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  • DIREITO E LEGITIMIDADE EM FACE DA GLOBALIZAO

    - UM ENFOQUE PRAGMTICO-SISTMICO -

    Simone Barbisan Fortes

    (Juza Federal da 1 Vara do Juizado Especial Federal Cvel da Circunscrio Judiciria

    de Passo Fundo (RS). Professora de Direito Previdencirio da ESMAFE (Escola

    Superior da Magistratura Federal) e do IDC (Instituto de desenvolvimento Cultural).

    Mestranda em Teoria do Estado, Hermenutica, Jurisdio e Sistemas Jurdicos pela

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Co-autora das obras: Juizados

    Especiais Federais: primeiras impresses, publicada pela Editora Gnesis, em 2001, e

    Temas Atuais de Direito Previdencirio e Assistncia Social, publicada pela Editora

    Livraria do Advogado em 2003.)

    SUMRIO

    I. INTRODUO. II. DIREITO E LEGITIMIDADE NO ENFOQUE PRAGMTICO-

    SISTMICO. 2.1. Risco, complexidade e dupla contingncia as expectativas

    cognitivas e normativas e o papel do direito. 2.2. Especializao funcional de Sistemas

    Autopoiticos. 2.3. Legitimidade no enfoque pragmtico-sistmico. III.

    GLOBALIZAO E REGULAO SOCIAL O DIREITO REFLEXIVO. 3.1. A

    crise dos sistemas jurdicos em face da globalizao. 3.2. Onde fica o direito em face da

    globalizao? (perspectivas para o direito reflexivo). IV. CONSIDERAES FINAIS.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.

    I. INTRODUO

    Pretende-se, no presente estudo, considerada a crise vivenciada

    pelo direito moderno em face da globalizao, analisar sua fonte de legitimidade

    segundo o modelo espistemolgico pragmtico-sistmico, buscando aportes em especial

    em Luhmann, Habermas e Teubner para chegar ao direito reflexivo como novo modelo

    jurdico apto a responder s necessidades do mundo contemporneo.

    1

  • II DIREITO E LEGITIMIDADE NO ENFOQUE PRAGMTICO-SISTMICO

    2.1. Risco, complexidade e dupla contingncia as expectativas cognitivas e

    normativas e o papel do direito

    Na matriz epistemolgica sistmica autopoitica (ou

    pragmtico-sistmica), inaugurada por Luhmann, supera-se o normativismo ainda

    imperante na dogmtica jurdica para atingir-se uma anlise sociolgica do Direito.

    Nela, assumem relevante papel os conceitos de risco, contingncia e complexidade.

    Segundo LUHMANN1, o homem vive em um mundo

    sensorialmente constitudo de acordo com seu limitado potencial orgnico de percepo

    e assimilao, ou seja: existem muito mais possibilidades do que se possa realizar. Isto

    constitui o que denomina de complexidade: multiplicidade de possibilidades ou seleo

    forada. Diante desta multiplicidade, o homem chamado a fazer escolhas que podem

    apontar para experincias diferentes das esperadas, ou seja, podem gerar

    desapontamentos. Este perigo de desapontamento constitui-se naquilo que denomina

    de contingncia. Ademais, no mundo contingente, o homem tem de considerar no s

    suas perspectivas, como tambm a dos demais homens, o que se constitui na dupla

    contingncia. Assim que, diante de infinitas possibilidades, o homem est sempre em

    face da necessidade de assumir estes riscos, potencializados pela dupla contingncia, e

    em razo dessa situao existencial desenvolvem-se estruturas correspondentes de

    assimilao da experincia, tendentes a absorver e controlar o problema da

    complexidade e contingncia, que, possibilitando um bom resultado seletivo, constituem

    sistemas, estabilizando-se relativamente frente a desapontamentos. preciso considerar,

    porm, que diante da dupla contingncia as estruturas de assimilao devem tornar-se

    mais complexas e variveis, considerando as expectativas no somente individuais, e

    justamente aqui que surge o direito:

    Para encontrar solues bem integrveis, confiveis, necessrio

    que se possa ter expectativas no s sobre o comportamento, mas

    sobre as prprias expectativas do outro. Para controle de uma

    complexo de interaes sociais no apenas necessrio que cada um

    1 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro, 1983, p. 45-53.

    2

  • experimente, mas tambm que cada um possa ter uma expectativa

    sobre a expectativa que o outro tem dele. Sob as condies da dupla

    contingncia, portanto, todo experimentar e todo agir social possui

    uma dupla relevncia: uma ao nvel das expectativas imediatas de

    comportamento, na satisfao ou no desapontamento daquilo que se

    espera do outro. Na rea de integrao entre esses dois planos que

    deve ser localizada a funo do normativo - e assim tambm do

    direito.2 (sem grifo no original)

    Assim que, diante da complexidade e contingncia do mundo,

    fazem-se necessrios mecanismos de reduo de complexidade que permitam seno

    anular ao menos controlar o riscos de desapontamento. Na lio de LUHMANN3, a

    referncia complexidade e contingncia no mbito da experimentao acrescenta s

    expectativas concretas a funo de estruturas, cuja capacidade de reduo complexidade

    e do risco consiste justamente no obscurecimento das alternativas. Tais expectativas

    podem ser cognitivas ou normativas. No nvel cognitivo, so tratadas expectativas que,

    em caso de desapontamento, so adaptadas/absorvidas pela realidade (isto , h

    disposio de assimilao na forma de aprendizado, embora isto nem sempre seja

    consciente), enquanto que, no nvel normativo, ao contrrio, as expectativas, mesmo no

    satisfeitas, no so abandonadas (isto , caracterizam-se pela determinao em no

    assimilar desapontamentos). Com base nesta diferenciao a sociedade poderia

    estabelecer um equilbrio entre expectativas que devem adaptar-se realidade e aquelas

    que devem permanecer constantes, de modo que seriam deslocadas para o nvel

    normativo aquelas que fossem vitais segurana e integrao social das

    expectativas. Salienta Luhmann, porm, que desapontamentos de expectativas

    cognitivas nem sempre levam adaptao/mudana, pois podem ser interpretados como

    comportamentos desviantes, e tambm assim as expectativas normativas no esto

    atadas resistncia assimilao, at porque a elasticidade de algumas normas

    permitem procedimentos adaptativos (do que seria exemplo o aperfeioamento da

    legislao pela jurisprudncia). E esclarece:

    A contribuio da expectativa normativa para o desenvolvimento de

    sistemas complexos est relacionada a sua tendncia a dilatar as 2 Ibid, p.47-48.3 Ibid., p. 53-66.

