08. giddens, anthony. a constituição da sociedade

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Martins Fontessao Paulo 2003

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E6bvio que apesquisa empirica falta um fundamento 16­gico se ela niio gerar novos conhecimentos antes inexistentesou inacessiveis. Como todos os atores sociais vivem em con­textos situados no interior de periodos mais vastos de tempo-espa~o, 0 que e novidade para alguns desses atores nao e para .f> o'::' '"outros - incluindo, entre esses oUlros, os cientistas sociais. E, G l";\ .. "

evidentemente, nessas "lacunas de informa~o"que a pesquisa 'v~ ~'"

etnognifica tem sua importiincia especifica. Num sentido am-plo do termo, esse genf'TO de pesquisa e expIanat6rio, porquantoserve para esclarecer enigmas apresentados quando individuos ,.r \,de urn cenano cultural se encontram com os de um outro que, 'c""'"Gem alguns aspectos, e·muito diferente. A pergunta "Por que e .s;:yV .que eles atuam (pensam) como atuam (pensam)?" e um convite _ArJ''R,para ingressar num milieu culturalmente estranho eICompreen- 1J'l'de-I2JPara os que ja se encontram dentro desse m'meu, comoWinch e muitos outros assinalaram, essa miciativa pode nadater de inerentemente esclarecedor. Entretanto, muito da pesqui­sa social, em termos do material empirico que gera e das inter­preta~es te6ricas a ela possivelmente vinculadas, tern conota­¢es criticas para as crencas sustentadas pelos agentes sociais.Para investigar 0 que poderiam ser taisconota~, devemos con­siderar a questiio seguinte: em que sentido as ciencias sociaisrevelam novos conhecimentos e como tais conhecimentos pode­rao ligar-se acritica da falsa cren~? Essas ouestoes sao com­plexas, e mo tentarei trataraqui seniio de alguns de seus aspectos.

Os esfo~s cruciais das ciencias sociais, como os da cien­cia natural, estiio estreitamente ligados aEdcqua~ao 16g1ca c

Conhecimento mutUo versus senso comum

dores sociais devem estar atentos para os modos como os dadosquantitativos slio produzidos. Pois, diferentemente do movi­mento do men:Urio dentro de urn temlometro, os dados sociaisnunca sao apenas urn "indicador"de urn fenomeno independen­temente dado, mas -.~mpre, ao mesmo tempo, exemplificamaquilo de que "tratam"- isto e, processos de vida social.

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empiricalie observa96es relatadas e teorias a elas associadas.Como SChutz e muitos outros enfatizanun corretaInente, 0 ca­niter critico cia cifulcia social nesse sentido afasta-se normal­mente, de uma forma deveras abrupta, das crencas e teorias em

{,v> uso incorporadas aconduta da vida social cotidiana Todos os, -,(.7:cr atores sociais, e possivel dizer-se comco~o, slio te6ricos so-

< (}, ~\ . ciais que a1teram suas teorias aluz de suas experiencias e sao*-'0 -<'~ receptivos ainforma~o que chega, a qual pode ser por eles

0"';;:' 'SU" adquirida ao fazerem isso. A teoria social nao e, em absoluto, aA\)'> Q>6 provincia especial e isolada de pensadores academicos. En-

~Q h S . ~\/ tretanto, os atores leigos estiio em geral preocupados, sobretudo,,;:,'"~ .J' com a I!tilidade pra\!J:_a~:"(!!lb~citn~tl.to"(jue eles aplicam

Y , , em suas atividades cotidianas, e pode haver caraCleristicas basi-r

cas da organiza~ao institucional da sociedade (incluindo a ideo-Jogia, mas mo limitadas a eta) que restrinjam ou distor~am 0

que consideram ser conhecimento.Ecertamente 6bvio que 0 "modelo revelador" da ciencia

natural nao p.:>de ser diretamente transferido para as ciencias so­ciais. As crencas ditadas pelo senso comum acerca do mundonatural slio corrigiveis aluz das descobertas das ciencias natu­rais. Nao lui grandes dificuldades 16gicas para se entender 0 queesta acontecendo em tais circunstaocias, embora possa haverbarreiras sociais ao acolhimento de ideias cientificas". Querdizer, as crencas leigas estiio sujeitas a co~ao, na medida emque isso e necessario, pela entrada de novas teorias e observa-

. ~ ~oes cientificas. Conforme enfatizei, as "descobertas" das cien-. .."~ cias sociais mo s50 necessariamente novas para aqueles aos

v; ( ~ \" quais elas dizem respeito.. "';.,,, \}l As questi3es envolvidas aqui tornaram-se bastante nebulo-

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\f~ v~ sas em conseqiiencia dos avan~os e recuos entre as formula~oes

,'( \ r9 _. },}" objetivistas e interpretativas da ciencia social. As primeiras fo-();Y • " '.• ':' ram propensas a aplicar 0 modele revelador de forma desinibi-a \ \ ..

<: da as ciencias sociais. ISlO e, consideraram as cren~as ditadas\:--- \, pelo senso comum e envolvidas na vida social corrigiveis sem

~. problemas, em fun~ao do esclarecimento que as ciencias sociais_:,i' podem fomecer. Entretanto, aqueles que sao influenciados pela<\,

, \:\ hermeneutica e pela filosofia da linguagem ordinaria estabe!e-

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396 A CONSTlTUI(:lO DA SOCIEDADE A TEORlA DA ESTRUTlJRA(:lO

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- que nlio fica ta06~~ 0 fato de que 0 ~ito peIa~lJi~:' ,~',.'<dade da cren98 COnstitui uma parte necessaria de tolki;o tIaba-""Iho etnografico nas ciencias sociais.· Os ataquescoridU2i<1oi!'"poraqueles influenciados pela fenomenologia e pelaCtnometo­dologia contra ascon~mais ortodoxas de ciencla: sOcialtiveram, sem duvida, consider.\vel importlincia na elucidaciio danatureza do conhecimentJUnUll!.o. Mas, ao falarem sobie "sensacomurn" ou termos equivalentes de modo difuso, eles nlio se­pararam analiticamente a questao metodol6gica da questao cri-tica. Ao fazer a distineao entre conhecimento mUtuo e sensocomum, e meu intuito reservar 0 segundo conceito para referlr-me as cren98s proposicionais implicitas na conduta das ativida­des cotidianas. A distineao epredominantemente analitica; querdizer, 0 senso comurn e conhecimento mutuo tratado comocren,a falivel, nlio como conhecimento. Entretanto, nem todoconhecimento mutuo pode expressar-se como creII98 proposi­cional- =98 em que se trata de certos estados de coisas e MO

" de outros. Alem disso, nem todas essas cren,as podem ser dis-",' ~ursivamente formuiadas por aqueles que as alimentam.

