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  Anna Kal ews ka OS AUTOS INDIANISTAS DE JOSÉ DE ANCHIETA E A INICIAÇÃO DO TEA TRO LUSOBRASILEIRO Resumo: o artigo coloca uma pergunta sobre o início do tea tro luso-brasileiro, instituci onalizado recentemente pela atr ibuição do Prémio de D ramatu rgia de A . J. da Silva a J. M. Vieira Mendes. Ninguém questiona a paternidade de Gil Vicente em relação ao teatro português. Seria que o teatro brasileiro começasse mesmo com António José  (1838) de D. J. Gonçalves de Magalhães? Ou mais cedo, ainda no séc. XVI, com os autos indianistas de Anchieta, i.e. com as peças centrados no índio do Brasil? a autora defende que a segunda interpretação é plausível, considerando Padre José de Anchieta o Apóstolo do eatro Brasileiro. Anna Kalewska justica esta tese, analisando as três peças indianistas anchietanas (O Auto da Pregação Universal, o Auto de São Lurenço, Na Aldeia de Guaraparim) em termos da antropologia do teatro e da história do processo literário. Os rituai s indígenas – ecológicos e s ociais – foram mais importantes para o primeiro teatro brasileiro do que a dramatização da liturgia cristã, haurida do teatro vicentino e jesuítico. Os autos indianistas de Anchieta são bom exemplo da aculturação dramatúrgica, em que a velha gramática do teatro se conjugou com o novo idiolecto cénico. Palavras-chave: teatro luso-brasileiro, Prémio de Dramaturgia António José da Silva, rituais indígenas, teatro jesuítico, antropologia do teatro Title: Te Indianist Plays of José de Anchieta and the Beginning of Luso-Brazilian Teatre Abstract: Te article puts the question about the beginning of t he Luso-Brazilian theatre which has recently been turned into institution by attributing the A. J. da Silva Dramatic Award to J. M. Vieira Mendes. Tere are no voices in protest against the paternity of Gil Vicente over the Portugeuse theatre. However, should the beginning of Brazilian theatre be related to António  José  (1838) by D. J. Gonçalves de Magal hães? Or should it had already sta rted in t he XVI th  centur y, with J. de Anchieta ´ s indianist plays, i. e. with t he ones focused upon the original inhabitant of Brasil? Te second interpretation is plausible, in the opinion of the author who calls Father José de Anchieta the Apostle of Brazilian Teatre. Anna Kalewska justies t his theory, analizing the t hree Anchieta’ s plays ( Te Play of Universal Preachment , Te Play of Saint Lawrence, In the Village of Gauraparim ) in terms of theatre anthropology and history of literary process. Te indigenous rituals – ecological and social ones – no less were important for the rst Brazilian theatre than the dramatized Christian liturgy, taken from Vicentine and Jesuits theatre. Te indianist plays of A nchieta serve as a good example of dramatic acculturation, in which the old theatre grammar has been combined to a new scenic idiolect. Key words: Luso-Brazilian t heatre, António José da Silva Dramatic Award, indigenous rituals, Jesuits’ theatre, theatre anthropology 

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Teatro

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  • Anna Kalewska

    OS AUTOS INDIANISTAS DE JOS DE ANCHIETA E A INICIAO DO TEATRO LUSO-BRASILEIRO

    Resumo: o artigo coloca uma pergunta sobre o incio do teatro luso-brasileiro, institucionalizado recentemente pela atribuio do Prmio de Dramaturgia de A. J. da Silva a J. M. Vieira Mendes. Ningum questiona a paternidade de Gil Vicente em relao ao teatro portugus. Seria que o teatro brasileiro comeasse mesmo com Antnio Jos (1838) de D. J. Gonalves de Magalhes? Ou mais cedo, ainda no sc. XVI, com os autos indianistas de Anchieta, i.e. com as peas centrados no ndio do Brasil? a autora defende que a segunda interpretao plausvel, considerando Padre Jos de Anchieta o Apstolo do Teatro Brasileiro.Anna Kalewska justifi ca esta tese, analisando as trs peas indianistas anchietanas (O Auto da Pregao Universal, o Auto de So Lureno, Na Aldeia de Guaraparim) em termos da antropologia do teatro e da histria do processo literrio. Os rituais indgenas ecolgicos e sociais foram mais importantes para o primeiro teatro brasileiro do que a dramatizao da liturgia crist, haurida do teatro vicentino e jesutico. Os autos indianistas de Anchieta so bom exemplo da aculturao dramatrgica, em que a velha gramtica do teatro se conjugou com o novo idiolecto cnico.

    Palavras-chave: teatro luso-brasileiro, Prmio de Dramaturgia Antnio Jos da Silva, rituais indgenas, teatro jesutico, antropologia do teatro

    Title: Th e Indianist Plays of Jos de Anchieta and the Beginning of Luso-Brazilian Th eatre

    Abstract: Th e article puts the question about the beginning of the Luso-Brazilian theatre which has recently been turned into institution by attributing the A. J. da Silva Dramatic Award to J. M. Vieira Mendes. Th ere are no voices in protest against the paternity of Gil Vicente over the Portugeuse theatre. However, should the beginning of Brazilian theatre be related to Antnio Jos (1838) by D. J. Gonalves de Magalhes? Or should it had already started in the XVIth century, with J. de Anchieta s indianist plays, i. e. with the ones focused upon the original inhabitant of Brasil? Th e second interpretation is plausible, in the opinion of the author who calls Father Jos de Anchieta the Apostle of Brazilian Th eatre.Anna Kalewska justifi es this theory, analizing the three Anchietas plays (Th e Play of Universal Preachment, Th e Play of Saint Lawrence, In the Village of Gauraparim) in terms of theatre anthropology and history of literary process. Th e indigenous rituals ecological and social ones no less were important for the fi rst Brazilian theatre than the dramatized Christian liturgy, taken from Vicentine and Jesuits theatre. Th e indianist plays of Anchieta serve as a good example of dramatic acculturation, in which the old theatre grammar has been combined to a new scenic idiolect.

    Key words: Luso-Brazilian theatre, Antnio Jos da Silva Dramatic Award, indigenous rituals, Jesuits theatre, theatre anthropology

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    Cabe ao padre Anchieta a glria de ter introduzido no Brasil, a partir de textos originais, uma dramaturgia coerente e consistente.

    D. I. Cruz (2006: 32)

    1. UM TEATRO QUE NO QUERIA SER LUSO-BRASILEIRO

    A instituio do Prmio de Dramaturgia Antnio Jos da Silva a distino luso-bra-sileira1 e a sua atribuio para a pea a minha mulher, da autoria de Jos Maria Vieira Mendes em 23 de Janeiro de 2007 evoca a questo das relaes entre o teatro portugus e o teatro brasileiro. O texto vencedor do prmio ser publicado e representado em am-bos os pases. Destarte, foram retomadas relaes entre Portugal e o Brasil no campo da dramaturgia, marcadas pela infl uncia exercida por Gil Vicente (c. 14651536), fun-damentadas pela aco teatral de Jos de Anchieta (15341597), reforadas ainda pelas obras de Antnio Jos da Silva, o Judeu, nascido no Rio de Janeiro (1705). A fi nalidade do Prmio Luso-Brasileiro de Dramaturgia defi ne-se como incentivo escrita dramti-ca em todos os seus gneros e aco de dramaturgos e realizadores de teatro de lngua portuguesa. Por esta ocasio, coloca-se uma pergunta sobre o incio do teatro (luso)-bra-sileiro e as primcias da cooperao cultural entre Portugal e o Brasil.

