1 CASTORIADIS: O PROJETO CRÍTICO DO CICLO DA LÓGICA...

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1 CASTORIADIS: O PROJETO CRÍTICO DO CICLO DA LÓGICA CONÍDICA E DA ONTOLOGIA UNITÁRIA EM SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO. Reconhecemos a imensidão dos conteúdos discutidos na obra sobre o político de Platão de Cornelius Castoriadis. Por isso, tentaremos identificar e desenvolver nesta obra uma questão principal que envolva a discussão de seus muitos temas e referências no seio da totalidade da cultura filosófica ocidental ao longo de sua história. Não que sejamos aptos para tal empreendimento, não que estejamos no nível de uma compreensão global dessa imensidão, mas o desenvolvimento da filosofia, portanto da ciência e do mundo por ela construído, perpassa as questões ali discutidas como elementos fundamentais de constituição do arcabouço de significações pelas quais se dá a criação do ser, especialmente do ser humano, cuja essência enquanto humanidade e deliberação constante e incessante a respeito dessa essência ao longo da sua história é também um produto desse proceder criativo no âmbito singular da cultura filosófica ocidental enraizada na grecidade. E em nossa colocação já se percebe algo de que não se pode escapar e que talvez constitua a questão principal que pretendemos abordar. Com efeito, nós dissemos anteriormente: tentaremos identificar... E é exatamente essa tentativa de identificar que constitui a questão primordial, a saber, a necessidade de identidade que subjaz a todo significar próprio da linguagem e do fazer humano, pelo qual este se constrói no seio da cultura, da cidade, de sua morada, de sua habitação, de seu ethos próprio, somente no interior e na acolhida do qual o humano vem a ser o que é, autocriação do ser pela prática deliberativa através da dialética constante entre o esquema imaginário social instituído, que molda a psique humana coletiva e individualmente, e a atividade da imaginação criadora e instituinte, que como fluxo representativo a absorver o instituído sai de sua onipotência originária no imaginário radical para o movimento de socialização, a fim de constituir-se como projeto de autonomia em meio à heteronomia em que se determina a ser. *

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CASTORIADIS: O PROJETO CRÍTICO DO CICLO DA LÓGICA

CONÍDICA E DA ONTOLOGIA UNITÁRIA EM SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO.

Reconhecemos a imensidão dos conteúdos discutidos na obra sobre o político de

Platão de Cornelius Castoriadis. Por isso, tentaremos identificar e desenvolver nesta

obra uma questão principal que envolva a discussão de seus muitos temas e referências

no seio da totalidade da cultura filosófica ocidental ao longo de sua história. Não que

sejamos aptos para tal empreendimento, não que estejamos no nível de uma

compreensão global dessa imensidão, mas o desenvolvimento da filosofia, portanto da

ciência e do mundo por ela construído, perpassa as questões ali discutidas como

elementos fundamentais de constituição do arcabouço de significações pelas quais se dá

a criação do ser, especialmente do ser humano, cuja essência enquanto humanidade e

deliberação constante e incessante a respeito dessa essência ao longo da sua história é

também um produto desse proceder criativo no âmbito singular da cultura filosófica

ocidental enraizada na grecidade.

E em nossa colocação já se percebe algo de que não se pode escapar e que talvez

constitua a questão principal que pretendemos abordar. Com efeito, nós dissemos

anteriormente: tentaremos identificar... E é exatamente essa tentativa de identificar que

constitui a questão primordial, a saber, a necessidade de identidade que subjaz a todo

significar próprio da linguagem e do fazer humano, pelo qual este se constrói no seio da

cultura, da cidade, de sua morada, de sua habitação, de seu ethos próprio, somente no

interior e na acolhida do qual o humano vem a ser o que é, autocriação do ser pela

prática deliberativa através da dialética constante entre o esquema imaginário social

instituído, que molda a psique humana coletiva e individualmente, e a atividade da

imaginação criadora e instituinte, que como fluxo representativo a absorver o instituído

sai de sua onipotência originária no imaginário radical para o movimento de

socialização, a fim de constituir-se como projeto de autonomia em meio à heteronomia

em que se determina a ser.

*

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Importa recordar que a principal questão é a antropológica e perpassa a

indagação pela redução do humano ao mero cognitivismo. Trabalhar com as idéias da

repetição e do hábito, já execradas da educação, é um tema que encontra sua

positividade em Aristóteles. A determinação da capacidade cognitiva de aprendizagem

envolve fatores sociais e históricos, bem como circunstâncias de ordem até mesmo

afetiva. Então, tenha-se em vista que o hábito é o que se adquire no habitat da

coletividade, no contexto grego a pólis ou cidade, e é a habitação onde o homem reside

enquanto humano; fora desse habitar não há humanidade.

Partindo do esquecimento das reflexões dos pensadores antigos nas teorias

contemporâneas da educação, temos Werner Jaeger como exemplo de reflexão

filosófica sobre a educação, reconhecendo-o, antes de tudo, como investigador

filosófico, e não somente histórico.

Ele analisa a Paidéia grega como formação humana no seio da cultura. Paidéia

designa a cultura como formação do indivíduo humano no seio da comunidade social.

Ao estudar Aristóteles, Jaeger procura organizar a obra aristotélica conforme certo

desenvolvimento temporal. Os primeiros escritos do estagirita seriam mais próximos do

idealismo, ou realismo das idéias, sob influência platônica.

Segundo Castoriadis, a periodização da obra de um autor corresponde aos

interesses teóricos de quem a organiza e é determinada por fatores social-históricos. A

teoria do hilemorfismo de Aristóteles se desenvolveu a partir de sua crítica a Platão, da

relação entre a idéia inteligível e o que a manifesta sensivelmente, entre o universal e o

particular. E isso tudo estará ali no texto em questão: Sobre o Político de Platão; a

questão do antigrecismo de Platão pela subordinação do fazer político ao saber teórico

da política figurado na pessoa do epistemon; um saber que é régio e legitima o poder do

monarca que é seu portador, uma idéia que mais se assemelha à realeza dos Persas que à

democracia dos gregos (p.193).

Por isso, Castoriadis percebe um antigrecismo ou uma reconstrução do esquema

imaginário dos gregos em Platão e explica isso quando trata do Mito de Cronos, pondo

a visão de mundo de Platão face à de Demócrito, Tucídides, Heródoto e Hesíodo. Na

Cosmologia grega do século V há uma autoformação espontânea do universo, bem

como espontâneo é seu processo de autodeformação: é a idéia da gênesis e da phtorá, da

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criação e da destruição; do mesmo modo, e lembrando a citação do Protágoras, o

processo histórico de constituição da civilização humana é um processo de

autoconstituição do humano, idéia da qual Castoriadis parece partilhar.

Ao contrário disso, Platão formula uma cosmologia distinta a partir da formação

do mundo pela atividade do demiurgo, cujo sentido nos foi dado nas aulas como demos-

urgos = trabalhador do demos, distrito ou cidade, sendo o urgos procedente de ergon,

obra; o demiurgo é o obreiro ou trabalhador da cidade. Essa imagem nos mostra a

natureza do verdadeiro político como sendo aquele portador do saber real capaz de tecer

a estrutura da cidade e governá-la em sua ordem sem a lei escrita, que é um mal menor e

necessário na ausência do sábio régio, o político. Do mesmo modo que o político tece a

cidade, o demiurgo tece o universo atribuindo o ser das formas ao devir cambiante da

matéria, com a qual o Cosmos é produzido e, por conta da matéria de que se constitui,

tende à destruição, à perda das formas.

Aqui estamos já introduzindo o tema que Castoriadis reconhece como de suma

importância para o desenvolvimento da filosofia ocidental ao longo da história e das

sociedades no seio do mundo construído pelo esquema imaginário de mundo do

ocidente, a saber, a articulação entre psicologia, cosmologia e ontologia. E já que

falamos de ontologia, falamos também de lógica, pois a busca pelo ser é a busca pela

identidade do que é e está sendo, e o princípio de identidade é o axioma fundamental e

indemonstrável da lógica. E já que falamos de psicologia, falamos de uma noção de

psique que modernamente se converte em subjetividade cognoscente determinada pela

atividade operacional do cálculo do que é e está sendo e se reduz a máquina produtora

de conhecimentos. E já que falamos de cosmologia, falamos da própria totalidade do

que é e está sendo, o ser, a physis, a ordem ou Cosmos, ou a desordem a que se atribui

ordem pela capacidade formadora da subjetividade humana, que é a ação

autoconstitutiva do humano que perpassa também a criação de mundo e de significação

pela linguagem, no qual o humano possa habitar e se constituir como animal deliberante

nas vias do projeto de autonomia.

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Esclareçamos um pouco a idéia do ethos humano, do habitat, da habitação ou

morada, somente no seio do quê o humano adquire o hábito de ser humano e se refaz

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enquanto hábito de deliberar e questionar o habitual de seu habitar, a fim de constituir-

se nos rumos do projeto de autonomia.

Recorremos a Aristóteles para tal empreitada e aproveitamos para indicar a

plausibilidade do que estamos tentando fazer, um simples texto baseado em sobre o

político de Platão, pois Castoriadis mesmo é que procede a uma determinada leitura de

Platão que parece preparar o terreno para a filosofia de Aristóteles e, assim, semear a

terra na qual se desenvolvem a planta e todos os frutos do saber ocidental em geral ao

longo da história.

