(1) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosófica», · 2013-03-13 · diatos da consciência,...

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tão imediato como a côr e o som. E' inexplicitável como todos os dados ime- diatos da consciência, e por isso temos apenas que constatá-lo, pura e simples- mente. O nó da questão está na constru- ção imediata do infindo quanto à possibi- lidade da mesma experiência mental. Que tal experiência se aplique a tempo, espaço, ou número, que se aplique a uma extensão indefinida de uma recta ou à divi- são indefinida de um segmento de recta, que seja uma extensão indefinida de espaço ou de tempo, ou à sua divisão, o processo psicológico é sempre o mesmo. Esta experiência é simbolizada em con- ceitos, pela necessidade que o espírito tem de repousar sobre símbolos e de trabalhar com eles. Como diziamos em 1915 (1) «a noção do espaço absoluto, por exemplo, como a de todos os absolutos e infinitos, não passa de um nome que constitui uma experiência mental, não passa de um sím- bolo ou, se se quiser, de uma noção deter- minada por um empirismo mental — ó a noção dessa experiência aquilo que nós cha- mamos noção ou concepção de espaço absoluto. Assim, quando, tendo concebido graças a uma abstracção determinada por um dado objecto, no caso habitual, ou, se quizermos descer à génese primordial da idea, graças a uma sucessão de sensações musculares, que representa uma dada quan- tidade de espaço, posso mentalmente dupli- cá-la ; e como a mesma razão que me per- mite duplicá-la persiste, eu posso quadri- plicá-la, e a razão persiste ainda, e assim de seguida; —percebo, pois, que esta expe- riência ó susceptível de uma continuação sem fim; —mas não percebo mais nada se- não que esta experiência ó tal como acaba de ser descrita. E' então a experiência substituída por um n o m e ; — e como os nomes nos parecem em geral significar absolutos, assim se gera por uma verda- deira ilusão psicológica a concepção vazia de espaço absoluto, a qual na realidade não concebo, e se esvai da mente desde que procuro vê-la de face, pois sob o nome, nada mais há do que uma experiência men- tal que se tornou surda na consciência, como as aprendizagens e os hábitos, e tudo o que é repetido». Esta possibilidade infinda na successão (1) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosófica», Porto, 1915. da experiência, — em que o elemento infindo representa um dado imediato, inexplicitável — simbolizada num nome, ou num sinal, constitui todo o conteúdo dos conceitos d'infinito e d'absoluto e é a causa das prin- cipais ilusões psicológicas dos conceitos meta- físicos. Notemos que a simbolização do facto empírico ó devida a necessidades lógicas, mas também a necessidades psicológicas. Não podemos referir-nos sempre ao facto tal como êle é, nem trabalhar com êle sem um símbolo ; o espírito tem de se estabili- zar num conceito, ou no seu símbolo. Su- cede porém que um mecanismo psicológico habitual transforma lentamente o símbolo numa espécie de entidade, o que constitui uma verdadeira ilusão mental ontológica; desta forma actualiza o que ó na realidade um fluxo em devenir. Estabelece-se assim uma contradição irreductível entre a signi- ficação ilusória do símbolo e a sua actuali- zação, e o carácter do fluxo em devenir, que ó próprio e essencial à experiência corres- pondente ao símbolo. Quer dizer, entre o fenómeno e o seu símbolo estabelece-se len- tamente uma divergência, que fez com que o símbolo corresponda a um conteúdo contra dictório com aquele que realmente lhe cor- responde. Esta transformação do conteúdo do símbolo realiza-se precisamente pelo pro- cesso d'automatismo mental conhecido que nos leva a dar um conteúdo qualquer, ima- ginário, a qualquer símbolo, Ouvindo pro- nunciar um nome, com frequência, acaba- mos sempre por lhe associar uma qualquer representação mental; da mesma forma ao símbolo representativo da experiência refe- rida, acabamos sempre por conferir uma vaga figuração, uma vaga existência, e uma vaga actualização. E' este o meca- nismo psicológico da ilusão mental que vamos encontrar na raiz dos pseudo-con- ceitos da Metafísica. Notemos que, quando abstraímos da qua- lidade da intuição, espaço, tempo, quanti- dade, fica o processo empírico da repetição indefinida a nú, no seu esqueleto psíco- genético : e ó este processo precisamente que, transportado para a matemática, serve de base para a construção de Infinito. «A noção de infinito, dizia Tannery, de que se não deve fazer mistério em Matemá- ticas, reduz-se a isto : depois de cada número inteiro, existe um outro». Ao que Hadamard acrescenta: a infelizmente parece

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t ão imedia to como a côr e o som. E ' inexpl ic i tável como todos os dados ime­diatos da consciência , e po r isso t emos a p e n a s que cons ta tá - lo , p u r a e s imples­m e n t e . O nó da ques t ão e s t á na cons t ru­ção imed ia t a do infindo q u a n t o à poss ibi ­l idade da m e s m a experiência men ta l .

Que ta l exper iência se apl ique a t e m p o , espaço , ou número , que se ap l ique a u m a ex tensão indefinida de u m a rec ta ou à divi­são indefinida de u m segmento de rec ta , que seja u m a ex t ensão indefinida de espaço ou de t e m p o , ou à sua divisão, o processo psicológico é sempre o m e s m o .

