07 Rev1 04 Endividamento Externo e Interno

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O ENDIVIDAMENTO EXTERNO E SEUS CONTORNOS NA DCADA DE 1990

A dvida do Terceiro Mundo um fenmeno pouco compreendido e mais irracional do funcionamento da economia capitalista. Ernest Mandel

O objetivo desta seo reconstituir os principais elementos da dvida externa brasileira, investigando os determinantes primordiais dos grandes fluxos de capital na economia, procurando estud-la como um fenmeno integrante da economia mundial e tambm pesquisando os ingredientes formadores dos regimes militares1 que impulsionaram esse processo de endividamento. Da mesma forma, destacar-se- o papel do trfico de drogas e seus crescentes recursos lavados na gerao de reservas para o pagamento da dvida externa. A abordagem da questo da dvida externa dever buscar o entendimento das causas que determinaram tal fluxo, no mbito da crise capitalista iniciada nos pases industrializados no incio dos anos 1970 e da expanso do euromercado de moedas, bem como da busca de novos tomadores de emprstimos para alocao do capital excedente dos pases desenvolvidos. Para tanto, procurar-se- localizar no apenas os motivos do referido fluxo, mas tambm os fatores determinantes para a constituio de regimes polticos que propiciaram as condies para o incio do processo de endividamento externo e da introduo de uma poltica econmica voltada para a penetrao do capital financeiro, tendo em vista que:[...] parte da resposta questo de onde veio o pesado fardo da dvida reside na natureza dos governos dos pases devedores [...] Como esses regimes eram mantidos no poder pelas potncias ocidentais, h evidente cumplicidade dos governos ocidentais na pilhagem e, portanto, responsabilidade para arcarem com, pelo menos, parte dos custos resultantes. (NAYLOR, 1990, p. 483)

O surgimento dos regimes militares foi resultado das aes da Guerra Fria, impulsionada pelos Estados Unidos para conter a expanso da ex-Unio Sovitica e defender a propriedade1

A implantao destes regimes ocorreu tambm no continente africano e no Sudeste Asitico.

privada. Tal processo mostrou-se fundamental para a expanso do capital financeiro (que se encontrava em crise), especialmente para a Amrica Latina, tendo como ponto de partida o capital - dinheiro do euromercado de moedas. Por esse motivo, todos os governos constitudos em processos democrticos que implementassem qualquer poltica de dimenso minimamente popular eram destitudos, com a justificativa de estarem sob inspirao comunista2. Nesse contexto, o papel dos Estados Unidos no se resumiu apenas a apoiar o surgimento desses regimes, mas tambm a oportunizar seu reconhecimento junto Organizao das Naes Unidas (ONU) e sua manuteno por intermdio da mquina de propaganda e de represso aos movimentos sociais. Nesse sentido, em cada um dos pases envolvidos foram constitudas vrias entidades com o fim de preparar a propaganda necessria ao apoio aos regimes militares3. A conteno dos movimentos sociais, por sua vez, tinha como objetivo central garantir a superexplorao da fora de trabalho, para tambm favorecer o capital estrangeiro que se instalava. Por sua dimenso continental, o Golpe Militar de 1964 no Brasil sinalizava os rumos da luta anticomunista no continente, que efetivamente garantia espao para seus monoplios. A expanso desses regimes pela Amrica Latina teve apoio especial dos militares e das Igrejas Catlica e Protestante (especialmente aps a Revoluo Cubana de 1959, quando essas duas igrejas passaram a agir em conjunto na defesa dos princpios da Guerra Fria); contou tambm com novos aliados no combate ao antigo bloco sovitico, inclusive narcotraficantes e ex-nazistas. Dentre esses novos aliados, em 1945 o Servio Secreto do Exrcito dos Estados Unidos recrutou Klaus Barbie, membro da Gestapo (a polcia secreta nazista), que se tornou conhecido como o carniceiro de Lyon, para transformar clulas nazistas clandestinas do Leste Europeu em organizaes de espionagem anticomunista. Em 1951, concederam-lhe novo nome e passaporte falso para atuar na Amrica Latina ajudando os Estados Unidos a combater o comunismo, principalmente na Bolvia (NAYLOR, 1990, p. 208) . Logo aps o golpe militar da Bolvia, em 1971, o Coronel Hugo Banzer assumiu o poder e nomeou Klaus Barbie como conselheiro especial de Segurana, fato decisivo para a expanso da mfia das drogas.2

O governo de Jacobo Arbens, da Guatemala, eleito por processo democrtico em 1950, foi atacado em 1954 a partir de bases montadas em regimes ditatoriais vizinhos, como Honduras, El Salvador e Nicargua, apoiados pela empresa United Fruit Company, pela Agncia Central de Informaes (CIA) e pelo Pentgono. A decretao da reforma agrria nas terras da referida empresa foi o motivo principal desse apoio (KATCHATUROV, 1980, p. 93). Houve tambm a derrubada do governo de J. J. Torres, na Bolvia, em 1971 e os golpes do Uruguai e do Chile, ambos em 1973. Em 1976, ocorreu o golpe da Argentina. 3 No Brasil, a CIA fomentou o Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (Ibad), financiado por empresas estadunidenses para apoiar o golpe militar.

Depois de 1978, quando renunciou Hugo Banzer, foi anunciado um governo militar chefiado pelo general Luis Garca Meza, que nomeou o coronel Luis Arce Gmez, primo de Roberto Surez Gmez4, maior produtor de coca da Bolvia (NAYLOR, 1990, p. 209). Essa aliana, que levou ao golpe da cocana, fez retornar os cocadlares ao pas para ajudar o regime num momento em que a ajuda ocidental fora reduzida. Externamente diziam combater as drogas, enquanto internamente faziam prosperar o comrcio da coca, transformando-a em virtual indstria do Estado (NAYLOR, 1990, p. 210). Na dbia poltica de combate ao trfico de drogas e, ao mesmo tempo, aos movimentos sociais na Amrica Latina, os Estados Unidos acabaram apoiando os grandes traficantes, desde que estes combatessem os movimentos sociais. Durante o governo de Hugo Banzer, o endividamento externo boliviano sofreu gigantesca expanso, em razo dos volumosos emprstimos contrados pelo Estado, que repassou os recursos a empresas privadas bolivianas s quais os lderes militares estavam associados 5. Parte daquela dvida externa boliviana deveu-se atuao dos regimes militares e suas alianas com o narcotrfico. O poder das drogas criou uma economia e um Estado paralelos, destruindo as atividades convencionais6. Na Argentina, a fase de exploso da dvida ocorreu durante a ditadura militar do general Jorge Videla (1976 - 1981), na poltica econmica promovida pelo ministro da Economia, Martnez de Hoz, dando incio expanso das atividades rentistas, enquanto o parque produtivo entrava em colapso. Durante todo o regime militar, de 1976 a 1983, a dvida argentina experimentou um crescimento de 364%. Na maioria das ditaduras houve relao direta entre endividamento e corrupo. Comentava-se que no Zaire, durante a ditadura de Mobutu, a fortuna pessoal do ditador aproximava-se dos US$ 5 bilhes da dvida externa do pas (DELAMAIDE, 1984, p. 70). No Sudo, na Costa do Marfim e em vrios outros pases aconteceram fatos semelhantes. Mas no apenas em razo do enriquecimento pessoal de ditadores se fez a dvida externa dos pases subdesenvolvidos. Parte dessa dvida foi contrada para a aquisio de armamentos, como no caso do Peru, que comprou da Frana 24 caas Mirage por US$ 6854

Roberto Surez Gmez possua um exrcito particular de 1.500 homens, fora area com trs caas Harrier e 12 bombardeiros ligeiros equipados com mssil Exocet (NAYLOR, 1990, p 214). 5 Parte desses emprstimos era desviada para bancos no Uruguai, Panam ou Sua. Em seguida, os envolvidos no golpe da cocana foram para a Argentina, protegidos pelo regime militar, enquanto Klaus Barbie foi preso e deportado para a Frana (NAYLOR, 1990, p. 210). 6 O poder econmico das drogas grande nos pases subdesenvolvidos, o que acaba causando uma impreciso nas estatsticas financeiras convencionais (NAYLOR, 1990, p. 207).

milhes, que representavam quase 10% da dvida externa daquele pas (DELAMAIDE, 1984, p. 75). A relao entre ditaduras, pilhagem e endividamento ficou mais evidente na experincia da Nicargua, na era Anastcio Somoza. Esse pas recebia emprstimos do Ultramar Banking Corporation, que era, em parte, de propriedade da famlia do ditador. A defesa dessa ditadura7 requeria a importao de armas, a qual, por sua vez, exigia mais emprstimos. Dessa forma, a defesa do regime era um grande negcio para o prprio ditador (NAYLOR, 1990, p. 487). Ao apoiarem inmeras ditaduras pelo mundo, os Estados Unidos sempre providenciavam exlio aos ditadores depostos8. Por outro lado, o jogo de corrupo do antigo regime servia, em muitos pases subdesenvolvidos, para preparar mentalmente o pblico para a austeridade necessria ao pagamento da dvida. Isto era feito informando-se a populao de que ela fora pilhada por seus ex-dirigentes e no pelos banqueiros internacionais (NAYLOR, 1990, p. 488). Ao contrrio dos demais pases do continente, no final dos anos 1970 a Colmbia possua reservas, das quais cerca de metade era considerada proveniente do narcotrfico. Em 1982, sua dvida externa chegava a US$ 10 bilhes, enquanto suas reservas eram de US$ 4,5 bilhes (NAYLOR, 1990, p. 218). Naquele momento, o governo colombiano declarou que nada podia fazer para combater o narcotrfico, propondo colocar esse dinheiro na causa pblica, ao encorajar a entrada de emprstimos externos de recursos com essa procedncia, oferecendo garantias. Por meio da chamada Ventanilla Siniestra do Banco da Repblica, dlares eram trocados por pesos, possibilitando que o dinheiro do narcotrfico ampliasse a atividade econmica. Essa verdadeira oficializao da lavagem do dinheiro fortaleceu o poder poltico dos traficantes, possibilitando o pagamento do servio da dvida. A tendncia de expanso do comrcio da droga ampliou-se na Colmbia quando, em 1974, os principais traficantes juntaram-se para a exportao de drogas. Contribuio semelhante dessa modalidade de dinheiro tambm ocorreu no Peru. Um funcionrio do Banco Central daquele pas declarou, em 1985, que a coca o nosso primeiro7

A defesa de ditaduras e a compra de armas como componente do endividamento fizeram-se presentes tambm na Argentina, no Chile, no Peru, no Equador e nos pases da Amrica Central. Na guerra contra o Iraque, o x do Ir comprou dos Estados Unidos US$ 17 bilhes em armas (NAYLOR, 1990, p. 497). 8 Em fevereiro de 1986, Ferdinando Marcos seguiu o caminho de seu falecido amigo, o x do Ir, sendo ajudado pela Fora Area dos Estados Unidos no carregamento de 122 caixas de ouro, dinheiro, aes, etc. (NAYLOR, 1990, p. 488). Sua fortuna pessoal foi avaliada em mais de US$ 5 bilhes.