    3

  • possibilidades de expectativas , jutamente com sua interao

    contraftica. (...) Esse mecanismo pode ser caracterizado por

    fundamental, pois ele que possibilita a formao do direito no no

    sentido da norma superior, justificando a inferior, ou do estvel

    sustentando o instvel, mas sim ao contrrio: aquele mecanismo que

    gera as possibilidades do esperar-se normativamente, com relao ao

    qual o direito pode ser uma estrutura seletiva.4

    Assim que o Direito seria a institucionalizao de expectativas

    comportamentais normativas, que, para solucionar o problema da discrepncia entre

    complexidade e diferenciao sociais, de um lado, e processos de institucionalizao, de

    outro, vale-se da diferenciao de papis e sistemas parciais com poder decisrio sobre

    o direito, com efeito vinculativo. ROCHA sintetiza:

    Nesta ordem de idias, a funo do Direito reside na sua eficincia

    seletiva, na seleo de expectativas comportamentais que possam ser

    generalizadas em todas as dimenses. O Direito assim a estrutura

    de um sistema social que se baseia na generalizao congruente de

    expectativas comportamentais normativas.

    O Direito, para Luhmann, embora visto como uma estrutura,

    dinmico devido permanente evoluo provocada pela sua

    necessidade de constantemente agir como uma das estruturas sociais

    redutoras da complexidade das possibilidades do ser no mundo.

    Assim, esta complexidade heterognea, causada pela dupla

    contingncia, combatida pelos processos de identificao estrutural,

    somente possveis com a criao de diferenciaes funcionais.5

    2.2. Especializao funcional de Sistemas Autopoiticos

    4 Ibid., p. 76.5 ROCHA, Leonel Severo da .Trs Matrizes da Teoria Jurdica. In Anurio do Programa de Ps-graduao em Direito Mestrado e Doutorado, 1998-1999. So Leopoldo (RS): UNISINOS, 1999, p. 131.

    4

  • Na teoria autopoitica, a especializao funcional de sistemas

    pe-se como um redutor da complexidade da sociedade. Parte-se da noo de que a

    prpria sociedade um sistema autopoitico composto por atos de comunicao que

    geram outros atos de comunicao e, neste circuito comunicativo vo-se desenvolvendo

    circuitos especficos, sendo que alguns deles atingem grau to elevado que se tornam

    sistemas autopoiticos de segundo grau. Estes so unidades de comunicao autnomas

    (que vivem em clausura operacional) e auto-reprodutivas (geram seus prprios

    elementos, estruturas, processo e fronteiras, constrem seu meio envolvente e sua

    identidade), consoante explicitado por TEUBNER.6

    Importa referir que, sob a tica pragmtico-sistmica

    luhmanniana, o Direito um sistema autopoitico que, na lio de TEUBNER7, se auto-

    reproduz sobre um cdigo binrio prprio (vlido/invlido, legal/ilegal ou direito/no-

    direito) , estando, assim, em clausura sistmica, porm sofrendo interferncia

    intersistmica, ou seja: o direito um sistema autnomo, que opera de modo fechado,

    porm cognitivamente aberto s interferncias vindas de outros sistemas, para filtr-las

    em seu prprio cdigo binrio. Segundo GUERRA FILHO8, o Direito, em uma

    sociedade com alta diferenciao funcional, mantm sua autonomia em face dos demais

    sistemas (como economia, religio, poltica, etc.), na medida em que opera em seu

    cdigo especfico e no por critrios externos, fornecidos por outros sistemas, porm ao

    mesmo tempo, sem perder o contedo jurdico, realiza um acoplamento estrutural com

    outros sistemas sociais, para o que desenvolve cada vez mais procedimentos de

    reproduo jurdica, procedimentos legislativos, administrativos, judiciais, contratuais.9

    2.3. Legitimidade no enfoque pragmtico-sistmico

    O enfoque sistmico, relata CADEMARTORI, demarca a

    passagem de um conceito de legitimidade como posse, por parte do legitimandum, de

    6 TEUBNER, Gunter. O Direito como Sistema Autopoitico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 139-140.7 Ibid., p. 140-4.8 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Ps-Moderna: introduo a uma teoria social sistmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 70.9 Ibid., p. 71.

    5

  • uma qualidade a ele inerente e reconhecida pelo legitimans, para um conceito de

    legitimidade como resultante de um processo de intercmbio de prestaes entre

    legitimandum e legitimans, nas sociedades avanadas, marcadas por crescente

    diferenciao ou complexidade, ou seja, uma passagem da legitimidade como

    qualidade legitimao como processo.10

    Segundo LUHMANN, a legitimidade do Direito no pode passar

    pela noo de consenso, uma vez que a obteno do consenso fctico, assim entendido

    a experimentao sincrnica no tempo e em seu sentido, seria evento muito raro. As

    instituies, para ele, fundamentam-se no na concordncia ftica de opinies, mas sim

    no sucesso ao superestim-as: sua continuidade estar garantida enquanto quase todos

    suponham que quase todos concordem. 11 No que, com isto, sejam totalmente abstratas

    ou desvinculadas da realidade, mas sua homogeneidade que fictcia e, por isso

    mesmo, sensvel comunicao de fatos (o que explica sua vulnerabilidade a pesquisas

    de opinio, plebiscitos, etc.). Para ele, a legitimidade do efeito vinculante do Direito

    estaria na combinao da existncia de dois processos de aprendizado no processo

    decisrio: a daquele que decide (no sentido da existncia de processos que regulem a

    deciso) e daquele que sofre os efeitos da deciso (no sentido da existncia de processos

    que regulem a aceitao de decises sobre expectativas normativas), ou seja, a

    legitimidade esteia-se nos processos coordenados de aprendizado, e no no carter

    verdadeiro das pretenses vigentes.

