1. Bruno Fleck Da Silva - O Conceito de Phrónesis Na Ética de Paul Ricoeur

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    Investigao Filosfica, v. 6, n. 1, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles

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    O CONCEITO DEPHRNESIS NA TICA DE PAUL RICOEUR: UMA

    MEDITAO SOBRE UNIVERSALISMO E CONTEXTUALISMO

    Bruno Fleck da Silva1

    RESUMO:O presente texto detm-se sobre o conceito de phrnesis presente na tica de PaulRicoeur. Partindo da diferenciao entre tica e moralo filsofo contemporneo faz o examedas duas grandes tradies ticas do Ocidente: a teleolgica, retirada de Aristteles; e adeontolgica, oriunda de Immanuel Kant. O pensador francs evidencia o exame do agir queacontece nos nveis pessoal, interpessoal e das instituies. Em anlise crtica Ricoeur fomenta anecessidade de um retorno da moral tica mediante a herana da tradio grega dada pelaapropriao do conceito de phrnesis, agir prudencial, sabedoria prtica. A phrnesisaparececomo soluo para os problemas suscitados pelo formalismo e pela rigidez da moral que podemno considerar a singularidade dos problemas. Desse modo, v-se em tal apropriao oentrelaamento entre universalismo e contextualismo, to caro aos dilemas ticos dacontemporaneidade.

    PALAVRAS-CHAVE: Paul Ricoeur. Phrnesis. tica. Aristteles.

    Abstract:This text deals with the concept of phrnesis which present in Paul Ricoeursethicalthoughts. The contemporary philosopher starts from the differentiation between ethics andmorality and makes the examination of the two great ethical traditions of the West: theteleological, taken from Aristotle; and deontological, derived from Immanuel Kant. The Frenchthinker show a the examination of actions that takes place at personal, interpersonal andinstitutional levels. His critical analysis promotes the need for a return from morality to ethicsbased on the heritage of Greek tradition given by the appropriation of the concept ofphrnesis,prudent action, and practical wisdom. The phrnesis appears as a solution to the problemscaused by the formalism and the rigidity of morality which cannot consider the singularity ofparticular problems. Therefore, we see in this appropriation the entanglement betweenuniversalism and contextualism, so dear to the ethical dilemmas of contemporary times.

    Keywords:Paul Ricoeur. Phrnesis. Ethic. Aristotle.

    1. INTRODUO

    O legado deixado pelo pensamento de Paul Ricoeur contemporaneidade constitui-se

    como valioso referencial aos embates e dilemas em torno da tica e da poltica, segundo uma

    perspectiva filosfica. O pensador contemporneo nasceu em Valence, na Frana em 1927 e

    morreu em abril de 2005 em Chtenay-Malabry. O pensamento de Ricoeur viu-se movido por

    uma contnua investigao que ocasionou o dilogo com variados campos da filosofia, o que em

    certo modo parece ser-lhe uma caracterstica prpria. Correntes como a hermenutica, a

    fenomenologia, a linguagem e o estruturalismo, com suas respectivas epistemologias foram

    1 Bruno Fleck da Silva. Licenciado em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.Especialista em Filosofia e Ensino de Filosofia pelo Centro Universitrio Claretiano, polo Curitiba (PR).

    docente de Filosofia junto s sries do Ensino Mdio das redes pblica e privada. E-mail:.

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    ferramenta til de trabalho ao pensador contemporneo. Convm, porm, destacar que o tema da

    tica e da moral, distino conceitual que lhe muito cara, foram desde o incio de seus

    trabalhos, prioridade. A ao humanapensada enquantoprxisassume o papel de fundamento e

    finalidade de seus escritos mais significativos (RICOEUR, 2011).

    A constituio de uma filosofia hermenutica imbuda de antropologia, cuja figura

    central a do homem capazmarca o eixo da reflexo tica no pensamento do filsofo francs.

    Movido pela ideia de que o smbolo faz pensar, Paul Ricoeur pressupe a ideia de um sujeito

    que ao pensar a si como umeu(que constituio de uma conscincia que s existe por meio da

    presena de outrem, do distinto), deve ler sua vida, por meio do desvio propiciado pela

    linguagem e pelo smbolo, pois a interpretao de si pontuada pela presena dos smbolos,de

    modo a poder dizer este eu.Este movimento revela-se como autointerpretao, um processo

    epistmico, que culminar na compreenso efetivamente ontolgica de sua identidade.