produto de exportao. ilegal, mas nos d as reservas que necessitamos. Ajuda no nosso Balano de Pagamentos. (NAYLOR,1990, p. 221) Por esse motivo, quando o trfico de drogas se ampliou, no final dos anos 1970, aquele pas aboliu deliberadamente o controle de cmbio para atrair os narcodlares. Dessa forma, em vrios pases do continente a lavagem interna desse tipo de dinheiro tornou-se componente decisivo na poltica econmica9. Ao investigar a conexo entre banqueiros privados e narcotrfico, o jornalista James Henry seguiu a trajetria de um grande traficante estadunidense que, ao chegar ao Brasil, fugindo da polcia dos Estados Unidos, encontrou ajuda de destacados advogados, de lobistas, de um ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de um deputado federal, de um exembaixador brasileiro e scio comercial de Henry Kissinger (ex-secretrio de Estado dos Estados Unidos nos anos 1970), alm de um ex-presidente regional da Pepsi, visando sua proteo por meio de pedido de naturalizao10 (HENRY, 1996, p. 364). Sua apresentao estrutura de poder e homens de negcios brasileiros foi feita a partir de vrias cartas de recomendao expedidas por banqueiros das Ilhas Caim. No Mxico, Carlos Salinas de Gortari, presidente de 1988 a 1994, alm de ter transformado o pas em laboratrio das polticas do FMI, ficou tambm conhecido pelo grande envolvimento de seu governo com o narcotrfico e por ser o Mxico o pas que mais recebia capital estrangeiro depois da China. Nesse perodo, o Mxico passou a ter um cartel internacional de cocana protegido pelo alto escalo do governo11 e ajudado pela abertura da fronteira, por meio do Acordo de Livre Comrcio da Amrica do Norte (Nafta). A convivncia com o narcotrfico tambm visava a atrair reservas para reforar sua ncora cambial. A escassez de emprego na economia regular, devida queda na atividade econmica, na medida em que o sobre-endividamento dificultava o crescimento da economia, acabou atraindo trabalhadores para a atividade criminosa12.9

A Colmbia continuou a pagar o servio da dvida externa por meio desse canal de lavagem, o que significa que, para atender aos interesses dos banqueiros, no interessava a procedncia dos recursos. 10 Depois de receber negativa ao seu pedido de naturalizao em 1984, William Elswick (Capito Billy) foi preso e, em seguida, liberado por intermdio de parecer de Joo Batista Cordeiro Guerra, presidente do STF. No Brasil, transformou-se em exportador de atum fresco para Miami, produto esse que ele vendia nos Estados Unidos a US$ 1,10 o quilo, enquanto pagava US$ 2,00 para embarc-lo (HENRY, 1996, p. 382). Aps matria do referido jornalista no Jornal do Brasil denunciando tal personagem, foi criada uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) para investigar o caso. 11 Uma investigao indicou que, entre 1994 e 1995, desapareceram 30 toneladas de cocana apreendida pela Polcia Federal mexicana. Ao mesmo tempo, Raul Salinas Jnior, irmo do presidente mexicano, acumulou US$ 300 milhes em parasos fiscais, especialmente nos Estados Unidos, Alemanha e Sua (HENRY, 1996, p. 394). 12 Uma contrapartida da crise de desenvolvimento na dcada de 1980 foi a expanso de uma economia subterrnea, quando o narcotrfico, o mercado paralelo de divisas, o contrabando, a evaso de impostos e o trabalho infantil

De fato, o narcotrfico foi o setor subterrneo que experimentou maior expanso, em razo da crescente demanda por drogas nos pases desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos. O surgimento de centros financeiros dissociados do processo de desenvolvimento industrial foi resultado da expanso das atividades dessa economia subterrnea13. Embora se admitindo a relevante contribuio dessa modalidade de dinheiro na relao entre Estado e economia durante os regimes militares da Amrica Latina, no se pode esquecer que o elemento fundamental do endividamento externo no continente est no montante de capital produtivo que se encontrava inativo no euromercado de moedas. O fato de tais dvidas terem seu auge durante os criminosos regimes militares retira desses governos toda e qualquer legitimidade, por se tratarem de regimes de fora apoiados pelos Estados Unidos. A seguir, so investigadas as etapas e desdobramentos do endividamento externo brasileiro. No estudo da trajetria do endividamento externo brasileiro, possvel identificar trs fases principais. A primeira vai de 1969 a 1981, quando ocorre o explosivo endividamento e se amplificam as contradies na economia mundial, com a elevao da taxa de juros nos Estados Unidos. A segunda se estende de 1982 a 1991, quando vigora a crise de crdito na economia mundial a partir das moratrias mexicana e argentina e tem incio uma nova fase de crdito abundante, aps a renegociao da dvida por meio do Plano Brady, em 1989. A terceira vai do incio dos anos 1990, quando da introduo da ncora cambial na Amrica Latina, at o momento atual, com o fim dessa ncora e novo agravamento da dvida, com as moratrias argentina e equatoriana. Diante disso, buscar-se- investigar o fenmeno do endividamento externo brasileiro a partir do entendimento do movimento internacional de capitais, marcado por fases distintas: de crdito abundante, durante quase toda a dcada de 1970; de crise de crdito, nos anos 1980; uma nova fase de crdito abundante, nos anos 1990; e uma nova crise de crdito, no incio do sculo XXI.chegaram a representar at 30% das economias de muitos pases subdesenvolvidos (HENRY, 1996, p. 362). 13 A narcobanca e seu papel na lavagem do dinheiro por intermdio de investimento esto nas mos dos pases desenvolvidos e so to importantes para a atividade como o ter para o refino da cocana e a arma automtica na disputa pela fatia de mercado consumidor (HENRY, 1996, p. 364). Da mesma forma, o papel de Hong Kong como grande centro financeiro baseou-se, inicialmente, no fato de aquele territrio ter sido entreposto de drogas, uma vez que desde o incio do sculo XIX a principal atividade comercial da Inglaterra com a China era a exportao de pio produzido na ndia. A proibio pelo governo chins, em 1840, e o combate ao comrcio ilegal da droga levaram a Inglaterra a declarar guerra China. Depois de dois anos de conflitos e a vitria da Inglaterra, o comrcio da droga foi retomado. Alm disso, Hong Kong, ponto estratgico para esse comrcio, foi incorporado pela Inglaterra, sendo devolvido aos chineses somente em julho de 1997.

Primeira fase: da expanso do euromercado exploso da taxa de juros nos Estados Unidos (1969 a 1981) Apesar de o endividamento externo no Brasil ter-se iniciado com a proclamao da independncia, sua exploso ocorreu a partir do final dos anos 1960, tanto pelas operaes de repasse por instituies financeiras, por meio da Resoluo n 63 de 1967, quanto pela contratao direta de emprstimos externos, regulamentados pela Lei n 4.131 de 1962, por grandes empresas14. Essa contratao direta de emprstimos mostrou-se especialmente atrativa s empresas de capital externo, por representar um mecanismo de burla das restries remessa de lucros originria de investimentos estrangeiros realizados no pas. Isto se devia s vantagens em relao ao volume passvel de remessa e taxao incidente sobre os montantes remetidos. Por esse motivo, parcela expressiva dos emprstimos externos contratados por filiais de empresas multinacionais nada mais eram do que capital de risco buscando gozar as vantagens oferecidas pela legislao quanto aos capitais de emprstimos (CRUZ, 1984, p. 110). A primeira fase de endividamento externo brasileiro (1969-1981) teve cinco etapas (CRUZ, 1984). Dela sero analisados, neste momento, os seguintes aspectos: a contribuio do transbordamento do euromercado de moedas; seu componente financeiro; a natureza dos tomadores de emprstimos (privados e estatais); a estatizao e a converso da dvida externa em dvida pblica; o estrangulamento do setor externo; a necessidade de exportao; e, principalmente, o crescimento dos emprstimos via Bird, BID e FMI, a partir de 1980. Alm disso, sero abordados os impasses desse processo quando das moratrias mexicana e argentina em 1982, que resultou na crise de crdito dos anos 1980, a moratria brasileira de 1987 e a constituio do Plano Brady em 1989, para renegociao dessa dvida. A primeira etapa do endividamento brasileiro, de 1969 a 1973, foi marcada por grande impulso, quando passou de US$ 3,5 bilhes, no final de 1968, para US$ 12,6 bilhes (valores de 1984), no final de 1973, contrariando os anos 1960, quando praticamente no se alterou. Esse momento foi definido pelo Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), com grande expanso econmica durante o chamado milagre brasileiro. Essa expanso resultou da converso do capital inativo vindo do euromercado, por intermediao estatal, em capital produtivo, tanto14

As empresas de capital externo foram as maiores tomadoras de emprstimos por essa modalidade e acabaram sendo grandes responsveis pelo endividamento externo nos anos 1970.

diretamente pelo Estado, que contraa emprstimos externos e possibilitava internamente o crdito de longo prazo, quanto por meio das garantias oferecidas aos tomadores privados. Os grandes projetos de infraestrutura do governo, com fortes subsdios e incentivos fiscais, somados ao abundante crdito pblico, geraram as condies para os investimentos privados, impulsionando a industrializao e a modernizao agrcola a partir da expanso dos gastos pblicos. A motivao principal desse endividamento estava ligada ao grande fluxo de recursos provenientes do euromercado de moeda, por mais que o discurso oficial destacasse a necessidade dos recursos externos para o desenvolvimento econmico do pas. Isso porque esse perodo no foi marcado nem pela ausncia de poupana externa, j que a conta de capital de risco apresentou saldo positivo de US$ 1 bilho, nem por dficit na balana comercial 15: na verdade, a economia brasileira foi capturada juntamente com outras economias, num movimento geral do capital em busca de valorizao (CRUZ, 1984, p. 18). Esse perodo foi marcado por extraordinria disponibilidade de crdito a prazos cada vez mais longos e taxas de risco cada vez menores. Os bancos agiam como formigas em torno de um bocado de acar (DELAMAIDE, 1984, p. 127). A segunda etapa de expanso da dvida externa brasileira, de 1974 a 1976, foi marcada pela primeira recesso mundial do ps-guerra (1974-1975), determinando uma conjuntura internacional extremamente adversa, tanto no que se refere ao comrcio de mercadorias e de servios produtivos quanto em relao ao custo da dvida, que comeava a operar como auto alimentador dos desequilbrios globais do setor externo. A emergncia da crise internacional16 em nada abalou a retrica desenvolvimentista, a qual, ao contrrio, buscava responder crise internacional por meio do crescimento acelerado, procurando criar uma ilha de tranqilidade em meio ao mar revolto (CRUZ, 1984, p. 21). Nessa direo surgiu o II PND (1974-1979), visando a romper com a estrutura de dependncia da economia brasileira em relao aos pases centrais, a partir de investimentos nos setores de siderurgia, metalurgia, fertilizantes, petroqumica (plos petroqumicos do Nordeste e do Sul), transportes e telecomunicaes, permitindo uma nova etapa de substituio das importaes. Tanto do I PND como no II PND, os grandes projetos derivaram principalmente de investimentos15

Mesmo havendo crescimento no coeficiente de importaes, esse fenmeno foi acompanhado pelo expressivo crescimento das exportaes, dado o boom do comrcio internacional e, por isso, no havia necessidade de se evitarem os constrangimentos externos com mais emprstimos (CRUZ, 1984, p. 16). 16 Ao contrrio do perodo anterior, este foi marcado por fortes desequilbrios da balana comercial, que apresentou um dficit acumulado de U$ 10,5 bilhes, refletindo as condies adversas observadas no comrcio internacional, dadas as taxas negativas de crescimento nas economias capitalistas avanadas e a quadruplicao do preo do petrleo ocorrida no final de 1973 (CRUZ, 1984, p. 18).