I, ;. r;<" Distinguir entre conhecimentn mutuo e sensa comurn MO- , J " ,subentende que urn e outro sejam fases de estudo de fiicil sepa_

, raeao na pesquisa social. Em primeiro lugar, a linguagem des­critiva usada por observadores sociol6gicos esempre mais oumenos diferente da usada por atores sociais leigos. Aintrodu­,lio da terminologia cientifica social pode (mas nlio necessa­riamente) por em duvida cren,as discursivamente formuladas(011, quando ligadas nurn conjunto, "teorias em uso") que osatores sustentam. Quando as descri,Oes contestadas ja sao em­pregadas pelos agentes estudados, qualquer outra apresentadapor observadores, mesmo usando categorias de atores, e direta­mente critica de outras tenninologias 'existentes que poderiamter sido usadas, 0 que de uma perspectiva e urn "movimento deliberta,lio" podera ser urna "organiza,lio terrorista" de umaontra. A escolha de urn termo em vez de outro implica, eclaro,uma postura definida por parte do observador. Emenos ime­diatamente evidente que a escolha de um termo rnais "neutro"tambem denuncia uma postura; seu usa indica ter sido assumi-

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ceram poderosasobj~a esse ponto de vista rudimentar. Ascren~ditadas pelo sensa comum, tal como foram incorporadasao usa da Iinguagem e aaeao CQtidianos, nao podem ser trata-das como meros impedimentos para uma caracteriza,lio validaou veridicada vida social. Pois nlio podemos absolutamente des­crever a atividade social sem conhecer 0 que seus atores consti­tuintes sabem, tanto discursiva quanta tacitamente. 0 empiris­mo e 0 objetivismo simplesmente suprimem toda a questlio digera,lio de descri,OeS sociais atraves do conhecimento mutuque observadores sociol6gicos e membros leigos da sociedadtern em comurn"'. 0 problema consiste em que, tendo chegadoa essa conclusao, aqueles que advogam formas interpretativas daciencia social acham dificil ou impossivel manter aquela agu-deza critica na qual 0 tipo oposto de tradi,3o corretamente in-sistiu ao justapor ciencia social e senso comum. As tarefas daCienCla social parecem, pois, limitadas precisamente iI etnogra- ' '(.."}-Qfia - ao esfof90 hermeneutico da "fuslio de horizontes"<I. Uma u~

tal paralisia da vontade critica e logicamente tao insatisfat6ri: ./, . ,-,.quanto 0usa desordenado do modele revelador. '7 ~ CL;'~C ~

Uma saida para esse impasse pode ser encontrada se dis- ',-,,'C IJ\. .tinguirmos 0 conhecimento mutuo do "sensa comurn"". 0 pri­meiro refere-se ao necessario respeito que 0 analista social deve

/'ter pela autenticidade da cren98 ou pela entree hermeneutica nadescrieao da vida social. "Necessario" tern, na frase acima, for­98 l6gica A raziio por que, caracteristicamente, faz mais sentidofalar de "conhecimento", em vez de "cren98", quando se falado modo como os atores descobrem seu caminho nos contextos -da vida social, esta em que a geraeao de descri,oes requer a pa- \ \.\..' (~ "rentetizaeao do ceticismo". As cren,as, taticas e discursivas, , ., \. ;'-,tern de ser tratadas como "conheciment~"quando 0 observadQI,- , ,r0'esta atuan.do no plano metodol6gico de caracteriza,lio da a,li~ vo conheclIIlento mutuo, encarado com 0 modo necessario de 'obter acesso ao "objeto de estudo" da ciencia social, nlio e cor-rigivel i1luz de suas descobertas; pelo contrario, ea condi,liopara se estar apto a apresentar "descobertas".

Edevido ao fato de 0 conhecimento mutuo ser predomi­nantemente tacito - conduzido no nivel da consciencia pratica

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mente IDIjlOrtantes quando as cren~ em questio sao incorpo-radas as raziies dos atores sociais para fazer 0 que fazem.Apenas algumas das cre.~~as que os atores possuem ou profes-sam sao parte das raziies por eles apresentadas para sua condu-ta. Quando estas sao submetiaas it critica, it luz das afuma~iies

ou descobertas da ciencia social, 0 observador social esta pro­curando demonstrar que elas nao sao boas.

A identifica~o das raziies dos agentes eslit normalmenteligada, de modo~probJe11laS hermeneuticos criadospela gera~o de"eonhecimen!o. '!1~.t\!5'..sendo assim, cumpre dis­tinguir 0 que chamarei de "criterios de credibilidade~ dos "cri­terios de validade~ peninentes it critica de raziies como boasraziies. Os criterios de credibilidade referem-se aos de carater

I~ hermeneutico usados para indicar como a apreensao das raziiesI I dos atores elucida exatamente 0 que eles estio fazendo it luz

,~ dessas razOes. Os critenos de validaderefe~os de eviden­cia fatual e entendimentv teorico empregados pelas cienciassociais na avalia~o de raziies como boas raziies. Considere-se

, 0 caso famoso da:s-~s-ve';"'elhas, muito discutldo na litera­tura antropologica. Os Bororo do Brasil Central dizem: "Nossomos araras vermelhas:' Debatida por Von den Steinen, Dur­kheim e Mauss, entre outros, essa afirma9ao pareceu a muitosabsurda ou henlieneuticamente impenetritveL A questio foi,porem, recentemente tratada por um antrop6logo que !eVe a opor<­tunidade de reinvestigar 0 assunto na fonte, entre os Bororo".Ele apurou que: a declara~ao e feita unicamente pelos homens;as mulheres Bororo tendem a conservar araras vermelhas comoseus anirnais de estima~ao; em vitrios aspectos, na sociedadeBororo, os homens sao peculiarmente dependentes das mulhe­res; e 0 contato com os espiritos e feito por homens e ararasvermelhas independentemente das mulheres. Parece plausivelinferir que "Nos somos araras vermelhas~ e urr.~ ceclara~o naqual os homens comentam ironicamente sua divida para comas mulheres e, ao mesmo tempo, afinnam su~erio­ridade espiritual diante delas. A investiga~a<> das raziies para a

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A CONSTlTUlcAO DA SOC/EDADE

cia pelo observador uma dist3ncia critica em rela9iio aos con­.ceitos usados pelos atores diretamente envolvidos.;-"Emqualquersi~ de pesquisa pode havercren~ acei­Jas 'por participantes que se chocam tanto com as defendidaspelo observadorque este expressa sen distanciamento critico de­les, mesmo num estudo, sob todos os demais aspectos, pur..men­te emogritfico. Urn antropelogo nao sentin\ 0 menor receio emafrrmar: "Os X obtem suas safras procedendo it semeadura emtodos os outonos~, na medida em que e urn conhecimento mutuoentre ele e os membros da cultura X que a semeadura numaepoea apropriada do ano produzira uma determinacla safra. Masesse mesmo antropologo podeni dizer. "Os X acreditam que suadan93 ritual provocani chuva~, indicando a existencia de urna di- ~yergencia entre 0 que ele e os membras da cultura X acreditamser as condi9iies necessitrias para a ocorrencia de chuva"'. "

v'JOs exemplos mencionados no panigrafo acima indicam .vA>

que ate mesmo a pesquisa social puramente emognifica - isto }-9 'rJ

e, ~ pesquisa que respeita a meta 1imitada da reportagem des- 'icritiva - e propensa a ter um momento critico. Embora nilo com-prometa a distin9iio logica entre conhecimento mutuo e sensocomum, isso significa especificar mais diretamente 0 que eslitenvolvido nesse momento critico, que em outros tipos de pes-quisa e geralmentc desenvolvido de modo mais direto.