    Tal concepo explica porque legitimao e democracia so

    fenmenos referenciados: ambos os conceitos baseiam-se na necessidade de

    aprendizado na esfera das expectativas normativas, o que opera uma elevao dos

    riscos do direito pela introduo de atitudes cognitivas. Sendo assim, o processo

    democrtico tem de incluir mecanismos que permitam supor que os atingidos pelas

    decises as assimilem, incorporando-as como premissas de seu comportamento

    subseqente, o que alcanado pela eficcia simblica generalizante da fora fsica e

    pela garantia de participao em processos. Ou seja, trata-se de uma legitimidade pelo

    procedimento que LUHMANN assim descreve:

    10 CADEMARTORI, Srgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 117.

    11 Op. cit., p. 80-81 e 84-85.

    6

  • Na ao conjunta dessas diferentes constelaes de generalidade e

    especificao, regulamentao sistmica e liberdade, complexidade e

    reduo, neutralizao de papis e auto-enredamento, surge a

    impresso generalizada de que os frustrados por decises

    vinculativas no podem recorrer ao consenso institucionalizado, mas

    tm de assimil-las. A retrica do processo, qual o participante se

    submete atravs da prpria participao, refora essa impresso,

    tornando-a uma norma. Dessa forma, sugere-se a todos que esperem

    irrefutavelmente que terceiros esperem normativamente que todos os

    atingidos se orientem cognitivamente, isto , dispostos a assimilar o

    que for normatizado por decises vinculativas. Essa a estrutura da

    legitimidade do direito: um misto cognitivo/normativo de expectativas

    sobre expectativas normativas de expectativas cognitivas sobre

    expectativas normativas. 12

    J HABERMAS, partindo de sua teoria do agir comunicativo,

    toma como ponto de partida da legitimidade do direito positivo os direitos que os

    cidados tm que atribuir uns aos outros, e esclarece:

    (...) o direito no pode satisfazer apenas s exigncias funcionais de

    uma ordem complexa, devendo levar em conta tambm as condies

    precrias de uma integrao social que se realiza, em ltima instncia,

    atravs das realizaes de entendimento de sujeitos que agem

    comunicativamente, isto , atravs da aceitao de pretenses de

    validade. O direito moderno tira dos indivduos o fardo das normas

    morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade das

    liberdades de ao. Estas obtm sua legitimidade atravs de um

    processo legislativo que, por usa vez, se apia no princpio da

    soberania do povo. Com o auxlio dos direitos que garantem aos

    cidados o exerccio de sua autonomia poltica, deve ser possvel

    explicar o paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da

    legalidade.

    Por que se trata de um paradoxo? Porque esses direitos dos cidados

    tm, de um lado, a mesma estrutura de todos os direitos, os quais

    12 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Edies Tempo Brasileiro, 1983, p. 67-68.

    7

  • abrem ao indivduo esferas da liberdade de arbtrio. (...) o processo

    legislativo democrtico precisa confrontar seus participantes com as

    expectativas normativas das orientaes do bem da comunidade,

    porque ele prprio tem que extrair sua fora legitimadora do

    processo de um entendimento dos cidados sobre regras de sua

    convivncia.13 (sem grifo no original).

    E esclarece:

    (...) as ordens modernas do direito s podem ser legitimadas a partir

    de fontes que no o colocam em contradio com as idias de justia

    e os ideais de vida ps-tradicionais que se tornaram decisivos para a

    cultura e a conduta de vida. Argumentos em prol da legitimidade do

    direito devem ser compatveis com os princpios morais da justia e

    da solidariedade universal sob pena de dissonncias cognitivas

    bem como com os princpios ticos de uma conduta de vida auto-

    responsvel, projetada conscientemente, tanto de indivduos, como de

    coletividades.14

    Segundo NEVES15, para Habermas, diversamente do sentido

    sistmico proposto por Luhmann, o direito no sistema funcional, que se auto-regula e

    autolegitima, precisando ser fundamentado em procedimento racional, isto , funda-se

    moralmente. Opondo-se concepo luhmanniana da positividade como autonomia

    sistmica, Habermas afirma que os sistemas jurdicos no adquirem autonomia para si

    prprios, mas somente so autnomos na medida em que procedimentos legislativos e

    jurisdicioniais institucionalizados garantam formao imparcial, de modo que no direito

    e na poltica passa a existir uma racionalidade tico-procedimental. Todavia, nada

    obstante defenda Habermas a justificao racional do direito, importa frisar que sua

    teoria no confunde as esferas moral e jurdica, mas situa o direito em um enfoque

    instrumental-sistmico (como sistema e como instituio) que se vincula ao mundo da

    vida, sendo justamente um seu tansformador.

    CADEMARTORI sintetiza:

    13 HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. I vol. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 114-115.14 Ibid., p. 132-133.15 NEVES, Marcelo. A Constitucionalizao Simblica. So Paulo: Acadmica, 1994.

    8

  • (...) para Habermas, no entanto, no basta o fato de que uma deciso

    seja legal para que obtenha legitimidade; as decises, os

    procedimentos formais e os contedos devem ser justificados

    mediante razes para serem considerados como legtimos.

    De fato, para Habermas, que uma norma seja sancionada porque

    ajustada formalidade jurdica estabelecida de forma alguma lhe

    confere legitimidade, pois as instncias jurdico-polticas que lhe

    atribuem legalidade son de un sistema de poder que tiene que estar

    legitimado en total si es que la legalidade pura h de considerar-se

    signo de legitimidad.16

    Tem-se, portanto, de um lado Luhmann sustentando a

    legitimidade do Direito pelo procedimento, que garantiria a assimilao cognitiva de

    expectativas normativas e, dessa forma, mostrar-se-ia intimamente ligado ao conceito de

    democracia, e, de outro, Habermas, para quem to-somente o procedimento no seria

    suficiente para conferir legitimidade ao Direito, pois tal s poderia advir da adoo, no

    procedimento legislativo democrtico apoiado no postulado fundamental da soberania

    popular e, assim, reconhecendo direitos dos cidados ligados noo de Justia. Nada

    obstante, nota-se em ambos o profundo vnculo entre legitimidade do Direito e

    Democracia, seja a democracia pela sua definio procedimental, seja em seu sentido

    material de reflexo das aspiraes da maioria sob a forma de direitos fundamentais.