    O objectivo que procuraremos atingir ser recorrer ao pensamento vigente sobre o tea-tro lusfono de hoje rezando que a aco dramatrgica no Brasil teria comeado dois s-culos antes das operas de Judeu, nomeadamente com a obra do padre Jos de Anchieta (Cruz 2006: 32), justifi c-lo e continu-lo na senda de um estudo literrio e antropolgi-co. Levantar o assunto da iniciao do teatro luso-brasileiro vital no decorrer do sculo XXI, aquando j se fala sobre os oito palcos lusfonos. A actividade da Cena Lusfona2 serve aqui de exemplo do intercmbio actual entre os pases da lngua de Cames.

    Pela impossibilidade de aplicar unicamente os preceitos da antropologia do teatro que, segundo Eugenio Barba e Nicola Savarese se defi ne como o estudo do compora-tamento biolgico e cultural do homem numa situao de representao, quer dizer, do homem que usa sua presena fsica e mental segundo princpios diferentes daqueles que governam a vida quotidiana (ap. Pavis 2003: 17) recorreremos ao estudo histrico-li-terrio do texto proto-dramtico anchietano. Esperamos que se cumpra, tambm com

    1 O Prembulo do Regulamento de Atribuio do Prmio Luso-Brasileiro de Dramaturgia Antnio Jos da Silva reza o seguinte: Com vista ao incremento das relaes culturais no mbito do teatro entre Portugal e Brasil, foi estabelecido entre o Instituto Cames, a Funarte, o Instituto das Artes e o Teatro Nacional de D. Maria II, um acordo genrico de colaborao que prev a atribuio de um prmio de dramaturgia luso-brasileira, a sua edio posterior, apresentao pblica atravs da sua montagem cnica. Em: http://www.instituto-camoes.pt/premioajs/regulamento.htm (19.03.2007).2 Cena Lusfona Associao portuguesa de intercmbio teatral entre Portugal e os restantes pases do Mundo lusfono foi criada em Moambique (1995). Enquanto estrutura organizada e com autonomia, surgiu em 1996, sendo uma organizao devotada ao intercmbio cultural das comunidades lusfonas, se-diada em Coimbra (Portugal). Em: http://cenalusfona.pt/apresentao (17.03.2007).

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    este ensaio, o objectivo do Prmio Luso-Brasileiro instaurado sob a gide Antnio Jos da Silva: vo ser abordadas as obras dos dramaturgos de lngua portuguesa, a antropo-logia cultural vai ganhando novos contornos tericos como uma pesquisa interdiscipli-nar focalizada no espectculo lusfono.

    O Brasil foi mencionado por Gil Vicente na Farsa dos Almocreves e em alguns outros autos (Fama, Fsicos, Inverno e Vero, Purgatrio) num contexto de amor, lonjura, viagem quase extraterrestre e um perigoso mundo do meu doce engano (Vicente 2001: s.n.p3)

    evidente que, ao referirmos o Brasil, estamos a considerar sobretudo o perodo co-lonial encerrado em 1822. Com a independncia do Brasil, o relacionamento do teatro brasileiro com Portugal afrouxou-se, enveredando ao encontro da sua identidade mo-derna. Sentiu-se, porm, o lastro da histria e das traumticas relaes luso-brasileiras epitomadas pela morte prematura de Antnio Jos da Silva (O Judeu), autor do chama-do teatro de bonifrates (bonecos articulados) e de peas designadas naquele tempo por peras4, queimado vivo em auto-da-f na Praa do Rossio, em Lisboa, por suposta prtica de judasmo (1739). A estreia da pea Antnio Jos ou o Poeta e a Inquisio de Domin-gos Jos Gonalves de Magalhes (18111882), realizada pela companhia de Joo Caeta-no na noite de 13 de Maro de 1838 no Teatro Constitucional Fluminense teria iniciado o teatro brasileiro de assunto nacional, no mesmo tempo em que, com Um Auto de Gil Vicente, Almeida Garrett (17991854) comeou o romantismo teatral portugus.

    Com efeito, esse drama do fundador do teatro luso-brasileiro gira em torno de um dramaturgo nascido no Brasil, mas tem como cenrio Portugal e parece ter a seu favor a opinio de Gonalves de Magalhes de que esta obra seria a primeira Tragdia escri-ta por um Brasileiro e nica de assunto nacional (ap. Ribeiro 2002: 115). A trama re-cuperada pelo arauto da escola romntica no Brasil no deixa dvidas sobre o carcter precrio da fagueira liberdade que difi cilmente germinava na Metrpole, sendo o Tri-bunal do Santo Ofcio abolido em Portugal s em 1821. O protagonista do Antnio Jos tem a conscincia de que os gnios das Naes so diferentes (2002: 163). Assim, o Ju-deu diz que escreve s para Portugueses, assume-se ento como portugus. A sua verda-deira nacionalidade brasileira incipiente torna-se menos importante para a trama da pea do que a religio abraada pelos seus antepassados. Antnio Jos teme sempre ser denunciado ao Santo Ofcio o que de facto acontece; na ltima cena da pea Frei Gil le -vao fogueira com a acusao de no ser cristo, sendo do judasmo a sua culpa (2002: 157). Nada lhe ajudaram o amor da valente comediante Mariana/Ins de Castro e a ami-zade do nobre Conde de Ericeira. O drama do artista recebe, pela pena de Gonalves de Magalhes, um interessante paralelo histrico-literrio: Mariana, a representar o papel

    3 A transcrio da citao vem segundo: Gil Vicente, Todas as Obras. Coord. (2001) de J. Cames. Lis-boa, Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses Centro de Estudos de Teatro (CD-Rom). 4 O bsico sobre Antnio Jos da Silva relaciona-se, na pgina do Instituto Cames, com o prmio em questo: Em 1733, subiu cena a sua primeira pea a Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pana. Seguiram-se Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Encantos de Medeia (1735), Anfi-trio ou Jpiter e Alcmena (1736), Labirinto de Creta (1736), Variedades de Proteu (1737), Guerras do Ale-crim e da Manjerona (1737) e Precipcio da Faetone (1738). Em: http://www.instituto-camoes.pt/premio-ajs/premioajs.htm (19.03. 2007).

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    principal na Castro5 de Antnio Ferreira (15281569) no primeiro acto de Antnio Jos, prefi gura a sua prpria morte como herina inocente, um mise-en-abme na sorte de uma das personagens femininas mais famosas da histria e literatura portuguesas.

    Face ao sobredito, o incio do teatro brasileiro remontava at ao sculo XVI, pedindo reivindicao antropolgica e cultural o conceito do teatro como catequese (Magaldi 2001: 16), teatro de catequese (Azevedo 2000: 1243) ou da funo catequista do seu teatro (Berardinelli 2000: 351) em funo de ideologemas nicos para designar o tea-tro de Anchieta. O Brasil dispunha, pois, de tradio oral, de riqussima cultura ind-gena para servir de apoio para o pr-teatro, para o espectculo ao ar livre baseado em ritual indiano e na solente tradio do teatro dos jesutas. Os resqucios desses rituais no menos importantes para o primeiro teatro do que a dramatizao da liturgia crist encontramo-los no teatro anchietano.

    O reconhecimento de um teatro que no queria ser luso-brasileiro mesmo que exis-tissem inmeros pontos de contacto entre o teatro portugus e brasileiro desde os tempos de Gil Vicente at poca dos primeiros Modernismos no Brasil e em Portugal6 pe em jogo ideolgico e esttico e a fraca afi rmao autctone indgena (mas palpvel e digna de ser apreciada) e a actualizao dos padres do teatro europeu, vicentino e jesutico, retomada com insistncia pela crtica da dramaturgia anchietana.