Basta ler o primeiro parágrafo do Seminário de 26 de março de 1986, no qual se

fala do diálogo platônico O Político como pertencente a um período de passagem de

uma posse do saber teórico epistêmico, somente a partir do qual se elabora o modelo

perfeito da cidade, para o período do misto entre matéria e forma, hylè e eidos, que não

admite mais a redução do ser real à idéia do ser, fertilizando assim o terreno do saber

para Aristóteles. Em sua fase final, segundo Castoriadis, Platão introduz a questão da

mistura do mesmo e do outro através da compreensão do ser total como partícipe da

matéria; o eidos necessariamente se confunde à hylè.

Além disso, o Seminário de 5 de março é claro ao apresentar a tríade

cosmologia/psicologia/ontologia como determinações importantes do pensar ocidental e

das sociedades ao longo das eras, sendo esta tríade pensada por Castoriadis no interior

da filosofia clássica composta pela dupla Platão/Aristóteles. Nesses termos de

compreensão, compreende-se o que Castoriadis denomina pensamento herdado da

tradição, cujo ciclo se fecha em Heidegger, o qual somente constata o fechamento do

ciclo da ontologia unitária sem apresentar-lhe alternativa.

Em Aristóteles, pensar o humano é pensar o vivente, e isso inclui a animalidade.

Mas o que difere o humano de outros viventes é que ele estabelece princípios morais

(éticos). O interesse de Aristóteles é a ação humana do ponto de vista ético, pois

somente o animal capaz de deliberar é um vivente ético; e mesmo sendo capazes de

instrução e memória, os animais não são capazes de reminiscência.

Isso que se chama instrução será denominado aprendizagem por Castoriadis. A

aquisição de um comportamento, de um sentido, e a capacidade de cálculo são

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elementos da aprendizagem, o que não se exclui da animalidade em geral. Mas o projeto

de autonomia, de autocriação pela capacidade de deliberação é próprio do humano. Isso

envolve a diferença entre memória e reminiscência, em cujos detalhes não entraremos

aqui, apenas ressaltando a importância da reminiscência na teoria da anamnese na

gnosiologia platônica. O essencial nessa diferença é que a reminiscência é intencional e

consciente, um tipo de raciocínio deliberado, enquanto a memória está ligada à sensação

imediata da coisa e à sua imagem correspondente; essa diferença deve ser compreendida

pela teoria da alma de Aristóteles, que recusa a imortalidade da alma da psicologia de

Platão, atribuindo um novo sentido ao termo reminiscência.

Retornemos sem nos perder ao ethos humano a fim de determinarmos bem qual

é o ambiente em que se institui seu habitar, e no habitar o hábito de instituir através do

deliberar que recria os hábitos instituídos e seus esquemas de instituição no interior de

um operar sistemático da lógica conjuntista-identitária e da ontologia unitária, que a

tudo pretendem conjuntificar no conjunto do logos identitário, no seio do qual reside o

ser como ciclo que evolve na circunferência e no fechamento de si, posto que se

determina na determinidade de si como identidade. Aristóteles é quem nos fala:

“(...)Somente o homem, entre todos os animais, possui o dom da palavra; a voz indica dor e

prazer, e por essa razão é que ela foi outorgada aos outros animais. Eles chegam a sentir

sensações de dor e prazer, e fazerem-se entender entre si. A palavra, contudo, tem a finalidade de

fazer entender o que é útil ou prejudicial, e consequentemente, o que é justo e o injusto. O que,

especificamente, diferencia o homem é que ele sabe distinguir o bem do mal, o justo do que não

é, e assim todos os sentimentos dessa ordem cuja comunicação forma exatamente a família do

Estado.”1

Ora, o homem se difere por possuir o dom da palavra, somente pelo qual

delibera e institui valores e sentimentos ético-morais. A comunicação desses valores e

sentimentos constitui ou dá forma à família do Estado, isto é, à cidade, a pólis. Esse é o

habitat do homem, no qual seu ethos é possível no logos, na enunciação de valor e

sentido. O logos traz o sentido (ser) do mundo, e o próprio mundo vem a ser e, com

isso, é criado como mundo do homem, mundo que faz sentido para o homem e que

permite a existência humana. A abertura de sentido e de mundo para o homem no seio

do logos aconteceu originalmente como physis; essa abertura é a própria physis, a

brotação do ser pela palavra (logos). O ethos humano é pois o logos, somente pelo qual

1 Aristóteles. Política; Livro I, cap. I §10; São Paulo: Martin Claret, 2001.

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é possível instituir valores e constituir a cidade, a pólis, a habitação do homem na qual

este é o politikós, o cidadão do demos cujo governo (cracia) é a democracia, que

delibera sobre esse governo em sua constituição (politeia) e no deliberar se recria à luz

do projeto de autonomia.

O termo physis designava esse surgimento e vigência do mundo como ente

múltiplo em sua totalidade, o ser-total pensado na cosmologia. Esse surgimento e essa

vigência se dão somente na palavra, no logos que reúne e conjuntifica o múltiplo na

unidade identitária, o ser do que é e está sendo; e nisso o ethos humano. A separação

dessas três instâncias em disciplinas específicas configura a especialização do saber e a

delimitação das regiões distintas de entes a serem pensados como objetos de uma

ciência: a ética, a lógica e a física.

Assim vai se constituindo o saber do ser dos entes como metafísica, e esta como

a raiz do saber do ser no ocidente, determinando o modo ocidental de se fazer ciência e

delineando o fundamento da gnosiologia moderna a partir da relação de conhecimento

entre um sujeito e um objeto; o primeiro como executor da ação de conhecer, o segundo

como o que é conhecido e cognoscível, ou seja, passível de sujeitar-se à atividade

cognoscente de um sujeito, cuja enérgeia é, no interior da essência volitiva da vontade

de vontade, operação e processamento de dados, informações, fenômenos,

representações ou conhecimentos, culminância do imperar da técnica na consumação da

metafísica.

Essa é resumidamente a visão de Heidegger, aquele que constata o fechamento

do ciclo da ontologia unitária e da lógica conjuntista-identitária do ocidente sem sair

dele. Julgamos importantes essas questões porque temos em vista as últimas duas

páginas do Seminário de 5 de março da obra de Castoriadis que ora é nosso material

elementar de estudo.

Ali Platão é visto como ponto de delimitação de uma segunda criação da

filosofia, cujo ciclo se fecha em Heidegger. Este pensador alemão é exatamente quem

diz que a especificação do saber nas três disciplinas da ética, lógica e física cria a

escolarização e ramificação do saber nas ciências e determina o morrer do pensamento

originário, ao destinar-se a técnica do pensar no surgir da filosofia como metafísica,

destinando a metafísica do ocidente como história do ser esquecido, ou do ser velado, o

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tema do esquecimento do ser, assim estruturando as formas de conhecer hoje dispostas

de maneira regulamentada nas academias como saber oficial de regiões específicas do

saber sobre os entes (ciências), saber este compartimentado em disciplinas específicas

no interior de uma mesma ciência.

Segundo Heidegger, é com Platão e Aristóteles que se dá essa destinação do

ocidente nos rumos da metafísica, cuja consumação, desde seus primórdios já destinada,

acontece no imperar da técnica. E já que chegamos ao império da técnica, ao

fechamento do ciclo da lógica conjuntista-identitária e da ontologia unitária, e já que

isso tem relação com o logos, passaremos agora ao que Castoriadis nos diz acerca do

legein e do teukhein.

E precisamente agora nos situaremos rapidamente na obra A Instituição

Imaginária da Sociedade, mais precisamente na Segunda Parte onde se trata de o

imaginário social e a instituição, apenas para termos uma rápida compreensão do legein

e do teukhein, os quais, se não são também o ethos do homem, são no mínimo

elementos fundamentais de constituição desse ethos, no qual se dá o ser como

autocriação no seio de sua compreensão como criação social-histórica.

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A questão da sociedade e da história é uma única e a mesma, a do social-histórico. O

pensamento herdado está limitado a uma visão fragmentária dessa questão. A lógica e a

ontologia tradicionais apenas pensam a história e a sociedade sob a questão identitária

do ser, isto é, enquanto entes que são; nisso, a questão do ser, ontologia, pressupõe a

determinidade que lhe acompanha a partir da lógica como sua determinação, pois o

sentido do ser é o do algo determinado e uno, desde a metafísica de Aristóteles, somente

a partir do quê todo ente é passível de categorização e de ser entendido em sua

“realidade” ou “objetividade”.

Castoriadis também empreende uma crítica da visão teleológica (causalista e

finalista) da história: Hegel e Marx; a história como evolver do Espírito ou da Razão, ou

como produção e trabalho sobre a natureza e evolver materialista.

As noções de imaginário radical e social-histórico, porém, implicam profunda

problematização das significações proporcionadas pela tradição do ser como

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determinidade e da lógica como determinação. Só o conceito de imaginário radical é

capaz de alcançar o significado de ser e pensar em uma instância mais originária, como

indeterminação, pois a indeterminação originária dos conceitos fundamentais desde

Aristóteles, passando por Kant, Hegel, Marx e Freud, como instituição imaginária

social-histórica, é o que permanece velado em todas essas teorias.