    A interpretao de si mesmoconverge com a dimenso tica, onde aparece a figura de

    um sujeito que interpreta a si como sujeito que agee pergunta-se pelo seu fazer, com vistas

    ao. De modo pontual aparece ento o engajamento hermenutico entre ser e agir. Nos

    respectivos estudos VII, VIII e IX da obra O Si-mesmo como um outro, Ricoeur realiza o exame

    das duas grandes correntes ticas do Ocidente: uma teleolgica e outra deontolgica. Partindo

    da distino entre os predicados bome obrigatrio,o primeiro faz referncia inteno tica,

    onde retomada a tradio teleolgica de Aristteles, ocorrendo, desse modo, a exigncia de

    uma vida virtuosa no propsito da felicidade. Por sua vez, o segundo predicado fundamentado

    na filosofia moral de Immanuel Kant, que se inscreve na tradio deontolgica,dando vez ao

    agir moral com sua exigncia de universalidade. Respectivamente, o conceito de bom remeter

    estima de si e o de obrigatrio ao respeito de si. Aqui vemos delineada a primeira parte de

    nosso trabalho que consistindo em mostrar que as duas tradies entrelaam-se numa dialtica,

    abordando seus respectivos conceitos num caminho que abrange primeiramente a esfera pessoal,

    seguindo pela interpessoal e pelo plano das instituies. Os respectivos momentos, presentes em

    ambas as tradies, vo de encontro com a denominada petite thique2

    de Ricoeur, a pequenatica, formulada da seguinte maneira: viver a vida boa, com e para os outros, em instituies

    justas.

    Os estudos das respectivas tradies entrelaam-se numa dialtica que revela a

    interdependncia da tica e da moral, culminando no que Ricoeur chamar de julgamento moral

    em situao (RICOEUR, 1991, p.281). Aqui propriamente aparece a questo da phrnesis

    aristotlica, parte central do nosso trabalho. O que Paul Ricoeur v a necessidade de retomada

    2

    A petite thique tornou-se uma nomenclatura para designar a sistematizao dos conceitosdeterminantes da vida tica em Ricoeur. Trata-se de um imperativo que tambm tornou-se conhecidocomo regra de ouro.

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    da inteno tica, que em Aristteles abarca a dimenso da estima, tendo em vista a constatao

    de que a lei por si s, sem uma inteno que a fundamente no suficiente. Cada situao

    singular e isto leva exigncia de uma sabedoria prtica, que possibilite decises justas. Esta

    sabedoria a virtude prtica, aphrnesis.

    A apropriao de Ricoeur no permanece nas pginas da tica a Nicmaco, desdobra-se

    numa dimenso de leitura dos conflitos, onde possvel falar do papel de umaphrnesis crtica.

    Destaca-se, neste sentido, a sabedoria prticaproveniente da Tragdia Grega, de modo singular

    na Antgonade Sfocles. Ainda mais, h uma reorientao da phrnesis, enquanto sabedoria

    prtica que culminar na inflexo da ideia hegeliana de Sittlichkeit3. O conceito aristotlico

    ganha fora, pois em Hegel, a Sittlichkeitpretende ir de encontro com a pretenso ricoeuriana de

    preponderncia da tica sobre a moral e da necessidade de um agir prudencial, uma sabedoria

    prtica, como soluo propriamente filosfica para situaes eticamente conflitantes em suasvrias dimenses, de modo significativo na esfera dos conflitos nos nveis da instituio, do

    respeito e da autonomia.

    2. O LEGADO DAS TICAS OCIDENTAIS: ARISTTELES E KANT

    A tradio teleolgica tem seu fundamento em Aristteles, considerado o primeiro a

    sistematizar a tica como cincia. O eudaimonismo aristotlico caracterizado pela busca da

    felicidade e doBemcomo fins ltimos pressupe o papel fundamental da boa ao, o bem agir

    intencionandouma vida boa, um bem viver, alcanados pelo exerccio de uma vida virtuosa. A

    estima que a inteno de agir de modo tico se v pautada na racionalidade, justamente a

    razo, ligada ao exerccio do bom hbito que permite ao sujeito da ao faz-la direcionada a

    uma boa finalidade. A partir disso, Ricoeur v no intencionar uma vida boa, no sentido

    Aristotlico a estima de si, tema determinante para sua compreenso antropolgica de um

    sujeito quepode fazer.