    2. O APSTOLO DO TEATRO BRASILEIRO

    Anchieta, chegando ao Brasil em 1553, tomou contacto com a cultura indgena, for-temente marcada pela msica, pela dana, pelo canto, pelos ritos religiosos. de acres-centar que luz da antropologia do teatro os ritos religiosos e os rituais sociais (tanto do quotidiano como da festa) originaram o desenvolvimento do teatro no seu estado prim-rio, sendo, depois, passveis aos processos de ritualizao secundria7. Os autos do Padre Jos de Anchieta constituem um grande monumento da iniciao dramtica no Brasil. A tabela dos autos anchietanos compreende cerca de vinte peas, escritas e representadas no Brasil, durante o ltimo tero do sculo XVI. Entre eles, podem enumerar-se:

    5 A Castro.., de Antnio Ferreira, foi escrita e representada em Coimbra c. de 1557, publicada em 1587 como Tragdia muy Sentida de Dona Ins de Castro, sendo a primeira tragdia portuguesa de assunto na-cional. O tema de amor infeliz de D. Ins de Castro e de D. Pedro, contrariado em virtude da razo de es-tado, foi tratado anteriormente por Ferno Lopes e Garcia de Resende e posteriormente, entre outros, por Lus Vaz de Cames n Os Lusadas. Repercutiu pela Europa fora em peas de teatro, poemas, romances, novelas, peras e pinturas. Na Polnia, foi tratado por Z. Bytkowski em Ins de Castro, Lvvia 1906.6 Existe uma convergncia e interligao entre o teatro portugus e o teatro brasileiro, que obviamente nasce com as primeiras expresses de colonizao, mas resiste ao processo poltico da independncia do Brasil em 1822 e perdura at s duas grandes rupturas do Modernismo num e noutro pas o Orpheu, em Portugal (1915), e a Semana de Arte Moderna de So Paulo, no Brasil (1922) (Cruz 2004: 3).7 [] Theater develops from ritual and, conversely, ritual develops from theater (Schechner 2003: 120).

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    1. Auto da Pregao Universal (escrito em 1561), que certos autores identifi cam com o Recebimento que fi zeram os ndios de Guaraparim ao Padre Provincial Maral Be-liarte; restam extractos escritos em portugus e em tupi, fi xveis entre 1567 e 1570,

    2. Auto do Dia da Assuno, escrito em tupi, cerca de 1979,3. Na Festa de So Loureno, trilingue, escrito cerca de 1583,4. Na Festa de Natal, trilinge, verso simplifi cada da anterior,5. Quando no Esprito Santo se Recebeu uma Relquia das Onze Mil Virgens, em portugus,6. Auto dos Mistrios de Nossa Senhora, em tupi,7. Visitao de Santa Isabel, de 1595, em castelhano,8. Auto da Vila de Vitria, em portugus e castelhano,9. Na Aldeia de Guarparim, 1597, em tupi,10. Diversas poesias dramatizveis.

    Na maioria dos casos, so umas moralidades, em que os maus tanto podem ser colo-nos pecadores como ndios-diabos empregues em funo de alegorias realistas: estes tm nomes tamoios, da tribo que se aliava aos franceses nas tentativas da conquista da Bahia da Guanabara. Os pecados surgem misturados com maus hbitos da sociedade local: bebida cauim, curandeirismo, antropofagia, poligamia, o fumo, o pintar do corpo. de acrescentar que muitas das prticas dos ndios referidas por Anchieta tinham carcter religioso, pedindo hoje um estudo aprofundado de sua fi gurao mtica, em contraponto da aco missionria dos evangelizadores do Brasil. Jos Eduardo Franco frisou a ligao entre o processo ideo-lgico imanente ao mito jesutico e a sua desconstruo, frisando o papel de Anchieta para a cultura original do Brasil (O Mito dos Jesutas em Portugal, no Brasil e no Oriente, 2007).

    Do ponto de vista dramatrgico, os autos de Anchieta, para l da originalidade e fora criacional, tm o valor extraordinrio da sua profunda penetrao no meio social e cul-tural dos ndios e colonos. No Brasil, os jesutas encontraram uma situao de mistura de colonizadores europeus com ndios, de convvio e confraternizao de culturas mui-to dspares. As evocaes do teatro de feira ibrico entraram num confronto com as manifestaes proto-dramticas dos nativos. Antes de mais nada, o teatro de Anchieta orienta-se no sentido da recuperao da vertente performativa e catrtica que a idade Mdia tinha secundarizado (Bernardes 2000: 751). Evocando as grandes coordenadas antropolgicas (festa, guerra, alimentao, promiscuidade, morte), o auto anchietano favoreceu a preservao da cultura do ndio brasileiro, mesmo que suas representaes correspondessem aos momentos nobres do calendrio litrgico cristo.

    O auto de Anchieta inspira-se, na sua contextura, nos costumes indgenas; a sua pro-sdia e mtrica (a redondilha maior) recorrem aos recursos lingusticos usados por Gil Vicente. Nas peas anchietanas, h sempre uma parte central em dilogo, que nas com-posies maiores se divide em dois actos; em redor desta parte inicial nota-se uma in-troduo ou acto inicial, e dois actos posteriores, dana e despedida, com msica e canto. Essas partes ou actos correspondem ao cerimonial indgena da recepo de personagem insigne que visita a taba8, isto , a aldeia ou a habitao dos ndios. Das quatro ou cin-co partes ou actos, s a parte central contm a aco dramtica atravs do dilogo. As

    8 A taba (aldeia) tinha em geral entre 4 e 8 ocas e 30 a 60 famlias nucleares. Nos aglomerados costeiros residiam, em mdia, 600 e 700 indivduos, havendo, no entanto, variaes regionais e tribais. Algumas

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    outras partes, inicial e fi nais, so lricas e menores em geral. Estas partes lricas, canta-das ou danadas, tomavam as toadas de canes e os passos de danas ndias, portugue-sas ou espanholas, como s vezes o indicava o prprio Anchieta. Tais cantigas, alunos e amigos pediam-nas ao poeta e ele lhas dava facilmente. S que algumas mandava co-piar e espalhar, outras se perderam. Muitas tiveram de ser recolhidas e copiadas depois da morte de Anchieta, em coleces de literatura de cordel. Na ntegra, a obra dramti-ca de Ancheita foi publicada somente em 1954, com transcrio diplomtica, traduo dos textos tupi e crtica realizada por Maria de Lourdes de Paula Martins, digitalizada pela Biblioteca Nacional de Lisboa9. Os actuais estudos sobre o teatro de Anchieta ba-seiam-se na edio do Pe. Armando Cardoso S. J. (1977).

    Como foram representados os autos anchietanos? Qual, por outras palavras, o seu lado performativo, indissocivel do ritualstico e mtico?

    Ferno Cardim no seu Tratado da Terra e Gente do Brasil informa-nos de que um espectculo do teatro jesutico de 5 de Janeiro de 1584 foi encenado sob uma fresca ra-mada, que tinha uma fonte porttil, que por fazer calma, alm de boa graa, refrescava o lugar []. houve boa msica de vozes, frautas, danas e ali em procisso fomos at igreja, com vrias invenes (ap. Rodenas 2000: 937). Para alm da ramada teria ocorri-do a criao de um outro espao imaginrio? Em que consistiriam as vrias invenes? Este nome designava engenhos de fogos de artifcio ou mquinas fantsticas para viabi-lizar o maravilhoso duma representao teatral jesutica (Rodenas 2000: 937). Para alm das rarssimas indicaes do prprio Anchieta no que respeita aos fi gurinos ndios, sua nudez ou s cores vrias de seus adereos, aos efeitos visuais e sonoros, pouco sa-bemos dos actores do teatro anchietano. Menos ainda sobre o seu espao, que devia ser contguo a uma igreja local. Como fossem mnimos os elementos construdos, a natu-reza servia de pano de fundo representao proto-teatral anchietana.

    Os prprios ndios, instrudos pelos padres, incumbiam-se da representao de diver-sos papis e convenciam-se muito profundamente dos ensinamentos recebidos, a tal pon-to que, em vez de agir fi ngindo, representavam em seu prprio nome como performers. As mulheres no fi guravam no elenco, supondo-se, por isso, que a velha ndia no Auto de So Loureno teria sido representada por um homem caracterizado (Magaldi 2001: 24).