Devo enfatizar neste ponto as dimens6es modestas da dis­cussao q::e se segue. Analisar logicameme 0 que eslit envolvi­do na acurnula~o de conhecimento mutuo e na critica da eren­~a ditada pelo senso comurn suscita questiies de epistemologiaque nilo caberia discutir aqui exaustivamente. As ideias que de­senvolverei na sequencia pretendem fomecer apenas urn delinea-mento geral, 0 qual pressupiie ~COnCeP9aO epistemologi~defmida sem a levar ao detalhamento. Quero afIrnlar a existen­cia de dois sentidos em que a ciencia social e importante para acritica das cren9as leigas interpretadas como senso comurn (0que inelui a critica da ideologia, mas nao the confere prioridadeespecial). As atividades criticas em que os cientistas sociais seenvolvem, enquanto micleo de tudo 0 que fazem, trazem impJi·ca~iies para as cren~as alimentadas pelos agentes, na medida em

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dec~ ser.teila ajuda a esclarecer a natureza desla.·A in­vesti~ileciiterios de credibilidade; com reIa~oa cren~

discursiVanlen1fonnnladas, de qualqilermodo, depende quasesempre do .esclarecimeWo dos seguintes itens: quem as expres­sa;:em que cin:unstancias, em que estilo discursivo (descri~o

literal; metafora,·ironiaetc.) e com que motivos. '.A ava1ia~o decriterios de validade e govemada exclusi­

vamente pela conjun~o das criticas uintema" e "externa" ge­rada pela ciencia sociaJ.. Quer dizer, os criterios de validade saoos de critica intema que considero serem substancialmente cons­titutivos ·do que a ciencia social e. 0 principal papel desta notocante it critica do senso comum esti na avalia~o de razoescomo boas razOes em termos do conhecimento simplesmenteinacessivel a agentes leigos ou inte;:prelado por estes de mododiferente do formulado nas melalinguagens da teoria social.Nao vejo nenhuma base para duvidar de que os padrOes de cri­ticil intema nas ciencias sociais transfcrem-se diretamente paraa'critica extema neste aspecto. Trala-se de uma afirma~o pe­rempt6ria, e e particularmente nesta conjuntura que se pressu­pOe um ponto de vista epistemol6gico especifico. Presume-se,e en presumo, ser possivel demonstrar que algumas arrrma90esde cren~ sao falsas e outras verdadeiras, embora 0 que signifi­ca "demonstrar", neste caSo, precise ser examinado com a mes­ma minuciosidade quanto "falso" e "verdadeiro". Presume-se,e en presumo, que a critica interua - os exames criticos a queos cientislas sociais submetem suas ideias e pretensas desco­bertas - einerente ao que a ciencia social e como esfor90 cole­tivo. Pretendo COrrer 0 risco de cair no desfavor dos filosofica-

. mente sofisticados afIrmando, sem mais delongas,que·susten- .to a validade de lais pressuposi90es. Num diferente contexto,porem, seria cIaramente necessario defender lais asser90es emconsidenivel delalhe.

Penso que e possivel demonstrar a existencia de uma rela­~o nao-contingente entre provar a falsidade de uma cren98 e asimplica,.oes pniticas para a transforma~o da a9ao vinculada aela". Criticar uma eren9a significa (logicarnente) criticar qual­quer atividade ou pralica levada a efeito em fun9ao dela, e e

401A TEORhI DA ESTRUTURAt;AO

convincente (motivacional) na medida em que existe uma ra­z1io para a ~o. Quando ela informa sobre um segmento ouaspecto de condula em rela~o ao mundo natural, mostrar que efaIsa levar.i 0 agente (ceteris paribus) a mudar seu comporta­mento em quaisquer aspectos pertinentes. Se isso nao aconte­ce, a suposi9ilo e de que: otitras considera90es estiio preponde­rando no espirito do agente; as imp1ica90es da falsidade dacren9a sao mal-interpretadas; ou 0 ator nao aceita, de fato, quea falsidade tenha sido provada de forma convincente. Ora, saoas cren9as sociais, nilo as relacionadas com a natureza, os ele­

.mentos constitutivos daquilo de que elas tratam. Segue-se daique a critica da falsa cren9a (ceteris paribus) e uma interven­rao prtitica na sociedade, urn fenomeno politico numa acep9aoarnpla do termo..

Como esse exarne da cren9a se relaciona com a assen;aode que todos os atores competentes nao s6 sabem 0 que estaofazendo (sob uma descri9ao ou outra), mas devem faze-Io paraa vida socialter 0 carater que tern? A pergunta podera ser maisbern respondida por referencia a um exemplo concreto. Con­sidere-se votar numa situa9ao de "uma pessoa, um voto". Talpratica envolve claramente todos os eleitores potenciais saben­do 0 que e urn "voto", que s6 podem votar uma Unica vez e emseu nome pessoal etc. Somente quando os participantes sabemessas coisas, e atuarn de modo apropriado, podemos dizer que.existe, realrnente, 0 sistema "uma pessoa, urn voto". Ate que·­ponto poder-se-a validamente dizer que esse fenomeno existe,se apenas uma certa propor9ao de pessoas tiver pleno conheci­mento de que os conceitos pertinentes sao um problema her­meneutico? Dizer que os alore, "devem" saber de sua a9aopara que a VOta9ilo exista eespecificar 0 que conta como des­cri9ilo valida da atividade. Entretanto, sem duvida, algumas pes­soas envolvidas poderao ignorar 0 significado de votar ou to­dos os procedimentos incluidos numa vota9ao, bern como ainfluencia de seu ato no resultado da vota9ao. Generalizando,poderiarnos dizer que quaisquer individuos podem cometer erroscom rela9ao as coisas envolvidas em qualquer aspecto de qual­quer conven9ilo social. Mas nao se pode estar equivocado a maior

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esta se refere) pode; de fato, estar intimamente Iigado. AIf"J maioria das "leis" ong~ mais conhecidas da

Economia neocl3ssica e constituida, poder-se-iapensar, porenunciados cujo conhecimento nio alterara em nada as cir­cunstilncias com que'Se relacionam. Isto e, depende de pa­drOes de motivayilo e raciocinio, por parte de agentes leigos,que muito improvavelmente se alterariio, nlio impona 0 quan-to essas general~s se tomem familiares. Mas 0 desen-volvimento da ciencia econamica desempenhou urn papelna criaylio das pr6prias condiyiies em que se mantem asgeneralizayOes em questilo, promovendo uma postura previ-dente em rela~o il expansao do capital etc. - fenomeno que \f"'discutirei mais adiante. l..vv'/

3) Quando 0 novo conhecimento ou informaylio eusado para ~ (-manter as circunstilncias existentes. Isso, obviamome, pode \vI. ;/'oacontecer ate mesmo quando as teorias ou descobertas en- 0~.( " .' ,­volvidas, se utilizadas de determinada maneira, modificam Y v .-" "=o que descrevem. A apropria,?o seletiva de material cienti- ' /./J /,...-'fico social pelos poderosos, por exemplo, desvia esse mate- ./rial para fIns muito diferentes daqueles que poderiam serservidos se ele fosse mais amplamente difundido.