Identifica-se essa lógica-ontologia tradicional com o seu enraizamento na instituição

da vida social-histórica, como uma necessidade que não pode ser eliminada. Essa lógica

tem como núcleo o que Castoriadis denomina “identitário” ou “conjuntista”, a própria

determinação dessa lógica, a partir das instituições básicas da vida social, a saber: o

legein e o teukhein.

O legein é o que permite o surgimento do logos, da lógica: o representar/dizer social

em sua dimensão identitária é o legein e significa escolher-pôr-juntar-contar-dizer; o

componente que o representa é o “código”. O teukhein é a dimensão identitária do fazer

social como elemento funcional ou instrumental; deste termo vem techné, técnica, a

significar o juntar-ajustar-fabricar-construir. Sem esses dois elementos da lógica

identitária-conjuntista não há instituição da vida social.

A lógica-ontologia tradicional se encontra em uma antinomia, pois não esgota seu

modo de ser e simultaneamente possui uma exigência interna de esgotamento de todos

os seus estratos possíveis, pelo que se reconhece sua natureza de lógica da determinação

a partir de suas especificações e de seus esquemas estendidos à sociedade e à história

nas formas de fisicalismo, logicismo, causalismo e finalismo, nas relações de causa e

efeito, de meio a fim, ou de implicação lógica.

O modo de operar dessa lógica é tal que põe essas relações como elementos de um

conjunto, somente a partir do que se podem determinar, a partir de tais posições, as

oposições referentes ao saber do que é verdadeiro e plenamente determinado; além de

qualificar esses elementos como entes físicos ou termos lógicos. Daí chamar-se lógica

identitária ou conjuntista.

Por isso, uma oposição entre saber absoluto e absoluto não-saber, Hegel-Górgias,

permanece ainda como dialética operacional no interior da lógica identitária do ser

como determinidade, pois se algo existisse, seria determinado; ora, se nada é, se não há

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ser, essa indeterminidade gorgiana ainda reside no mesmo âmbito do ser ou da

existência sob o critério da determinidade, ou seja, que para ser (existir), tem que haver

determinação.

E aqui chegamos onde queríamos para entrarmos mais especificamente no tema

central que retiramos de Sobre o Político de Platão de Castoriadis, localizado mais

precisamente no Seminário do dia 5 de março de 1986. Acima se falou a respeito da

lógica herdada pela tradição como determinação do ser, e deste como determinidade na

ontologia unitária da mesma tradição, e sua referência ao legein e ao teukhein, a partir

dos quais se institui a vida social-histórica. Mas queremos abordar aqui essa lógica-

ontologia do pensamento herdado enquanto esquema imaginário pelo qual o ocidental

se permitiu categorizar o real e dispô-lo em formas determinadas do ente-total como o

que se pode ou se deixa conhecer, formar, representar, criar; nisso, compreende-se toda

a questão sobre indução e dedução, apriorismo inatista e empirismo, e a questão dos

paradigmas e do proceder analógico ou metafórico no qual o particular e o universal se

dão simultaneamente.

A categorização do real sob a categoria primordial do ser como determinidade é algo

que está compreendido no referido seminário, quando lá se discute sobre a questão da

melhor maneira de definição, de divisão segundo as formas, as eidè, somente a partir

das quais a matéria se deixa conhecer e o mundo se permite formar sob a ordem da

divisão em gêneros e espécies pela identificação das formas de cada ente; operação

semelhante, no processo humano de conhecer, à que o demiurgo opera ao criar o ente

múltiplo em sua totalidade como ordem, ou seja, cosmos.

Aqui fazemos uma nova referência a Heidegger, relativamente à operação

demiúrgica de imprimir as formas na matéria, cuja natureza é uma tendência e

possibilidade de receber as formas [com efeito, a matéria é o substrato de

indeterminação do ser-em-potência de toda natureza (physis) como movimento de

geração e corrupção; a forma é a substância de determinação do ser-em-ato de toda

natureza (physis), como momento intermédio do movimento do gerar ao corromper, na

perfeição da junção hilemórfica de matéria e forma entre o princípio de geração

(gênesis) e o de destruição (phtorá) no plano das substâncias sub-lunares, que, por força

da própria matéria, assim como tendem à perfeição e plena atividade da forma pela

geração, também tendem à imperfeição pela destruição da forma; isso não por culpa do

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demiurgo, mas por causa da matéria e da lei da necessidade, ananké]. O que queremos

dizer é que o logos que conjuntifica o real, o faz como uma ação de imprimir ao que é

devir o caráter de ser, e isso conforme o uso e a necessidade do humano, no dito

aristotélico; e em referência ao dito de Anaximandro, que muito nos teria a dizer sobre

essa noção de mundo e de matéria como tendência a gerar-se e a assumir forma na

mesma medida em que tende a corromper-se e perder forma, segundo as leis

inexoráveis da necessidade (ananké) e do tempo (cronos), Heidegger diz:

“A sentença fala do ente múltiplo em sua totalidade (...). No cume da consumação da filosofia

ocidental pronuncia-se a palavra: “Imprimir ao devir o caráter de ser – eis a suprema vontade de

poder.” É a isto que Nietzsche escreve, numa observação intitulada: Recapitulação”. (...) “O ser”

que Nietzsche aqui pensa é o “eterno retorno do mesmo”. Este eterno retorno é o modo da

constância, na qual a vontade de poder se quer ela mesma e assegura sua própria presença como

ser do devir. Na extrema consumação da metafísica, emerge da palavra o ser do ente.”2.

A essas reflexões que temos feito acrescentaríamos outras mais detalhadas sobre

os problemas levantados no Seminário do dia 5 de março: a questão da melhor divisão,

dos gêneros e das espécies, das relações entre parte e todo, uno e múltiplo, particular e

universal e de sua simultaneidade, o que a nosso ver anula uma pergunta pelo raciocínio

mais adequado como lógica das ciências, a indução ou a dedução, o apriorismo e o

inatismo ou o extremo empirismo; a discussão com Chomsky sobre a estrutura a priori

da gramática na mente humana; a articulação da tríade cosmologia/ontologia/psicologia

em Platão e Aristóteles como pensamento herdado; a discussão da teoria da anamnese e

da imortalidade da alma em Platão e sua relação com a cosmologia da criação do mundo

pelo demiurgo, bem como sua relação com a ontologia das formas impressas na

matéria; a rejeição de Aristóteles da imortalidade da alma, e sua teoria hilemórfica da

imanência das essências (ousiai) ou formas (èide) na matéria; a questão de Platão

referente ao conhecimento do sensível–material como cópia a partir dos modelos e dos

paradigmas para aqueles objetos que não possuem materialidade e a partir dos quais se

dá a organização ou conjuntificação dos entes sob a determinação da Idéias supremas,

bem como a questão de como conhecer se já não conhecemos previamente.

E depois de uma detalhada discussão sobre os problemas fundamentais da

história da filosofia expostos no Seminário do dia 5, sob a articulação entre psicologia,

cosmologia e ontologia em Platão e Aristóteles, como determinação de todo

2 HEIDEGGER, Martin. A sentença de Anaximandro. IN Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural,

1973. (p.31, §4).

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pensamento herdado cujo ciclo se fecha em Heidegger, o arauto da consumação da

metafísica no imperar da técnica como vigência mais que velada do esquecimento do

ser na diferença entre ser e ente a fundamentar a metafísica ocidental ao longo das eras,

concluiríamos junto com Castoriadis acerca da necessidade da retomada da questão do

ser a partir da tripla partição já mencionada.

Castoriadis requer que essa retomada não constate somente o fechamento do

ciclo no reconhecimento de que o ser se autocria, como temporalidade, e de que nisso o

sujeito se reconhece como capacidade de conhecer o ser, mas sim de que essa

capacidade de se autocriar como subjetividade psíquica social-histórica e individual

recria novamente as matrizes originárias nas e pelas quais se fez a autocriação do ser. 3

Pois Castoriadis pretende que seja possível sair do ciclo do pensamento a partir do

reconhecimento de que a subjetividade humana reinventa para si todo um esquema

imaginário que vem a ser congruente a um estrato do ser dado.

E aqui já nos encontramos nas esclarecedoras primeiras páginas do seminário de

12 de março de 1986. Ali se reconhece essa articulação triádica já mencionada, a saber,

a unidade de uma cosmologia, de uma psicologia e de uma ontologia em Platão

determinando os rumos de toda filosofia ocidental até Heidegger. Reconhece-se a

necessidade de ordenamento do conhecimento, do que se reconhece a alma (psique),

que na modernidade se torna sujeito transcendental, como faculdade à qual se refere o

ser mais abstrato (ontologia) e o ser como totalidade do ente (cosmologia), a totalidade

do que é está sendo, o Cosmos, o mundo.