    Na Amrica Latina, o Romancero ibrico e o velho teatro litrgico europeu foram ricos na produo de textos picos e de espectculos. Em qualquer lugar, tanto no Brasil como na Amrica Hispnica, a formulao da matriz teatral surgiu defi nida por trs fac-tores, ocorridos cronologicamente na ordem da enumerao: a existncia das danas co-reografadas dos amerndios10, a missionao, a infl uncia bvia do teatro das Metrpoles,

    dispunham de estruturas defensivas: as caiaras (paliadas). J. Couto a Gente da Terra, em: http://www.instituto-camoes.pt/revista/genteterra.htm (19.03.2007).9 Cpias digitais ou digitalizadas das Poesias de Anchieta, ed. M. de L. de Paula Martins, So Paulo 1954 so disponveis em http://purl.pt/6596 (19.03.2007).10 Antes de la colonia, en diversas partes de Amrica existan denominaciones para lo que sera un bai-le coreografado. Entre los maya-quich se llamaba el mitote, entre los mexicas micehualliztli y entre los incas taqui. En Mxico haba artistas oficiales, llamados cuycapic (compositores de cantos), que elabo-raban los textos de las obras para ser representadas y que reciban un salario por ello. Su contraparte en el Per seran los amautas mencionadas por Garcilaso (Oleszkiewicz 1995: 17).

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    que nos pases lusfonos assumiu ligaes directas escola (ps)vicentina. O julgamento da poesia lrica e dramtica de Jos de Anchieta, no dizer de Eduardo de Almeida Na-varro relacionado com o processo de saber tocar as notas mais profundas da alma in-dgena, desenvolvendo um teatro voltado para os primitivos habitantes do Brasil (1999: VII) tem que ser reavaliado em termos da antropologia do teatro. Consideramos, pois, as cerimnias religiosas dos ndios que habitavam o Brasil antes da chegada dos portu-gueses em 1500 o germe do teatro de Anchieta.

    Os autos anchietanos patenteiam o processo da aculturao na dupla tradio teatral: do teatro escolar neo-latino da Companhia de Jesus e do auto popular ibrico. Ambos os fi les criaram o auto anchietano indianista, nascido no Brasil habitado pelos ndios, mais numerosos no sculo XVI do que hoje (Siewierski 2006), por eles e para eles repre-sentado11. Ao dealbar do novo milnio, apareceram vozes de apreciao da actividade de Anchieta em prol do teatro indianista (Santos, Miranda, Azevedo, Oliveira Freitas 2000). Anchieta passa a constituir um cone da aculturao dramatrgica no Brasil; assimilao do texto congnere moralidade vicentina junta-se, especialmente no nvel da representao, o reconhecimento da realidade cultural braslica. Acrescentemos que o auto anchietano continha elementos de encenao do ritual ecolgico (comida, bebi-da, pintar do corpo, proteco contra a natureza) ou social (guerra, tomada de refns, castigos e penas) dos ndios tupi, re-ritualizando-se segundo as festas, costumes, hagio-grafi as e crenas apcrifas crists. Assim, realizava a passagem do ritual para o teatro e do teatro para o ritual, advogada por Schechner. O valor primordial do teatro brasi-leiro renasce sob o olhar do antroplogo imune vontade de impor suas preferncias e seu sistema de valores.

    A aco missionria do padre Jos de Anchieta em prol da defesa da cultura dos amerndios, os verdadeiros protagonistas dos espectculos, danas e msica indge-nas poderia merecer-lhe tambm o nome do Apstolo do teatro brasileiro? o seu ente-rro, festejado em Junho de 1597 teve algo de cerimnia dramtica: o corpo do grande Apstolo foi levado por um cortejo de trs mil ndios, por cem quilmetros, de Reritiba (hoje a cidade de Anchieta) at Vitria, onde foi sepultado no Colgio dos Jesutas, hoje o Palcio do Governo.

    O auto de Anchieta fez germinar o genuno teatro brasileiro, nativo e indgena, an-terior ao teatro nacional de um Constitucional Fluminense.

    11 Os objectivos do teatro do missionrio Anchieta eram to didcticos como os do teatro de Colgio /das Artes em Coimbra/, mas menos escolsticos. No se tratava de fazer mera propaganda teolgica, mas de ensinar costumes. O teatro de Anchieta era dirigido no s a colonos, soldados, marinheiros, mas sobre-tudo aos ndios. Anchieta seria o primeiro a reconhecer quo talentosos eram estes ltimos (as cartas dos padres so tambm unnimes em afirm-lo), mas, por outro lado, aquela terra era relaxada, remissa e me-lanclica, e tudo se ia em festas, cantar e folgar. Era preciso por isso comunicar com a mesma linguagem: a do jogo cnico e dramtico, das vestes coloridas, da dana e da msica (Miranda 2000: 961-962).

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    3. O RITUAL INDIANO NO PALCO DUMA TABA

    Dalma Nascimento, autora do verbete Anchieta (Padre Jos de) em Biblos ou Enciclop-dia VERBO das Literaturas de Lngua Portuguesa chama ao Padre Jos de Anchieta poeta, cronista, teatrlogo e missionrio jesuta, reconhece os seus mritos para a dramaturgia como autor de mistrios e autos sacrais, na linha vicentina, para serem representados nos adros das igrejas, por ndios, mamelucos e luso-brasileiros (ap. AAVV 1995: 258). Sobre a estrutura das peas teatrais de Ancheita debruou-se Pe. Armando Cardoso S. J. Os historiadores do teatro brasileiro, como Sbato Magaldi, sublinham o seu valor hist-rico, lrico, lingustico. A ns, interessar-nos-o os autos indianistas de Anchieta: o Auto da Pregao Universal, o Auto de So Loureno e na Aldeia de Guaraparim.

    de supor que com autos indianistas o teatro anchietano deixasse de ter exclusiva-mente um adro duma igreja como cenrio, enveredando para os palcos provisrios de tabas, i. e., das aldeias de ndios brasileiros.

    Os hbitos das sociedades indgenas, as prticas de curandeiros e dos chefes das tribos, os rituais religiosos e os do quotidiano constituem o fi lo antropolgico mais interessante de peas de Anchieta. A primeira pea de Anchieta, Auto da Pregao Uni-versal, foi apresentada em 31 de Dezembro de 1576 na Vila de S. Vicente12, mas no na igreja local, facto considerado inconveniente pelo Padre Manuel de Nbrega que a tin-ha encomendado a Anchieta, ainda irmo, i. e. no sacerdote, portanto no perodo en-tre 1560 e 1564, mais provavelmente em fi ns de 1561 (Cardoso 1977: 60). Padre Serafi m Leite (autor da Histria da Companhia de Jesus no Brasil, publicada em dez volumes nos anos 19381950) data-o entre 1567 e 1570, quando j Nbrega tinha morrido (1570) e An-chieta j tinha sido ordenado sacerdote (1567). A sua estreia, feita ao ar livre no adro da igreja do Colgio, por certo fartamente iluminado, fi cou clebre pelo prodgio da ces-sao da chuva quando uma tempestade ameaava desabar sobre o local, durou trs ho-ras e houve at lgrimas no auditrio.

    o auto foi escrito nas trs lnguas faladas na Amrica portuguesa: na lngua braslica (em suas variantes tupi e tupinamb), em portugus e em castelhano, sendo universal no sentido de poder alcanar todo o pblico da poca, brancos e ndios. Na represen-tao, aps o dilogo tupi e um desfi le de pecadores perante o pblico ia a parte portu-guesa, adaptada ao novo ambiente, frisando o aparecimento da Virgem da Conceio, muito venerada em S. Vicente. O auto considerado a primeira pea teatral feita no Bra-sil e o incio do teatro brasileiro (Navarro ap. Anchieta 1999: XIV). Depois, o Auto da Pregao Universal representou-se em vrias partes do Brasil: Vila de S. Paulo de Pira-tininga, Cidade do Rio, Aldeia dos Reis Magos no Esprito Santo. O auto agradou intei-

    12 Em So Vicente, Jos de Anchieta fundou o Colgio de Piratininga, onde foi professor de Latim. Em 1554 esse Colgio foi mudado para um novo local, com o nome de Colgio de S. Paulo, que est na ori-gem da actual cidade de So Paulo. A Igreja do local (A Capela de Anchieta) foi erguida com a ajuda do Pe. Manuel de Nbrega. O Beato Anchieta e o Pe. Manuel de Nbrega contribuiram para a paz entre os por-tugueses e vrias tribos ndias.