E s t a exper iência é s imbol izada em con­cei tos , pela necess idade que o espír i to t e m de r epousa r sobre s ímbolos e de t r aba lha r com eles . Como d iz iamos em 1915 (1) «a noção do espaço abso lu to , p o r exemplo , como a de t odos os abso lu tos e infini tos, n ã o p a s s a de um nome que cons t i tu i u m a exper iência men ta l , não passa de u m sím­bolo ou, se se quiser , de u m a noção deter ­m i n a d a p o r u m empir i smo m e n t a l — ó a noção dessa exper iência aquilo que nós cha­m a m o s noção ou concepção de e spaço abso lu to . Ass im , q u a n d o , t endo concebido g r a ç a s a u m a abs t racção de t e rminada po r um dado objecto, n o caso hab i tua l , ou, se qu izermos descer à génese pr imordia l da idea , g r a ç a s a u m a sucessão de sensações muscu la r e s , que r ep re sen ta u m a dada quan­t i d a d e de espaço , posso m e n t a l m e n t e dupli­cá-la ; e como a m e s m a r azão que me per­mi te duplicá-la pe rs i s te , eu posso quadr i -plicá-la, e a r azão pe r s i s t e a inda , e ass im de s e g u i d a ; — p e r c e b o , pois , que es ta expe­r iência ó suscept íve l de u m a con t inuação sem fim; — m a s n ã o percebo mais n a d a se­não que es ta exper iência ó ta l como acaba de ser descr i t a . E ' en tão a exper iênc ia subs t i t u ída po r u m n o m e ; — e como os nomes n o s parecem em gera l significar abso lu to s , ass im se ge ra p o r u m a ve rda ­deira i lusão ps icológica a concepção vaz ia de espaço abso lu to , a qua l na r ea l idade não concebo, e se esva i da m e n t e desde que p r o c u r o vê-la de face, po is sob o n o m e , n a d a mais h á do que u m a experiência men­t a l que se t o r n o u s u r d a n a consciência , como as a p r e n d i z a g e n s e os h á b i t o s , e t u d o o que é r epe t ido» .

E s t a poss ib i l idade infinda n a successão

(1) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosófica», Porto, 1915.

da exper iência , — em que o e lemento infindo r e p r e s e n t a um dado imedia to , inexpl ic i tável — s imbol izada n u m nome , ou n u m sinal, cons t i tu i todo o con teúdo dos concei tos d'infinito e d 'absolu to e é a causa das prin­cipais ilusões psicológicas dos concei tos me ta ­físicos.

N o t e m o s que a s imbol ização do facto empír ico ó devida a necess idades lógicas , m a s t a m b é m a necess idades ps icológicas . N ã o podemos referir-nos sempre ao facto t a l como êle é, nem t r a b a l h a r com êle sem u m símbolo ; o espí r i to t em de se estabil i­zar n u m concei to , ou no seu s ímbolo. Su­cede porém que u m mecan i smo psicológico h a b i t u a l t r ans fo rma l e n t a m e n t e o s ímbolo n u m a espécie de en t idade , o que cons t i tu i u m a ve rdade i ra i lusão men ta l o n t o l ó g i c a ; des t a forma actualiza o que ó n a rea l idade u m fluxo em devenir . Es tabe lece-se ass im u m a cont rad ição i r reduc t íve l en t r e a signi­ficação i lusór ia do símbolo e a sua actuali­zação, e o ca rác te r do fluxo em devenir , que ó p rópr io e essencial à exper iênc ia corres­p o n d e n t e ao s ímbolo. Quer dizer, e n t r e o fenómeno e o seu s ímbolo estabelece-se len­t a m e n t e u m a divergência , que fez com que o s ímbolo c o r r e s p o n d a a u m con teúdo con t r a d ic tór io com aquele que r e a l m e n t e lhe cor­r e s p o n d e . E s t a t r ans fo rmação do con t eúdo do s ímbolo real iza-se p r ec i s amen te pelo pro­cesso d ' a u t o m a t i s m o men ta l conhecido que nos leva a dar u m conteúdo qua lquer , ima­g inár io , a qua lquer s ímbolo, Ouv indo p ro ­nunc ia r u m n o m e , com frequência, acaba ­mos s empre po r lhe associar u m a qua lquer r ep resen tação m e n t a l ; da m e s m a forma ao s ímbolo r ep re sen t a t i vo da exper iência refe­r ida , acabamos sempre po r conferir u m a v a g a figuração, u m a v a g a exis tência , e u m a vaga ac tua l ização . E ' es te o meca­n i smo psicológico da i lusão m e n t a l que v a m o s encon t r a r na raiz dos pseudo-con-ceitos da Metafísica.

No temos que, q u a n d o abs t r a ímos da qua­l idade da in tu ição , espaço , t e m p o , quan t i ­dade , fica o processo empír ico da repet ição indefinida a nú , no seu esquele to psíco-• gené t ico : e ó es te p rocesso p rec i samen te que , t r a n s p o r t a d o p a r a a ma t emá t i ca , serve de base p a r a a cons t rução de Infini to.

«A noção de infinito, dizia T a n n e r y , de que se não deve fazer mis tér io em Matemá­t i cas , reduz-se a is to : depois de cada n ú m e r o in te i ro , exis te u m out ro» . A o que H a d a m a r d a c r e s c e n t a : a infel izmente parece