    Num segundo momento Ricoeur v, a partir de Aristteles, um desdobramento importante na

    vivncia tica, trata-se da estima de sique se desdobra a uma estima do outro, adentrando narelao que permite viver a solicitude. Aristteles, tratando da amizade como virtude, afirma

    que o homem virtuoso para o seu amigo tal como para si prprio por quanto o amigo um

    outro eu (apud RICOEUR, 1991, p.215). O que Ricoeur percebe que a amizade faz surgir a

    solicitude, assim como leva ao primeiro plano a problemtica da reciprocidade

    (RICOEUR,1991, p.215). A inteno tica est associada ao reconhecimento do outro no

    somente pelo fato de que as relaes de amizade so coisas necessrias vida, mas pelo fato de

    que da emergem conceitos to importantes vivncia tica na atualidade, sejam eles o respeito,

    3Sittlichkeit, do alemo: moralidade. O conceito possui relevncia na filosofia de Friedrich Hegel.

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    a considerao, o ter em conta a dignidade do outro enquanto ser humano insubstituvel, etc.

    Dessa forma, no se pode ter estima de si, sem ter em vista o outro, o que deve predominar aqui

    o princpio de similitude.

    Tais conceitos nos remetem j ao campo das instituies, e no caso, vivncia eminstituies justas que incide na vivncia efetiva do ethosem seu sentido original. Fazendo esta

    leitura da herana aristotlica Paul Ricoeur afirma que o viver-bem no se limita s relaes

    interpessoais, mas estende-se vida das instituies (RICOEUR,1991, p.227). A vivncia justa

    de um sujeito para com o outro implica na possvel vivncia justa do todo, onde a dimenso

    poltica ganha peso e por consequncia o poder. Desta ideia o conceito de justia ganha

    destaque nas instituies. Para Aristteles, a justia encerra todas as virtudes (apud

    PEGORARO, 2009, p.23). O Estagirita pensa um modelo de justia distributiva, a qual se

    encarrega da comunidade poltica. Ricoeur compreende que o conceito de justia est ligado aoconceito de igualdade no plano das instituies e isto de certo modo sacramenta a questo. A

    igualdade, de qualquer maneira que a modulemos, para a vida nas instituies aquilo que a

    solicitude nas relaes interpessoais (Ibid., Idem, p.236). A igualdade distributiva o que

    permite a inteno, a estima, atica no plano social, a saber, a justia.O caminho de anlise

    aqui trilhado por Ricoeur corresponde constituio da pequena tica de Ricoeur, neste

    momento caracterizado como: estima, solicitude ejustia.

    O segundo momento de anlise das duas principais correntes ticas ocidentais se d pelo

    estudo da norma, por meio da deontologiaque encontra seu fundamento na filosofia moral de

    Immanuel Kant. Ocorre aqui momento onde a viso tica passa pelo crivo da moral, da norma, o

    que ser fundamento, segundo o nosso pensador, para pensar num retorno tica, que

    posteriormente a este momento torna-se enriquecida. Ainda mais,

    (...) no vnculo entre obrigao e formalismo que se vai se concentrar opresente estudo, no para denunciar com precipitao as fraquezas da moral dodever, mas para falar de sua grandeza, to longe quanto possa nos levar umdiscurso cuja tripartida duplicar exatamente da perspectiva tica 4.

    Consiste o presente momento numa avaliao geral do imperativo categrico kantiano

    que d existncia reflexo sobre os conceitos de autonomia, de respeito e de universalizao.

    Consequentemente, em referncia inteno tica traada no primeiro momento em Aristteles,

    a estimaque visa uma vida boa agora em Kant entendida como autonomia, a solicitudecomo

    respeitoe a justia comoprincpios de justia.

    A inteno da vida boa, constituda em Aristteles, ressoa em Kant como boa vontade, ou

    seja, o bem nada mais do que boa vontade, o bem como designao da vontade; de certo

    4RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p.327.