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    ramente ao pblico e repetiu-se por toda a costa brasileira, com adaptaes maiores ou menores, conforme as circunstncias de tempo e lugar.

    O cenrio mesmo o adro da igreja, em que aparece o principal dos diabos, Guaixa-r e Aimbir, seu criado. Ambos tm nomes de dois chefes ndios pagos. possvel que nas primeiras representaes, antes da fundao do Rio de Janeiro, os nomes dos dia-bos fossem outros (por ex. Anhang, Cabor), embora os tamoios13 j fossem conhecidos como grandes inimigos dos colonos e tupis14, que eram habitantes da capitania de So Vicente e aliados dos portugueses, falantes do dialecto de mesmo nome. A lngua tupi, ainda hoje falada por tribos indgenas da regio amaznica dos vales dos rios Tapajs e Xingu, tornou-se, no sculo XIX, o designativo da lngua braslica como um dialec-to falado pelos tupis. Os ndios-diabos, que vo aparecer no Auto de So Loureno, so personagens com nomes histricos bem como refl exos literrios da experincia autobio-grfi ca. Guaixar nome do chefe tamoio, aliado dos franceses era um ndio de Cabo Frio derrotado por Araribia e pelos soldados de Estcio e Mem de S na conquista da Guanabara em 1565 e 1567; transformado em lder dos demnios, no auto de Ancheita combate os missionrios e ndios convertidos. Aimbir, outro chefe tamoio, aliado e so-gro dos franceses, era por sua vez um ndio de Iperoig (Iperogue) que tentou matar An-chieta quando este l esteve como refm em 1563, juntamente com Manuel de Nbrega. No Auto da Pregao Universal o diabo auxiliar de Guaixar e inimigo dos tapuias, i. e. dos ndios que no falavam a lngua braslica, de cultura diversa, aprisionados e con-denados morte em aldeias do anterior15. Esses mesmo tapuias, pelas palavras de Aim-bir, Passaram a noite inteira/Em feitios e a danar,/Antes de ir para a fogueira (vv. 101-105, Anchieta 1977: 124).

    No auto indianista de Anchieta mencionam-se, ento, os belicosos tupinambs (des-cendentes dos tupis) que viviam num estado de guerra fratrcida permanente, esses do Paragauau/que com Deus no tinham paz (vv. 113-114, Anchieta 1977: 124), ndios da Bahia, derrotados por Mem de S, em seu reduto principal de Paraguau; na trama dra-mtica teriam sido derrotados pelo gabarola de Aimbir.

    Os demnios apresentam-se, indagados pelo anjo sobre as respectivas identidades (a du-pla verso lingustica: portuguesa e tupi, mantm-se nos autos indianistas de Anchieta):

    13 A rea costeira fluminense delimitada pelo cabo de So Tom e Angra dos Reis era controlada pelos tamoios (av) outro ramo dos tupinambs que dispunham, ainda, de algumas povoaes mais a sul: Arir, Mambucaba, Taquarau-Tiba, Ticoaripe e Ubatuba. J. Couto, a Gente da Terra, em: http://www.instituto-camoes.pt/revista/genteterra.htm (19.03.2007).14 Em 1500, os Tupi ocupavam a larga maioria da costa entre o Cear e a Cananeira, actual So Paulo, e os Guarani, estabelecidos exclusivamente a sul do Trpico de Capricrnio, dominavam o litoral situa-do entre Cananeia e a Lagoa dos Patos (Rio Grande do Sul). As sociedades Tupi-Guarani eram semi-se-dentrias, ou seja, comunidades de horticultores-caadores-recolectores-pescadores que baseavam o seu modo de subsistncia no cultivo de razes, sobretudo da mandoca, sem recurso utilizao do arado ou de adubos. Representavam a cultura da floresta tropical; practicavam poligamia, tinham vrias crenas sem uma religio organizada num sistema. Nas sociedades tupi-guarani, o complexo guerra-vingana-an-tropofagia desempenhava um papel fundamental, era parte indissocivel da guerra endmica entre gru-pos tupi (Couto e Guedes 1998).15 Entre os tapuias, contavam-se os aimors, os guarulhos, os cariris, os guaians etc., todos falantes de lnguas pertencentes ao tronco Macro-J (Navarro ap. Anchieta 1999: 192).

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    Guaixar: Guaixar, o cauu, Gaixar kagura, ix,Sou o grande boicininga, mboitiningus, jagura,O jaguar da caaringa, moroura, moroapyra,Eu sou o andir-guau, andir-guas beb,Canibal, demo que vinga. Anga morapitiatira.

    Aimbir: eu, gro tamoio Aimbir, Xe jobia, xe sok,Sou jibia, sou soc, xe tamuius Aimbir.Sucuru taguat, Sukurij, taguat,Demnio-luz, mas sem f, tamandu aty rabeb,Tamandu atirabeb! Xe anga morop! (vv. 204213, Anchieta 1977: 127).

    No falar dos diabos nota-se certo pendor psicolgico: Guixar mais soberbo e atre-vido, Aimbir mais tmido.

    No canibal, demo que vinga l-se a aluso ntida antropofagia que era uma pr-tica corrente entre os amerndios, designadamente entre os tupi-guaranis. Este ritual provinha de um veemente desejo de vingana, mas como a maioria dos rituais so-ciais tinha por funo salvaguardar a coeso interna do grupo. O cativo desempenha-va um papel primordial nas relaes inter-aldeias, devendo ser exibido nas povoaes vizinhas. Geralmente as tabas aliadas eram convidadas a participar no banquete cani-bal, transformando-se num ritual de solidariedade colectiva que consolidava as alianas entre as tribos.

    O que est pro detrs da prtica para-teatral dos ndios brasileiros? Anchieta recor-da que o velho cristianizado Tibiri intentara recair na prtica de canibalismo e sacri-fi car um papan aprisionado (DOliveira Frana e Siqueira 2000: 419-420). O possvel ritual antopofgico podia ter sido precedido pelo acto festivo (e ritual proto-teatral) da cauinagem (preparao da bebida chamada o cauim), que geralmente durava ts dias, acompanhada de cantos e danas.

    Todos os rituais dos ndios da costa brasileira eram acompanhadas pelo consumo de cauim. O seu consumo fortalecia as foras antes das interminveis guerras, devia ajudar tambm a fazer feitio anunciar aos profetas ambulantes o paraso tupi nas prticas religiosas que conduziam a estados de transe durante os quais os ndios tinham comu-nicao com os mortos e vises da Terra sem Mal (Navarro 1999: 191-192). Nas peas indianistas h pontos de contacto entre o mundo dos ndios e as anglicas defesas in-ventadas pela tradio catlica.

    Os dois diabos-ndios vangloriam-se ento de ter conquistado o povoado de S. Vi-cente, induzindo seus habitantes a todos os vcios, que vm enumerados e descritos por Guaixar com todo o realismo (captamos tambm a realidade lingustica de tupi):

    boa coisa beber, Mba et ka guasAt vomitar, cauim. Kaui mojebyjebyra. isto o maior prazer, Aip sausukatupyra.Isto sim, vamos dizer, Aip ajamombeIsto glria, isto sim! Aip imomorangimbyra!