Em Platão a alma conhece o que já conhecera antes em um nível de

imaterialidade, porque contemplara as essências, ou melhor, as Formas (èide) com as

quais o demiurgo criou o Cosmos na matéria cambiante, imprimindo ao devir o caráter

de ser. Assim, o próprio Cosmos participa dessas Formas projetadas na matéria, o que

possibilita à alma recordar-se do que havia contemplado antes de ser presa neste corpo

também sujeito à geração e à corrupção do mundo sub-lunar. Mas aqui cairíamos no

processo dedutivo que subordina o particular ao universal, os entes materiais da

sensibilidade às formas imateriais da inteligibilidade.

3 Castoriadis, Cornelius. Sobre o Político de Platão. Ed. Loyola, São Paulo, 2004. (p. 131).

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Em Aristóteles a alma não é imortal, ela é uma capacidade ou faculdade de

apreensão dos sentidos, cujo engano se dá no logos que quer dizer algo de outro algo,

atribuindo algo a algo num raciocinar operante sobre as complexões dos sentidos e das

significações. O conhecimento dos entes materiais é assegurado pela imanência da

forma na matéria, do que se extrai a possibilidade da indução e do conhecimento

empírico; aqui não se trata evidentemente de uma matéria informe, mas de uma

realidade material na qual as essências (ousiai) estão imanentes, uma realidade material

em relação à qual as formas são inerentes.

Assim, Castoriadis pensa legitimar de certo modo o reconhecimento da

existência do conhecimento empírico e atesta que o problema da indução fora mal

colocado pela tradição. Os pensadores modernos não escaparam a essa articulação do

real presente na herança tradicional do pensamento de Platão e Aristóteles, cujo ciclo se

fecha em Heidegger no reconhecimento da destinação histórica do ocidente nos rumos

da cientificidade e do imperar da técnica. O aprisionamento nesse ciclo se reconhece no

pensamento de Heidegger como retração historial do ser.

Castoriadis pensa que seja possível sair do ciclo fechado de uma lógica

identitária-conjuntista e de uma ontologia unitária do ser como determinação-

determinidade, revendo o ser, a psique e o social-histórico como criações, o que já

compreende os aspectos da cosmologia e da psicologia, as reflexões sobre o mundo e a

mente humana. A experiência sensorial não pode ser negada, mas dela não se podem

retirar exclusivamente, nem como idéias a priori e nem como pura sensorialidade, as

formas da intuição, da espaço-temporalidade do real, e das categorias pelas quais o real

é conjuntificado e disposto na forma do juízo como produto do operar do logos na

psique. Castoriadis se vê então obrigado a reconhecer que os indivíduos humanos

recriam o que é formável de modo imanente, e isso o fazem enquanto sujeitos social-

históricos, conforme a necessidade e ao uso, no fazer deliberativo das práticas

democráticas no seio do ideal da liberdade humana, à luz do projeto de autonomia,

somente a partir do qual o humano pode se livrar das determinações de ordem

epistêmica, que processaram, sob o império da cientificidade e do reinar do saber

teórico e técnico, a redução do ser do humano ao mero operar do cognitivismo.

Aquilo que é então é o conjuntificável (ensidisable). Essa conjuntificação se dá

acessando-se os distintos estratos do ser-ente-total ou do ente múltiplo em sua

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totalidade mediante a recriação do que já está aí como elemento a partir do qual o ente

mesmo se deixa pensar. Esse acesso aos estratos do ente se dá na dialética entre a

imaginação criadora dos indivíduos e o imaginário criador das sociedades. Esses

estratos do ente, ou seja, daquilo que é, que são reinventados pela recriação de novos

esquemas sob os quais o ente e seus estratos sejam novamente pensáveis, são como

emergências, brotações, surgimentos (por que não physis, e com esta o logos e o ethos?)

do ser-ente total, ou seja, do ente múltiplo na totalidade.

Assim sendo, o homem pode constatar que ser é sempre a ser, que o ser é criação

(em todos os níveis do saber humano, Física, Lógica e Ética, e em tudo que daí se

deriva como saber específico sobre uma região delimitada de entes-objetos no ocidente;

a Estética fundada por Baumgarten, por exemplo, até que a especialização efetive de

vez o império da técnica humana e do total isolamento do humano em face do não-

humano). Com isso, a idéia da verdade como adequação ou da correspondência entre o

pensamento e o que é (o real), a co-pertença entre pensar e ser enunciada em

Parmênides é percebida sob o paradoxo de sua invenção pelo próprio humano. E aqui

fechamos nosso trabalho com a citação de um poeta, William Blake, em O casamento

entre o céu e o inferno, onde se enuncia o que Castoriadis pensa a respeito da

precedência da imaginação criadora em relação à razão demonstrativa e calculadora;

esse dizer poético enuncia que primeiro o ente surge como imaginado na psique, e

depois como racionalmente demonstrado no logos discursivo, querendo dizer que não se

demonstra o que antes não tenha sido imaginado como possível de demonstração:

“What is now proved was once only imagined”4.

É somente reconhecendo-se como capacidade criadora de seu próprio ser, que o

humano pode se libertar das amarras de sua redução cognitivista a mera subjetividade

processadora de dados pelo operar tecnicista da mente reduzida a faculdade de

conhecimento. O humano não se reduz a máquina calculadora e processadora de

informações, como se fosse um computador. O humano é um ser criador de si e dos

esquemas fundamentais pelos quais pensa tudo que é ao seu redor e, com isso, cria seu

mundo de significações sem perder de vista o ideal da liberdade na prática constante da

deliberação sobre o que já está aí criado pelo próprio humano como pensamento

herdado pela tradição, como herança cultural dos ancestrais na história. Esse é o modo

4 Idem. (P.140).

14

do habitar do homem no mundo, seu ser-no-mundo como ethos-logos-physis e como

psique a socializar-se e, assim, autocriar-se na dialética entre o imaginário radical

instituinte e o social instituído, entre a heteronomia das sociedades e o projeto de

autonomia do humano enquanto individualidade.

*

O QUE PENSAR A PARTIR DISSO?

Como nos foi pedido também elaborar o que pode ser pensado a partir da leitura

da obra em questão, a saber, Sobre o Político de Platão, exporemos aqui um esboço de

pensamento. Esta obra nos levou a uma consideração da tradição do pensamento

herdado e talvez a uma incompreensão acerca do projeto de Castoriadis, já que não

conseguimos ver o que escape à herança Greco-ocidental, européia, ou como quiserem

chamar, no seu modo de fazer ciência, de situar-se frente ao mundo e de constituir-se

politicamente, socialmente, psiquicamente, enfim, culturalmente.

E isso porque compreendemos que na esteira do que Castoriadis compreende

como fechamento do ciclo da ontologia unitária em Heidegger, o que este pensador

pensa como deserto da desolação da terra, lembrando o dito de Nietzsche5 “O deserto

cresce”, é nada mais nada menos que o imperar da tecnicidade e da cientificidade que

se expande para o mundo como incondicional dominação planetária do modo de pensar

europeu sobre todos os povos da Terra.

Isso acontece, a meu ver, como efetivação do projeto de ciência ocidental

inaugurado por Galileu, Copérnico, Newton e pela gnosiologia moderna desde

Descartes, passando pelo empirismo britânico, por Kant, pelo idealismo alemão, por

Schopenhauer e Nietzsche, pelo positivismo, o darwinismo, a psicanálise, o socialismo

marxista ou anarquista, a fenomenologia, o existencialismo, e toda ciência, literatura e

filosofia produzidas no contexto cultural do ocidente europeu, universalizando-se

através de renovados modos de política imperialista industrial cultural sobre os povos

da Terra. Junto a isso a expansão do mundo capitalista com seu companheiro crítico, o

5 CASTORIADIS, Cornelius. Sobre o Político de Platão. Ed. Loyola: São Paulo, 2004, p131.

15

ideal socialista, e as alternâncias beligerantes entre estados ditatoriais e democráticos no

século XX.

Trata-se da dominação da natureza e do homem pelo homem através da ciência e

da técnica, no interior do acontecimento da morte de Deus e do niilismo. Não me

recordo em que lugar de seu Zaratustra Nietzsche diz “correndo atrás do saber como o

leão faminto atrás do alimento”, ou qualquer coisa parecida. Mas é interessante em Da

Ciência, no quarto livro do Zaratustra, como o consciencioso fala a Zaratustra do seu

temor da ciência. E Zaratustra retruca dizendo que este temor é a exceção que elevou o

homem à condição humana. Depois, em Entre as filhas do Deserto, a sombra de

Zaratustra canta a Zaratustra:

“(...) as minhas narinas aprenderam a examinar e a apreciar ares múltiplos; mas onde elas

experimentam o seu maior deleite é a teu lado. A não ser ... a não ser... Ó! perdoa-me uma antiga

recordação! Perdoa-me um antigo canto de sobremesa que compus em tempos às filhas do

deserto.”