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    modo, mantm ainda traos da tradio teleolgica. Aquilo que serve como impulso vida tica

    para Kant vontade, que tem como base a liberdade, condio primeira para qualquer ao

    moral. A boa vontade, na terminologia kantiana boa pelo querer em si. Porm, um querer

    auto-legislativo, em seguimento da norma. A nosso ver, o que Ricoeur prope aqui que da

    mesma forma que na tradio tica aparece com significncia o ideal da vida boa, a moral

    tambm possa delinear uma finalidade: Ora, se a tica se manifesta para o universalismo

    atravs de alguns traos que acabamos de lembrar, a obrigao moral tambm no existe sem

    ligaes na perspectiva da vida boa (RICOEUR,1991. p.239). Portanto, a autonomia aparece

    como autolegislao, uma vontade autolegisladora. Para Ricoeur, (...) j no somente da

    vontade que se trata, mas da liberdade (RICOEUR,1991, p.245). Segundo a anlise do

    pensador francs, essa vontade legisladora determina o que ele chama de constrangimento, uma

    forma de imperativo que ser determinante para a universalizao (RICOEUR, 1991). A questo

    que para o pensador de Konigsberg, ser livre seguir a lei.

    A partir do conceito de autonomia revelada a natureza do conceito derespeito, que o

    consequente deontolgico do que era a solicitude na tradio teleolgica, eliminando, desse

    modo um vazio que pode derivar do formalismo (RICOEUR, 1990). O respeito funde-se

    norma, o respeito deve ser norma em qualquer sociedade que tenha por princpios a alteridade

    em vista de valores e tambm normas nas relaes interpessoais, que se estendem das menores

    s universais. no plano da obrigao e da regra que o respeito desenvolve-se, caracterizando

    uma estrutura dialogal da tica.

    A partir da reflexo kantiana, Paul Ricoeur medita sobre o tema da violncia, apontando

    o risco presente nas relaes inter-humanas imersas na explorao, no desrespeito ao outro, e no

    que disto deriva. Segundo nosso filsofo a violncia equivale negao da liberdade do outro,

    diminuio ou destruio do poder fazer de outrem (RICOEUR, 1991, p.257). O tema da

    humanidade relevante em Kant. O imperativo evidencia a ideia de pessoa como fim em si

    mesma, e no como meio. Humanidade e universalizao complementam-se. Ainda mais,

    contida no conceito de humanidade aparece a expresso plural do desejo de universalizao,garantia da vivncia da justia.

    Ocorre neste terceiro momento da anlise voltada deontologia a passagem do senso de

    justia aosprincpios de justia. Como instituies, o pensador considera as estruturas variadas

    do viver junto, que se estendem, poderamos pensar, da famlia at a vivncia de uma

    comunidade nacional. A justia est ligada s instituies como a virtude do cidado justo,

    como excelncia central e unificadora da existncia pessoal e poltica, presente tambm na

    tradio teleolgica, como visto anteriormente. Afinal, para Ricoeur por costumes comuns e

    no por regras constrangedoras que a ideia de instituio se caracteriza fundamentalmente

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    (RICOEUR, 1991, p.223). No plano das instituies h a mesma necessidade normativa

    necessria autonomia e ao respeito.

    Reaparece, porm, o conceito de justia relacionado ao de distribuio, temtica j presente

    em Aristteles. Pois o que se constata a ligao entre justia eigualdade,a determinao derepartir para cada um, respectivamente dando-lhe o que lhe justo. A Justia distributiva,

    modalidade de justia oriunda da reflexo aristotlica, agora o centro da problemtica em

    torno da justia, levantada aqui por Ricoeur. Conforme salientado, resultam ambiguidades da

    ideia de distribuio, visto que a questo sempre fonte de problemas nas sociedades:

    (...) a sociedade apresenta-se como sistema de distribuio,toda a diviso problemtica e aberta s alternativasigualmente razoveis; j que h muitas maneiras plausveisde repartir vantagens e desvantagens, a sociedade de parte a

    parte um fenmeno consensual-conflitual5.

    Partindo deste pressuposto, necessrio para pensar e solucionar estes temas a anlise

    das contribuies da deontologia Kantiana no enlace como o conceito de justia em John

    Rawls. No caberia s instituies estabelecer o que justo, num nvel de equidade. O que torna

    possvel a justia na esfera institucional seria uma espcie de contrato social. H em Rawls a

    tentativa de estabelecer esse contrato. A contribuio de Rawls, seguida da anlise feita pelo

    pensador francs, compara a justia ao contrato. O contrato ocupa nas instituies o que a

    autonomia ocupa no plano fundamental da moral (RICOEUR, 1991). Em Rawls, o conceito de

    justia comparado a uma virtude da ordem jurdica que visa a realizao da sociedade como

    sistema equitativo de cooperao entre cidados livres e iguais (PEGORARO, 2009, p.15).