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    Pois s se deve estimar Serapo ko mosakraMoacara beberro. Ikauingusbae.Os capazes de esgotar Kaui mboapyaret,O cauim guerreiros so, a maramogra,Sempre anseiam por lutar. Amrna pot mem.

    bom danar, enfeitar-se Morasia e ikat,E tingir-se de vermelho; jeguka, jemopirnga,De negro as pernas pintar-se, samongy, jetymangunga,Fumar e todo emplumar-se jemona, petymb,E ser curandeiro velho. Kara moamonga

    Enraivar, andar matando Jemoyr, morapit,E comendo prisioneiros, jo, tapia rra,E viver se amancebando, aguas, moropotra,E adulteiros espiando, Maana, syguarajyNo o deixem meus terreiros. naipotri ab sejra. (vv. 23-41, Anchieta 1977: 121-122).

    As tribos indgenas, no olhar de Anchieta, parecem atingidas pelos mesmos pecados: bebedice, canibalismo, esprito guerreiro endmico; para estes vcios vo-se acrescen-tando, ao longo dos autos indianistas anchietanos, a poligamia, o nomadismo, o nu-dismo e a religiosidade baseada em animismo e crendices, impenetrvel a ideia de um Deus espiritual.

    No meio dos seus gabos de triunfo, condimentados com muita malcia e imprecaes de toda a espcie, aparece um personagem que perturba os dois ndios. o anjo, carac-terizado com os traos do exotismo indgena; o terceiro personagem, com importante papel no desfecho da pea. Este anjo parece azul caind/ ou uma arara de p (vv. 188-189); referindo-se o dramaturgo s aves brasileiras de bela plumagem. N o Auto da Pre-gao Universal o mensageiro divino estava representado com asas coloridas, moda indgena. Num dando momento, quando os diabos, vestindo suas armas de terror, se preparam para um assalto fi nal, o anjo revela o seu poder precipitando-os num istan-te para o inferno. O anjo pe um fecho de ouro ao dilogo tupi com uma prtica aos ou-vintes, exortando-os ao abandono do feio adultrio/bebida,/ mentira, briga, motim,/ vil assassnio, ferida (vv. 423-425).

    Seria a realidade captada pelo padre Jos de Anchieta oposta ao mundo de doce engano imaginado por Gil Vicente nas terras brasileiras? Apesar de tudo, a funo so-cial impunha suas contingncias aos autos escritos e representados de ambos os lados do Atlntico.

    No quarto acto do Auto da Pregao Universal h ainda a dana de doze meninos ndios que, cantando em tupi, portugus e espanhol, exaltam a alegria do nascimento do Menino, com a oblao de sua vida crist a Jesus e Maria e confi sso da sua condio defi nida como selvagem brasil indgena pobre mas benvolo.

    Parece, ento, que o espectaclo anchietano combinava, de uma maneira natural di-tada pelos objectivos da catequese, os rituais da liturgia crist com alguns ritos indianos

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    primitivos e msica original16. O auto de Anchieta inspirava-se, pela sua faceta popular, nos costumes indgenas e os ndios foram o principais executores actores e pefromers (expiadores dos pecados) das exibies teatrais. A aldeia ou vila dos ndios anchietanos era o foco donde o genuno teatro popular irradiava para todo o Brasil.

    4. IMPERADORES ROMANOS, SANTOS E NDIOS BRASILEIROS

    Em 1578, Anchieta foi nomeado superior dos jesutas do Brasil. Renunciou ao cargo em 1585, para se entregar missionao das aldeias indgenas, exercendo intensa acti-vidade missionria e civilizadora. Por essa poca aconteceu a fundao de Reritiba, de Guaraparim, da aldeia dos Reis Magos e de outras. Alguns autos importantes esto li-gados a esse perodo, como, por exemplo, Na Festa de So Loureno mais conhecido como o Auto de So Loureno17. Trata-se da mais famosa obra teatral de Anchieta, re-presentada pela primeira vez no adro da capela de So Loureno, no primitivo ncleo da actual cidade de Niteri. Isso devia ter ocorrido em 10 de Agosto de 1587, quando Anchieta visitava a localidade na qualidade de provincial. O palco do auto foi o adro da capela do Santo, perto da Serra do Mar, que acompanha o litoral do Brasil de Sudeste. representao foi assistida grande parte da cidade do Rio de Janeiro que se transportou em canoas e navios para o outro lado da Guanabara. Vemos nele alguns diabos conhe-cidos do Auto da Pregao Universal e os demais que ainda queriam dominar a aldeia de Guaraparim, cada um a contar suas faanhas e maldades.

    A pea apresenta cinco actos. No primeiro aparece de So Loureno, morto no tem-po de Valeriano, censor do imperador romano Dcio, por volta do ano 258 d. C. O Au-to de So Loureno introduz ento personagens histricos e mitolgicos: imperadores romanos Dcio e Valeriano (tirados da Legenda urea), mencionam-se Pompeu, Cato, Csar, Nero, Anbal, famosos por seus grandes actos blcios bem como Palas, Pluto, J-pter, etc. Pelas referncias de Valeriano fazem-se aluses primeira conquista da His-pania pelos romanos, em 264 a.C.

    No segundo acto vemos trs diabos que querem destruir a aldeia com suas malda-des. Resistem-lhes trs personagens: So Loureno, So Sebastio e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia. Os diabos desse auto anchietano tinham os mesmos nomes de anti-gos chefes tamoios conhecidos do Auto da Pregao Universal (Guaixar, Aimbir) h tambm um personagem novo em cena, o ndio Saravaia. So os mesmos trs antigos chefes tamoios que lutaram na Campanha da Guanabara (15651567), mortos durante a guerra contra os franceses, como seus aliados. Saravaia, cujo nome referido no auto

    16 Quanto a instrumentos de msica, os ndios os tinham rudimentares, f lautas de taquara ou de ossos, bzios, maracs ou cabaos com pedrihans de contas. Introduziram-se violas e outros instrumentos de corda, pfaros, pandeiros, tambors, gaitas de deiversas formas e at harpa, cravo e rgo, com efeito ex-traordinrio para o ouvido sensibilizado do selvagem brasileiro. s vezes os autores antigos fazem a com-parao de dextreza entre o ndio e o reinol, dando vantagem quele (Cardoso ap. Anchieta 1977: 57).17 O Auto de S. Loureno tem forma digitalizada, disponvel gratuitamente em: http://www.dominiopu-blico.gov.br/download/texto/bv000145.pdf (20.03.2007).

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    Sapo Achatado (Cururupeba) era um espio dos franceses que traiu os ndios aliados dos portugueses; o nome podia ser adaptado do portugus selvagem.

    Todos os trs demnios funcionam no Auto de So Loureno como smbolos da so-berba, da astcia e da traio. Guaixar caracterizado como o bebedor de cauim []/ grande cascavel, ona,/ queimador de gente, morcego voador,/ diabo trucidador de gen-te (vv. 290-294) e Aimbir defi ne-se como uma jibia,/ [] um soc,/ [] o grande tamoio Aimbir,/ sucuriju, gavio,/ tamandu topetudo;/ [] um diabo esquentador de gente! (vv. 296-300). O diabo Aimbir confi rma ento que o seu nome era o de um tamoio; tinha a ver com o nome de sucuri, uma cobra estranguladora. Os autos de An-chieta desvendam caractersticas indianistas nos ortnimos, no uso da lngua tupi, nas referncias aos rituais dos primeiros habitantes do Brasil.

    O Auto de S. Loureno desenvolve a trama do Auto da Pregao Universal com algu-mas adaptaes ao cenrio do Rio de Janeiro. A canoa de Guaixar pegou fogo, incutin-do pnico em outras, o que foi considerado como interveno de S. Sebastio, protector da cidade. Na linguagem da pea, a linguagem grosseira e irnica empregue por diabos, fazendo lembrar as diablries dos mistrios europeus. H tambm um certo pendor natu-ralista ao tratar os amaldioadores de Deus [] com ferro pontiagudo (vv. 1468 e 1471) e ao esfolar e passar pelas brasas o santo mrtir Loureno. Estes mesmos amaldioadores tanto so os crueis tiranos da primeira poca da cristandade, como os ndios tamoios contemporneos do tempo da escrita e da representao do Auto de So Loureno.