“Que lá também havia ar puro e límpido de Oriente; foi onde estive mais longe da velha Europa,

nebulosa, úmida e melancólica. Então amava eu as filhas do Oriente e doutros reinos do céu

azulado onde se não chocam nuvens nem pensamentos.”6

Depois disso, o viandante, dito a sombra de Zaratustra, entoa um salmo que é

exatamente O Deserto cresce. Ai Daquele que Oculta Desertos. Este salmo começa:

Solene! Digno princípio! Princípio de solenidade africana! Além desta alusão à África,

fala-se de oásis e mostram-se figuras poéticas sensuais e enigmáticas, o que é típico do

modo europeu considerar o não-europeu, ou do sujeito de conhecimento considerar o a

ser conhecido (objeto) como o oposto ao sujeito; essas imagens poéticas lembram muito

o caráter de exótico que tudo que é estranho e a ser conhecido assume para o europeu e

seu enfadonho conhecimento científico acerca dos entes.

Ainda neste salmo, há um trecho que pensamos ser referência ao capítulo II do

livro do profeta Jonas na Bíblia, onde Jonas é engolido por um peixe, faz uma bela

oração ao Senhor Deus, depois da qual o Senhor liberta a Jonas de dentro do peixe.

Vejamos um trecho do versículo 6 até o 9, para não transcrevermos todo o salmo, e

depois vejamos mais um trecho do canto da sombra de Zaratustra, como resposta:

“Desci até os fundamentos dos montes, desci até a terra, cujos ferrolhos se correram sobre mim,

6 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Martin Claret: São Paulo, 2005, p. 229.

16

para sempre; contudo, fizeste subir da sepultura a minha vida, ó SENHOR, meu Deus! Quando

dentro de mim, desfalecia a minha alma, eu me lembrei do SENHOR; e subiu a ti a minha

oração, no teu santo templo. Os que se entregam à idolatria vã abandonam aquele que lhes é

misericordioso. Mas, com a voz do agradecimento, eu te oferecerei sacrifício; o que votei

pagarei. Ao SENHOR pertence a salvação!”7

“Bendita, bendita aquela baleia, que tão bondosa quis ser para o seu hóspede! Compreendeis a

minha douta alusão?... Bendito o seu ventre, se foi tão grave vento de oásis como este. Coisa de

que duvido, no entanto; porque venho da Europa, que é a mais incrédula de todas as esposas.

Deus a melhore! Amém!”

“(...) Que os alaridos da virtude, arrebatadoras jovens, são, principalmente, a paixão ardente, a

fome voraz do europeu. E vede já em mim o europeu: não posso remediá-lo. Deus me valha!

Amém! O deserto cresce. Ai daquele que oculta desertos!”8

Este canto é pronunciado pela sombra de Zaratustra. Este é a figuração do

Europeu-Ocidental no tempo que se instaura a partir de Nietzsche, cuja filosofia anuncia

a morte de Deus, a transvaloração dos valores da tradição cristã ocidental. O deserto da

desolação da Terra, como fechamento do ciclo do pensamento herdado, é pensado em

Heidegger como a consumação da metafísica no imperar da técnica e da ciência

ocidentais em uma dominação planetária possivelmente aniquiladora.

Zaratustra é a figura do Europeu-Ocidental sem o Deus cristão, o autêntico

pagão, o arauto da criação e destruição que acompanha a sempre criação de novos

valores. A tentativa de Nietzsche foi a de fugir do ser como determinidade por uma fuga

no puro devir, figurado em Dioniso, mas aí Heidegger constata a consumação da

metafísica, a permanência no e o fechamento do ciclo, do ciclo que Castoriadis

denomina da lógica conjuntista-identitária e da ontologia unitária.

Todavia, em o Escritor e a Democracia, Castoriadis é claro em desconsiderar a

produção literária que não seja proveniente do contexto democrático. Ele cita o

Bhagavad Gita, o Livro de Jó, e outros da tradição bíblica, apenas para falar que não

têm relação com a tradição democrática fundada pelos gregos no seio da cultura

filosófica. De modo que o autêntico escritor seja somente o cidadão democrático que

reflete criticamente os problemas concernentes ao contexto democrático, inaugurado

pelos gregos, pois só estes procedem ao abalo das certezas instituídas, e assim percorre

os séculos da história literária ocidental a fim de mostrar que somente seus literatos são

autênticos escritores. Mas não faz um histórico do vedantismo, do budismo ou do

taoísmo, ou das teologias cristãs, a fim de perceber que ali também há contestação e

7 A Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no

Brasil. 2 ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, p.612.

17

transformação de significados e idéias, críticas, rompimentos de certezas, demonstrando

um mínimo de espírito democrático.

Em a Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, Nietzsche divide a filosofia em

pré-platônicos, considerando a singularidade dos pensadores precedentes a Platão, e

percebendo neste certa falta de idiossincrasia, uma mistura de elementos presentes no

pensamento que lhe antecede. Heidegger chama os pré-socráticos de pensadores

originários, evocando um pensamento perdido e desconsiderado face à predominância

historiográfica da filosofia dividida em disciplinas escolares no âmbito da Academia

platônica e do Liceu aristotélico. Do mesmo modo, Castoriadis reconhece em Platão

uma segunda criação da filosofia, uma reformulação do esquema imaginário da

sociedade grega em relação a Tucídides, Heródoto, Protágoras, Demócrito e Hesíodo.

Logo no início do seminário do dia 5 de março em Sobre o Político de Platão,

Castoriadis nos traz o problema da divisão dicotômica, exemplificando-a pela divisão

entre gregos e não-gregos. Ora, o que vemos ao longo de sua argumentação em defesa

da democracia é sempre esse método classificatório dicotômico que separa em gregos

(democráticos-europeus-ocidentais) e não-gregos (o resto do mundo a ser dominado,

democratizado, europeizado, ocidentalizado), e isso como todo ocidente sempre fez, à

luz do projeto democrático de autonomia individual e coletiva. Então, perguntamos: 1)

há realmente escapatória do isolamento do eu e do deserto da desolação da Terra? 2) do

alto e auto pensar reflexivo que sempre retorna ao ego sum da res cogitans do europeu,

fazendo singularmente o que universalmente todo pensador ocidental sempre fez,

Castoriadis saiu realmente do ciclo lógico-conjuntista-identitário e ontológico-unitário

do modo de ser e pensar do europeu?

Se não for democraticamente expulso do grupo, eu apresentaria o meu projeto

absurdo de uma co-incidência entre o isolamento do eu e o deserto da desolação da

Terra, com base no que foi estudado no relatório de pesquisa a ilusão cognitivista e no

tratado lockiano da identidade, tendo em vista a essência do projeto para além do

sujeito isolado. Pois, para mim, o sujeito isolado é o Homem Universal, particularmente

o ideal de civilização européia na sua hodierna vigência, plena de sua expansão e de seu

8 NIETZSCHE, Friedrich. Opus cit. pp – 230 e 231.

18

projeto de dominação e superioridade em relação a todos os povos da Terra, lançando-

se para além da Terra nos projetos espaciais.

Toda cultura produzida nos EUA atesta minha opinião. Estados Unidos significa

a unificação de todos os povos da Terra naquele país; com efeito, toda cultura é ali

acolhida e por ali absorvida como matéria de produção de cultura de entretenimento e

de informação de massa, e isso em consonância com o tema da arte na era de sua

reprodutibilidade técnica, como nos diz o texto de Benjamin, de modo que não é só a

arte que se submete ao princípio industrial de reprodutibilidade técnica, mas tudo que é

representável, calculável e utilizável pelo homem, na medida em que o termo arte em

sentido amplo designa a técnica de produção humana em geral. É só que o mundo

contemporâneo é marcado pelo esquecimento do ser, como diz Heidegger;

esquecimento é velamento, o processo do ocultar-se. O ser para Platão é a idéia, a forma

do real, enquanto pura inteligibilidade e possibilidade de configuração dos entes. Em A

República, vê-se que a sofística nos faz confundir justo e injusto; a submersão no desejo

de apropriar-se das coisas belas nos torna indiferentes ao belo em si, mantendo-o velado

para nós que estamos acorrentados no escuro da caverna. O esquecimento do belo é o

esquecimento do ser. Nosso momento histórico é o do pleno esquecimento do ser em

suas determinações primordiais (como bom, belo e justo), vela-se a nós a possibilidade

essencial da justa medida de configuração de realidade; vivemos na total

desconfiguração dos entes. É possível hoje uma experiência como a descrita pela

Alegoria da Caverna, a experiência original do filosofar que busca a beleza em si, a

beleza nela mesma e na alma do homem, na medida em que a pura vivência do intelecto

desvela à alma humana a essência do ser como Bem e residência próxima ao(s)

deus(es)? É possível ao homem hodierno o Bem, a eudaimonia (felicidade) verdadeira e

suprema? Não era essa a questão de Platão em sua República, não havia ele já

constatado o esquecimento do ser (belo, justo, sábio, bom), na medida em que o

humano se bestializa no afastamento do deus, ec-sistindo na in-sistência histórico-

ontológica do ser-quadratura (deuses e homens, céu e terra) a viger em ocultamento? E

se isso é a doença da humanidade, não à toa é o fato de a compreensão pré-ontológica

do ser-aí como cura aparecer-nos em uma Fábula de Higino narrada por Heidegger em

Ser e Tempo e figurar-nos como o modo mais originário de existir (habitar) a terra como

ser-aí mítico.