pblicos, seja diretamente, por intermdio das empresas estatais, ou indiretamente, via crdito estatal por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDE)17. Os investimentos privados dependiam tanto do crdito estatal como do consumo estatal para se constiturem: a natureza do capital era estatal, tanto no financiamento dessas empresas quanto na realizao de seus produtos e servios privados. As empresas privadas trocaram os emprstimos externos pelos internos subsidiados, j que, na poca do lanamento do II PND, houve grande fortalecimento do BNDE enquanto instituio financeira destinada a dar suporte execuo de novos projetos de investimentos. A contribuio estatal aos grupos privados ocorreu, por um lado, na produo, ao viabilizar os projetos do setor privado nas reas de bens de capital e de insumos bsicos, tanto por emprstimos diretos subsidiados do BNDE como pela participao acionria de suas trs subsidirias (Ibrasa, Fibrasa e Embramec). Essa contribuio estatal se deu tambm, por outro lado, no consumo, quando do financiamento, por parte de linhas de crdito quase exclusivamente da Finame, para a aquisio de equipamentos nacionais (CRUZ, 1984, p. 119). Com esse novo esquema de financiamento, as empresas nacionais, que ampliaram suas inverses aps 1974, passaram a reduzir a tomada de emprstimos externos. Naquele momento ocorreu a reduo das exportaes e a manuteno de altas taxas de crescimento, o que elevou o coeficiente das importaes, gerando desequilbrios do setor externo. Este quadro de desequilbrio foi exacerbado pelo impacto que o custo da dvida exerceu sobre a conta financeira: os juros vencidos no trinio chegaram a US$ 4 bilhes (valores de 1984), significando, em termos mdios anuais, um acrscimo superior a 300% ao ano em relao mdia do perodo 1969-1973. Ao mesmo tempo, houve a reduo das inverses privadas, compensadas pelas inverses pblicas, iniciando o processo de estatizao da dvida externa. Esse aumento dos compromissos financeiros refletiu, portanto, o simples crescimento do estoque da dvida, assim como a deteriorao das condies de crdito do perodo, fruto de uma elevao das taxas bsicas de juros. Esse movimento s foi revertido em meados de 1976, quando voltaram a expandir-se as atividades do euromercado. A terceira etapa, de 197718a 1978, foi marcada por um novo e significativo crescimento da dvida externa bruta, a uma taxa mdia de 30% ao ano, mesmo com uma nova expanso do17

Criado em 1953 durante o governo Getlio Vargas. Recentemente acrescentou a palavra Social, quando se transformou no principal financiador das privatizaes. 18 O Citibank publicou, em 1977, um relatrio no qual declarava que quase 20% de seus lucros provinham do Brasil mais do que o lucro obtido nos Estados Unidos (DELAMAIDE, 1984, p. 127).

euromercado, em meados de 1976, e a regularizao das relaes brasileiras com o resto do mundo. O custo da dvida exigia, para aquele momento, volumes expressivos de recursos, quando os juros lquidos chegaram a US$ 4,8 bilhes, representando 36% da contratao lquida, facilitada pelo aumento da liquidez internacional. Essa contratao lquida revelou o carter predominantemente financeiro da dvida, j que pouco tinha a ver com o financiamento do hiato de recursos, pois 40% dessas contrataes destinaram-se formao de reservas (CRUZ, 1984, p. 21). Com a reduo da captao privada, o governo novamente procurou estimul-la, no apenas liberando a taxa de juros interna para o diferencial do custo do dinheiro ser favorvel ao capital externo, como tambm criando um mecanismo de proteo contra perdas originadas pela mudana cambial. Da mesma forma, as empresas estatais foram estimuladas a tomar mais emprstimos para manter o financiamento dos grandes projetos do II PND. Todavia, a nova expanso da dvida resultou do alargamento da liquidez mundial a partir do euromercado. Em 1978, a vulnerabilidade externa brasileira j era grande, pois a dvida externa de mdio e longo prazos, deduzidas as reservas, chegava a 250% das exportaes e a 15% do PIB, sendo que os crditos fornecidos por instituies privadas respondiam por 65% do total da dvida pblica e 56% da dvida externa pblica tinham taxas de juros flutuantes (BATISTA JNIOR, 1988, p. 64). A quarta etapa, de 1979 a 1980, foi marcada pelos efeitos da poltica de estabilizao da economia dos Estados Unidos, visando a combater a crescente inflao, a desvalorizao do dlar e a perda de atratividade dos ttulos do Tesouro daquele pas 19. Aquele momento explicitou a armadilha do processo de endividamento ocorrido a partir do euromercado baseado em taxas de juros flutuantes20. A elevao da taxa de juros nos Estados Unidos21 teve impacto explosivo sobre o custo da dvida e acelerou o efeito cumulativo das etapas anteriores, culminando com a insuficincia de recursos para fechar o balano de pagamentos. Pela primeira vez na histria recente, o saldo da conta financeira estava negativo, significando que o acrscimo da dvida, alm de no gerar recursos para19

Com a inflao se aproximando de dois dgitos, o ganho real dos possuidores desses ttulos no estimulava novas aquisies, dificultando a rolagem da dvida pblica. 20 Os juros flutuantes implicam o fato de o tomador de emprstimos e o emprestador dividirem o risco de uma alterao da taxa de juro, ficando o tomador submetido aos caprichos do mercado, sem ter nenhum controle sobre aquilo que deveria pagar pelo crdito que lhe foi concedido (DELAMAIDE, 1984, p. 51). 21 A elevao dos juros bsicos nos Estados Unidos refletiu na Taxa Libor de seis meses, que entre 1977 e 1978 apresentava um percentual mdio de 9,9% ao ano, tendo chegado a uma taxa mdia de 14,4% em 1979 e de 16,8% em 1980 (CRUZ, 1984, p. 24).

financiar a conta de mercadorias e de servios produtivos, era insuficiente para pagar os juros lquidos. A queima de reservas internacionais passou a ser condio para o fechamento das contas externas mediante a contratao de emprstimos de curto prazo e de custos mais elevados, o que agravava ainda mais o problema da dvida (CRUZ, 1984, p. 24). A quinta etapa, a partir de 1981, caracterizou-se por nova elevao da taxa de juros nos Estados Unidos e pela ecloso da recesso de 1980 a 1982. Mesmo com este cenrio, a emergncia de supervit na balana comercial de US$ 1 bilho inaugurou uma nova fase na histria recente do setor externo brasileiro, resultado da queda drstica do valor das importaes, que atingiu, em termos nominais, o percentual de 16% em relao a 1980. Internamente, essa queda das importaes foi fruto da poltica ortodoxa posta em prtica pelo governo brasileiro desde o final de 1980, em funo da forte presso exercida pelos credores internacionais, centrada no corte do gasto pblico, reduo dos subsdios, controle quantitativo da expanso do crdito, liberao das taxas de juros e conteno salarial. Externamente, resultou dos efeitos da recesso de 1980-1982 na economia mundial (CRUZ, 1984, p. 26). Essa alterao ocorrida na poltica governamental representa a adaptao do modelo de desenvolvimento nova realidade do cenrio nacional e internacional e determinou o eixo das polticas governamentais da dcada de 1980. A poltica econmica de Reagan fez com que a taxa de juros real a diferena entre a taxa de inflao e a taxa nominal de juros subisse vertiginosamente, passando de zero ou mesmo negativa, na dcada de 1970, para mais de 8% de 1981 a 1982. A sobrevalorizao do dlar22 logo aps a subida dos juros favoreceu as importaes dos Estados Unidos. Os pases subdesenvolvidos, na medida em que tiveram de pagar um volume maior de dvida, recorreram ao aumento das exportaes e diminuio das importaes como forma de obter supervit comercial. Este momento foi marcado pelo fim do ciclo expansivo, iniciado em 1969, e pelo impasse do endividamento externo com as elevadas taxas de juros, aliadas a taxas de risco igualmente elevadas, que amplificavam os j existentes desequilbrios financeiros, deixando a economia exposta aos rumos do sistema monetrio internacional privado: o endividamento externo, justificado como elemento de superao de constrangimentos externos, como potencializador do crescimento econmico, revela-se o contrrio, ou seja, um elemento agudizador das dificuldades externas ou elemento gerador de constrangimentos externos (CRUZ, 1984, p. 27).22

O pice da valorizao do dlar ocorreu em 1985.

O processo de estatizao e o endividamento pblico Aps a reconstituio das etapas dessa primeira fase de endividamento, torna-se necessria uma reflexo sobre o processo de converso da dvida externa em dvida pblica. No decorrer da dcada de 1970, a dvida externa nasceu e se expandiu, sob a forma predominantemente privada e, em seguida, transformou-se em dvida essencialmente pblica. Inicialmente, ser investigada a trajetria das captaes via tomada direta de recursos pelas grandes empresas, de acordo com a Lei n 4.131, e as captaes via repasses por instituies financeiras, conforme a Resoluo n 63. O crdito externo passou a ser alternativa 23 extremamente atrativa para as empresas pblicas e privadas: primeiramente, por significar um alargamento das bases de financiamento, possibilitando crdito de longo prazo (que o sistema privado era incapaz de atender); e em segundo lugar por constituir-se numa modalidade de crdito cujo custo ao muturio tendeu a situar-se em nveis significativamente inferiores aos observados nas faixas no subsidiadas do crdito disponvel nas instituies domsticas (CRUZ, 1984, p. 109). O processo de endividamento externo brasileiro, seguido da sua estatizao, deixa claro um dos motivos pelos quais, no final dos anos 1960, os banqueiros internacionais viram, nos emprstimos concedidos a governos ou sob sua garantia, o espao para a alocao de seus recursos. No se tratava apenas do fato de a demanda por emprstimos do setor privado estar em queda, fruto da queda da rentabilidade dos investimentos produtivos privados, mas essencialmente da necessidade de intermediao estatal de recursos privados e inativos em capital produtivo, sob conta e risco dos Estados. Para aquele momento histrico, os governos militares possibilitaram a gesto dos interesses do capital financeiro, tanto reprimindo os movimentos sociais quanto criando os mecanismos necessrios para a penetrao do capital externo. Com o incio do regime militar ocorreu a institucionalizao de canais de ingresso, uma das peas fundamentais da reestruturao do esquema de financiamento dos setores pblico e privado, levando a reformas em relao s esferas fiscal, monetria e financeira, modificando os padres de financiamento que refletiam uma progressiva adequao dos esquemas internos de financiamento s transformaes que se processavam em escala internacional (CRUZ, 1984, p.

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O diferencial do custo de dinheiro foi o principal instrumento a que recorreram as autoridades governamentais para o estmulo s captaes privadas no perodo estudado (CRUZ, 1984, p. 109).

108). Essas medidas visavam a ampliar a base fiscal e viabilizar o instrumento da dvida pblica24. Fruto de tais transformaes, os setores pblico e privado passaram a satisfazer parte de suas necessidades de crdito em cruzeiros, por meio de operaes que envolviam o simultneo ingresso de divisas internacionais. O crdito interno passou a depender do crdito externo (CRUZ, 1984, p. 108)25. A participao das empresas nacionais nas captaes privadas teve peso insignificante ao longo da dcada de 197026, enquanto as empresas de capital externo que atuavam no Brasil foram as principais tomadoras de recursos via captao direta pela Lei n 4.131. No perodo de 1972 a 1978, captaram volumes crescentes, acima de 40% de todas as captaes realizadas. O segmento de capital privado nacional s teve alguma expresso, enquanto tomador de recursos externos por esta via, nos anos de auge do ciclo expansivo 27. As captaes pblicas ocorreram por intermdio das empresas estatais, via Lei n 4.131, e dos bancos estatais, via Resoluo n 63, medida que as captaes privadas caram. Mesmo com os inegveis atrativos, o setor privado perdeu importncia relativa enquanto tomador de recursos via Lei n 4.131 no final dos anos 1970. Essa participao relativa do setor privado comeou a declinar a partir de 1975. As captaes privadas foram aceleradas quando o crescimento do PIB era elevado. Sua reduo ocorreu sem nenhuma poltica restritiva 28, j que o governo adotou medidas para estimular a captao privada de recursos externos, como a reduo dos prazos mnimos de amortizao e carncia exigidos pelo Banco Central para registro dos novos emprstimos; a reduo da alquota do imposto de renda incidente sobre a remessa de juros e comisses; e a iseno do imposto sobre operaes financeiras.