    Os trs ndios imaginados como demnios so acompanhados por uma turma de auxiliares, chefes tamoios vencidos, com nomes animais, sugestivos certamente para a gente da capitania: Tataurana, Urubu, Jaguaruu, Cabor. Por outro lado, alm do Anjo da Guarda e um seu companheiro, aparecem, como protectores principais da Guanaba-ra, S. Loureno e S. Sebastio. A pea tem mais personagens em cena comparando com o Auto da Pregao Universal.

    A faceta histrica e contempornea do Auto de So Loureno faz com que a pea re-ceba uma encenao veemente, ao sabor da batalha naval, exequvel em cena com o uso das mquinas do repertrio jesutico. A destruio das aldeias tupis, apregoada por Guaixar, devia ser sentida como ameaa verdadeira. A restituio da paz social depois da representao do auto anchietano era um processo performativo, acontecia verda-deiramente.

    A estrutura fi ccional do Auto de So Loureno conhecida das outras peas anchie-tanas: h demnios que querem estorvar a paz social e os anjos ou santos que vencem e expulsam os espritos malignos. O indianismo completa o interesse meta-histrico e a inteno didctico-moralizante.

    O facto de So Sebastio ser includo como personagem do auto explica-se por ser o patrono da recm-fundada cidade de Rio de Janeiro. Havia efectivamente grande devo-o a esse santo no incio da Idade Moderna, na fase do catolicismo guerreiro cruzadista do incio da colonizao da Amrica espanhola e da portuguesa, quando a expanso co-lonial era considerada um acto de acrescimento da f. So Sebastio, um santo guerreiro morto a fl echadas no tempo do imperador romano Diocleciano (cerca de 286 d.C.), sim-bolizava aquele momento que a guerra contra os franceses, na dcada de sessenta do s-culo XVI, era tida por uma verdadeira guerra santa. A conjugao do historicismo com

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    a mitologia e com a histria do Brasil pouco anterior ao tempo da narrao dramtica uma vertente nova do auto em questo.

    O Auto de So Loureno rico de detalhes a respeito da cultura dos primitivos ind-genas da costa brasileira. No discurso de Guaixar menciona-se de novo a bebida cauim, as danas dos ndios, os hbitos de avermelhar-se,/ emplumar-se, tingir-se com urucu as pernas,/ pretejar-se, fumar,/ fi car fazendo feitios (vv. 53-56), isto , refere-se a toda a preparao ritualstica entrada em transe e a comunicao com os antepassados dos ndios. A velha ndia recebe Guaixar, como se fosse o rei da festa, com os ritos de lou-vor aos hspedes insignes, mas depois d-se conta de que os cristos consideram erro beber o cauim e comea a chorar, pedindo a Guaixar para deixar os vcios. Refora-se, assim, a faceta moralizadora da pea.

    A introduo da velha ndia a aguardar a chegada de Guaixar, conhecida como sau-dao lagrimosa, patenteia a existncia de mais um rito indiano importante para a co-eso social dos tupis e original no panorama dos autos anchietanos.

    Nos demais actos de o Auto de So Loureno, os imperadores romanos, hispanofalan-tes18, Dcio e Valeriano so torturados no fogo eterno, as personagens alegricas: o Temor de Deus e o Amor de deus fazem sermes buscando apresentar uma refl exo sobre a vi-da humana. Os dois ndios, Aimbir e Saravaia, arrastam para o inferno os imperadores, pelo mandamento do anjo. Castiga-se, assim, a maldade cometida contra os mrtires.

    de reparar que nos autos ancheitanos em causa todos os ndios no deixam de ser diabos, conservando, porm, a sua caracterstica cultural: empregam expresses em tupi e mostram atitudes tipicamente indianistas. So, portanto, os portadores da cultura in-dgena. No Auto de So Loureno mesmo os imperadores chegam a falar guarani, o que devia ser saudado com grandes risadas dos ndios.

    A aculturao funciona tambm na direco oposta: Saravaia, depois de ter derrota-do os imperadores, fi ca com as coroas deles na cabea, levando por si o nome de Cururu-peba, valente chefe dos ndios celebrado por Anchieta no seu poema latino De Gestis Mendi de Saa (1563); a obra pica em louvor de Mem de S foi a primeira publicada na literatura brasileira, ainda que escrita em latim.

    Anchieta lana mo em seus autos das duas variantes dialectais usadas no Brasil quinhentista, o tupi e o tupinamb, o que enriquece sobremaneira a sua obra lingusti-ca, iniciada com a redaco de sua gramtica da lngua braslica. Porm, essa gramtica foi publicada somente em 1595 com o ttulo de Arte de Gramtica da Lngua mais Usa-da na Costa do Brasil19.

    18 O uso do castelhano no Auto de So Loureno de Anchieta ser bem compreensvel se lembrarmos a si-tuao de bilinguismo existente em Portugal no sculo XVI (todos os escritores do renascimento portu-gus, com excepo de Antnio Ferreira, eram bilingues) e a existncia de grande nmero de colonos de origem espanhola no Brasil quinhentista. O castelhano era a lngua materna de Anchieta, oriundo de Te-nerife, Ilhas Canrias.19 A Arte de Gramtica da Lngua mais Usada na Costa do Brasil, do Pe. J. de Anchieta, publicada em Coimbra (1595) foi a primeira gramtica de uma lngua indgena brasileira, obra de grande valor lingus-tico e muito original para a sua poca. Em 1836, o Papa Clemente XII reconheceu, em decreto, as virtu-des hericas de Anchieta, declarando-o venervel. No dia 22 de Junho de 1980, em cerimnia solene da Baslica de So Pedro, Roma, Anchieta foi beatificado pelo Papa Joo Paulo II.

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    5. AS TENTAES DE PIRATARACA E O BOM NDIO ANCHIETANO

    Na Aldeia de Guaraparim esse o ttulo dado pela tradutora Maria de Lourdes de Paula Martins ao mais longo auto de Anchieta, escrito exclusivamente na lngua bra-slica. Trata-se do auto mais indianista do teatro anchietano e o de estrutura literria mais perfeita, em virtude da riqueza do vocabulrio e da fl uncia do dilogo. A pea de parceria com os demais autos anchietanos foi classifi cada por Jos Augusto Cardoso Bernardes como a moralidade poltico-social de incidncia realista (2000: 742).

    A aldeia de Guaraparim formou-se primeiramente em 1558 de um ncleo de ndios temimins (ndios de Niteri e do Esprito Santo), chefi ados pelo jaguarau ou Co Gran-de, irmo do Maracaj Guau o Gato Grande. Os temimins mencionam-se vrias ve-zes na pea, bem como o seu primeiro chefe. Guaraparim era visitado no princpio pelos padres das prximas aldeias da Conceio e de S. Joo. S por volta de 1580 Anchieta como provincial da Companhia de Jesus no Brasil a fundou ofi cialmente, com assistn-cia regular de missionrios. A igreja de Guaraparim foi dedicada a Sant Ana; para a sua inaugurao no dia 8 de Dezembro de 1585 Anchieta teria escrito este auto.

    O auto inicia-se (na edio do Padre Armando Cardoso) com um cntico ou recitao em louvor da Virgem: Ave, formosa Maria,/Ave Maria pornga em dez dcimas, sendo cada uma atribuda a um menino ndio. Descrevendo a beleza e o poder de Maria, An-chieta procurou elevar a dignidade da mulher, bastante aviltada dentro da famlia ind-gena. As imagens de Nossa Senhora da Conceio e de Santa Ana (padroeira da aldeia), encontram-se expostas no portinho da localidade e vo ser levadas em procisso at igreja. Naturalmente, o diabo se apavora/anga nde moabait (v. 51).