4) Quando aqueles que procuram aplicar 0 novo conhecimentonao estilo em situa~o de 0 fazer de modo efetivo. Eevidente IIque isso constitui, com freqiiencia, urna qaestilo de acesso aos \recurscs necessarios para alterar urn conjunto exh-rente qe !.circunstancias. Mas e preciso sublinhar tambem que a possi- 'bilidade de arti~~.res. 5~cursivamente e, geralmente,distribuida de modo imetri uma sociedade. Osque estilo

'- - ---nos escalOes inferiores aa sociedade provavelmente teriiovanas lirnitayOes em suas capacidades de formular discursi­vamente sens interesses, sobretudo os de mais longo prazo.Eles tern menos probabilidades do que os que se encontramem posiy6es superiores de transcender 0 carater situado - notempo e no espa~o - de suas atividades. Isso pode ser devidoa oportunidades educacionais inferiores, pelo carater maisconfmado de sens tipicas milieux de a,30 (nos 1ermos deGouldner, eles tern mais probabilidades de ser ··locais" do

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A CONSTlIVI<;AO DA SOClEDADE

I) Mais obviamente, quando as circunstancias descritas ou anaelisadas tratarn de e\'entos passados e se relacionam com c6n­diyiies sociais que ja nao vigoram. No caso em que se penseque isso permite, uma vez mais, uma distinyfu> nitida entrehist6ria e ciencia social, sublinhe-se que ate estudos pura­mente etoograficos de culturas mortas podem muito bern sertratados como esclarecedores de circunst8.ncias atuais, muitasvezes pelos proprios contrastes que revelam. Sem duvida,Dio podemos dizer, em principio, que 0 conhecimento acer-ca de situa~Oes nao mais existentes e irrelevante para outroscontextos nos quais esse conhecimento poderia servir debase de urn modo transformativo. A influencia do "cesarismo"na politica francesa do seculo XIX, satirizada por Marx, eurn bom exemplo.

2) Quando a conduta em questilo depende de motivos e razoesque nao sao alterados por nova informayilo tomada acessi­vel. Neste caso, as rela~oes envolvidas podem ser muito maiscomplicadas do que parece il primeira vista. 0 que pareceser dois conjuntos de fenamenos independentes (por exem­plo, 0 enunciado de uma generaliza~ao e as atividades a que

parte do tempo sobre 0 que se faz, sem sec visto como incom­petente por outros atores sociais; e Dio existe urn 56 aspecto de ?::,'qualquer conven~o sobre 0 qual a maioria dos agentes possaestarerrada a maiorparte do tempo. Devemos, e claro, reconhe-cer outras possibilidades. Agentes posicic.ados em alguns seto- i0,res de uma sociedade poderiio ignorar completamente os acon- ,( \ 'Itecimentos de outros; atores poderiio acreditar que os resulta-dos de suas ati\idades sao diferentes dos mostrados realmente; .' ,'>

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e a redescri~ao de urn contexto de a~ao nos conceitos da cien-cia social podeni representar as ocomncias de maneiras diver- C'

sas daquelas com que 0 agente eslli familiarizado.Podemos supor, repetindo, que 0 novo conhecimento desen­

volvido nas ciencias sociais tera, habitualmente, implicayoes , .~

transformacionais imediatas para 0 mundo social existente. f'

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405A TEORlA DA ESTRUTURAc;:10

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dia-a-<lia seja cronicamente levada a cabo de.modo.deIiberado..Eno estudo das conseqiiencias impremeditadasda:ll9io;~oenfatizei com freqiiencia, que serio encontradas algumas tare­fas mais caraeteristicas das ciencias sociais. EtaInbetD aique

• se localiza a preocupa9io maior dos cientistassociaisinclina-dos para 0 objetivismo e a sociologia estrutural. Aqueles quefalam dos objetivos explanat6rios das ciencias sociais comovinculados adescoberta.de leis nao I'rocedem assim quando osresultados sao mais ou menos completamente premeditados.Assim, por exemplo, os motoristas pararn regularmente, quan_do acende 0 vermelho no semaforo, e arrancam de novo, quandoacende 0 verde. Mas ninguem sugere que parar nos sinais detransito pode ser representado como urna lei de conduta socialhumana. As leis ai envolvidas sao de uma especie juridica. Osmotoristas sahem para que sao as luzes vermelhas, como se pre-sumeque eles devem reagir segundo os c6digos de comportamen­to no trfutsito, e quando param no vermelho ou seguem com 0

verde sabem 0 que estiio fazendoe fazem-no intencionalmente.o fato de tais exempIos nao serem mencionados como leis,muito embora 0 comportarnento envolvido seja muito regular,indica que 0 problema das leis em ciencia social esta muito li­gado as conseqiiencias impremeditadas, condi95es nao-reco­nhecidas e coer9io.

Por "leis" os soci610gos estruturais entendem usualmenteleis universais do tipo que se pensa existir nas ciencias nata­rais. Ora, nao faltam os debates sobre se essas leis existem ounao, de fato, na ciencia natural e, se existem, qual e seu statusl6gico. Mas suponhamos sua exisrencia e admitamos a inter­preta9io corrente de sua forma l6gica. As leis universais esta­belecem que quando querque um conjunto de condi90es, espe­cificadas de urn modo defmido, seja encontrado, havera tam-

/ bern um segundo conjunto de condi90es onde 0 primeiro da.)':~ origem ao segundo. Nem todas as declara90es causais, e claro,

j, .,; sao leis, bem como nem todas as rela90es causalS podem ser',V ,:.subordinadas a leis (conhecidas). Assim tambem, nem todos os

~enu;;ciactos de uma forma universal 0 sao. Hempel cia urn exem­,,~

plo: "Todos os corpos que consistem em ourO puro tern uma

A CONSTlTUlc;:10 DA SOCIEDADE404

Generaliza90es em ciencia social

A vida social, em muitos aspectos, nao e urn produto in­tencional de seus atores constituintes. embora a conduta no

que cosmopolitas) ou ainda porque os que ocupam posi90essuperiores simplesmente dispiiem de uma gama muito maior

. de informa9io acessivel. Tambem e improvavel que os dosescaliies inferiores teobam acesso a urn discurso coerente econceptualmente refmado em cujos termos seus interessespossam ser Iigados as condi90es de sua realiza9ao.

5) Quando 0 que e r;ivindicado como'conhecimento ~esul~ ser, ,.s~.

em parte, fal..o. E bastante 6bvlO, por cerlo, que nao eXlste a "convergencia necessaria entre a validade de ideias ou obser­va90es produzidas nas ciencias sociais e sua apropria9ao poratores leigos. Varias possibilidades derivam disso, incluindoaquela mediante a qual pontos de vista originalmente falsospodem tomar-se verdadeiros como resultado de sua propa­ga9ao (a realiza9ao de algo como simples efeito de sua pro­fetiza9ao). Nao se segue inevitavelmente que a ad09ao deconclusoes nulas seja inconseqiiente a respeito da condutaque pretendem descrever.

6) Quando 0 novo conhecimento e trivial ou desinteressante paraos atores aos quais faz referencia. Este caso e algo mais sig­nificativo do que poderia parecer, por causa das diferen9asque podem existir entre as preocupa90es de atores leigos eas de observadores sociais. Nas palavras de Schutz, as con­veniencias dos cientistas sociais nao sao necessariamente asmesmas dos atores cujo comportarnento procuram explicar.

7) Quando a forma do conhecimento ou da informa9ao geradainibe sua r.:aliza9io ou esconde certas maneinls pelas quaispoderia ser concretizada. 0 mais importan!e caso em ques-Ilio e, de longe, 0 da reifica9ao. Mas as possiveis implica- ,"J90es que isso suscita tambem sao complexas. 0 discurso rei­ficado produzido nas ciencias sociais pode ter efeitos dife­rentes quando 0 discurso de atores sociais leigos tambem ecoisificado ou nao.