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A instituio da correo monetria objetivava evitar que a inflao pudesse comprometer o ganho real dos possuidores dos ttulos pblicos. 25 Com a dificuldade de captao externa, principalmente a partir de 1979, desenvolveram-se as dificuldades internas na poltica de crdito e subsdio. Foi basicamente por intermdio da abundncia de crdito e subsdio que se desencadeou o processo de industrializao e modernizao agrcola no Brasil. 26 Se em 1972 as empresas nacionais chegaram a participar em 27% das captaes privadas, em 1981 participaram de apenas 5,6% (CRUZ, 1984, p. 99). 27 As empresas de capital nacional reduziram sua participao j em 1975, enquanto as de capital externo s vieram a faz-lo a partir de 1978 (CRUZ, 1984, p. 142). 28 Em meados de 1977, foi institudo um mecanismo de proteo contra eventuais modificaes na poltica cambial (Resoluo n 432 Bacen), que representou um estmulo adicional s novas captaes privadas. Isto devido ao elevado peso das variaes cambiais na composio do custo final em cruzeiros, especialmente num perodo de elevadas taxas de inflao, institucionalizando um mecanismo de socializao das perdas decorrentes de desvalorizaes cambiais, que foi bastante til s empresas endividadas durante a maxidesvalorizao do final de 1979 (CRUZ, 1984, p. 114).

A progressiva estatizao da dvida externa brasileira foi-se impondo como resultado da necessidade crescente de recursos externos, combinada com a ausncia de agentes privados dispostos a realizar tomadas nos volumes exigidos (CRUZ, 1984, p. 118). A existncia de ajustes peridicos da taxa de cmbio pela adoo do mecanismo de correo cambial fez com que os riscos de captao externa praticamente se equiparassem aos de uma fonte interna de financiamento, alm das vantagens quanto a prazos e custos e da equiparao de riscos entre as captaes internas e externas (BAER, 1986, p. 14). Os financiamentos dos grandes projetos das empresas estatais vinham das tomadas de recursos junto aos bancos internacionais, com destaque para o Banco do Brasil, que foi o mais utilizado na captao externa no binio 1974-1975, quando as condies de crdito tornaram-se precrias. Por intermdio de suas agncias no exterior, o Banco do Brasil captava recursos de curto prazo a taxas elevadas no mercado internacional e ofertava, internamente, emprstimos de longo prazo, contribuindo para que se intensificasse a estatizao da dvida externa, juntamente com o Banco do Estado de So Paulo. Tal movimento possibilitou o surgimento de capital produtivo para a economia brasileira, no II PND, medida que assumia todos os nus da funo de intermediao do capital parasitrio internacional. Nesse processo, as empresas estatais tiveram papel decisivo, responsabilizando-se pelos projetos-chave que criaram demanda ampliada por mquinas e equipamentos, dando impulso indstria nacional de bens de capital. A Resoluo n 63, fruto da reforma de 1967, constituiu-se em canal de ingresso de recursos de importncia secundria nos anos 1970, representando quase 30% dos emprstimos realizados at 1981, quando os bancos absorveram macios recursos do sistema financeiro dos pases avanados. Os principais beneficirios dessas operaes de repasse de recursos foram os bancos comerciais estrangeiros, que ampliaram sua atuao no pas. A expanso assumida pelas operaes de repasse deve-se aos atrativos oferecidos pelas autoridades governamentais, que estabeleciam, antecipadamente, os mecanismos de estatizao dos riscos e os nus da operao, pois se traduziam implicitamente em dficit para o Estado. Se, inicialmente, os repasses por meio da Resoluo n 63 beneficiavam os bancos comerciais estrangeiros e depois os privados nacionais, a partir de 1977-1978 tem-se uma participao expressiva dos bancos estatais. Se em 1972-1973 os bancos comerciais estatais tinham uma participao de 12% nas operaes de repasse, por meio da Resoluo n 63, em 1980-1981 passaram a quase 28% (CRUZ, 1984, p. 132).

O processo de estatizao da dvida externa ocorreu no contexto do processo de endividamento externo e se intensificou medida que cresceu a necessidade de recursos externos, fruto do impasse do setor externo, levando, no momento seguinte, crescente captao das empresas estatais e culminando com a defrontao com crescentes obstculos (CRUZ, 1984, p. 142-143)29. Esse processo teve um novo estgio na crescente captao via instituies multilaterais, especialmente do Banco Mundial e BID, quando os emprstimos bilaterais entraram em declnio. A crescente dependncia de recursos externos implicou a criao de facilidades para estados, municpios e autarquias se endividarem externamente, quando foi revogada a proibio de tomada de recursos via Resoluo n 63. Se as captaes via Lei n 4.131 e Resoluo n 63 decresceram a partir de 1981, as captaes via Bird elevaram-se a partir da. Do total de US$ 155 bilhes de emprstimos feitos a vrios pases de 1947 a 1989, o Brasil teve uma participao de quase 10%, o que corresponde a US$ 14 bilhes. Desse total repassado ao Brasil, 72% (ou US$ 10 bilhes) ocorreram no perodo de 1980 a 1989, fase marcada pela crise de crdito e reduo dos emprstimos privados. A dvida junto s entidades multilaterais (inclusive FMI) e agncias governamentais a qual, ao final de 1989, representava 27,5% do total da dvida registrada passou, a partir de dezembro de 1990, a representar 28,1%. Essa modalidade de emprstimos contribuiu com quase um tero da dvida externa no final dos anos 1980. Com o esgotamento dos emprstimos bilaterais, tem-se a ascenso dos emprstimos multilaterais. Tal movimento representou uma nova etapa de estatizao do endividamento, tendo como justificativa a tentativa de combater a pobreza e as desigualdades regionais. Assim, em 1983, no perodo crtico do balano de pagamentos, 32,1% do valor total dos emprstimos contratados junto ao Bird vincularam-se a apenas dois programas setoriais. A implantao desses programas estava vinculada ao desequilbrio do balano de pagamentos e ampliou a atuao do Bird no pas, por meio de uma poltica de macrocondicionalidades que pressupunha a estabilidade de curto prazo, visando a um ajustamento estrutural da economia, de modo a patrocinar uma mais eficiente alocao e emprego de recursos (GONZALEZ et al., 1990, p. 58). Naquele momento, quando o cenrio internacional tornou-se ainda mais incerto as taxas de juros foram elevadas e o prazo de carncia reduzido, as empresas estatais foram colocadas como

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Segundo Belluzzo (1984), a partir de 1977-1978 as empresas pblicas passaram a contrair dbitos em moeda estrangeira superiores s suas necessidades reais: no so mais os projetos que atraem os financiamentos, mas a necessidade imperiosa de rolar a dvida externa que cria os projetos (CRUZ, 1984, p. 5).

garantia para tomadas de emprstimos. Em seguida estados e municipios foram tambm estimulados a contrair emprstimos externos. Na Argentina, o endividamento externo, que foi impulsionado pelo setor privado, e a fuga de capitais30 constituem aspectos de um mesmo processo, que adquiriu dimenses relevantes no final dos anos 1970, quando ocorreu a reforma financeira imposta pela ditadura militar em 1977, a qual estabeleceu a abertura externa do mercado de capitais (BASUALDO; KULFAS, 2002, p. 60-61). Ao estatizar a dvida externa privada, o Estado acabou assumindo o nus que deveria ser atribudo aos tomadores privados. No auge do endividamento, entre 1976 e 1981, a Amrica Latina contraiu US$ 272,9 bilhes em emprstimos, sendo que desse total apenas 8,4% (ou US$ 22,9 bilhes) entraram efetivamente no continente, podendo ou no ter sido usados para investimentos produtivos. Mais de 60%, num total de US$ 170,5 bilhes, nunca entraram no continente, pois foram pagos aos mesmos bancos como amortizao de dvidas anteriores ou juros. Outros US$ 22,9 bilhes tambm ficaram nos bancos como reservas, enquanto US$ 56,6 bilhes saram na forma de fuga de capitais (KUCINSKI; BRANFORD, 1987 p 10). Em sua primeira fase (1969-1981), esse processo de endividamento externo na Amrica Latina resultou na estatizao da maior parte da dvida privada. Na Argentina, j em 1975, a dvida estatal correspondia a 51% do total da dvida externa. Em 1982, a participao estatal ficou em 65,7%, chegando a 83,7% do total em 1985. Tambm no Brasil esse processo de estatizao se intensificou a partir de 1975. Em 1981, a participao estatal na dvida chegou a 70%. Tanto no Brasil como na Argentina, a grande parte dessa dvida foi contrada pelas empresas estrangeiras. Com a estatizao, as referidas empresas foram as grandes beneficirias dessa socializao das perdas (KUCINSKI; BRANFORD, 1987 p 10). A estatizao da dvida externa, em seu conjunto, levou a uma acelerao do endividamento interno, com o lanamento de ttulos pblicos no mercado interno a taxas de juros mais altas. Com isso, os bancos privados, que foram beneficiados com a estatizao de suas dvidas, acabaram novamente beneficiados, pois continuaram a ser os principais compradores desses ttulos, ou seja, ganharam ainda mais no momento da rolagem da dvida pblica ampliada no processo de estatizao da dvida externa privada. Durante o processo de30

A fuga de capitais locais ocorre quando os residentes de um pas enviam recursos para o exterior visando a realizar investimentos e aquisio de ativos que podem ser fsicos (investimentos diretos) ou financeiros (ttulos, aes, etc.), no se tratando necessariamente apenas de operao ilegal (BASUALDO; KULFAS, 2002, p. 59).

renegociao da dvida externa segundo o Plano Brady, em 1989, o Tesouro dos Estados Unidos foi o avalista da rolagem da dvida e o governo brasileiro, o intermediador e garantidor dos novos ttulos, substituindo os antigos. Nos anos 1990, para dar sustentao ncora cambial, surgiram novos determinantes dessa estatizao, seja por meio da emisso de bnus, seja pela elevao da taxa de juros para atrair capitais externos. Por outro lado, a dvida interna passou por um processo de dolarizao, j que sua rolagem passou a depender da venda de ttulos com variao cambial, especialmente aps a desvalorizao do real. Segunda fase (1982 a 1991): da crise de crdito, em 1982, ao Plano Brady e introduo da ncora cambial A crise mundial de crdito dos anos 1980 comeou oficialmente em 20 de agosto de 1982, quando o Mxico anunciou a suspenso do pagamento do principal de sua dvida, continuando a pagar os juros. O efeito cumulativo da dvida continuou a ter um impacto fortemente desequilibrador sobre as contas externas dos pases devedores subdesenvolvidos, o que culminou na moratria mexicana e argentina em 1982. Tal fato trouxe tona a crise monetria e financeira que estava fermentando havia mais de dez anos, revelando a fragilidade ou o estgio final da lenta desintegrao do euromercado de moedas31: a crise de crdito de 1982-1983 foi apenas uma fase aguda de uma crise muito mais sria (DELAMAIDE, 1984, p. 23). A declarao dessas moratrias foi a deflagrao da crise do euromercado e, a partir da, o FMI (que inicialmente concorria com esse mercado privado) e o Banco Mundial intervieram no sentido de restabelecer as condies de pagamento dessas dvidas. Essas moratrias resultaram tanto do impacto dos juros altos quanto da retrao da economia mundial, que dificultava as exportaes. O Mxico, mesmo sendo um grande exportador de petrleo, no conseguiu manter sua capacidade de pagamento, j que sua dvida externa, somente em 1981, cresceu US$ 18 bilhes, sendo a Pemex a responsvel por US$ 10 bilhes. A ecloso da crise da dvida mexicana comeou quando o grupo industrial privado Alfa, maior empresa mexicana, suspendeu, em 1982, o pagamento de US$ 2 bilhes, servindo para aumentar o31