19

*

ESCLARECIMENTO: pretendemos clarificar um pouco mais as idéias que vimos

desenvolvendo ao longo dos estudos no Grupo Sujeito Isolado. Concebemos que

levamos ao limite a compreensão do fenômeno do isolamento do eu e de sua redução a

aparelho cognitivo ao estudarmos esse processo no seio da história da filosofia, ou do

evolver do saber ocidental no tempo. E isso está em consonância com o projeto de

Castoriadis de compreensão do esquema de pensamento da lógica conídica e da

ontologia unitária no seio dos problemas fundamentais da filosofia ocidental inaugurada

em Platão e Aristóteles, e tendo fechado seu ciclo em Heidegger.

O que temos percebido é que Castoriadis pretende recuperar o conceito de

imaginação, em Aristóteles chamado de phantasia, e dar-lhe um novo significado não

alcançado pelos filósofos. A imaginação radical na psique singular é vista como fluxo

representativo de intenções, afetos, desejos, num âmbito inconsciente cujo

funcionamento não obedece aos princípios de conjuntificação do real fornecidos pela

lógica conídica. O indivíduo social é fabricado pela sua inserção no mundo de

representações da lógica conjuntista-identitária da sociedade; esta, porém, é também

autocriação e resguarda também um imaginário instituinte; em sua autocriação a

sociedade é um coletivo anônimo e oculta seu poder de criação no já instituído,

fundando o estado de heteronomia que frustra o projeto de autonomia de todo indivíduo

humano. A autocriação de formas ontológicas de instituição é também auto-alteração

processual da sociedade no tempo; assim, o aspecto social-histórico e o psíquico são

identificados como modos de compreensão do ser humano, de como o humano se

comporta no mundo, o ethos humano.

O que acontece é que a compreensão de Castoriadis de que o ciclo do

pensamento herdado da lógica conídica e da ontologia unitária do ser como

determinação-determinidade em sobre o Político de Platão nos levou a uma

consideração talvez teoricamente insustentável a respeito da co-incidência do

isolamento do eu e do que Heidegger denomina o deserto da desolação da Terra, o que

Castoriadis percebe como mera constatação do fechamento do ciclo da lógica

conjuntista, e que é o que Heidegger denomina a consumação da metafísica no império

da técnica.

20

Pois isolamento do eu significa para nós, de maneira abrangente, o completo

isolamento do humano no mundo humano, pensando somente a essência humana, e

fazendo ciência de tudo para, a partir dos conhecimentos produzidos ou social-

historicamente recriados, processar cada vez mais o insulamento do homem em relação

à totalidade dos entes, a natureza, de modo que esta somente lhe sirva enquanto

material disponível para produção de utensílios humanos, assim garantindo a

subsistência abastada de uma civilização que a todo instante precisa prover o incessante

investimento libidinal de seus indivíduos em uma multiplicidade de objetos de desejo

(consumo) e processar a ilusão do progresso e da novidade no campo crítico do saber,

no qual o mundo humano se faz e se pensa a si mesmo se fazendo, e isso no interior do

que Hegel já havia identificado como o momento efetivo do saber absoluto de si do

espírito e do que Nietzsche havia constatado como acontecimento da morte de Deus e

do niilismo europeu, somente em conseqüência dos quais toda ciência e pensamento

contemporâneos se instalam no tempo (história) e no espaço (sociedade), configurando

o humano como elemento principal da existência em geral e como criador de si mesmo,

após a morte de Deus, isto é, a morte do criador do homem e da totalidade dos entes no

esquema imaginário de significação do ocidental judaico-cristão.

Sustentamos que isso está de acordo com o problema do isolamento do eu e

remetemos ao tópico presente a si, ausente do mundo no projeto para além do sujeito

isolado, no qual o mentalismo moderno é visto pela determinação da consciência como

certeza da presença do espírito a si mesmo. Essa certeza assegura o poder do

entendimento como faculdade de conhecimento, no que consiste o cognitivismo, cuja

efetiva cognição é assegurada como operação mental, na qual toda experiência possível

é vista como conhecimento da experiência no interior da consciência. Assim, a presença

a si do sujeito realiza um afastamento do mundo; o mentalismo não dá conta da ação

humana em seus vários sentidos e, fundamentando o cognitivismo, instaura o império

do conhecimento teórico, reduzindo a prática humana às leis gerais estabelecidas pelo

conhecimento. Isso está figurado no Político de Platão na pessoa do epistemon, o

Filósofo-Rei de A República, e manifesta o conflito entre o conhecedor das leis e o

aplicador das leis no interior da consciência, do sujeito transcendental cognoscente, que

se torna mero executor de ordens, de cálculos, de operações mentais.

21

Recordamos a leitura do relatório de pesquisa sobre a ilusão cognitivista e do

tratado lockiano da identidade de Balibar. Nesses textos percebemos um histórico do

conceito de consciência, passando pelo ego cogito de Descartes, pela instauração da

potência do entendimento em Locke até a formalização da subjetividade transcendental

em Kant, que assegura a certeza da objetividade dos objetos de conhecimento da

faculdade do entendimento do sujeito humano, este reduzido a mero ente cognoscente

frente a uma realidade cognoscível de experiências possibilitadas pela estrutura a priori

da subjetividade transcendental, que põe em proposições a realidade como objeto, como

o que se opõe ao sujeito.

Então, no seio da história da filosofia, ou do pensamento herdado, fomos levados

até Hegel, que pensa a subjetividade, a consciência, o espírito, como manifestação de si

mesmo e desdobramento de si na história. O estudo ou discurso do fenômeno do espírito

no tempo é a fenomenologia do espírito. Ali a consciência se desenvolve até a certeza

máxima de si mesma na figura do saber absoluto. Ao longo de seu fenômeno na

história, a consciência chega a ser consciência de si através da luta pela dominação e

pelo reconhecimento na dialética entre senhor e escravo. Essa consciência não é só uma

certeza do sujeito enquanto legislador dos fenômenos da natureza pelo entendimento ou

como agente sob as leis morais dadas a priori pela razão; essa consciência é espírito

vivo que se dilacera no tempo, subsistindo à morte nas transformações de suas figuras

nas eras históricas até atingir a máxima consciência de si no saber absoluto, no qual a

ciência do espírito já não é mais amor pelo saber, mas saber consciente de si enquanto

espírito que subsiste à sua própria alienação e objetivação na história e no mundo

produzido pela cultura e se reconhece como realidade suprema e subsistente na essência

evanescente do tempo.

Ora, é dessa máxima conscientização e universalização de si no saber absoluto

que brotará a máxima inconscientização e relativização de si; a reivindicação pela

singularidade da existência em Kierkegaard; a revirada metafísica de Schopenhauer

colocando a vontade como coisa-em-si da qual a consciência e razão humanas surgem

como fenômenos capazes de representar a realidade enquanto fenômeno para este em-si

numênico, que é a vontade reconhecida enquanto tal na consciência de si do mundo no

humano, efetivando o perfeito reconhecimento do ser-para-si; a loucura do em-si-para-

22

si da humanidade no seu processo de assumir o lugar de Deus como criador da realidade

e de si mesmo.

A inversão de Marx fundando o materialismo histórico e reduzindo o homem a

animal produtor e trabalhador que luta pela propriedade dos meios de produção,

organizando-se social e politicamente como consciência de classe em vista das relações

de produção infra-estruturais da sociedade, no que já se pressupõe a ação humana sobre

a natureza em vista da utilização dos recursos naturais objetivados para a produção

incessante de material e utensílio humano no seio da cultura; a transvaloração dos

valores morais da metafísica em Nietzsche, anulando o supra-sensível no sensível, e

colocando a vontade de poder no cerne da essência humana, de modo a operar o querer

da vontade na pulsação do poder que apodera o homem e o insere no pulsar

inconsciente da vontade de querer.

Assim inserido em tal querer que não admite nem mais o controle da consciência

e da razão, o homem se perde no império da técnica e na consumação da metafísica na

destinação do esquecimento do ser, consolidando o completo isolamento do eu no

operar da ciência e das técnicas de produção do uso e abuso do consumo dos entes.

Nisso, a essência pulsante da volição impulsiona a atividade do poder na essência

apoderadora dos apoderamentos, pelos quais se forjam líderes políticos como

instituições dessa vontade de calcular e objetivar os entes para o uso e abuso da técnica

de reprodução humana; a diferença entre guerra e paz se marginaliza na globalização do

pensamento, assim cunhando o mundo do internacionalismo; guerras pelo domínio

incondicional do uso e abuso da natureza e do material humano sob a forma do trabalho,

a fim de concretizar a todo instante o fazer-se a si mesmo do mundo da técnica (arte

universal de toda produção e engenharia sob a vigência do esquecimento do belo, do

bom e do justo).

Aqui o completo isolamento do eu se desdobra no individualismo humano mais

extremo a ponto de ser capaz de gerar uma nova ciência, a análise da psique humana no

pressuposto da existência do inconsciente. O homem pensa, agora, desvendar seus

segredos mais recônditos e resolver pela análise os problemas insolúveis de uma mente

atordoada e de uma vida cheia das vertigens do mundo contemporâneo, pois o mundo

contemporâneo conhece tudo e nada sabe, até que na consumação do consumo tudo que

é e está sendo se acabe.