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406 A COXSTITUI9AO DA SOC/EDADE A TEORlA DA ESTRUTURA<;jO 407

nl8ssademenos« 100 mil quilogramas." Nao existe urn so- C8S"(1-conhecido-em que essa almna~oniio se sustenta, mas, a. meilOs'qul:'fosse descoberto algum mecanismo causal para ex­

pjlearporque isso di:ve serassim, isso nao seria provavelmentecOnSiderailO~'cremplode wna lei". Ha leis universais nas

. ciencias'sociais? Se niio M, enta~ por que tantos adeptos da So-'ciologiiestnrtural colocaram tipicamente todos os seus trunfosne~sa explica~? A resposta evidente aprimeira pergunta enao. Na ciencia natllraI ou, pelo menos, em algumas de suasprincipais areas, ha muitos exemplos de leis que parecem obe­deCer ao tipo de lei universal. Na ciencia social- e eu incluiriatintoa economia quanta a sociologia neste julgamento - naoM urn sO eandidato que possa ser apresentado de forma indis­cutive! como exemplo dessa lei no dominio da conduta socialhliiilaiia;'Como argumentei nurn outro trabalho", as cienciassociais niio sao retardatarias em comparayao com a ciencia na­

.tinaL A'ld6ia de que, com novas pesquisas, essas leis acabariiopOr ser deScobertas e, na melhor das hipoteses, profundamenteiniplausiveL' '.

Se elas niio existem, e nunca exis,idio, na ciencia social,por que eque tantos supuseram que esta devesse empenhar-sepor realizar essa quimera? Sem dlivida, em grande parte devi­do aascendeucia das ItIosofias ell'piristas da ciencia naturalsobre as ciencias sociais. Mas isso certamente nao e tudo. Aquitambem se implica a suposi~o de que 0 tinico conhecimentoproveitoso acerca de atores ou instituiyoes sociais de interessedas ciencias sociais e aquele que esses atores nao possuem elesproprios. Disso vern a inclina~o para reduzir a urn minimo 0 co­nhecimento imputado a atores, ampliando assim 0 ambito deoperayao de mecanismos causais que ltm seus efeitos indepen­dentemente das raz6es dos individuos para fazer 0 que fazem.Ora, se esse tipo de ponto de vista nao e viavel, em bases que exa­minei em cerlO detalhe ao longo deste livro, teremos de rever anatureza das leis em ciencia social. 0 fato de nela nao existiremleis universais conhecidas niio e apenas uma casualidade. Se ecorreto dizer, conforme argumentei, que os mecanismos causaisf1~:; generalizayOes cientificas sociais depcndcl11 das razoes dos

atores, no contexto de uma "trama" de conseqiiencias premedi­tadas e impremeditadas de a~o. podemos facilmente perceberpor que tais generalizacOes niio rem uma forma uni\·ersal. 0contetido da cognoscitividade dos agentes, a questao de como se"situa" e de qual e a validade do contetido p:oposicional desseconhecimento - tudo isso influenciar3 as circunstfulcias em queessas generalizayoes subsistem.

Correndo uma vez mais 0 risco de desconcertar 0 leilor dementalidade mais filosofica, proponho simplesmente declararque as razoes sao causas, aceitando que isso implica. sem duvi­da, uma explica~oniio-humana de causalidade. Em termos maisadequados, usando a terminologia por mim introduzida: a ra-cionaliza~o da ayao esra causalmenle implicada. de maneiracr6nica, na continuayao das ayoes do dia-a-dia". Por outras pa­lavras, ela e urn elemento importante na gama de poderes cau­sais que urn individuo, enquanto agente social, apresenta. Issoporque fazer algo por determinadas raz6es significa aplicar umacompreensao do que "e requerido" num dado conjunlo de cir­cunstiincias, de maneira a dar forma a qualquer coisa que sejafeita nessas circunstiineias. Ter razOes para fazer alguma coisanao e 0 mesmo que fazer alguma coisa por certas raz6es, e e

.\7'- ' essa diferen9a que eria 0 impacto causal da raeionaliza~oda" ayao. As razoes sao causas de atividades que 0 indi\'iduo "faz

'S" ,\r. acontecer" como caraeteristica inerente a ele ser urn aJ?:ente. Mascomo a monitorayao reflexiva da ayao IS limitada.-conforrnetenho freqiientemente insistido, existem fatores causais influen­ciando a ayao sem atuar atraves de sua racionaliza9ao. Segue­se do que foi anteriormente dito que esses fatores sao de doistipos: influencias inconscientes e influencias que afetam as cir­cunstiincias da ayao, em cujo ambito os individuos levam aefeito sua conduta.

Essas segundas influencias sao, de longe, as mais impor­tanles para fms de analise social, mas, como "circunstancias daayao" e urna expressao muito generica, ela precisa ser expIica­da em certo detalhe. Toda a9ao ocorre em contextos que, paraqualquer ator, incluem muitos elementos que este nao ajudou aproduzir nem possui qualquer controle significali\o sobre cles_

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408 .A. CONSTI1UI<;AO D.A. SOOED.A.DE .A. TEOl/l.A. DA. ESTRUTUJUl;io 409

Essas caracteristicas facilitadoras e coen:ivas dos contextos deayio inclnem fenomenos materiais e sociais. Com relac;ao aosfenomenos soc'.ais, e preciso salientar que 0 que para um indi­vlduo e um aspecto controlavel do milieu social, para outrospode ser algo q.::e "acontece" em vez de algo que se "faz acon­tecer". Muitas das caracteristicas mais delicadamente sutis,bem como as intelectualmente mais desafiadoras, da analisesocial derivam disso. ,Ora, e possivel admitir que todas as gene­raliza<;oes abstratas nas ciencias sociais sao, explicita ou impli­cilamente, enunciados causais. Mas, como me preocupei emenfatizar ao longo deste livro, importa muitissimo saber quetipo de rela96es causais esm envolvido. Quer dizer, as situa<;oesem que os participantes "fazem acontecer" um resultado regn­larizado diferem substancialmente daquelas em que esse resul­tado "acontece" de um modo nao pretendido por nenhurn parti­cipante. Como 0 conhecimento dos agentes sobre as condi<;oesque influenciam a generaI:iza<;ao e causalmente pertinente aela, essas condi96es podem ser alteradas por mudan<;as nesseconhecimento. A profecia auto-realizadora e um, mas apenasurn, exemplo desse fenomeno.

Cabe aqui uma advertencia. Existem sempre condi<;Oes­limite para os efeitos de leis na ciencia natural. Mas elas naoafelam a relac;ao causal invariante que esta no micleo das tare-fas explicativas pelas quais pode ser feita referencia a·Iei. Nocaso de generaliza<;Oes em ciencia social, os mecanismos cau-sais sao inerentemente instaveis, e 0 grau de instabilidade de­pende de ate que ponto os seres aos quais a generalizac;ao se re­fere sao suscetiveis de apresentar modelos. padronizados deraciocinio, de forma a produzir tipos-padrao de conseqiienciasimpremeditadas. Considere-se 0 tipo de generaliza<;ao sugeri-do pelo estudo de Gambetta: "Quanto mais avan9ada estiver urna ..,crian<;a da classe operaria num sistema educacional, menores /Sao as probabilidades de que ela desista de estudar, em compa­ra<;ao com crian<;as de outras classes sociais." Neste caso, asconseqiiencias impremeditadas apontavam para a forma<;ao deurn padrao estatistico, 0 resultado de urn agregado de decisoesde individuos separados no tempo e no espa<;o. Creio que nin-

gnem sugerira ser isso a expressao de uma lei universal; naoobstante, trata-se de uma generalizac;ao potencia!mente escla­recedora. A reIac;ao causal que ela pressupOe depende dilS tiposde tornada de decisao especificadas por Gambetta. Mas, comoassinala esse autor, se os pais ou as crian<;as (de qualquer dasclasses) chegam a conhecer a generalizac;ao, poderao incorpo­ra-Ia em sua avalia<;ao da pr6pria situa<;ao que ela descreve e,portanto, em principio, enfraquece-la.