O Plano Brady, em 1989 e a renegociao da dvida externa a partir da intermediao do Tesouro dos Estados Unidos e dos respectivos Estados subdesenvolvidos serviram para resguardar os interesses desse Sistema Monetrio Internacional privado, ou seja, no momento de liberar seus emprstimos, queria o mximo de liberdade para fazlo, mas quando esses emprstimos entraram em colapso, cobrou dos Estados envolvidos mecanismos que garantissem tal renegociao.

pnico no sistema financeiro mexicano e, por conseguinte, dando incio a uma fuga de capitais e a uma crescente especulao contra o peso, com a criao de um mercado paralelo. Essa crise acabou levando nacionalizao dos bancos privados mexicanos e ao controle de capitais. O efeito da elevao da taxa de juros nos Estados Unidos e, por sua vez, no euromercado foi maior do que o efeito da elevao do preo do petrleo. Ironicamente, o Mxico acabou se tornando o maior devedor do mundo, no exato momento em que suas exportaes de petrleo cresceram dada a elevao do preo do petrleo no final dos anos 1970: a dvida externa total do Mxico chegou aos assustadores US$ 60 bilhes em seis anos de US$ 20 bilhes em 1976 para US$ 80 bilhes em 1982 (MOFFITT, 1984, p. 116). Na expectativa de que o preo do petrleo continuasse a subir, o Mxico desenvolveu um agressivo programa de industrializao32 a partir de dinheiro captado no euromercado. Quando os preos do petrleo caram, em 1982, agravou-se a situao. De 1982 a 1984, quando o Sistema Financeiro Mundial tremeu beira do abismo e os pases subdesenvolvidos e suas ditaduras estavam sob o pesado fardo das obrigaes do servio da dvida, a evaso de capital se acelerou e em 1983 os bancos suos tiveram o ano mais lucrativo de sua histria (NAYLOR, 1990, p. 298). Mesmo antes desse momento os bancos suos atraram grande parte da evaso de capital dos pases subdesenvolvidos 33. O sigilo bancrio era um componente decisivo para a atrao das vrias modalidades de dinheiro de origem ilcita. A busca de proteo permitia que capitais dessa origem permanecessem por um prazo mais longo naquele pas. O impacto da poltica de juros altos para os pases subdesenvolvidos foi brutal, j que o total da dvida de longo prazo desses pases, importadores de petrleo, saltou de US$ 100 bilhes, em 1972, para mais de US$ 500 bilhes, em 1982. Da mesma forma, o custo anual de pagamento do servio da dvida saltou de US$ 15 bilhes, em 1973, para mais de US$ 100 bilhes, em 1982 (MOFFITT, 1984, p. 102-103). As vrias etapas da crise da dvida iniciada em 1973, contornadas principalmente com a liberao de novos emprstimos, tiveram seu ponto culminante nesses anos, como resultado da expressiva elevao da taxa de juros por parte dos Estados Unidos. Naquele momento, somente o Mxico, o Brasil e a Argentina deviam mais de US$ 200 bilhes (em valores de 1983). At32

No Mxico, parte desses investimentos ocorreu na ampliao da capacidade da empresa estatal de petrleo, a Pemex. 33 Segundo clculo dos opositores do sigilo bancrio suo, pelo menos US$ 70 bilhes depositados na Sua podem ser atribudos pilhagem feita pelos ditadores (valores no atualizados) (NAYLOR, 1990, p 298).

ento, os banqueiros comportavam-se como se os emprstimos soberanos pudessem ser imunes crise que atingia o setor privado. Esse caminho escolhido para aplicar seus recursos com menor risco tambm se mostrou perigoso. Como resposta crise de crdito, o Mxico adotou um programa de estabilizao que reduziu as importaes em dois teros no primeiro semestre de 1983. Desde a recesso de 1974-1975, a recuperao da atividade foi bastante lenta, culminando na recesso de 1980-1982. Os juros altos praticados pelos Estados Unidos deram nova dimenso a essa contrao da economia mundial e do comrcio internacional, por meio do qual se obtinham dlares para o cumprimento da dvida. A existncia de juros flutuantes foi determinante para o crescimento da dvida e de seu risco. Essa crise de crdito abriu caminho para agravar os conflitos sociais34, j que os Estados estabeleceram polticas recessivas no setor privado e conteno dos gastos sociais para poderem pagar a dvida, que fora em grande parte estatizada. A recesso de 1980-1982 nos pases industrializados e as prticas protecionistas dificultaram a gerao de divisas, enquanto o choque de juros no incio dos anos 1980 elevou a dvida, dificultando o cumprimento dos compromissos externos. A crise financeira mundial do incio dos anos 1980 trouxe tona a vulnerabilidade e a instabilidade do padro de financiamento internacional vigente desde os anos 1970, quando se observou um papel crescente dos emprstimos privados provenientes do euromercado. Foi no cenrio de crdito precrio, a partir de 1982, que ressurgiu o FMI, principalmente com a tarefa de administrao da crise, procurando uma soluo para a continuidade dos pagamentos. Antes dessa crise, os pases desenvolvidos, visando a seus ajustamentos, buscaram aumentar suas exportaes aos pases subdesenvolvidos por meio de crditos oferecidos pelos bancos privados. Com esse crescimento das exportaes, os pases desenvolvidos transferiram parte dos seus dficits para os pases subdesenvolvidos, que precisavam de supervits comerciais para alimentar o pagamento da dvida:[...] no fim os pases subdesenvolvidos tiveram que financiar no apenas o dficit provocado por suas importaes de petrleo, mas tambm aquele provocado pelo comrcio com os pases industrializados [...] Essa reciclagem

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Entre agosto e setembro de 1983, moradores do Rio de Janeiro, So Paulo e diversas cidades do Nordeste saquearam 225 supermercados, levando alimentos.

econmica to importante quanto a reciclagem financeira simples e mais sinistra. (DELAMAIDE, 1984, p. 46)

A crise da dvida de 1982 a 1983 gerou implicaes tanto nos Estados subdesenvolvidos como nos desenvolvidos35, j que ambos contraram volumosos emprstimos, mesmo que por motivos diferentes (DELAMAIDE, 1984, p. 163). Em 1982, pases como a Itlia (com US$ 50 bilhes) e a Frana (com US$ 45 bilhes) retratavam o perfil dos demais pases desenvolvidos quanto dvida externa. No que diz respeito dvida interna, a Itlia encontrou nas emisses monetrias a principal forma de financi-la, j que o Banco da Itlia possua a quase totalidade das notas do seu tesouro. Antes disso, a cidade de Nova York, sede do maior centro financeiro do mundo, teve efetiva falncia, quando o Estado, em 1975, assumiu o controle das finanas por meio da Junta de Emergncia para o Controle Financeiro, que declarou moratria forada nos ttulos da cidade (DELAMAIDE, 1984, p. 166). A dvida chegava a US$ 13,6 bilhes (valores de 1984) e, como ningum desejava comprar seus ttulos, o fundo de penso da cidade foi obrigado a compr-los36. Naquele momento, tanto o setor pblico quanto o privado estavam endividados. Em 1982, a Chrysler e vrias outras grandes empresas37 entraram em colapso, como nunca ocorrera desde o ps-guerra. Em todo o mundo, as falncias atingiram recordes em 1982 e aumentaram ainda mais em 1983. A salvao dessas empresas se deu a partir da interveno governamental, ao promover um grande processo de securitizao de suas dvidas. As operaes de salvamento depois da crise de crdito de 1982-1983 tinham como objetivo manter os pases devedores com liquidez suficiente para os pagamentos dos juros e a reorganizao para os pagamentos do principal da dvida (DELAMAIDE, 1984, p. 234). Ao valorizar os ttulos do Tesouro dos Estados Unidos, a poltica econmica de Reagan, medida que elevou os juros reais, atraiu capital no s do euromercado de moedas, mas tambm do conjunto das economias subdesenvolvidas:35

Os juros sobre a dvida interna dos Estados Unidos chegaram a US$ 100 bilhes ou 12% dos US$ 850 bilhes do oramento de 1984, superando o endividamento externo acumulado do Brasil ou do Mxico (DELAMAIDE, 1984, p. 65). 36 Quando 40 mil funcionrios da prefeitura perderam o emprego. 37 As dvidas das empresas permitem reduzir momentaneamente a distncia entre o ritmo de acumulao de capital e o ritmo de aumento dos lucros, atenuando em curto prazo os efeitos da queda tendencial da taxa mdia de lucros. O ritmo de acumulao assegurado na medida em que uma parte dos novos investimentos (compra de novas mquinas, de quantidade suplementar de matrias primas, etc.) financiada pelo crdito e no pelos lucros realizados [...] Na verdade, o endividamento no pode cumprir o papel de amortecedor de algumas das contradies inerentes ao modo de produo capitalista, exceto por algum tempo e em certos limites. A agudeza dessas contradies faz com que, para se obter esse efeito, se torne necessrio cada vez mais crdito (MANDEL, 1990, p. 276-277).

verdade que parte da causa da fuga de capital reside nas condies sociais e polticas do pas de origem dos fundos [...] Os pases do Ocidente, particularmente os EUA, se valeram da fuga de capitais dos pases subdesenvolvidos para evitarem decises politicamente impopulares com relao aos seus prprios dficits. (NAYLOR, 1990, p. 484)

Com isso, o Tesouro dos Estados Unidos tornou-se uma grande lavanderia para o dinheiro sujo do mundo inteiro, na medida em que atraiu grande volume de recursos desse tipo para a aquisio de ttulos da dvida pblica. Em 1981, o governo dos Estados Unidos autorizou seus grandes bancos a operarem no setor externo, livres de regras internas, dentro de seu prprio territrio. Alm disso, visando a combater o mercado de eurottulos38, em 1984 os Estados Unidos eliminaram a taxa de 30% sobre as aes ao portador, gerando nova motivao para atrao do dinheiro do crime organizado, ao mesmo tempo em que afirmava combat-lo. Com isso, os Estados Unidos passaram a disputar com a Sua e outros parasos fiscais o papel de refgio mundial do dinheiro de origem ilegal. Essa renncia fiscal e a desregulamentao financeira serviram de componentes adicionais para o repatriamento de dlares e, por sua vez, para o financiamento de seus dficits. Os parasos fiscais do Caribe onde estava grande parte dos recursos da evaso fiscal , do narcotrfico, do trfico de armas e da pilhagem das ditaduras foram pontos de partida da busca de investimentos legais nos Estados Unidos (NAYLOR,1990, p. 362). Portanto, a utilizao de recursos de origem ilegal no era exclusividade da maioria dos pases subdesenvolvidos. medida que a crise da dvida se acentuava na dcada de 1980, diminuindo os investimentos estrangeiros, crescia a fuga de capitais para os parasos fiscais, que em seguida se dirigiam para os Estados Unidos. Durante a dcada de 1980, montou-se nos Estados Unidos uma grande rede de advogados para assessoria a magnatas39 de vrios pases que desejavam investir naquele pas. Tratava-se de dar suporte legal fuga do chamado dinheiro quente, que acabou transformando-se em grandes edifcios, hotis, fazendas, parques temticos, cassinos. De combatentes dos parasos fiscais, os Estados Unidos transformaram-se no principal paraso38

