura de quarenta pisos em fibra de carbono,em desenvolvimento com a Arup/NYC.

um artista...

A Ciência é a forma de arte do nosso tempo.

um livro...

distribuição gratuita. V_Ludo vai no número7, ora curiosamente sobre lixo (a dúvidafundamental de recolectores que seremossempre), parece estar a atravessar umacrise de maturidade e a relançar as basesdo projecto. A tensão interna sai para aspáginas da revista e anima bastante estenúmero, a pergunta parece ser: mas istoafinal que aqui fazemos é lixo, sim, não outalvez? ( Eu sou coprófilo assumido, realista(não sei se neo) e digo lixo sim sempre ede preferência. Fico portanto atento e aaguardar os próximos capítulos, mas achoque devia perder aquela bengalinha dostemas: o tema de uma revista é o tempoque faz lá fora e demora cá dentro.) Bíbliaé, neste ponto, insofismável (e segundo opregão: mais lida que a outra — nãoduv idamos) , mantém o bom einquebrantável espírito de um fanzine:humor e irreverência q.b., poesia, b.d.,grafic power, pôr cá para fora, não fazemospromessas, factor P=0... são 5 euros s.f.f.— estão para sair mais dois números emFevereiro. F l i r t. É a que me mais seassemelha a um verdadeiro órgão dedisseminação cultural: arte, música,cyberculture, coisa e tal, impossível se nãose ler a Flirt... bilingue, não vá a Flirtapetecer tb em americano. Ideias Fixas,revista de arte contemporânea portuguesa,vai no número 5 e já está uns furos acima(e também no preço). Pertence a umaeditora (Mimesis) sobre a qual aindahavemos de falar um dia destes. Já não mesobra espaço para problematizar aindependência ou não destas produções ese o apodo não será afinal mais um engodoe um engano. Será na maior parte doscasos, mas isso que interessa, e qual aincerta relação entre as independências daexpressão e o aparecimento de verdadeirasexpressões livres? E será que as majorsestarão todas nas mãos de multinacionais

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g p p gLá dentro, em open-space, umaconcentração nada normal de marcas econsumos. Num dos pisos inferiores, aindahavia espaço para o acontecimento do dia:supostamente, uma feira de editoresindependentes. O mais interessante destesfenómenos editoriais é justamente adificuldade em os encontrar (raramente hámais do que e-mail para perseguir) e,perante a sorte de os encontrar assimreunidos, mergulhei na animação dasbancas. O produto base é a fotocópia. Épor aí que as coisas normalmente começam(e também há quem faça disso ponto dehonra e critério de autenticidade). Os nomessão Superfight, O Macaco Tó-zé, Mutate& Survive, Gambuzine, Beijos SonhosVertigens Amnésia, BoDe (B.D.), Mosca(um clássico made in Brazil), Zub (hardcoretotal), Plastic (artes plásticas), Zundapp(faz muito barulho e já vai no número 12apesar de também nisso fazer batota), etc-etc. O conteúdo, na maior parte das vezesassenta em formato de Banda Desenhada,é oscilante e idiossincrático, deve ser depreferência (e isso é um traço importantedes ta ca tego r i a ) genu inamentedesPretensioso e iconoclasta (para que éque eu quero 1000 se posso fazer só 10?)— podia-se fazer aqui uma vida toda, masreconheço a minha condição de só curiosoe deixo a quem tenha mais domínio namatéria. Na prateleira acima ficam as zinesde pequena tiragem, máximo 2 cores, baixocusto, publicidade zero e apoios de institutose pelouros da cultura (que antes já nãodariam muito mais do que para o papel,hoje nem para os selos). Na bandadesenhada registam-se Stad (número único)e Satélite Internacional (com um segundonúmero ainda fresco) ambas do colectivo“a língua”, e não sei que é feito daQuadrado, um marco no género (tambémdo Porto?) que não sei se ainda se edita.Na dança, Espaço Corpo ia (vai?) nosegundo número e con ta comcolaboraçõesinterdisciplinares de umaqua l i dade i nquebráve l . Mús i ca :Mondobizarre — satisfação absoluta,

Aquele que estou a escrever – Emergent Design– que documenta projectos de investigação emProjecto e Computação, levados a cabo pela minhaequipa no MIT durante os últimos cinco anos.

um filme...

Gosto do realizador canadiano David Cronenberge do artista de vídeo Stan Douglas.

uma experiência...

A experiência académica, hoje, é de uma particularfrustração, já que a realidade diária ultrapassa aspolíticas mesquinhas que dominam a vidaacadémica nas escolas de arquitectura. Precisamosde uma nova experiência educacional centrada naexploração multidisciplinar.

uma influência...

A Natureza, em todas as suas variadas formas, éa única que interessa.

um objecto de consumo...

Detectores de fumo, alarmes de incêndio, etc, sãopreocupações diárias no meu atel ier...

uma palavra...

Sistemas – pensarmos sistemas complexosadaptáveis que incluam elementos orgânicos.

um futuro...

Arquitectura, Ciência dos Materiais e InteligênciaArtificial estão a fundir-se para formarem umavanço arquitectónico que irá transformarradicalmente as possibilidades de desenho napróxima década.

estarão todas nas mãos de multinacionaistraficantes de armas e patrocinadoras daescravatura no terceiro mundo? Desconheço.E se o consumo de cultura, se pode tornardesde o começo uma dependência, há sóuma dependência de que estas edições nãose livram: justamente do envolvimento eesforço gratuito de algumas (poucas)pessoas, que se comprazem só e apenascom isso — isto pode explicar em grandemedida a fugacidade e as irregularidadesda vida destas produções, mas na medidaem que dependem mais da vontade própriado que da avidez do público e de retribuiçõese subvenções financeiras, as zines, casasB e quejandos são a fórmula quase-perfeitapara fazer acção cultural em alturas decrise.

(So lets do a movie... e caso saibam algumacoisa sobre uma revista chamada Umbigoagradeço desde já a gentileza do vossocontacto.)

p 34.35nu [janeiro 2003]

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#07ISSN 1645-3891

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