    III GLOBALIZAO E REGULAO SOCIAL O DIREITO REFLEXIVO

    3.1. A crise dos sistemas jurdicos em face da globalizao

    O processo de globalizao tem operado uma grave crise nos

    sistemas jurdicos nacionais: com o domnio da tecnologia de impacto planetrio, que

    permitem, fundamentalmente, comunicao global instantnea, nas palavras de

    DOWBOR, o planeta encolheu de maneira impressionante17, principalmente nos

    16 Op. cit., p. 120.17 DOWBOR, Ladislau. Globalizao e Tendncias Institucionais. In Desafios da Globalizao. DOWBOR, Ladislau et alli (org). Petrpolis (RJ): Vozes, 1998, p. 10.

    9

  • domnios do sistema econmico. Isto abriu um imenso espao de perda de

    governabilidade, dado que o Estado moderno, e seu respectivo direito, territorialmente

    limitados, no conseguem apreender a dinmica do capitalismo global. Ou seja, o atual

    modelo de direito, assim como o Estado, encontra-se em crise.

    Segundo ROTH18, o direito moderno, que historicamente

    evoluiu daquele a servio do Estado Liberal (visando a garantir livre circulao de

    idias, pessoas e bens, com regras gerais, abstratas e previsveis) para o do Estado

    Social (a servio de metas concretas, como tcnica de gesto e regulao da sociedade)

    est padecendo com as transformaes econmicas e polticas, somadas onda

    neoliberal, que esto levando desadaptao das intervenes estatais, e,

    conseqentemente, provocado retrocesso e deslegitimao da regulao social estatal. A

    crescente interdependncia entre os pases (do ponto de vista econmico, financeiro,

    bem como sob a tica de novos problemas como o do meio-ambiente) denotam a

    dificuldade do Estado para aplicar seus programas legislativos, fazendo ver que h um

    pluralismo jurdico o Estado perde sua pretenso de deteno do monoplio

    legislativo, surgindo nveis de regulao superiores (ex.: ONU) e inferiores (ex.:

    descentralizao em pases federalistas).

    Sob outro aspecto, alerta LUHMANN19 para o problema da

    discrepncia entre o sistema da sociedade, que aspira a uma unidade global, e o direito

    positivo, estatudo com vigncia dentro de certos limites territoriais. Refere que este

    processo resulta justamente da diferenciao funcional no sistema social, pois na

    medida em que esferas funcionais (como, por exemplo, religio, ou economia)

    desdobram-se autonoma e autopoieticamente (ou seja, auto-reproduzem-se,

    operativamente fechadas), rompem as limitaes territoriais. E ento indaga se, com

    isto, poltica e direito continuam sendo (como o foram em outras pocas) fato de

    desenvolvimento ou fatores de risco do desenvolvimento social. Em outras palavras, na

    medida em outros subsistemas, em face da diferenciao funcional, levam uma

    sociedade global, o fato contraditrio da produo de decises vinculativas

    18 ROTH, Andr-Nel. O Direito em Crise: Fim do Estado Moderno? In Direito e Globalizao - implicaes e perspectivas. FARIA, Jos Eduardo (org). So Paulo: Malheiros, 1996.

    19 Op. cit., p. 154-165.

    10

  • territorialmente limitadas, que no acompanham aquelas expectativas cognitivas no

    seria um bice ao desenvolvimento da prpria sociedade?

    Para LUHMANN, frente a este processo, impe-se tambm uma

    elasticidade estrutural do Direito, pois, embora enquanto sistema autopoitico seja

    operativamente fechado (clausura sistmica), deve ser cognitivamente aberto

    (interferncia intersistmcia), na lio de TEUBNER20, ou seja, deixar-se tocar pelos

    eventos comunicativos dos demais sistemas e, no seu prprio interior, auto-produzir

    efeitos jurdicos. Assim, LUHMANN reconhece que a sociedade mundial constitui-se

    de expectativas cognitivas, de modo que a insero de mecanismos cognitivos na

    estrutura em si normativa do direito corresponderia ao desenvolvimento da sociedade

    global, sem que isso signifique expectativas cognitivas suplantando expectativas

    normativas, mas sim uma modificao do Direito com primazia ao estilo cognitivo dos

    contatos humanos:21

    No se deve contar com uma desmontagem da normatividade do

    direito. A questo no entanto se a normatividade, apesar de toda

    relevncia que lhe concedida com referncia ao comportamento,

    seria capaz de sustentar o contato com os desenvolvimentos

    estruturais da sociedade mundial. As dvidas a esse respeito surgem

    quando se pensa na predominncia das estruturas de expectativas

    cognitivas nas interaes em escala mundial, quando se considera o

    ritmo crescentemente acelerado da mudana, e quando se avalia que a

    positividade do direito depende da colaborao de processos de

    assimilao.

    Assim que, em face da crise, pe-se a questo: ter o direito

    um papel na sociedade globalizada? e, pressupondo uma resposta positiva, de que modo

    dever ser estruturado para continuar a cumprir seu papel de redutor da complexidade

    social?

    3.2. Onde fica o direito em face da globalizao? (perspectivas para o direito

    reflexivo)

    20 Op. cit., p. 149-181.21 Op. cit., p. 162.

    11

  • Levando em conta a clausura operativa do sistema jurdico,

    TEUBNER22 entende que, embora mergulhado em outros sistemas, o meio envolvente

    no est diretamente acessvel ao sistema jurdico, ou seja, funcionam sobre seus

    prprios cdigos e, sendo assim, no poderia o direito ter pretenses universalizantes

    com base em seu cdigo especfico. Este, alis, o problema que se pe em face da

    globalizao: h um lugar para o direito universal na sociedade que, nada obstante

    global, altamente dspar, j que como lembra SPOSATI23, a globalizao no

    uniforme, no atinge todos os pases de igual maneira, mostrando-se, sim, como

    processo de reforo do mecanismo de elitizao de um lado e de apartao do outro.