Podemos dizer, como muitos outros ja 0 fizeram., que asgeneraliza<;oes nas ciencias sociais sao de carater ~bist6rico"

desde que tenharnos em mente os muitos sentidos assurnido~por esse tenno. Nesta conotac;ao particular, significa apenas queas circunstancias nas quais as generaliza<;oes se sUStentam saotemporal e espacialmente circunscritas, na medida em que de­pendem de combina<;oes defmidas de conseqiiencias premedi­tadas e impremeditadas da ac;ao. Sendo esse 0 caso, sera Hcitochamar de "leis" as generaliza<;oes nas ciencias sociais? Issodepende inteiramente do rigor com que se deseje interpretar 0

termo. Em mfuha opiniao, como na ciencia natural a "lei" tendea estar associadaaesfera das rela<;(ies invariantes, mesmo no casodaquelas que nao sao universais na forma, e preferivel nao usar 0

termo nesse campo do conhecimento. Em todo caso, eirnportan­te evitar a implicac;ao dos defensores da sociologia estrutural deque as "leis" somente sao encontradas quando conseqiiencias im­premeditadas estiio envolvidas de modo significativo com rela­c;ao a determinada serie de fen6menos. Por outras pala-..rns, asgeneraliza<;(ies sobre a conduta social humana podem refletirdiretamente maxirnas de a<;ao deliberadamente aplicadas poragentes. Como sublir..'Jei neste capitulo, are que ponto isso e vali­do em qualquer conjunto especificado de circunstancias tern deser urna das principais tarefas da pesquisa social.

As conota,oes pr:iticas da\ciencia SOci~~i

As ciencias sociais, diferentemente da ciencia natural, es-tao mevlt3vc!mente em uJ; ida;, numa '',r.cla.c.ao sujelto-sujelto" \

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411

Como cientistas sociais, compartilhamos com lDdas as pes­soas I3Z03velmente educadas do mundo de uma compreensiogeral e pertuIbadora de que, em nosso campo de estudo, 0 pro­gresso e muito mais leoto do que n~ ciencias nannais. Sao asdescobertas e invenl'6es deslas U1timas que est30 provocandoirresistiveis mud3n~ radicais na sociedade, enquanto as nos­sas, ate agorn, fotaIn muito mais pobres em conseqiiencias. Hi empropaga~o urna insidiosa ansiedade acerea do perigoso biatoinerente a esse contraste. Enquanto'0 poder do bomem sobre anatureza esta aumentando depressa e, na verdade, acelerandorapidiunente, 0 controle do bomem sobre a sociedade, 0 que sig­nifica, em primeiro lugar, sobre as suas pr6prias arilUdes e insti­l.neoes, est:i ficando muito para tnIs. Em parte, pelo menos, issodeve-se ao rnais lento ritrno no avan90 de nosso conhecimentosobre 0 homem e sua sociedade, 0 conhecimento que deve sertraduzido em acao para areforma social.51

o que se segue euma form~o tipica de tal ponto devista, de urn autor que, ali:is, est:i mnito longe de serum segui_dor de Comte: .. .' '

A TEORIA DA. ESTRUTUl/A{:io

Aprimeira vista, rnida parece mais obvio que 0 fato de 0

impacto transformativo das ciencias naturais ter sido incompa­ravelm:se 0 das ciencias sociais. A ciencia natu­ral tem eus pat1'di , suas descobertas merecedoras de con­cordancia ','0 conhecimento de alta generalidade ex-

vJpresso com precisao matemaiica. Nela, os "fundado~s" saof-..J; esquecidos ou olhados como os originadores de idCias que sO

/\ _. possuem urn interesse arqueologico. A fusao de ciencia e tP.O-G. ('C nologia gerou formas de transforma,ao material na mais ex-

'\ , ' " traordiruiria das escalas. Por outro lado, a ciencia social esm, ao(~ ,,;'-~ que parece, cronicamente dilacerada por divergencias e. anta-

cAl' " -' "-, gonismos, incapaz de esquecer seus "fundadores", cujos escri-V' (.. .;J.", tos sao considerados de importiincia permanente. Os goyemos\ r.i~ r:\' de hoje poderao ocasionalmente olhar para ela como fonte.de\J ri. informa~o para decisoes politicas; mas isso parece ser de'eon­

seqiiencia trivial e marginal quando comparado com 0 impaetoglobal da ciencia naturaL 0 maior prestigio social de que estaultima desfruta, em compara\ao com as ciencias sociais. esta em

A COXSTITUI!;iO DA SOCIEDADE410

com aquilo de que se ocupam. As teorias e descobertas dasciencias naturais est30 sep=das do universo de objetos e even­tos a qne dizem respeito. Isso assegura que a rela~ao entre ~{)­

nhecimento cientifico e 0 mundo objetal pennanece sendouma rela~o "tecnologica", na qual 0 conhecimento acumul, .:0

e "aplicado" a urn conjunto independentemente constituido defenomenos. Mas na ciencia social a situa,ao e diferente. Como ~,tO. "\: .disse Charles Taylor: "Embora a teoria da ciencia natural tam- . ,X" .x:-'bern lrailsfonne a pcitica, a pcitica que ela transfonna nao e . <.:"aquilo de que a teoOO se ocupa. [...JPensamos nela como urna .. .;;- ,.'aplica~o' da teoria." Nas ciencias sociais, "a pratica e 0 obje- >< \ ~vto da teoria. Nesse dominio, a teoria transforrna 0 seu proprio . <",\~"

objeto"". As implica,Oes disso sao muito consideraveis e tern a -\C~ .,ver com 0 modo como avaliamos as realiza,oes das cienciassociais, assim como seu impacto pcitico sobre 0 mundo social.

Se aceirassemos 0 ponto de vista daqueles que supiiem queas ciencias sociais devem Set imita,oes das ciencias naturais,nao ha duvida de quP. 0 ponto de vista anterior deveria ser con­siderado urn fracasso. A ciencia social nao apareceu no cenaP,)com os tipos de lei precisa encontrada nas areas mais refmadasda ciencia natural e, por razoes a que ja aludi, tampouco 0 farlino futuro. Em face das circunstiincias, pareceria que 0 tim daaspira~o de criar uma "ciencia natural da sociedade" marca 0

tim da ideia de que as ciencias sociais poderao afetar"seu mun­do", 0 mundo social, no mesmo grau em que as ciel1cias natu­rais inf1uenciaram 0 "delas", Durante gera~s, aqueles quepropuseram sociologias naturalistas flZeram-no com base na no­~o de que a ciencia social necessita "alcan,ar" a ciencia natu­ral, intelectual e praticamente. Por outras palavras, sustenta-seque esta ultima superou comprovadamente a primeira em ter­mos de suas realizayOes intelectuais e, portanto, de suas conse­qiiencias pciticas. 0 problema consiste, para as ciencias so­ciais, em recuperar 0 terreno perdido, a fim de aplicarem suasdescobertas ao controle dos eventos no mundo social, de urnmodo paralelo. 0 programa de Comte fundamentou-se nesse tipode criterio e dai em diante nunca mais deixou de ser sistemati-camente reiterado, de uma forma ou de outra.