Antes disso, a iseno de impostos existentes no mercado de eurottulos era usada para fugir dos impostos nos Estados Unidos. 39 Dinheiro da famlia Marcos, das Filipinas; do general Stroessner, do Paraguai; de Andrs Perez, da Venezuela; do x do Ir, Reza Pahlevi, etc.

fiscal, onde se cobravam muitos impostos dos residentes e se isentavam os no-residentes (HENRY, 1996, p. 329). Em linhas gerais, desde muito tempo os Estados Unidos tm sido um paraso fiscal competitivo, onde investidores estrangeiros podiam legalmente evitar pagar quase todos os impostos sobre ativos estadunidenses (HENRY, 1996, p. 342). Esses parasos fiscais tm ajudado, nas duas ltimas dcadas, a acumular riqueza e influncia em escala surpreendente, j que financiam campanhas polticas, filmes, golpes militares e a aquisio de empresas. A ecloso da crise da dvida externa e o processo de sua securitizao fizeram emergir um novo regime de acumulao a partir do incio dos anos 1980, sobre as bases polticas da liberalizao e da desregulamentao procedentes dos Estados Unidos e da Inglaterra. A expanso da esfera financeira foi expressiva desde o incio dos anos 1980, quando a taxa mdia de crescimento anual do estoque de ativos financeiros, de 1980 a 1992, foi 2,6 vezes maior que a da formao bruta de capital fixo do setor privado nos pases da OCDE (CHESNAIS, 1998, p. 14). Por outro lado, os crditos concedidos aos pases em desenvolvimento criaram o primeiro processo, no perodo contemporneo, de transferncia de recursos em grande escala, o qual no foi interrompido com a ecloso da crise de 1982 e contribuiu para inverter o fluxo de capitais em direo aos pases imperialistas na metade dos anos 1980 (CHESNAIS, 1998, p. 15). A expanso dos ttulos da dvida externa40da maioria dos pases gerou uma nova dimenso de riqueza nominal, j que essas dvidas funcionam como uma modalidade de riqueza fictcia, pois, em ltima instncia, todos esses papis representam direitos sobre parte da receita tributria dos Estados nacionais. Se o servio dessa dvida no se efetiva, esses ttulos viram moedas podres: [citao muito longa.][...] a dvida externa transformada crescentemente em um capital fictcio exigia, como tal, a certa altura, confirmar o seu valor como fluxo atualizado de juros. Como ocorre de certa maneira com as aes das empresas, no ento o pagamento do principal que est em jogo, mas a capacidade de pagamento de rendas. A contrao do crdito internacional em 1982 veio justamente fechar as vias de uma capitalizao automtica dos juros e abrir o captulo de sua realizao ou pagamento efetivo. O corte de novos crditos e a realizao dos vigentes40

A dvida crescente dos pases ditos do Terceiro Mundo e as reaes por ela desencadeadas no so seno um dos aspectos de um fenmeno muito mais amplo: a expanso do crdito como motor da economia do capitalismo tardio (MANDEL, 1990).

tornam-se, desde ento, os nexos lgicos que enlaam o curso da crise das finanas internacionais com as polticas econmicas dos pases devedores e suas condicionalidades [...] A dvida externa pressiona o seu processo de realizao ou cumprimento sob essas formas diretas. Mas tambm de uma maneira indireta, favorecendo a valorizao do capital produtivo ou comercial transnacional, do qual ela mesma, finalmente, parte integrante ou associada. Isso significa, e insistimos quanto a isso, uma tendncia para modificar as coordenadas da poltica econmica sem cingir-se, exclusivamente, nem ao controle inflacionrio, nem ao ajuste das balanas de pagamentos, mas induzindo mudanas estruturais no desenvolvimento do processo de acumulao de capital, como, por exemplo, e ratificando isto, a que se expressa na renovada liberalizao do capital estrangeiro ocorrida em muitos pases endividados do Terceiro Mundo. (LICHTENSZTEJN; BAER, 1987, p. 124 - 125)

Por outro lado, os bancos centrais e tambm os privados criavam dinheiro, adicionando poder de compra ao circuito e adiando a crise resultante da contradio entre mercadoria e dinheiro, mas gerando dvidas acumuladas cujos juros e servios reduzem a renda disponvel obtida na produo (CAMPOS, 2001, p. 317). As transferncias de recursos ao exterior impostas Amrica Latina em perodo recente tm efeitos econmicos equivalentes s reparaes de guerra exigidas da Alemanha por meio do Tratado de Versalhes e que tanto contriburam para a hiperinflao do incio da dcada de 1920: esse continente est sendo tratado como se tivesse causado e perdido uma guerra mundial (BATISTA JNIOR, 1988, p. 10).

A moratria brasileira Cinco anos depois das moratrias mexicana e argentina (1982), foi decretada durante o governo Jos Sarney, em 20 de fevereiro de 198741, a moratria brasileira, que vigorou at o final do mesmo ano. Essa iniciativa tinha finalidades precisas e limitadas:

41

O ministro da Fazenda, Dilson Funaro, pediu demisso j no final de abril daquele ano. Em setembro de 1987, a dvida teve um desgio de 60% no mercado secundrio no valor de face.

[...] no se pretendia provocar uma revoluo no sistema financeiro internacional, nem levar os principais bancos credores bancarrota ou estimular uma sublevao do conjunto dos pases devedores. O que se buscava era proteger e recompor as reservas e, principalmente, abrir caminho para a soluo efetiva do grave problema da dvida, atravs de uma renegociao. (BATISTA JNIOR, 1988, p. 31)

A proposta brasileira tinha como elementos centrais: a) reduo do custo da dvida; b) refinanciamento parcial dos juros no perodo de 1987-1991; c) adoo de diversos mecanismos de converso, inclusive para investimentos em projetos, com vistas a controlar o crescimento da dvida e reduzir a vulnerabilidade da economia a flutuaes das taxas de juros internacionais. Naquele momento, o endividamento externo era um grande limitador do crescimento, j que a poltica de substituio das importaes tinha elevado a demanda por bens importados para manter o nvel de atividade, num momento em que o saldo da balana comercial dependia exatamente da queda das importaes42. A dvida atingida pela moratria foi a dos bancos comerciais, que alcanava quase US$ 69 bilhes ou quase dois teros do total da dvida externa brasileira, sendo a principal fonte de presso sobre a economia brasileira por trs motivos: 1) pelo elevado custo dessa dvida; 2) pelas pesadas transferncias de recursos em favor dos bancos, enquanto , desde 1985, a fazer qualquer repasse de recursos; 3) pelo fato de a quase totalidade dessa dvida ter sido contrada a juros flutuantes (BATISTA JNIOR, 1988, p. 36). Portanto, ela atingiu exclusivamente o servio da dvida de mdio e longo prazos com os bancos comerciais, j que os demais pagamentos, inclusive a remessa de lucros e a repatriao de capitais, foram mantidos sem restries43. O volume das transferncias antes da moratria foi bastante expressivo, pois, entre 1983 e 1986, a economia brasileira remeteu ao exterior, em termos lquidos, um total de US$ 34 bilhes, sendo US$ 21 bilhes aos bancos comerciais (BATISTA JNIOR, 1988, p. 36). Seu efeito sobre o crdito privado externo foi mnimo, pois j estava cortado desde 1982. A queda dos investimentos estrangeiros j tinha ocorrido desde 1985.42 43

De 1985 a 1986, a recuperao do nvel de atividade econmica se deu pela utilizao da capacidade ociosa. A suspenso do pagamento no inclua, portanto, os juros referentes dvida bancria de curto prazo estimada em US$ 1,2 bilho para 1987 , nem juros das dvidas de mdio e longo prazo com credores no bancrios (organismos multilaterais, agncias governamentais e credores no bancrios) estimados em US$ 3,5 bilhes (BATISTA JNIOR, 1988, p. 32).

As condies para renegociao44 e alongamento do prazo da dvida apareceram a partir de 1989, quando do surgimento do Plano Brady, que abriu o caminho para a reestruturao das dvidas externas dos pases latino-americanos. Naquele momento o fluxo de capital privado voltou a se orientar para esse continente, invertendo45 a situao inaugurada pela moratria mexicana de 1982. O Brasil s reiniciou negociaes com os credores externos em outubro de 1990, a partir das quais foi realizado, em abril de 1991, o acordo para regularizao de juros devidos e no pagos entre 1989 e 1990. Segundo Carcanholo (2002, p. 136), no balano final da dcada de 1980[...] o Brasil acumulou um saldo comercial total de US$ 99,5 bilhes, pagou um total de juros sobre a dvida de US$ 97,3 bilhes e remeteu sob a forma de lucros e dividendos US$ 9,1 bilhes. O balano da conta de servios foi deficitrio em US$ 141,9 bilhes, que, descontando o saldo comercial, se transforma em US$ 42,4 bilhes em dficit de transaes correntes, desconsiderando as transferncias unilaterais. Como a entrada de capitais externos estava relativamente estagnada, o Brasil se tornou nos anos [19]80 exportador lquido de capitais.

Terceira fase (1991 a 2002): nova expanso e crise do crdito externo Esta fase teve incio com a nova expanso da liquidez mundial, motivada pela renegociao da dvida externa dos pases subdesenvolvidos a partir de 198946, a qual revalorizou aqueles ttulos, e principalmente pela queda da taxa de juros nos Estados Unidos em 1991, visando a combater a recesso naquele pas. Com isso, o Brasil, a exemplo de outros pases latino-americanos, voltou a ter acesso aos financiamentos internacionais a partir de 1991. Em julho de 1992, o Brasil e os credores privados formalizaram o acordo de princpios sobre a reestruturao da dvida externa, enquadrando-se com algumas inovaes importantes nas linhas gerais do chamado Plano Brady. A efetiva negociao s ocorreu no Brasil em 1994, momentos44

Na metade do ano de 1982, mais de 30 pases subdesenvolvidos e do Leste Europeu interromperam o pagamento ou reescalonaram suas dvidas. Desde ento, surgiu a demanda desses pases por renegociao em novas bases. 45 Nos anos 1980, os fluxos de capital estrangeiro foram inferiores a 1% do PIB regional e, na dcada de 1990, chegaram a 6%. Em 1994, entraram US$ 57 bilhes, frente a US$ 13,4 bilhes em 1990. 46 Em 1989 iniciou-se o Plano Brady e, ao mesmo tempo, tiveram lugar o Consenso de Washington e a queda do muro de Berlim.

antes da implementao do Plano Real, quando Itamar Franco era presidente e FHC era ministro da Fazenda. O Brasil, ao contrrio de pases como Mxico e Argentina, foi um dos ltimos a concretizar essa negociao. O referido acordo promoveu a troca, em abril de 1994, da dvida de responsabilidade do setor pblico47por uma combinao de sete bnus de emisso da Repblica, que constituem os chamados Brady bonds brasileiros. Com eles, a Unio passou a ser devedora de todos os novos instrumentos emitidos em troca da dvida antiga, o que possibilitou a realizao de operaes diversas com o intuito de atribuir flexibilidade administrao do passivo, como: recompra de ttulos no mercado; pr-pagamentos e operaes de troca dos ttulos emitidos por novos ttulos distintos; garantia do principal e/ou juros para trs dos sete bnus emitidos (Par Bond, Discount Bond e Flirb); mecanismo de entrega escalonada das garantias, a partir da emisso de ttulos transitrios, com a constituio de uma garantia do principal e do restante em at quatro prestaes sucessivas, o que foi cumprido pelo Brasil em 15 de outubro de 1995, antecipando a entrega da ltima prestao em seis meses. Foi a partir de 1994, com a introduo da ncora cambial que vigorou at 1999, que o endividamento se acelerou com os efeitos criados pelo Plano Real: os crescentes lanamentos de bnus brasileiros nos principais mercados mundiais, os trs emprstimos feitos junto ao FMI e, principalmente, os crescentes dficits em transaes correntes em razo do persistente dficit comercial durante a maior parte da vigncia da ncora cambial e o crescente dficit da conta servios, em razo da elevao do pagamento do servio da dvida externa e da remessa de lucros das empresas desnacionalizadas48, aumentando ainda mais a vulnerabilidade externa. Em 1994, o setor privado detinha 41,1% do total da dvida externa (US$ 60,9 bilhes), atingindo, em 1998, quase 60% (US$ 140,2 bilhes). A inverso da participao relativa dos dois setores foi efetivada a partir de 1997, em razo da poltica de estabilizao, que estimulou o setor privado a captar dlares a partir dos diferenciais das taxas de juros interna e externa (FILGUEIRAS, 2000, p. 184). Embora essas captaes privadas feitas pelos bancos implicassem o risco da desvalorizao cambial, bancos e grandes empresas passaram a fazer proteo cambial (hedge) a partir de ttulos com variao cambial. Com a ocorrncia da desvalorizao, o Estado acabou assumindo os prejuzos, socializando as perdas com a populao.47

Parte dessa dvida de responsabilidade do setor pblico tinha surgido no processo de estatizao da dvida externa feita por grandes empresas e grandes bancos privados no final dos anos 1970. 48 A maior liberdade para remeter lucros e dividendos para o exterior devido ao aumento da desnacionalizao constituiu-se, em 1997, no grande vilo do balana de Pagamentos, quando as remessas cresceram 136%.