23

Nesse mundo efetivado no interior do niilismo e da morte de Deus, a psicanálise

entra como solução para os problemas do indivíduo isolado, e o engajamento nos

problemas sociais e políticos entra como efusão catártica de intelectuais, sociólogos,

antropólogos, economistas, enfim, de cientistas que conhecem tudo no seio do mundo

acadêmico, no qual reina a técnica no vigor de seu acontecimento destinal-historial

como acabamento da filosofia ocidental e do modo de pensar europeu expandido por

todo o globo terrestre. Talvez os cientistas e pesquisadores profissionais devessem

reconhecer a atualidade da Apologia de Sócrates de Platão, pois aqueles que pensam

tudo saber sem reconhecer que nada sabem...

Assim, ao homem resta somente pensar o humano, demasiado humano, e como

há muita libido pela política e pelos humanismos, marcadamente de herança de

pensamento dos primórdios da civilização ocidental na Grécia antiga, o humanismo

existencialista de Sartre talvez não seja diferente do pensamento de Castoriadis, no que

diz respeito à determinação humana como projeto de autonomia, ou de existência,

engajamento, investimento da psique singular no mundo social e histórico, ou da

consciência (ser-para-si) existencialista e humanista, existindo meramente enquanto

humano no mundo humano do insulamento humano face à natureza e à totalidade dos

entes, a despeito dos conflitos entre fenomenólogos e psicanalistas.

A psique humana em sua fase triádica, o sujeito, o outro e o objeto, o seu

processo de socialização e o investimento de sua imaginação radical socializada em um

objeto do mundo social-histórico, a fim de realizar o projeto de autonomia em meio à

situação de heteronomia e alienação da sociedade; em suma, o conflito entre o

absolutamente singular e a lei universal do conídico, lógico-conjuntista-

identitário/ontológico-unitário, nas significações social e historicamente instituídas. A

noção de práxis retirada daquelas práticas ditas impossíveis (a política, a psicanálise e

outra que não lembro), a fim de retirar das teorias sobre o humano o poder de

determiná-lo a priori; a práxis como atividade que tem finalidade em si mesma; o modo

de ser do humano como não determinável por teorias; o humano no âmbito psicanalítico

e político nas vias do projeto de autonomia e de deliberação democrática, atividades

caracterizadas como práxis, e o caráter dessas atividades e do modo específico de ser do

humano como possível de elucidação, e não de demonstração teórica acabada como as

leis objetivas dos fenômenos naturais e do método das ciências teóricas em geral...

24

No texto abaixo, o mesmo é, para Sartre, o projeto pessoal humano não definível

por conceitos e, para Castoriadis, o projeto de autonomia do humano singular, cuja

existência não é possível fora da sociedade, e esta fora da história, sendo a

temporalidade a marca do ser como criação ex nihilo na auto-alteração e

autoconstituição das sociedades. O ser como criação do novo ex nihilo é o ser que

procede do nada e se projeta no mundo como projeto existencial de autonomia, fado

humano da liberdade.

Embora estejamos cientes da junção de marxismo e humanismo existencialista

de Sartre, da rejeição deste à psicanálise em prol da fenomenologia no capítulo II de

Esboço para uma Teoria das Emoções, e da crítica veemente de Castoriadis ao

marxismo na primeira parte de a Instituição Imaginária da Sociedade, bem como de sua

leitura singular da psicanálise e da política e de sua não aceitação da fenomenologia em

Imaginação, Imaginário, Reflexão em Feito e a ser feito - Encruzilhadas do Labirinto

V, percebemos uma semelhança entre ambos, que na verdade é uma semelhança que

estará sempre vigente no pensar de todo grande pensador ocidental, pressuposta na sua

megalomania de pretender tudo conhecer, recriar e transformar em um novíssimo e

revolucionário saber, a fim de provocar os ânimos críticos e insuflar o flatus vocis

espiritual da intelectualidade.

A respeito da antropologia no seio da contradição entre a impossibilidade de

uma determinação comum entre os indivíduos humanos e a sempre possibilidade de

comunicação, Sartre nos fala da suscetibilidade de uma ideologia da existência:

“Esta, com efeito, considera que a realidade humana, na medida em que se faz, escapa ao saber

direto. As determinações da pessoa só aparecem numa sociedade que se constrói sem cessar

designando a cada um de seus membros um trabalho, uma relação com o produto de seu trabalho

e das relações de produção com os outros membros, tudo num incessante movimento e

totalização. Mas tais determinações, por seu turno, são sustentadas, interiorizadas e vividas (na

aceitação ou na recusa) por um projeto pessoal que tem dois caracteres fundamentais: ele não

pode em caso algum definir-se por conceitos; enquanto projeto humano, é sempre compreensível

(de direito, senão de fato). Explicitar esta compreensão não conduz de maneira alguma a

encontrar as noções abstratas cuja combinação poderia restituí-la no Saber conceptual, mas

reproduzir por si mesma o movimento dialético que parte dos dados recebidos e se eleva à

atividade significante. Esta compreensão que não se distingue da práxis é ao mesmo tempo a

existência imediata (já que ela se produz como movimento da ação) e o fundamento de um

conhecimento indireto da existência (já que compreende a existência do outro).”9

9 SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método in col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.192.

25

É que a dialética era o arcabouço conceitual do modo de interpretação histórica

da transformação, da autocriação e auto-alteração da sociedade de que Sartre dispunha.

Castoriadis veria isso, talvez, como um esquema de pensamento herdado da tradição,

que mal compreendeu o social-histórico, e arranjaria um meio discursivo erudito

qualquer para demonstrar argumentativamente que seu pensamento é distinto de todo

outro e novíssimo, apenas para gozar da megalomania vaidosa universal e comum a

todo intelectual. De todo modo, o isolamento do eu ainda vige no humano apartado do

mundo e na preocupação atual com a vida do planeta, ameaçada pelo que Heidegger

denominou o deserto da desolação da Terra.

E talvez a esperança de uma verdadeira integração do homem com o não-

humano, do homem não só no mundo humano, social-histórico e psíquico singular, mas

no Cosmos, o ser-ente total, seja que o ethos não esteja apartado da physis, e junto a

ambos o logos, numa experiência do homem com o ser em geral no interior de seu

habitar na linguagem, que já não mais retorna ao seio acolhedor do legein e do logos

não como criações humanas, mas como dádivas da origem do mundo e dos seres na

totalidade do que é. Uma experiência como a do poema de Heidegger Da experiência

do pensar, uma experiência original com a poiésis originária da linguagem no poetar-

pensante e no canto; o canto originário das Musas que entoa a origem das essências

cósmicas divinas, a Teogonia de Hesíodo...

Essa esperança que remonta para além e antes da época contemporânea,

destinada pela filosofia como metafísica ao longo das eras na história do mundo

ocidental, hoje ainda no vigor de seu imperar no globo terrestre como dominação

incondicional da técnica e da cientificidade; uma experiência anterior a Platão e

Aristóteles, que não tenha separado aqueles três elementos em ciências distintas e

especializadas em um discurso analítico bem concatenado, assim fundando o modo

ocidental de fazer ciência sobre objetos: a ciência ética, a ciência lógica, a ciência física;

e por que não também a ciência política, a ciência psíquica e a ciência estética, visto que

Aristóteles escreveu uma obra para cada região distinta dos entes (objetos)

correspondentes a uma disciplina específica: a Ética a Nicômaco, a Ética a Eudemo, o

Organon dos tratados analíticos sobre lógica, a Política, o De Anima e a Poética?

Pois não seria a não separação do saber em disciplinas da ética, da física e da

lógica no interior das escolas, como propõe Heidegger, semelhante à não separação

26

entre psicologia/cosmologia/ontologia, embora estejam articuladas em um todo

sistemático? Um discurso desse tipo é um discurso originário e, mais longe ainda do que

Heidegger, que vê o pensamento originário em Anaximandro, Parmênides e Heráclito,

nós o veríamos, bem antes da filosofia e da polis, na Teogonia de Hesíodo, a palavra

que diz a origem dos deuses, ou dos entes na totalidade do Cosmos, visto que é uma

cosmogonia. E nesse originar-se da totalidade dos entes, insere-se este ente que é só

mais um entre outros, que se considera muito especial porque vive na especificidade de

seu próprio viver e considerar o que é, o homem.

E se temos que associar isso à educação, diríamos que essa era a Paidéia grega

original, a educação que não ensinava o mundo fragmentado das ciências

contemporâneas para um sujeito psíquico isolado na absoluta singularidade relativa de

uma imaginação radical, situada no problemático mundo social-histórico e político da

sociedade globalizada fundada no isolamento do eu-humano em meio à sua total

aniquilação no deserto da desolação da Terra. Uma educação que desconhecia pólis,

Platão e Aristóteles, e tampouco viria a conhecer Hegel, Marx, Nietzsche, Freud,

Heidegger, Sartre, Castoriadis, isto é, toda modernidade e contemporaneidade

chafurdadas no isolamento do eu, no esquecimento do ser e no deserto da desolação da

terra.