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413A TEORJA DA ESTRUTUlU<;AO

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A CONSTlTUl<;AO DA SOClEDADE

ao seu dominio e por outros que se lhes op3em. As conseqiien­cias praticas de panfietos como os de Maquiavel slio susced­veis de ser tortuosas e ramiticadas. Estlio muito longe da situa-9ao na qual as descobertas das ciencias sociais slio cotejadas e cD ;'. yr,:,

avaliadas numa .,:·era (a "critica intema" de especialistas pro-I a+'(·t;,,"'­fissionais) e simplesmente "aplicadas" numa outra (0 mundo

" da a9ao pratica). Mas elas slio mais tipicas do destino do co­H:Ec1'"·:::f'\[~ecimentocientifico-social do que 0 ultimo caso descrito.

Ora, a questao de saber se e justiticado chamar Maquiavelde "cientista social" poderia ser discutida com base em queseus escrilOs precedem a era na qual se tomou sistematizada a

-+ '.' reflexao sabre a !1atureza das instituic;1ies sociais. Suponhamos,Q a.. \J;slY <,(}(-f\~ porem, que examinemos 0 peciodo mais"ecente, que com-+ 0 , preende as,Mcadas fmais do seculo XVIII e a parte inicial do

~I~ V:.~, CJ' '" 0'( /J-. s<culo XI.X: Foi a epoca, poder-se-ia argumentar. em aue co-Quando um homem se lorna principe por concessao do :el'''';-''';' rNJ--J~ me9011 a'pesquisa empirica detalhada das ...<J!l_~iies__iociais.

povo, ele deve manter-se seu amigo, 0 que e muito ficil, pois Alguns consideraram 0 periodo a primeira fase em que as cienciaseste deseja apenas nao ser oprimido. Mas quem se tomar princi- sociais receberam uma base comprobatoria que podia com09arpe contra a opiniao popular, por concessao dos grandes, deve, a assemelhai-se aGa ciencia natural. Entretanto, 0 impressio-antes de mais, procurar conquistar 0 povo. Ser-lhe-a. fiJ.cil isso,

nante e que as teenicas de pesquisa desenvolvidas, e os "dados"desde que 50 tenha ocupado em protege-Io. E, como os homens,quando recebem beneficios de quem 56 esperavam 0 mal, se r gerados, tomaram-se imediatamente parte significativa da so-ohrigam mais para com 0 benfeitor, toma-se 0 povo logo mais c''1''v~ ~\ ciedade para cuja analise elas foram usadas. A abundancia deseu amigo do que se 0 principe livesse sido levado ao poder por estatisticas oficiais e sintoma e resultado material desse pro-vontade sua," cesso. ?lI?spleta foi possibilita<!a pelo uso de metodos sist~:

maticos de pesauisa social. 0 desenvolvimento 'desses 'meiodose insepara\'el dos novos modos de controle administrativo pos­sibilitados pela coleta de estatisticas oticiais. Uma vez estabe­lecidas, estas ultimas propiciaram, por sua vez, novos tipos deanalise social- por exemplo, a pesquisa de padr1ies demografi­cos, criminalidade, divorcio, suicidio etc. Entretanto, a literatu­ra sobre esses topicos foi, por seu tumo, reincorporada aprati-ca dos interessados na produ9ao das estatisticas pertinentes. Aliteratura sobre suicidio, por exemplo, e largamente lida porJUI­zes de insrru,ao, funcionilrios judiciais e ""tros, inclusive aque­les que pensam em cometer ou cometem atos suicidas".

o desen\'olvimento de metalinguagens teoricas e a espe­cializa,ao exigida pelo estudo intensivo de arcas especificas da

o teorema de Maquiavel nao e apenas uma observa9aosobre 0 poder e 0 apoio popular em politica. Pretende ser e foi , . ~ ~ :' jOaceito como urna contribui9ao para 0 mecanismo de govemo. 'N\e.. ce--,Pode-se afinnar sem exagero que a pratica de govemo nunca \~ (''''Ie ( },p

mais foi a mcsma depois que os escritos de Maquiavel se toma- , ..ram conhecidos. Sua influencia nao e facil de descrever. "Ma­quiavelico" tomou-se urn tenno pejorativo em parte por razoesque nAo tern muito a ver com 0 conteudo do que Maquiavelrealmente escreveu - por exemplo, devido ao suposto compor-tamento de govemantes que dao sua interpreta9ao pessoal aoque ele teve a dizer. Principios que podem ser aplicados porprincipes tambem 0 padem por aqueles que estao submetidos

412

plena concon:IAneia com suas realiza90es e infiuencia materialmuito diferentes.

Mas estara correta essa n09iio convencional da ciencia so­cial como a rela9io inferior? Pode-se dizer, pelo menos, que setorna ?tuito menos iacil ~enti-la se considerannos 0 signifi­cado rut?UPla hermeneuti~. As ciencias sociais, repetimos, naoestao isoladas de "8eu mundo" do modo como as cieneias natu-rais estao do "delas". Isso certamente compromete a realiza9ao /de urn corpus distiIito de conhecimento do tipo procurado poraqueles que adotam a ciencia natural como modelo. Entre­tanto, ao mesmo tempo, significa que as eiencias soeiais parti­cipam da propria constitui9iio de "seu mundo" de urn modoque e vedado aeieneia natural.

Considere-se 0 seguinte:

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I

4,14 .4CONSTITUI9AOD.4S0aEDAD~', r' 1;> (U'j{ .4 TEORLtD.4£STRUTUlUt;:AO 415

~da social evidentemente'~ que as ~iencias sociais f;" c1, ~q~ ;\,"", '. dos textos. Na Inglate~ pensava-se geraImente que 0 autornaOB<: tomem totalmente.fundidas com seu "obJeto de estudo".)o,:., 'c' ~" t"" - fosse um manancial de~~, antes de a primeira Ira-Mas,uma vez que se apreende como ecomplexa, Intima e con- " , .', I W ~ !-t h, du~o inglesa de 0 p:incipe setpublicada em 1640.tlnua a aosoci::~o entre anaIistas sociais "profissionais" e lei- \.1. /. ), f 4) 0 tipo de discurso uSado por Maquiavel em seus escritos foigos, fica 1aciI perceberpor que 0 profunda impaCIO da ciencia or e tv. .6 um elemento ou aspecto de mudan~ fundamentais nas or- •social sobre a constitui~o de sociedades modemas permanece dens juridica e constitucional de Estados modernos, Pensaroculto amo. As "descobertas" da ciencia social, se realmente I sobre "politica" de um modo particular e substantivamentesao interessantes, niio l'Gdem permanecer enquanto tais por mui- novo era essencial para aquilo que a "politica" se tomou".to tempo; de fato, qiJanto mais esclarecedoras elas forem, mais 5) Urn govemante que se pensasse ser um seguidor de Maquia-provavelmente serao incorporadas aa9ao e se tomarao, desse vel, e tentasse govemar de acordo com preceitos maquiave-modo, principios familiares da vida social. !islas, talvez achasse mais dificil aplica-Ios do que um outro