    Para TEUBNER24, a regulao social pelo direito, nada obstante

    sua configurao como sistema autopoitico e, assim, operativamente fechado, est

    intimamente ligada sua prpria auto-regulamentao. Ou seja, a clausura radical das

    operaes jurdicas significa, paradoxalmente, sua radical abertura aos fatos sociais,

    exigncias polticas e necessidades humanas, em funo da abertura cognitiva, isto ,

    abertura interferncias do meio envolvente: por um lado, gera continuamente

    informao interna a partir do prprio sistema e, por outro, reproduz juridicamente uma

    realidade apreendida do meio envolvente. Desta forma, para o autor25, o Direito, nada

    obstante sua clausura sistmica, deve ser dotado de grande indeterminao, de modo

    que, diante de perturbaes provocadas pelos outros sistemas (interferncia

    intersistmica), deve manter intacto seu prprio cdigo, alterando apenas o programa, de

    modo a melhor adaptar-se s auto-descries do sistema envolvente. Sendo assim, o

    Direito no se isola dos demais sistemas, em especial o econmico e o poltico, mas

    absorve suas perturbaes no de forma direita, porm pela via da converso em

    linguagem jurdica. Com isso, mantm o Direito seu papel de redutor da complexidade

    social sem mostrar-se como entrave ao desenvolvimento dos demais sistemas e da

    prpria sociedade.

    22 Op. cit., p. 209.23 SPOSATI, Aldaza. Globalizao: um novo e velho processo. Institucionais. In Desafios da Globalizao. DOWBOR, Ladislau et alli (org). Petrpolis (RJ): Vozes, 1998, p. 43.24 Op. cit., p. 129-130.25 Op. cit., p. 210.

    12

  • De fato, diante de realidades absolutamente distintas, o sistema

    jurdico no pode apresentar uma via nica e estanque, sob pena de perder sua prpria

    legitimidade, seja no sentido de que o procedimento, moda luhmanniana, no mais

    oferece duas possibilidades de aprendizagem, pois aquele que decide, se decide sem

    possibilidades (ou se, diante de possibilidades, est necessria e materialmente

    vinculado a uma delas) no produz reduo da complexidade e, assim, tambm no

    produz a aprendizagem daquele que se submete deciso; seja no sentido de que,

    moda habermasiana, no mais se configuraria a racionalidade refletindo o processo

    democrtico, ou a noo de justia. A soluo, portanto, estaria em que o mundo

    exterior ao sistema jurdico nele provoca perturbao que estimula processos internos de

    seleo, isto , promove, nas palavras de TEUBNER, uma reconstruo interna da sua

    prpria realidade social envolvente, isto , leva criao de modelos internos do

    mundo exterior 26

    Para ROTH27, conseqncia do processo de globalizao

    justamente uma maior flexibilidade do direito (modificao de seu carter autoritrio) e

    disperso em vrios nveis de sua formulao. A legislao nacional comea a limitar-

    se a um direito mais geral e flexvel, e no to detalhista. Desenvolve-se, pois, um

    direito flexvel, procedente de negociaes, como tentativa de obter-se uma nova forma

    de regulao social, outorgando ao Estado e ao direito um papel de guia (e no de

    direo) da sociedade.28 Trata-se da passagem de uma direo estatal autoritria e

    centralizada para uma direo flexvel e de procedimento das condutas humanas, ou da

    formulao de uma via intermediria entre a evoluo espontnea e a planificao.

    Segundo WILKE apud Roth29, dada a complexidade da

    sociedade, sua regulao torna-se impossvel com os instrumentos tradicionais de

    coao, baseados sobre poder e dinheiro (direito repressivo e direito social). A

    especializao funcional de sistemas dentro do sistema social uma resposta visando

    reduo da complexidade do sistema social, porm hoje a complexidade tal que

    nenhum subsistema, seja ele poltico, jurdico, moral ou econmico, pode pretender dar

    direo sociedade, sendo que cada um deles tm adquirido autonomia relativa. Ao

    26 Ibid., p; 157-158 e 161.27 Op. cit.28 Op. cit., p. 22.29 Ibid., p. 22-23.

    13

  • Estado, assim, por meio do direito, incumbiria no o papel de direo, mas sim de guia

    da sociedade, como uma via alternativa entre o intervencionismo estatal e a

    autoregulao do mercado. Trata-se da via do direito reflexivo, que deveria permitir o

    aumento da capacidade de pilotagem da lei incluindo, durante a fase de busca de um

    consenso, assim como no processo de tomada de deciso, os destinatrios das normas.

    A estrutura jurdica desse direito chamado programa

    relacional por Wilke tem dois nveis: 1) formulao de fins; 2) disposies que

    permitem decises dedutivas e descentralizadas (principal inovao), permitindo e

    facilitando processos de auto-regulao no interior de campos de problemas

    especficos, como economia, cincia ou sade (dentro dos quais se desenvolver

    racionalidade de procedimento, mais que de contedo material).

    Dada a incapacidade do Estado para formular e impor solues

    para problemas complexos, segundo ROTH30, passa ele a ser ator comum, e somente

    atravs de sistemas de discursos que os interesse afetados sero dirigidos para

    descobrimento de interesses comuns (idia de razo discursiva, de Habermas, onde os

    atores dos diversos subsistemas negociam, no primeiro nvel, sobre metas legislativas

    (interesses generalizveis) e, no segundo nvel, chega-se auto-regulao em cada

    campo especfico. Assim, o direito estatal deixaria de promulgar proibies (direito

    negativo), assumindo forma positiva (leis de incitao) direito como sistema que pode

    ser utilizado, e no que deve ser utilizado. O Estado, a seu turno, tem papel limitado a

    dar indicaes ou promover incitaes (no coativas) quanto ao contedo das regras e

    controlar a uniformidade dos procedimentos de negociao, sendo que o carter

    democrtico e racional da deciso est garantido neste sistema, pela capacidade de

    discusso razovel (razo discursiva de Habermas), que deve dominar nos foros de

    negociaes.