    Surgem ento os princpios de justia, quem tm por finalidade extinguir as desigualdades na

    distribuio, equacionando justia e igualdade. Nosso pensador insistir que contratualismo e

    individualismo avanam de mos dadas (RICOEUR, 1991, p.269).

    A teoria rawlsiana da justia apresenta-se com carter deontolgico, no transcendental,

    visto que os contedos dos princpios de justia devem derivar de um processo equitativo,

    intencionando dar uma soluo processual questo do justo. Ricoeur v em Rawls um modelo

    no teleolgico de justia o que implica diretamente numa dicotomia entre as noes de justia

    e equidade. Em oposio, aparece a ideia de utilitarismo, numa vertente individualista, o que

    pode ser encontrado em John Stuart Mill.

    Tal resposta complementa o acima afirmado, ou seja, a garantia de uma validao do

    contrato social que ainda sim preenchido pela universalidade e pela autonomia mantida pelo

    controle moral de modo a encontrar e resolver os problemas de injustia naquilo que por vezes

    5Ibid,Idem,p. 273.

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    aparece como justo. A meditao sobre ajustia deve investigar como so aplicados os seus

    princpios, deve debruar-se sobre a equidade, em vista da vivncia efetivamente justa. Ricoeur

    compreende por fim que o problema da justia no esta resolvido na esfera institucional.

    necessrio um retorno esfera da autonomia. A autonomia de vale da razo e o contrato de uma

    fico (RICOEUR, 1991). O fundamento que requer uma ideia de justia fundamenta-se sobre

    uma estima de viver junto, nesta esfera clama-se por justia e aplica-se a justia, mas tambm

    isso pode soar como fico, neste sentido no prximo estudo que a questo ser continuada,

    numa relao entre instituio e conflito, carecendo um retorno do moral tica.

    3. O RETORNO TICA POR MEIO DE UMA SABEDORIA PRTICA: O

    LUGAR DA APROPRIAO RICOEURIANA DO CONCEITO DE

    PHRNESIS

    Antes de passarmos ao exame ricoeuriano da phrnesis, convm, de modo sucinto nos

    determos, ainda que sem maiores pretenses, na considerao etimolgica do termo. No que

    concerne ao conceito de phrnesis, teve ele como seu equivalente latino o termo prudentia, no

    portugus, prudncia. Sabedoria prtica, por sua vez, uma das tradues mais importantes,

    tendo uma presena significativa na tica a Nicmaco, onde vista, inclusive como intuio.6

    A partir da quinta da parte do captulo VI, Aristteles pergunta-se pela definio da

    phrnesis. O Estagirita conclui que (...) quanto prudncia (sabedoria prtica), possvel

    chegarmos sua definio pela considerao das pessoas com as quais a creditamos (tica a

    Nicmaco, VI, 1140a1, 5-25) ou seja, a melhor maneira de se compreender a sabedoria prtica

    voltar-se para o seu agente, ophronimos, o homem prudente.

    Aristteles fala sobre vrios tipos de sabedoria (sophos). Interessa-nos uma modalidade

    de saber, a prudncia (phrnesis). A prudncia diverge dos demais tipos de sabedoria por

    derivar e aplicar-se contingncia.A prudncia (...) concerne aos assuntos humanos e a coisas

    que podem ser objeto de deliberao; de fato, dizemos que deliberar bem a funo mais

    caracterstica do homem prudente. (Ibidem, VI, 1141b1, 5-5). A virtude prudencial tem suaefetivao na contingncia, trata-se de uma sabedoria que surge da contingncia e v seu fim

    nela prpria.

    No decorrer do sexto captulo da tica nicomaqueia Aristteles constri argumentos

    para distinguir a prudncia do conhecimento cientfico e da arte (ARISTTELES, E.N. VI,

    1140b1, 5-5), onde delimitada como virtude, portanto, excelncia alcanando seu fim no

    prprio ato virtuoso. A nosso ver, possvel pensar a phrnesis como intuio. O pensador

    6Ao leitor que desejar aprofundar-se nas implicaes etimolgicas do conceito de phrnesis, consultar:

    La prudence chez Aristotle, de Pierre Aubenque, Paris, PUF, 1963.