O lanamento de bnus brasileiros nos principais mercados de capitais mundiais em vrias moedas49, de 1997 a 2003, totalizou US$ 39 bilhes, sendo US$ 28 bilhes diretamente em dlar, US$ 5,7 bilhes em euros, US$ 3,4 bilhes em ienes, US$ 1 bilho em marcos alemes, US$ 443 em liras e US$ 244 milhes em libras. Na Amrica Latina, medida que se restabeleceu o fluxo de capitais, a emisso de bnus dos pases no mercado internacional chegou a US$ 302 bilhes de 1991 a 2000, significando uma nova etapa de estatizao do endividamento. Em se tratando da Amrica Latina, o processo de endividamento externo, nos ltimos 20 anos, partiu das moratrias mexicana e argentina, em 1982, e chegou moratria argentina e equatoriana, em 2001. Desse modo, a moratria constituiu-se em ponto de partida e de chegada desse crculo vicioso de endividamento50. As economias subdesenvolvidas da Amrica Latina, como receptoras de capital especulativo e usurias de tecnologias j obsoletas, tiveram, na crescente sada de capitais para pagar juros e amortizao das dvidas externas, dificuldades para a formao bruta de capital que poderia gerar desenvolvimento econmico. A dvida externa pblica e privada da Argentina de 1980 a 1999 cresceu 492%, passando de US$ 27 bilhes, em 1980, para US$ 160 bilhes, em 1999. Sua fase de maior acelerao foi de 1991 a 1999, quando cresceu 146%, saindo de US$ 65 bilhes, em 1991, para US$ 160 bilhes, em 1999. Essa expanso da dvida ocorreu mesmo quando o servio da dvida externa (pagamento de amortizao e juros) alcanou, no perodo de 1976 a 2000, o volume de US$ 212 bilhes (CONESA, 2000). Movimento semelhante ocorreu no Mxico, que em 1980 tinha uma dvida externa de US$ 33,8 bilhes e alcanou US$ 92,3 bilhes em 1998, o que corresponde a um crescimento de 273%. O endividamento pblico, no mesmo perodo, saltou de 678 milhes de pesos, em 1980, para 343 bilhes de pesos, em 1998. Em 1995, essa dvida, sob os efeitos da segunda crise mexicana, era de 130 bilhes de pesos. Todavia, a maior expanso percentual ocorreu logo aps a moratria mexicana, em 1982, quando os bancos foram nacionalizados e a dvida pblica, que era de 2,7 bilhes de pesos, atingiu 108 bilhes de pesos, em 1988. A dvida externa bruta da Amrica Latina e Caribe, que em 1991 era de US$ 460 bilhes, chegou a US$ 750 bilhes em 2000, apesar do repasse do servio da dvida desses49

So ttulos denominados em dlares, negociados globalmente e que pagam taxas de juros fixas. Alguns foram emitidos em operaes voluntrias de troca, isto , foram subscritos com Ttulos Brady. 50 Nos ltimos anos, Mxico e Brasil no chegaram moratria formalmente devido aos volumosos emprstimos do FMI e do Tesouro dos Estados Unidos, especialmente no caso mexicano.

pases. Em agosto de 2002, voltaram ao cenrio econmico brasileiro quase todos os ingredientes do modelo de ajuste que condenou o pas a praticamente duas dcadas perdidas, a de 1980 e a de 1990: a escassez nas linhas de crdito comercial foi a maior j vista no mercado brasileiro, superando as crises da dvida externa de 1983, 1987 e 1989. Entre 1997 e 2002, a transferncia lquida de recursos financeiros do mundo subdesenvolvido para os pases ricos foi de quase US$ 700 bilhes, ou seja, muito mais do que o PIB brasileiro. Segundo dados fornecidos pelo Banco Mundial, entre 1982 e 2000 a Amrica Latina pagou, pelos emprstimos financeiros tomados, US$ 1,45 trilho, o que equivale a mais de quatro vezes o montante total da dvida original. Sobre o impacto da reaganomia no Brasil, o quadro abaixo descreve como a dvida efetivamente evoluiu e faz simulao sobre sua trajetria caso a taxa de juros tivesse se mantido em 6%, que vigorava antes. Nessa simulao, o que foi enviado para os credores desde ento seria capaz de pagar toda a dvida em 1989, mesmo computando os emprstimos recebidos aps 1978, o que levaria o pas condio de credor 51. Segundo este quadro, de 1978 a 2002 os pagamentos de juros e amortizaes da dvida externa atingiram US$ 684 bilhes (soma maior que o valor de US$ 527 bilhes recebido em emprstimos). Tal fato no impediu que a dvida saltasse de US$ 52,8 bilhes, em 1978, para US$ 229 bilhes, em 2002. Com isso o pas pagou US$ 157 bilhes a mais do que recebeu, significando transferncia lquida de recursos para o exterior, e ainda assim a dvida se multiplicou por quase cinco. Segundo Mandel (1990, p. 284), o fato de a dvida ser lavrada em dlares permitiu que todos os tomadores de emprstimos ficassem sujeitos poltica monetria dos Estados Unidos. Por esse motivo, a poltica de Reagan implicou a exploso das dvidas dos pases subdesenvolvidos e o aumento das transferncias de recursos para os pases centrais. Quadro 1 Dvida externa brasileira, 1978-2002, efetiva e projetada Dvida que ocorreria taxa de juros de 6% ao ano

Dvida efetivamente ocorrida

51

Extrado do Boletim da Coordenao da Auditoria Cidad da Dvida n. 6 17 de abril de 2003[por favor, inclua como entrada da lista de referncias, completando com os dados faltantes]. O Grupo da Auditoria Cidad da Dvida concluiu a anlise dos 28 contratos de endividamento externo brasileiro disponibilizados pelo Senado Federal, referentes ao perodo de 1964 a 1972, e elaborou publicao com base naqueles, divulgada no FSM 2003 e disponvel na internet, na pgina http://www.unafiscomg.com.br/

Transfern Ano Emprsti Amortiza Juros mos es pagos Dvida Final ano cia do Lquida para credores A1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Total 15.389 11.991 13.315 16.782 12.451 7.778 8.768 5.673 4.233 4.723 14.857 29.632 3.127 2.990 30.835 14.039 55.741 36.404 32.597 29.555 33.213 35.437 36.109 41.265 30.188 527.091

Emprsti Dvida no incio do mos recebidos/ amortiza es pagas F= A -B5.606 8.305 10.541 5.499 915 2.300 -2.818 -7.314 -9.097 -369 -4.353 -5.538 -4.840 22.263 4.061 5.330 25.381 18.177 841 1.833 -13.189 1.419 6.114 -261

Juros devidos (6%)

Juros efetivame nte pagos X

Dvida final ano do

os ano

B-5.324 -6.385 -5.010 -6.242 -6.952 -6.863 -6.468 -8.491 -11.547 -13.820 -15.226 -33.985 -8.665 -7.830 -8.572 -9.978 -50.411 -11.023 -14.419 -28.714 -31.381 -48.627 -34.690 -35.151 -30.449 -446.220

C-2.696 -4.186 -6.311 -9.161 -11.353 -9.555 -10.203 -9.659 -9.327 -8.792 -9.832 -9.633 -9.748 -8.621 -7.253 -8.280 -6.337 -8.158 -9.173 -10.388 -11.947 -15.237 -14.649 -14.877 -13.130 -238.507

D52.800 55.803 64.245 73.963 85.304 93.556 102.040 105.171 111.203 121.188 113.511 115.506 123.439 123.910 135.949 145.726 148.295 159.256 179.935 199.998 234.694 241.200 236.157 226.067 229.228

AB-C E7.369 1.421 1.994 1.380 -5.854 -8.641 -7.903 -12.477 -16.641 -17.889 -10.201 -13.986 -15.286 -13.461 15.010 -4.219 -1.007 17.223 9.005 -9.548 -10.114 -28.426 -13.230 -8.763 -13.391 -157.636 52.800 57.389 62.826 67.975 66.199 61.531 57.320 48.282 34.538 18.721 9.644 -3.763 -19.275 -33.893 -20.916 -26.390 -28.981 -13.497 -5.302 -15.168 -26.192 -56.190 -72.791 -85.922

G=E 0,063.168 3.443 3.770 4.078 3.972 3.692 3.439 2.897 2.072 1.123 579 -226 -1.157 -2.034 -1.255 -1.583 -1.739 -810 -318 -910 -1.572 -3.371 -4.367 -5.155

C-4.186 -6.311 -9.161 -11.353 -9.555 -10.203 -9.659 -9.327 -8.792 -9.832 -9.633 -9.748 -8.621 -7.253 -8.280 -6.337 -8.158 -9.173 -10.388 -11.947 -15.237 -14.649 -14.877 -13.130

E+F+G+C57.389 62.826 67.975 66.199 61.531 57.320 48.282 34.538 18.721 9.644 -3.763 -19.275 -33.893 -20.916 -26.390 -28.981 -13.497 -5.302 -15.168 -26.192 -56.190 -72.791 -85.922 -104.468

Fonte: Relatrio Resumido da Execuo Oramentria do Governo Federal e Outros Demonstrativos, dezembro/2002, p. 12. Disponvel no site: http://www.stn.fazenda.gov.br/contabilidade_governamental/gestao_orcamentaria.asp; Durante os dois mandatos de FHC, o Brasil pagou US$ 59,4 bilhes a mais do que recebeu dos credores internacionais e, mesmo assim, a dvida externa subiu de US$ 148 bilhes,

em 1994, para US$ 229 bilhes, em 200252. A abertura comercial e a sobrevalorizao do real contriburam para que a balana comercial sasse de um saldo de US$ 10 bilhes por ano para um dficit de US$ 5 bilhes anuais. Para tanto, o pas teve de se endividar externamente, tanto em emprstimos convencionais como no chamado investimento estrangeiro direto, que resultou na aquisio de empresas nacionais por empresas estrangeiras e privatizao das estatais, atingindo cerca de US$ 155 bilhes. Por outro lado, empresas compradas por estrangeiros passaram a remeter lucros para o exterior, fazendo com que essas remessas aumentassem de US$ 1,5 bilho por ano, na primeira metade da dcada de 1990, para US$ 5 bilhes. Os juros da dvida externa tambm aumentaram de US$ 10 bilhes anuais para US$ 15 bilhes. De 19995 a 2002, o capital que entrou no Brasil na forma de emprstimos e investimentos, que chegou ao montante de US$ 192 bilhes, foi quase totalmente devolvido para o exterior na compra de produtos e servios importados e nas remessas de juros e lucros das multinacionais aqui instaladas, que atingiu US$ 187 bilhes. Tabela 3 - Transaes do Brasil com o exterior (em US$ milhes) perodo FHC (1995-2002)Dvida externa