    Para LUHMANN, com a crescente diferenciao funcional da

    sociedade, diminui o nmero de expectativas de validade comum para todos, e crescem

    as expectativas especficas relativas a papis e sistemas parciais diferenciados, ou seja:

    poucas expectativas genricas tem de ser substitudas por muitas expectativas

    especficas. Apesar de tais condies, necessrio manter e at mesmo ampliar a

    30 Ibid., p. 23-24.

    14

  • eficincia da institucionalizao no sentido da melhor seletividade e da estabilizao

    social de expectativas comportamentais.31 Neste sentido, importa aqui lembrar,

    conforme referido supra, a relevncia que teve para o direito a institucionalizao da

    funo institucionalizante atravs de papis especiais, como modo de superar o

    paradoxo da crescente complexidade e diferenciao sociais em face da necessidade de

    institucionalizao, cuja vantagem estaria em que a funo institucionalizante dos

    terceiros tornar-se-ia

    reflexiva por referir-se inicialmente ao prprio processo

    institucionalizante, antes de desenvolver-se. A diferenciao de

    papis especiais para a concesso do consenso normativamente

    relevante possui a forma bsica da institucionalizaso do

    institucionalizar expectativas comportamentais (...) A partir do ngulo

    do indivduo, isso significa que ele tem que esperar que dele se espera

    o que os juzes dele esperam; em termos mais aguados: o que ele

    espera que seu parceiro na interao espera dele o que os juzes e

    portanto todos de ambos esperam.32

    Segundo LUHMANN, em face da elevada complexidade, a

    generalizao do direito ter de ser levada a um alto nvel de indiferena que, em termos

    temporais, significa indiferena em relao ao direito divergente anterior e posterior, em

    termos materiais, indiferena quanto eventual incompatibilidade de sentido em outras

    reas jurdicas e, em termos sociais, indiferena em relao s implicaes simblicas

    da opinio divergente, ou seja, tolerncia. Complementarmente, porm, surgem formas

    de fortalecimento da seletividade no processo decisrio jurdico que permitem um nvel

    mais baixo de indiferenas, em especial a reflexividade da normatizao:

    No caso da normatizao, a reflexividade do efeito seletivo, contida

    em toda norma, evidencia-se, torna-se disponvel e ela mesma

    normatizada. E existem normas que normatizam a normatizaa por

    exemplo fixando processos e certas condies parametrais da ao

    legislativa (...) ela amplia o mbito das normatizaes possveis; ela

    possibilita a compatibilizao da segurana e da expectabilidade com

    uma maior liberdade da normatizao e da alterao de normas,

    31 Ibid., p. 86-8732 Ibid., p. 92-93.

    15

  • mobilizando amplamente um complexo normativo e ao mesmo tempo

    mantendo-o sob controle. Uma constituio no se fixa, em algumas

    de suas determinaes, antecipadamente a uma forma determinada do

    direito, mas apenas regulamenta a forma de seleo do direito

    varivel.

    (...)

    o processo atravs do qual o direito torna-se reflexivo construdo de

    forma estruturalmente anloga a outros casos de mecanismos

    reflexivos, tendo em comum o potencial de absoro da maior

    complexidade e dos maiores riscos da estrutura, e diferenciando-se

    apenas atravs do tipo de processo cujo efeito potencializado. 33

    Nota-se, pois, que o direito reflexivo surge como uma via de

    adaptao do direito nova realidade do meio envolvente, em grande parte globalizado,

    uma vez que oferece os meios procedimentais legitimadores e permite ao sistema

    autopoitico jurdico apreender as perturbaes dos sistemas envolventes (interferncia),

    incopor-las ao seu prprio cdigo binrio (cri-las em seu meio), de modo mais

    flexvel (deixando de ter configurao impositiva) e, com isso, melhor acompanhando a

    sociedade que se prope a regular, com isso obtendo, na concepoluhmanniana,

    legitmidade.

    Nada obstante, basta que o direito fornea, nas palavras de

    Bobbio, as regras do jogo para estarmos diante do direito reflexivo? Em outras palavras,

    o direito reflexivo um direito puramente processual?

    TEUBNER34 esclarece que no. Este, alis, seria um dos grandes

    equvocos a respeito do direito reflexivo: inerpret-lo como uma espcie de conselho

    endereado ao legislador ps-intervencionista no sentido de este renunciar s normas

    jurdicas substantivas em favor de normas puramente processuais. Evidencia, ento, que

    todo o enunciado de natureza processual parte de premissas e produz efeitos

    substantivos, e afirma que s se poder entender corretamente o alcance da referida

    processualizao se for colocada no quadro do contexto teortico prprio onde foi

    33 Op. cit., p. 14-15.34 Op. cit., p. 133-136.

    16

  • originada: como responde a racionalidade jurdica a um nvel elevado de diferenciao

    social? A processualizao teria o sentido de enfatizar em variados domnios tericos do

    alcance da regulao processual, do planeamento (deciso sobre premissas decisionais) e

    reflexividade (processualizao dos processos. (....) as normas substantivas mantm-se

    indispensveis, s que o processo da respectiva produo e legitimao deve ceder o lugar a

    outras processualizaes socialmente adequadas.35 Salienta ser muito comum a confuso

    entre processualizaa com normas jurdicas processuais e materializao com

    normas jurdicas substantivas, o que representa equvoco:

    (...) tendncias de juridificao em planos inferiores descentralizados

    no so de modo nenhum inconciliveis com a idia de direito

    reflexivo. A verdadeira questo antes a de saber se a regulao

    dever ser fruto de uma poltica econmica do Estado intervencionista

    (em que o direito implementa programas de regulao material) ou

    dever processar-se atravs de mecanismos descentralizados de auto-

    regulao (caso em que o direito estadual se limita a regular apenas as

    condies de base dos processos da regulao auto-regulada).36

    Se o direito reflexivo no simplesmente um direito processual

    ou procedimental, o que se lhe acrescenta que o diferencia deste? Quais as premissas

    substantivas das quais deveria partir?