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    grego explica na tica nicomaqueia: (...) a prudncia se ocupa das coisas particular final, a

    qual no objeto do conhecimento, podendo ser captada somente pela percepo no a

    percepo dos sentidos especiais, mas aquela espcie de intuio (...) (ARISTTELES, E.N

    ,1142, 6, 8, 25-30). A phrnesis opera onde h incertezas. Pertence aos contingentes e s

    contingncias. Entretanto, aphrnesistem a capacidade de unir os tipos de virtude prticas e

    intelectuais. Como lembra Cesar, (...) a phrnesis inseparvel do phrnimos (homem sbio);

    nele que a unidade entre os dois tipos de virtude se mostra como ligao entre o othos logos, e

    o desejo, quando subordinado razo (CESAR, 2013, p.66). Justamente, parece recair aqui um

    dos motivos da opo ricoeuriana pela phrnesis, pois o que se evidencia que mais do que

    uma sabedoria prtica, trata-se to enraizamento da reflexo filosfica numa prtica prvia, uma

    fenomenologia tico-hermenutica prpria do ethos.

    O eudaimonismo aristotlico fundamenta a virtude prudencial. Como nos recordaVergnires:Agir, agir com os outros. (...) na escala da cidade que a virtude se manifesta

    com maior grandeza e importncia; este o lugar eminente para exercer a virtude, para

    revelar seu poder de agir (VERGNIRES, in CESAR (org), 2002, p.109). O bem viver da

    comunidade faz com que a prudncia possa ser pensada como uma virtude poltica:

    Ora, tem-se como caracterstica do homem prudente ser ele capaz de bem

    deliberar sobre o que bom e proveitoso para si mesmo, no num ramo em

    particular por exemplo, o que bom para a sade ou vigor mas o que

    vantajoso ou til como recurso para o bem-estar em geral7 (ARISTTELES,

    2013, p.182).

    Agir segundo aphrnesisno simplesmente calcular a prpria ao, mais sim, pensar

    na sua finalidade que deve visar a felicidade da comunidade. Em Aristteles, o agir humano

    sempre pensado a partir da vida comum. Neste sentido que a apropriao da phrnesis

    Aristotlica pode configurar-se como uma abordagem relevante para a tica contempornea,

    solucionando conflitos existentes e evitando-os postumamente. A herana Antiga fonte

    inesgotvel de contribuies aos dilemas atuais. Optar por Aristteles faz parte do processo do

    que Ricoeur chama de filosofia, ou seja, um dilogo constante com as correntes e pensadores

    relevantes.

    No quadro dos conflitos que abordaremos, Ricoeur afirma que o equilbrio entre a

    exigncia de universalidade e o reconhecimento das limitaes s pode ser garantido pelo

    julgamento em situao (Id, p.336). na leitura da Antgonade Sfocles, que nosso pensador

    7Grifo nosso.

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    percebe que a sabedoria trgica capaz de orientar uma sabedoria prtica (RICOEUR, 1991,

    p.286). O trgico da ao sempre o momento de onde muito pode ser extrado. no campo de

    batalha do sujeito consigo mesmo e com as situaes de conflito que h a demanda para si

    prprio de um agir. Aqui, no ftico da existncia, o sujeito pode fazer-se tico, virtuoso, um

    homem prudente, confiando nasabedoria prtica do julgamento moral em situao.

    O nono estudo de O Si mesmo como um outro permeado pelo exame crtico que

    Ricoeur faz dos conflitos suscitados pela imputao moral que gera uma tenso entre

    universalismo e contextualismo. Trata-se do recurso tica no que o pensador chamou de

    julgamento moral em situao revelando uma phrnesis crtica. H uma sequncia analtica

    diversa da presente nos estudos anteriores. Comeando pela esfera institucional, instituio e

    conflito; esfera interpessoal, isto , da relao entre respeito e conflito e da esfera pessoal,

    autonomia e conflito.

    Instituio e conflito buscam evidenciar o problema no resolvido da aplicao da

    justia na esfera institucional. O que Paul Ricoeur percebe que h um problema entre a

    distribuio justa e a estimao de bens, o que se mostra como impasse entre universalismo e

    contextualismo. H, nesse sentido, a necessidade em considerar a distribuio de acordo com a

    demanda histrica e determinada dos bens. A nosso ver, o grande aliado de Ricoeur Michael

    Walzer8, ao falar de um universalismo de reinterao, isto , a aplicao da justia, numa esfera

    universal que considere as demandas e estimaes de bens contextuais, ou seja, prprias de cada

    historicidade.