Ano Emprstimos Amortizaes Juros1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Total 36.404 30.772 29.766 32.877 35.437 36.109 41.265 30.188 272.818 -11.023 -14.443 -28.715 -31.587 -48.627 -34.690 -35.151 -30.449 -234.685 -8.158 -9.173 -10.388 -11.947 -15.237 -14.649 -14.877 -13.130 -97.559

Transferncia Estoque da Transaes Conta de capital e correntes (1) financeira (2) lquida para os dvida credores externa17.223 7.156 -9.337 -10.657 -28.427 -13.230 -8.763 -13.391 -59.426 159.256 179.935 199.998 234.694 241.200 236.157 226.067 229.228 -18.384 -23.502 -30.449 -33.450 -25.420 -24.637 -23.213 -7.757 -186.812 29.359 32.119 26.089 20.074 14.277 30.215 27.925 12.003 192.060

Fonte: Banco Central do Brasil [a fonte deve ser uma referncia que conste da lista] Nota: Valores positivos significam entrada de recursos no pas. Valores negativos significam sada de recursos do pas. (1) Inclui exportaes/importaes de produtos e servios, remessas de juros e lucros, viagens internacionais e transferncias unilaterais. (2) Inclui emprstimos, investimento direto e em carteira.

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A dvida, que em dezembro de 1995 era de US$ 165,5 bilhes, atingiu, ao final de 2001, US$ 264,5 bilhes, tendo crescido US$ 100 bilhes em seis anos.

Para tentar atrair mais capital estrangeiro para fechar as contas externas, o governo aumentou as taxas de juros pagas aos credores da dvida interna, o que serviu para atrair investidores estrangeiros em condies privilegiadas. Com estas altas taxas de juros, a Unio, os estados e os municpios tiveram de pagar juros da dvida interna com dinheiro vivo do oramento pblico, a partir do crescente supervit primrio. Para essa finalidade, o governo aumentou brutalmente a carga tributria, de 29,5% para 36,5% do PIB. Considerando-se somente a Dvida Mobiliria Federal, verifica-se que ela subiu de R$ 118 bilhes, em 1995, para R$ 687 bilhes, em 2002. Tabela 2 - Pagamentos de juros da dvida interna Unio, estados e municpiosArrecadao de tributos do governo (R$ milhes) 187.403 218.559 252.813 271.752 308.915 358.017 406.865 476.570 2.480.894 Participao (%) dos juros na arrecadao 26,01 20,59 17,77 26,71 41,19 24,42 25,96 40,00 29,11 Participao (%) dos juros no PIB 7,41 5,78 5,16 7,94 13,24 8,05 8,92 14,25 9,27 Juros pagos em dinheiro vivo supervit primrio (R$ milhes) 1.723 -740 -8.310 106 31.087 38.122 43.655 52.364 158.007 Dvida Interna Federal (R$ milhes) 118.490 176.210 255.500 324.000 415.000 516.100 624.100 687.300 -

Ano 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Total

Fonte: Banco Central e Receita Federal. Nota: Os juros nominais incluem a variao cambial.

De 1964 a 2002, o servio da dvida externa (amortizao e pagamento de juros) chegou a US$ 617 bilhes53 ou R$ 1,851 trilho (quase dois PIBs de 2002), sendo que somente as amortizaes chegaram a US$ 349 bilhes (R$ 1.049 trilho) e as despesas com juros totalizaram US$ 269 bilhes (R$ 807 bilhes). O fato mais marcante desses dados que a maior parte desses valores ocorreu justamente no governo FHC (1994 a 2002). Nesse perodo, o servio da dvida representou US$ 372 bilhes ou 60,3% de todo o perodo estudado. As despesas de amortizao foram de US$ 246 bilhes ou 70% de toda a amortizao do perodo considerado. As despesas com juros foram de US$ 127 bilhes ou 47,3% do perodo, ou seja,53

Este levantamento se diferencia do outro elaborado pelo Grupo Auditoria Cidad da Dvida porque dele esto excludos os juros atrasados e refinanciados, as amortizaes atrasadas e refinanciadas, os bridge-loans para os anos de 1983 e 1988. E, a partir de 1983, esto excludas as operaes em moeda nacional.

nessa fase houve maior nfase na amortizao da dvida, sem que se deixassem de pagar os juros. A elevao dos juros, em decorrncia da poltica econmica de Reagan, acabou criando um problema para os capitalistas que ainda estavam na produo. Isto porque, medida que se elevavam os juros, exigia-se um aumento do grau de explorao do trabalho por parte do capital industrial (somado queda da taxa de lucro), para que se pudesse repassar uma parte maior do lucro industrial para os bancos e ainda motivar um lucro que os mantivesse na produo. No Brasil, os bancos estatais tambm se tornaram prisioneiros do dilema do Estado e sua crise financeira, pois passaram a ter na intermediao dos ttulos pblicos seu principal produto financeiro. J o pagamento de juros ou amortizao da dvida pblica o mecanismo por onde o Estado retira recursos dos trabalhadores, por meio dos impostos diretos e indiretos, e os remete diretamente aos banqueiros e fundos de penso. Esse processo resultou da crise fiscal e financeira do Estado, a partir dos anos 1970, e da exploso da dvida pblica, que estabeleceu uma nova relao entre Estado, bancos e economia. O ponto culminante desse fenmeno foi a generalizao do neoliberalismo, visando a resolver a crise capitalista pela renegociao da dvida externa, das aberturas comercial e financeira, das privatizaes e da retirada do papel desenvolvimentista do Estado. A designao de pases devedores atribuda exclusivamente aos pases subdesenvolvidos revela-se um pouco inadequada, j que mesmo os Estados Unidos possuem grande dvida externa e uma dvida pblica ainda mais elevada, correspondendo a mais de 60% de seu PIB54. Assim sendo, importante separar esses devedores por suas posies na escala hierrquica imperialista e por suas possibilidades de pagamento destes ttulos. Nesse sentido, seria mais correto afirmar que h pases devedores imperialistas e pases devedores subdesenvolvidos e dominados pela poltica monetria dos pases centrais. O primeiro grupo, principalmente os Estados Unidos, conseguiu com a queda da inflao transformar seus ttulos de dvida em ativos com rentabilidade e segurana, possibilitando juros reais maiores e, por conseguinte, maiores retornos aos aplicadores privados. O segundo grupo, que tambm ofereceu54

Os Estados Unidos, que em menos de 20 anos saltaram de 35% para quase 70%; a Itlia, que deve 124%; a Blgica, que deve 132%; a Sucia, 95%; e a Alemanha, 60% (FINANCIAL TIMES, 1995, apud GREIDER, 1998). A diferena que aqueles pases, por serem imperialistas, conseguem rolar suas dvidas com impacto menor, pois se endividam na prpria moeda.

juros reais ainda mais elevados por falta de proximidade do centro de deciso imperialista e pela fragilidade de suas economias, acabou introduzindo polticas de estabilizao complementares poltica de estabilizao dos pases centrais, incluindo a privatizao, a abertura comercial e a sobrevalorizao cambial. A diferena central entre esses pases reside na capacidade ou no de rolarem suas dvidas pblicas em longo prazo, de modo a no comprometerem o prprio pagamento, como no caso argentino. O baixo crescimento do PIB dos pases ricos, especialmente dos europeus e do Japo, dado o baixo nvel de reinvestimento da riqueza privada extrada dos trabalhadores, acabou por contribuir para um crescente deslocamento de parte desse capital-dinheiro para a aquisio desses ttulos em seus respectivos pases. O caso japons ilustra melhor esse processo, visto que j na metade dos anos 1980 os aplicadores japoneses chegaram a ter US$ 1,7 trilho em ttulos do Tesouro dos Estados Unidos. O endividamento como forma de financiar o Estado tem desdobramento diferente quando tal processo implica ou no a conquista de posio imperialista. No caso dos Estados Unidos, a conquista da hegemonia, nas vrias etapas analisadas, permitiu que, mesmo quando da exploso do endividamento, como nos anos 1980 e 1990, as implicaes fossem diferenciadas das dos pases no-imperialistas. Se num pas subdesenvolvido a exploso da dvida exige elevao da taxa de juros, encurtamento do prazo de rolagem, estrangulamento das dvidas pblica e privada por meio de moratrias, desvalorizao da moeda e fuga de capitais, nos Estados Unidos verifica-se, a partir da metade dos anos 1980, alongamento dos ttulos pblicos, valorizao do dlar, atrao de capitais externos e manuteno do dlar como moeda internacional. Os efeitos da poltica de estabilizao da economia e da moeda dos Estados Unidos nos anos 1980 desestruturaram o conjunto das economias subdesenvolvidas e acabaram por amplificar ainda mais a dependncia dessas economias em relao aos pases imperialistas. Com isso, estes ltimos transformaram as imensas dvidas em instrumentos de dominao, que levaram ao completo monitoramento de suas polticas econmicas pelo FMI e pelo Banco Mundial. Com tudo isso em mos, os Estados Unidos tentaram e conseguiram, em parte, repassar periferia os efeitos de sua poltica, buscando contornar a crise em seu epicentro. Todavia, a experincia dos anos 1990 demonstrou que mesmo o Estado imperialista tem

limitaes para contornar efetivamente a crise capitalista. Entretanto, os Estados Unidos55 firmaram-se como pas smbolo do rentismo, com o Estado absorvendo o capital inativo nacional e internacional para rolar sua dvida, ao transformar seus ttulos pblicos em refgio seguro para os capitais mundiais em momentos de incerteza. Com a crise de Bretton Woods e a institucionalizao do euromercado, constituiu-se um grande escoadouro da liquidez mundial, que, quando estourou, mergulhou as economias subdesenvolvidas e do ex-bloco sovitico numa grande onda de endividamento externo, culminando com a crise das dvidas e as moratrias da Argentina e do Mxico, em 1982. Nos anos 1990, quando os Estados Unidos baixaram a taxa de juros para contornar a recesso de 1991, observou-se um novo aumento da liquidez mundial e uma nova onda de endividamento externo. Dessa forma, as economias subdesenvolvidas tornaram-se refns do excedente monetrio produzido pelos pases ricos, bancando parte do nus que deveria ser deles. A dimenso da economia dos Estados Unidos faz com que qualquer alterao de sua poltica monetria, seja de contrao ou expanso, tenha repercusso imediata sobre a economia mundial, sendo que os demais bancos centrais pouco podem fazer para contrapor tal fluxo. A viabilizao dessas polticas resultou em parte dos novos papis e funes do Banco Mundial e do FMI, os quais, desde o final dos anos 1970, sofreram profundas mudanas, transformando-se em verdadeiras agncias de gesto dos interesses do capital financeiro internacional. O resultado provisrio desse processo, foi a desvalorizao das moedas, a ampliao das dvidas externa e interna, a recesso, o desemprego, a desnacionalizao do setor produtivo e financeiro. A acelerao do processo de estatizao da dvida externa privada e sua c