    TEUBNER remete a resposta questo de saber que tipo de

    orientao substantiva poderia guiar um discurso processualizado Lauder, que prope

    uma compreenso processualista do direito, a qual no baseada em valores primrios tal

    como razoabilidade, consenso ou veracidade, mas em valores secundrios especificamente

    processuais, capazes de manter aberta uma variedade de alternativas, de tolerar uma variedade

    de opinies dissidentes37, numa orientao bastante semelhante quela sugerida por BOBBIO

    no que tange caracterizao e projeo legitimatria dos regimes democrticos.38

    Nada obstante, uma boa linha de resposta pode ser encontrada

    em HABERMAS, para quem, segundo NEVES39, as idias de direitos humanos e

    35 Ibid., p. 134.36 Ibid., p. 135.37 Ibid., p. 136.38 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.39 Op. cit.

    17

  • soberania popular so as nicas que justificam o direito modernos e, sem desconhecer a

    tenso entre ambos, enfatiza sua pressuposio recproca, sua conexo. Relaciona

    direitos humanos com autodeterminao (moral) e soberania do povo com auto-

    realizao (tico-poltica), afastando-se, assim, do modelo liberal (primazia autonomia

    privada) e do "republicano" ou comunitarista (primazia autonomia pblica). A teoria

    do discurso argumenta no sentido do equilbrio entre autonomia privada e pblica,

    afirmando que os direitos humanos s podem estar garantidos onde seja assegurado o

    princpio da soberania do povo (procedimento democrtico de formao da vontade

    estatal). Porm ao relacion-los com a autodeterminao (moral) e auto-realizao

    (tico-poltica), Habermas no vai a extremos, uma vez que, embora moral e direito

    refiram-se aos mesmos problemas (regulao legtima de relaes interpessoais,

    coordenao de aes por normas justificadas e soluo consensual de conflitos com

    base em princpios normativos e regras conhecidas intersubjetivamente), aquela saber

    cultural, enquanto este tem fora vinculante no planto institucional (mas afirma que uma

    ordem jurdica s pode ser justa se no contradisser princpios morais).

    Em suma, superestimando os princpios morais universais,

    Habermas no sustenta exatamente um modelo de autonomia jurdica, mas sim de

    autonomia moral do direito perante os meios "poder" e "dinheiro" e, embora sustente a

    interdependncia entre a autodeterminao moral (direitos humanos) e auto-realizao

    tico-poltica (soberania do povo), na verdade d prioridade primeira.

    Importa frisar que, embora Habermas aponte de modo enftico a

    necessidade de legitimao moral do Direito, o que repelido por Luhmann, na

    realidade o faz colocando premissas materiais e necessrias ao Estado democrtico

    como legitimadoras do Direito, ou seja, situa o procedimento democrtico, vinculado a

    premissas substanciais bsicas, como fonte de legitimao, o que caminha na mesma

    linha do pensamento luhmanniano. O que Habermas faz, portanto, reconhecer que o

    pluralismo da esfera pblica demanda que a diversidade de valores seja considerada j

    no mbito dos procedimentos polticos democrticos.

    18

  • Assim que, para HABERMAS40, a idia dos direitos humanos

    e da soberania dos povos determinam at hoje a autocompreenso normativa de Estados

    democrticos, e assim tambm justifica o prprio direito moderno, no devendo ser

    ignorada, principalmente diante da necessidade de que, em face de processos de

    socializao reflexivos, o Direito s possa ser legitimado pelo ideal de justia. Para ele,

    a forma jurdica que estabiliza as expectativas sociais forneceria meios para introduzir

    abstratamente categorias de direitos que geram o prprio cdigo jurdico, dentre as

    quais insere os direitos fundamentais que resultam da configurao politicamente

    autnoma do direito maior medida possvel de iguais liberdades subjetivas de ao, os

    direitos fundamentais que resultam da possibilidade de postulao judicial de direitos,

    os direitos fundamentais participao, de forma igualitria, em processos de formao

    da opinio e da vontade (autonomia poltica), atravs dos quais se cria direito legtimo e,

    finalmente, direitos fundamentais a condies de vida garantidas social, tcnica e

    ecologicamente na medida do necessrio ao aproveitamento dos demais direitos, em

    igualdade de chances41. Esta ltima categoria seria, justamente, a procurada premissa

    substantiva ao direito reflexivo.

    Ou seja, na medida em que o direito reflexivo funda-se

    sobremaneira na premissa essencial da democracia, qual seja a garantia procedimental

    de participao igualitria de todos no jogo democrtico, o que sustenta a prpria

    legitimidade do Direito, no pode ignorar as expectativas substanciais correlatas

    prpria noo de democracia e que sustentam que, procedimentalmente, todos tero, de

    fato, participao igualitria, ou seja, deve ter como premissa a garantia dos direitos

    humanos fundamentais.

    Segundo HABERMAS42, no paradigma procedimentalista do

    direito, a esfera pblica precede o complexo parlamentar e cerca o centro poltico, sobre

    o qual exerce influncia em termos de estoque de argumentos normativos, sem porm

    intencionar a conquista do prprio sistema poltico. Pelas eleies gerais e formas de

    participao especfica, a opinio pblica converte-se em poder comunicativo, que tem

    40 Op. cit., p. 128-133.41 Ibid., p. 159-160.42 HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. II vol. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 186-187

    19

  • duplo efeito, isto , de autorizao sobre o legislador e de legitimao sobre a

    administrao reguladora. E conclui:

    O paradigma procedimental distingue-se dos concorrentes, no

    apenas por ser formal, no sentido de vazio ou pobre de

    contedo. Pois a sociedade civil e a esfera poltica constituem para

    ele pontos de referncia extremamente fortes, luz dos quais o

    processo democrtico e a realizao dos sistemas de direitos

    adquirem uma importncia inusitada. Em sociedades complexas, as

    fontes mais escassas no so a produtividade de uma economia

    organizada pela economia de mercado, nem a capacidade de

    regulao da administrao pblica. O que importa preservar , antes

    de tudo, a solidariedade social, em vias de degradao, e as fontes do

    equilbrio da natureza, em vias de esgotamento. Ora, as foras da

    solidariedade social contempornea s podem ser regeneradas atravs

    das prticas de autodeterminao comunicativa.

    O projeto de realizao do direito, que se refere s condies de

    funcionamento de nossa sociedade, portanto de uma sociedade que

    surgiu em determinadas circunstncias histricas, no pode ser

    meramente formal. Todavia, divergindo do paradigma liberal e do

    Estado social, este paradigma do direito no antecipa mais um

    determinado ideal para a sociedade, nem uma determinada viso de

    vida boa ou de uma ao poltica. Pois ele formal no sentido de que

    apenas formula as condies necessrias segundo as quais os

    sujeitos do direito podem, enquanto cidados, entender-se entre si

    para descobrir os seus problemas e o modo de solucion-los.43 (sem

    grifo no original).