" As teorias e descobertas das ciencias naturais estao numa' 0. I .. :' que nao fosse conhecido como taL Por exemplo, os sMitosrela~o "tecnoI6gica" com seu "objeto de estudo". Ou seja, a C\-{}J.. \A \A..C'> 0.," ". de um govemante, que conhe9am 0 preceito de que urn povoinforma~o que geram terr. significado pratico enquanto "rneio" tende a ser particularmente receptivo a favores concedidosaplicado para alterar um rnundo de objetos e acontzcirnentos -+ r '" por alguem que ele esperava ser urn opressor. poderao des-auwnomo e indepencientemente dado. Mas as ciencias sociais ~ )~A/J:i\.' COnIl3fjustamente desses favores.MO est1io somente numa rela9ao "tecnoI6gica" com seu "obje- 0) Maquiavel estava perfeitamente ciente da maiona dos pontosto de estudo", e sua incorpora~ona a~o leiga e apenas rnargi- :l '. /. r acima e adverti ,. licitamente sobre algumas de suas impli-~~aI6gica". Muitas permutas possiveis de conhe- ~ ca90es errrtfPrlncipe. rtanto, muitos desses pontos toma-. n decorrem disso. Para demonstrar ser esse 0 caso, (. y;7~, ' ramose plexcs na medida em que a pr6pria

poderiamo tomar ao exemplo das observa90es de Maquta- ~onsclencladeles passou a fazer parte da atlvldade politlca.vel sobre a natureza da politica. Os t6piros seguintes .ao possi- l '1 ,,; .---.... .00......,

veis envolvimentos e ramifica9Cies dos escritos de Maquiavel: rJ "u' VV.o; j 1-:: Mas por que as formula90es de Maquiavel devem perma-j .' (!-. I necer significativas hoje, e ser seriamente discutidas como per-

I) Maquiavel pode, numa parte substancial, ter dado apenas l\-EN \. \ \Q.!.f$:JVo tinentes as sociedades existentes, se foram absoi"\idas, de va-uma certa forma de expressao ao que muitos govemantes, e Jit riad~s maneiras, nessas sociedades? Por que os que trabalhamsem dlivida outras pessoas tambem, ja sabiam - talvez ate C,' nas ciencias sociais niio podem esquecer seus "fundadores",soubessem algumas dessas coisas discursivamente, embora" como os cientistas naturais fizeram? A resposta poderia ter aseja improvavel que tenham sido capazes de expre.sa-las ver precisamente com 0 carater constitutivo das ideias que urntiio incisivamente quanta 0 autor. I pensador como Maquiavel formula e representa. Maquiavel

2) 0 fate de Maquiavel ter escrito esses textos introduziu urn fomece-nos os meios de ponderada refl~sobr~~s enovo fator, assim que eles se tornaram acessiveis, 0 qual niio pdticas que se tomaram parte da natureza~U doexistia antes quando as mesmas coisas eram conhecidas, se poder politico etc., em sociedades modemas. Ao estudar seuseram. escritos, obtem-se urna perCep9ao do que ha de distinto no Es-

3) "Maquiavelico" tomou-se urn termo pejorativo entre aque- tado modemo, porque ele escreveu num periodo relativamenteles que ouviam falar das ideias assumidas por Maquiavel inicial de seu .desenvolyimento. Tambem nao ha duvida de quesem ter necessarialllente urn conhecimento em primeira mao uesvenda ou d3. uma forma discursiva especifica a principios --

( . \ ~ / J...:.i- ,. \ ~"" ;.., ,Co(O,--r-v'{ (B-v..::\ 1..).....\/-0 O(jj:::. .~, C/ /.'-

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416 417

va-se muito menos com relaylio a teorias e.descobe.tlas..que remo mflximo a oferecer em termos de seu'"!Jor reveladllr. Estaconstitui grande parte da razio pela qual poderia parecerque asciencias sociais fornecetn muito menos informaylio de valorpara os criadores de diretrizes'politicas do que as ciencias natu­rais. As ciencias sociais apDiam-se necessariamente em muilodo que ja e conhecido dos membros das sociedades que elasinvestigam, e fomecem teorias, conceitos e conclusOes que se­rno reintroduzidos no mundo que descrevem. Os "hiatos" quepodem aparecer entre 0 aparelho conceptual do especialista eas descobertas das ciencias sociais, por urn lado, e as praricasinteligentes incorporadas Ii vida social, por outro, sao muitomenos clams do que na ciencia natural. Encaradas de urn pontode vista "tecnologico", as conttibui~oes pniticas das ciencias so­ciais parecem ser, e sao, resttitas. Entretanto, vistas em termosde sua infiltraylio no mundo que analisam, as ramifica~Oespni­ticas das ciencias sociais foram, e sao, deveras profundas.

j)(\ v'Jj' '-' I':) S. ~.f' (\")\cf;\P

A TEORlA DA ESTRUTUlU.<;:AOA CONS17TUI<;:AO DA SOCIEDADE

de governo que tern.apli~o muito generalizada em Estados detodos os generos. Entretanto, a principal razlio pela qual seusescritos 030 tern "data" e que eles constituem uma sene de re­flex5es (estilisticamente brilhantes) sobre fenomenos que aju­daram a constituir. Sao formul'l<;Oes de modos de pensamentoe aylio pertinentes as sociedades modernas, nao s6 em suas ori­gens, mas tambem em sua forma orgauizacional mais perma­nente. Vma teoria arcaica da ciencia natural nlio traz urn inte­resse particular, uma vez que outras melhores tenham surgido. Asteorias que se tornam parte de seu "objeto de estudo" (embora,talvez, em outros aspectos, resistindo a tal incorpora~ao) retemnecessariamente urna importfulcia que as teorias arqueol6gicasda ciencia natural nao possuem.

Promover 0 carater cririco da ciencia social significa favo­reeer uma percejl\'ao conceptual desenvolvida das conota~oes

pniticas de seu proprio discurso. 0 falo de as ciencias sociais .estarem profundamente implicadas naquilo com que se ocu­pam sugere urn papel basico para a hist6ria das ideias. Assim,por exemplo, os estudos de Skinner a respeito do surgimento deformas modernas de discurso no Estado pDs-medieval demons­tram como estas se tomaram consritutivas daquilo que 0 Es­tado e". Ao provar que a natureza do Estado moderno pressu­poe urn coletivo de cidadlios que sabe 0 que e e como funcionaesse Estado, Skinner ajuda-nos a ver como e especifica e dis­tintiva essa forma de Estado e como ela esta entretecida com asmudan~ discursivas que passaram a fazer parte das pniticassociais leigas.

As ciencias sociais 030 podem fomecer conhecimento (re­levante) que possa ser "contido", pronto para estimular inter­ven~s sociais apropriadas quando necessario. Na ciencia na­tural, os critenos comprobatorios envolvidos na decisao entreteorias e hipDteses estlio (em principio e usualmente tambemna pnitica, com exce~Oes tais como 0 Lysenkoismo) nas maosde seus especialistas profissionais. Eles podem prosseguir coma latefa de filtrar provas e formular teorias sem interrup~aodomundo a que as provas e teonas se referem. Mas nas cienciassociais essa situaylio nao se observa - ou, mais exatamente, obser-

IMillRidMnmM ,',x.. .