    Ainda mais, o julgamento em situao v um aliado no conceito de Sittlichkeit oriundo

    de Hegel, que pode ser entendido como ordem tica (BARASAH in CESAR, 2002). Em A

    fenomenologia do Esprito, Hegel fala de uma ao poltica voltada para oesprito especfico de

    um povo, o que Ricoeur v como um importante contributo. ressaltada a dimenso da

    phrnesisnum sentido de aplicao a uma nao. Ou seja, a circunstncia tem uma dimenso

    no s ocasional e pessoal, mas dirige-se ao lugar prprio de um povo, o que a nosso ver remete

    ao sentido originrio de tica, o ethos. O ideal aristotlico de vida boa aplicado cidade por

    meio da phrnesis, levando-nos a pensar empluralismo democrtico.

    A segunda esfera conflitual aparece na relao entre respeito e conflito. Ricoeur detm-

    se no exame do imperativo kantiano e nele encontra um problema, pois ao considerar-se a

    pluralidade humana resultam impasses. At que ponto corre-se o risco de um respeito lei e

    no s pessoas em si? Afirma, Paul Ricoeur: (...) o imperativo categrico produz uma

    multiplicidade de regras, e o universalismo presumido dessas regras pode entrar em coliso

    8Walzer, Michael. Spheres of justice: a defense of pluralismo and equality. Nova Iorque, Basic Books,

    1983.

  • 7/23/2019 1. Bruno Fleck Da Silva - O Conceito de Phrnesis Na tica de Paul Ricoeur

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    Investigao Filosfica, v. 6, n. 1, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles

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    com as peties da alteridade, inerentes solicitude (RICOEUR, 1991, p.307). Desse modo, a

    sabedoria prtica, a phrnesis vem a considerar o respeito s pessoas, visto que cada uma delas

    esta imbuda de uma singularidade insubstituvel. Mais uma vez a circunstncia e suas

    caractersticas que devem prevalecer.

    A ltima instncia de anlise crtica no intuito de um retorno da moral tica por meio

    da phrnesis aparece na relao entre autonomia e conflito. O que se percebe que a proposta

    de Ricoeur insiste para que sejam abolidos os sofrimentos infligidos ao homem pelo homem

    (RICOEUR, 1991, p .339). Para o pensador francs, a autonomia obaluarteda moral kantiana.

    A autonomia esta sempre fundada em caractersticas histrias e comunitrias, e as estas que se

    dirige uma sabedoria do agir contextual. Novamente, o que esta em questo o afrontamento

    entre pretenso universalista e contextos histricos (RICOEUR, 1991). No plano pessoal,

    Ricoeur traz a contribuio da tica do discurso de Habermas, pois o que se tem como bastidora questo de um fundamento sempre dado na razo (RICOEUR, 1991, p.328). A fundamentao

    na razo do princpio de universalizao o que sustenta a tica da discusso. Nosso pensador

    enfoca no reconhecimento do outro como uma dimenso do eu, entendendo como

    comunicativas as interaes onde h o reconhecimento do outro.

    4. CONCLUSO

    A abordagem que visou confrontar e entrelaar universalismo e contextualismo esteve

    presente nos trs estudos de O Si-mesmo como um outro (RICOEUR, 1991). Os conflitos

    gerados pelo universalismo so superados pelo retorno herana grega da filosofia. A vivncia

    da prudncia como virtude prtica o que pode direcionar a ao humana segundo a demanda

    singular das situaes. A universalidade que parte da autonomia e direciona-se ao desejo de

    justia parece no suscitar nenhuma ameaa tica. Entretanto, se a conscincia age segundo o

    rigor da lei pode emergir a imparcialidade (HELENO, 2001). O conflito surge dos casos e

    situaes fatuais, em queocorrendo a ameaa universalidade moral, assinalam uma deficincia

    de seu rigor.

    O retorno fundamentao tica, por meio da vivncia da virtude prudencial, a

    phrnesis, ser determinante na configurao de uma sociedade pautada pelo dilogo e por uma

    racionalidade que pode se expressar na boa vivncia poltica. Alm disso, a phrnesis

    configura-se como soluo aos problemas que afetam o fundamento do direito e da moral. Para

    a tica contempornea, a abordagem ricoeuriana da sabedoria prtica tema a ser ainda lido

    segundo suas possveis e variveis dimenses.

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    Investigao Filosfica, v. 6, n. 1, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles

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