    Neste sentido que o efeito protetor dos direitos fundamentais

    no pode mais ter sentido somente negativo, como defesa contra ataques, mas tambm

    deve ensejar pretenses a garantias positivas, de modo que tornam-se princpios da

    ordem jurdica geral, cujo contedo normativo estrutura o sistema de regras em seu

    todo. Assim que os direitos fundamentais, na lio de HABERMAS44, passam eles

    prprios a serem princpios procedimentais, nos quais as operaes da interpretao 43 Ibid., p. 189-190.44 Op. cit., p. 308-309.

    20

  • construtiva do caso singular, exigida por Dworkin, se refletem, tendo como referncia a

    totalidade de uma ordem jurdica construda racionalmente.

    Isso no significa um Direito diretivo e com amarras imutveis,

    mas sim um Direito conciliador construdo sobre regras democrticas que, assim,

    legitima-se por ofertar possibilidade da absoro de variaes sistmicas externas pelo

    Direito de modo mais flexvel, isto , que o Direito acompanhe a sociedade de modo

    mais prximo e possa responder, juridicamente, aos seus estmulos que, evidentemente,

    a despeito da globalizao, nunca so nicos e uniformes, de modo que demandam

    respostas diferenciadas e, mesmo assim, legtimas. Segundo MORAIS:

    (...) a reorganizao do Jurdico, dentro de um estilo democrtico,

    baseado na incerteza, pressupe que a regulamentao ou o mnimo

    coercitivo de regulao dos conflitos estejam baseados em estruturas

    de ao comunicativa dirigidas ao entendimento, pois somente a partir

    de um modelo de normatizao, baseado no consenso obtido

    dialogicamente, que se poderia pensar no estabelecimento de

    instituies jurdicas ao estilo habermasiano, as quais, somente

    assim, poderiam estabelecer vnculos com o mundo da vida. Apenas o

    direito como instituio teria possibilidade de vincular-se a um

    processo democrtico que no se pretende estabelecido para sempre,

    sob a roupagem de um arcabouo jurdico formal e

    procedimentalmente legitimado nos moldes previstos pelo

    positivismo jurdico.45

    O raciocnio do Direito reflexivo, fundado em premissas

    procedimentais democrticas, por outro lado, responde necessidade de que a sociedade

    global que se forma, com a globalizao dos diversos sistemas funcionais diferenciados

    e autopoiticos, seja tambm submetida a um processo de democratizao a

    globalizao da democracia -, o que permitiria a incluso de vrios cidados do mundo

    desprovidos do acesso s vantagens da tecnologia mundial, ainda bastante restritos.

    Conforme GMEZ46, a democratizao da ordem mundial e governana global

    restauraria a tica do autogoverno como corao da democracia, e operaria perspassando 45 MORAIS, Jos Luis Bolzan de. A Subjetividade do Tempo: uma perspectiva transdisciplinar do Direito e da Democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado/EDUNISC, 1998, p. 102.46 GMEZ, Jos Mara. Poltica e democracia em tempos de globalizao. Petrpolis (RJ): Vozes, 2000, p. 73-86

    21

  • os estados-nao e, tratando de trs modelos favorveis democracia global, ao referir-

    se ao modelo cosmopolita, esclarece:

    Fundada no princpio tico da autonomia centro do projeto

    democrtico moderno e comum a todas as tradies e na

    necessidade de uma lei democrtica cosmopolita (estendida

    universalmente, com poder de interferncia nos assuntos inernos de

    cada Estado para proteger determinados direitos bsicos), esta

    perspectiva visa ao estabelecimento de uma uma comunidade

    democrtica cosmopolita, que no supe nem um governo mundial

    nem um super-Estado federal, mas uma estrutura transacional comum

    de ao poltica envolvendo todos os nveis e os participante da

    governaa global; (...) a cidadania, por sua vez, passa a conhecer

    formas mais elevadas de participaso e representao em

    estruturas supranacionais e, simultanemaente, formais mais reduzida

    em escala, com incremento de ppoder em comunidades locais e

    grupos subnacionais.47

    Sendo assim, o modelo epistemolgico pragmtico-sistmico, ao

    proceder anlise sociolgica do direito, oferta o direito reflexivo como possvel norte

    crise do direito moderno, situando-se como alternativa legtima e com amplas

    possibilidades inovadoras/reformadoras da prpria sociedade mundial que o leva a

    existir. Em outras palavras, a globalizao fora o direito a adaptar-se, sob pena de no

    encontrar mais legitimidade e perder sua funo, porm na medida em que isto ocorre,

    que o direito reflexivo passa a permitir maior absoro das perturbaes sociais no

    sistema autopoitico jurdico, este deixa de ser bice e volta a ser reformador, porquanto

    pode ser via de democratizao da sociedade global, ainda impensada enquanto restrita

    a outros sistemas autopoiticos.

    IV - CONSIDERAES FINAIS

    Em suma, em face das grandes mudanas operadas pela

    globalizao, gerada a partir de crescentes tecnologias de nvel mundial, a complexidade

    47 Ibid., p. 82.

    22

  • extrema-se e assim continuam sendo necessrias estruturas que operem sua reduo e

    promovam o controle/assimilao dos riscos da contingncia, papel que pode continuar

    sendo desempenhado pelo sistema autopoitico jurdico.

    Para tanto, porm, o direito ter de abandonar sua forma

    impositiva/interventora, que no responde mais s demandas do mundo contemporneo

    e, assim, nele tambm no mais se legitima, para assumir uma postura reflexiva, isto ,

    o sistema jurdico operativamente fechado mostrando-se cognitivamente aberto de

    forma ampla s interferncias intersistmicas, a serem absorvidas e redesenhadas no

    cdigo binrio prprio. Esta abertura cognitiva do sistema operativamente fechado d-se

    mediante o estabelecimento de expectativas normativas quanto ao prprio

    procedimento, partindo, porm, sempre da premissa substancial de que sua legitimidade

    passa pela noo de democracia, o que envolve os direitos humanos fundamentais como

    princpios inerentes ao prprio procedimento.

    Por fim, releva referir que a globalizao oferta um campo vido

    de democratizao, para o que o direito reflexivo, e a matriz epistemolgica da teoria

    pragmtico-normativa em que se funda, podem fornecer importante colaborao, vez

    que, nas palavras de ROCHA, a democracia a possibilidade da tomada de decises

    sempre diferentes, inserindo a sociedade no paradoxo comunicativo da inveno.48

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