    O acto segundo como costume nos autos indianistas anchietanos integra um con-luio de demnios. O enredo, o mais denso em expresso dramtica, representou-se no adro da igreja num longo dilogo dos ndios-demnios: alm de seu rei, o ndio grande Anhan-guu, aparecem trs ndios muito originais: Tatapitera (ou Arongatu), o lana-fogo nas tabas; Cuamond ou Cuaguau , ou o ladro do vinho; Moroupiaroera ou Boiou, o cobra-grande, o destruidor; h ainda o antropfago Jaguaruu. Todos so bem caracterizados como agen-tes tentadores e portadores do pomo da discrdia e desordem, da crueldade e antropofagia, recebendo os nomes que bem caracterizam as suas aces. O intento dos diabos conquis-tar a aldedia de Guaraparim. Depois de se terem gabado dos seus feitos, os ndios-demnios pensam em que ho de fazer. Nesta parte do dilogo Anchieta inspira-se nos monlogos e solilquios dos chefes guerreiros, velho hbito ndio, a que assistiu muitas vezes.

    A exposio dos planos malfi cos dos demnios conjugada com as habilidades naturais dos ndios serve para uma reprovao da conduta dos ndios e dos colonos: da eterna discrdia, da guerra, da bebedeira, da ociosidade, do canibalismo. Mesmo que os ndios-diabos queiram combater com os temimins, fazer aos tupis guerra/ as tup moangaippa (v. 185) e extermi-nar os cristos, reconhecem o grande Rei/pai Tup Jesus Cristo e sua Mo; a confi sso e a in-tercesso da Virgem Maria salva-os do mal, adivinhando-se a converso dos temimins.

    Como sempre acontece em autos anchietanos, a referncia aos hbitos dos ndios a exposio grotesca dos vcios e dos pecados dos primeiros habitantes do Brasil obser-va o princpio ridendo castigat mores.

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    Nesse nterim, ao iniciar o terceiro acto, pousa no meio dos diabos a alma de um ndio convertido recm-falecido, Pirataraca, que os diabos tentam conduzir para o seu camin-ho. A alma congnere da do Auto da Alma de Gil Vicente contesta as acusaes dos diabos acerca de sua vida passada, invocando a me de Deus; benefi cia sempre da pro-teco do Anjo da Gaurda. A infl uncia vincentina patente aquando da disputa acerca da alma de Pirataraca, que os demnios querem levar para a barca do inferno. Pratara-ca defende-se bem, dizendo ser cristo e virtuoso, evocando os seus nomes de baptismo e de crisma, bastante conhecidos: Francisco e Vasco Coutinho.

    Francisco Pereira Coutinho foi o primeiro donatrio da Bahia, morto e comido pe-los ndios, de quem o ndio Pirataraca tomou o nome de baptismo e Vasco Fernandes Coutinho donatrio do Esprito Santo, de quem o mesmo ndio recebeu o nome (de cris-ma). Mas isso nada lhe vale para livrar-se das acusaes dos diabos que lhe enumeram os pecados cometidos: fugiu da aldeia, no a a missa aos domingos, trabalhou nos dias santos, comeu carne todos os dias, agrediu mulheres, espancou a sua esposa, roubou vin-ho e embebedou-se, cometendo torpezas de toda a sorte a alma reconhece seus peca-dos, mas argumenta que teria recebido o perdo de Deus pelo arrependimento, jejum e confi sso. Finalmente, resgatada por intercesso de Virgem Maria, a bondosa me de deus/ Tup sy-angaturama (v. 740) que ia esmagar a cabea do diabo Anhanguu surgindo como contraponto de Eva.

    Depois da parte dramtica indgena, operam-se milagres cristos e actos de salvao sobrenatural. Anhanguu aperta a alma de Pirataraca para se confessar, aparece a Vir-gem da Conceio, protectora de Guaraparim e afugenta os demnios. Repete-se ento a interveno da Virgem, bem como a prtica do anjo, conhecida do Auto da Pregao Universal, com algumas estrofes mudadas e acrescentadas. Finalmente, o anjo salva e ex-pulsa os demnios, defendendo a aldeia; doravante a aldeia de Guaraparim convertida vai cumprir os dez mandamentos, deixando a vida pecaminosa e os velhos hbitos.

    No acto quarto, segue-se a despedida a cantiga Da Conceio de Nossa Senhora e a habitual dana dos dez meninos ndios, reforando a faceta performativa da procis-so mariana do primeiro acto. Artisticamente pintados de diversas cores e enfeitados de plumas variegadas, com maracs e fl autas, esses cortejos davam aos autos anchietanos um inesquecvel sabor indianista.

    No acto quinto havia ainda (na edio de Armando Cardoso) a cano da Me de Tup/ Tupansy poranget, adaptao de uma cano popular do sc. XVI, para explorar a beleza e o poder de Jesus Menino e sua Me. O discurso dramtico de censura ao n-dio vai ser transposto para o discurso homiltico e lrico de louvor a Virgem e Cristo; observa-se a funo performativa e catrtica do auto anchietano.

    O bom ndio de Anchieta aprender, em outros fragmentos dramticos, a saudar o superior dos jesutas em dcimas portuguesas e a exprobrar os vcios no s dos ndios, como tambm dos brancos; haver ndios vestidos nos ritos dos sacrifcios guerreiros da matana dos prisioneiros; danas de ndios civilizados para o bel-prazer dos recm-vin-dos, cantigas de meninos engalandados. A aculturao dos rituais indianos no proces-so da missionao das aldeias tupi foi o maior mrito do teatro anchietano. A fi gurao ideolgica deste mesmo teatro, segundo a opinio de Jos Cardoso Bernardes, teria des-activado a alegoria do mal abstracto, enveredando para a viso eudemonista do ndio,

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    que parece [] assentar num claro optimismo antropolgico que supera a prpria opo-sio entre o Bem e o Mal, dando o segundo como um precedente do primeiro ou, na pior das hipteses, uma suspenso temporria dos seus efeitos (2000: 743).

    A mudana do ponto de vista ideolgico de mal para o bem em relao ao ndio brasileiro mostra a capacidade de Anchieta de adaptao a contextos novos, confi rman-do tambm o processo da aculturao dramatrgica que decorreu nos autos indianistas, conjugando a velha gramtica do teatro com o idiolecto cnico novo.

    Padre Jos de Anchieta, com a representao do sagrado procurou apagar os ritos identitrios dos tupi e das tribos dependentes. Ao contrrio da mensagem ofi cial dos au-tos indianistas, baseados na proscrio e condenao do imaginrio colectivo tido como selvagem na axiologia jesutica, materializou e visualizou os rituais dos primitivos habi-tantes do Brasil. O universo eivado de indianismo pode ser captado no teatro, na poesia, nos sermes anchietanos. O auto indianista de Anchieta leva ao problema da reformu-lao da conscincia cultural luso-brasileira. A preservao de ritos identitrios no m-bito da dramaturgia entra no ambito dos estudos sobre o primeiro teatro brasileiro.

    Tutto susceptibile de teatro tudo susceptvel de teatro, proclamava Goldoni no sculo XVIII. Evidentemente, tudo pode ser teatro dentro da aco social humana, di-zia no sculo XX Turner, at um auto indianista do Padre Jos de Anchieta. Porque es-tamos ento ns to longe, no teatro luso-brasileiro, dos gestos, dos costumes, das casas e das tabas, da lngua e das crenas dos primeiros habitantes do Brasil? Uma pea com moral, sem violao das regras do teatro vicentino, com as personagens histricas ou fi ctcias de ndios brasileiros reclama hoje a sua razo de ser, na poca de fcil recusa e instaurao postia de identidades.

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