“A terra, porém, permanece abrigada na lei inaparente do seu possível. A vontade impinge o

impossível como meta do possível. O apoderamento que instaura essa exigência e a mantém em

vigor provém da essência da técnica, palavra aqui idêntica ao conceito da metafísica em sua

superação. A uniformidade incondicionada de todos os povos sob a dominação da vontade de

querer evidencia a insensatez da ação humana colocada como absoluto.”

“A devastação da terra começa como processo voluntário mas que, em sua essência, não é e nem

pode ser sabido. Começa no momento em que a essência da verdade se circunscreve como

certeza na qual a re-presentação e a produção humanas asseguram-se de si mesmas. Hegel

concebe esse momento da história da metafísica como o momento em que a consciência absoluta

de si torna-se princípio do pensamento.”10

A solução do isolamento da subjetividade humana e de sua redução a mero

trabalho de conhecer, a redução cognitivista, seria a compreensão da autonomia humana

a partir da psique como mônada originária e fluxo espontâneo de investimento em

afetos, desejos e criação de representações para si, assim constituindo seu mundo

próprio, inserindo-se no mundo social-historicamente instituído, engajando-se no

projeto de autonomia no seio de uma sociedade democrática, o ideal da pólis grega

10

HEIDEGGER, Martin. A superação da metafísica in ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes

27

(pensamento herdado e habitual do ocidente em que este reside e crê se autocriar como

seta apontada para a liberdade), de modo que o recalque do indivíduo seja diminuído em

uma ampla galeria de diversos produtos a serem consumidos e, na consumação do

consumo, garantirem o investimento libidinal e o prazer de viver na dor do morrer do

humano no mundo histórico e social?

É a isso que se reduz o ethos do homem contemporâneo? Que o homem conhece

tudo e processa a natureza para usufruto técnico do seu mundo cultural de múltiplas

possibilidades de investimento libidinal, rindo de Deus morto, e chacoalhando a mente

no divã, achando que vasculhou o mais recôndito do ser por descobrir o inconsciente

psíquico, este agora consciente de si e desvelado por Castoriadis numa nova figura da

consciência de si ocidental universalizada como saber absoluto do espírito humano?

Pois quanto mais a megalomania dos intelectuais ocidentais, fabricados em

universidades, pensa ter alcançado um novo nível de visão abarcadora do real, pensando

ter uma visão global da tradição histórica e identificando nela algo que pensa poder

superar com um novíssimo modo de pensar, mais se interioriza na circularidade e mais

preso fica na sua pretensão de saber tudo, formando grupinhos de pesquisa e estudo

teórico, reproduzindo os gases poluentes do saber no flatus vocis acadêmico das solenes

solapadas recíprocas entre narcisistas livrescos.

E perguntamos ainda! As neurociências e a mera troca de sinapses no cérebro

explicam o funcionamento da mente, esta reduzida a fenômenos de produção de

substâncias ou enzimas químicas no cérebro, que despertam áreas e funções de

atividades cerebrais efetivadas e ligadas por neurotransmissores de mensagens, que

circulam pelo corpo como impulsos ou choques elétricos, assim constituindo o sistema

orgânico do vivente humano, que é vítima de um distúrbio excepcionalmente

singularíssimo em vista da ação dessa monstruosa novidade ainda não vista na história

da evolução biológica dos organismos vivos, a imaginação radical na psique singular?

Essa imaginação radical inconsciente da mônada psíquica originária, que cria

imagens ex nihilo como fluxo representativo, não teria sido descoberta

inconscientemente (numa época em que o inconsciente não havia sido desvelado à

2001.

28

humanidade pelo avatar da psicanálise) por Hegel no texto que se segue abaixo? É só

que ele não conhecia o inconsciente de Freud, e nem se chamava Castoriadis.

“O homem é essa noite, esse nada vazio, que contém tudo em sua simplicidade indivisa

(Einfachheit): uma variedade de um número infinito de representações, de imagens, das quais

nenhuma lhe vem à mente com clareza, ou [ainda] que não estão como realmente-presentes

[gegenwartig]. É a noite, a interioridade-ou-intimidade (Inneres) da natureza, que existe aqui: [o]

Eu-pessoal puro. Em representações fantasmagóricas, tudo ao redor está escuro: surge então uma

cabeça ensangüentada aqui, mais adiante outra aparição (Gestalt) branca; e elas desaparecem

também de repente. É essa escuridão que se percebe quando se olha bem nos olhos de um

homem: [mergulha-se o olhar] numa noite que se torna terrível (furchtbar); é a noite do mundo

que se apresenta (häng entgegen) [então] a nós.”

“Força (Macht) de tirar dessa noite as imagens ou de deixá-las cair nela: posição-autônoma

(Selbstsetzen) [isto é, criação livre], consciência interior, ação (Tun). É nessa noite que se retirou

a entidade-existente-como-um-ser-dado (das Seiende); mas o movimento [dialético] dessa força

está igualmente afirmado.”11

O PROBLEMA DA DOMINAÇÃO DA CIÊNCIA SOBRE A TERRA

Colocamo-nos aqui e agora diante de um texto chamado A Sentença de

Anaximandro de Martin Heidegger. Fazemos isso em vista de nele apreciarmos alguns

elementos que contribuem para pensarmos o mundo hodierno a partir da dominação da

técnica e do saber científico. Isto nada mais indica que dominação e controle sobre a

natureza. Daí a pertinência, assim cremos, de nossas reflexões quanto à matéria tratada

na filosofia da natureza.

Pois concebemos o império da técnica e do modo de pensar ocidental, hoje

predominante em todo o globo terrestre como modelo de ser e de comportar-se para

toda a humanidade, concebemo-lo como aquilo que deve ser objeto de deliberação por

todos os homens, os que habitam especialmente esta Terra e deveriam guardá-la e

cultivá-la num modo de comportamento e habitação mais harmonioso, menos violento e

destrutivo.

Os homens estão em situação de repensar e deliberar conjuntamente o seu ethos

para com a natureza (physis), liberando-a do domínio que sobre ela exercem pelo seu

fazer teórico a partir do lógos como cálculo de proposições metafísicas e

experimentações científicas tecnicamente aplicadas na fabricação de tecnologias e

11

KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto: EDUERJ, 2002,

p.536.

29

utensílios para usufruto humano. Ainda se deve compreender que tudo que o humano

faz é metafísica, a despeito das pretensões do positivismo lógico e da filosofia analítica

da linguagem de analisarem logicamente o funcionamento da linguagem, retirando o

valor de verdade das proposições metafísicas e delimitando a área do que seja uma

proposição de valor lógico e outra de possível valor empírico (científico), separando

lógica de ontologia, de psicologia etc., como se tudo o que reina no âmbito da

representação dos entes para o homem através da linguagem não fosse em si mesmo

metafísico (se adotássemos a perspectiva de Castoriadis, tudo seria a partir do psíquico e

do social-histórico como pseudo-substancialidades flutuantes do devir de um flatus

vocis vaidoso que não se cansa de peidar).

Com isso não propomos que o homem deixe de ser humano, mas que repense

sua humanidade a partir de uma perspectiva de integração com a totalidade dos entes,

tendo por finalidade a manutenção do equilíbrio ecológico na harmonização da

totalidade dos entes, a integração total de todo ser (Céu e Terra, deuses e homens).

Efetivamente, nós não caímos numa obtusidade que deixa de reconhecer que a

preocupação da preservação do planeta seja uma preocupação com a preservação do

próprio homem. Porém, não permitimos que tal reconhecimento permaneça na

inconsciência e na ignorância em que o homem esteve existindo em face da preservação

da vida para realizar interesses egoístas de ordem econômica, política, nacional e

internacional, a fim de assegurar para si a sensação megalomaníaca do exercício do

controle e da dominação sobre tudo que é e está sendo.

O império da técnica na consumação da metafísica instala a vigência

permanentemente duradoura da desolação da Terra e da contínua aniquilação da

humanidade, manifesta a desarmonia na relação, mediante a tékhne ou o teukhein, entre

o lógos-legein humano e a physis, esta sendo o movimento interno de geração e

corrupção da totalidade da natureza e dos entes singulares nela inseridos.

Quando se fala em aniquilação da humanidade, não se pretende dizer

necessariamente que ela será dizimada, mas que a cada instante ela passa a viver desde

então em um modo de ser aniquilador de sua essência esquecida e por ela mesma

desprezada, que o homem não pode conhecer sua essência e nem a essência de qualquer

ente porque vive agora no interior de um modo de existência inessencial.

30

A técnica como vontade de domínio dos entes pelas ciências e determinada

como o modo de comportamento e habitação (ethos) do homem frente à totalidade do

que se gera e se corrompe condiciona o isolamento do eu (humano) em uma

humanidade aniquiladora da Terra e, provavelmente, pode levar a desumanidade ao

interior da essência humana e assim determinar o comportamento do homem em face de

si mesmo e da natureza. Como pretendemos sustentar, o isolamento do eu e a desolação

da terra co-incidem:

“Caracterizou-se o pensamento, por um lado, do ponto de vista da reflexão, e por outro na

referência à sua própria profundidade. Nós, os hodiernos, só conhecemos a reflexão na

configuração da reflexão da subjetividade. Uma vez que costumamos justapor a subjetividade

com a egoidade do eu isolado, vemo-nos sempre no temor de que a reflexão constitua o solo

fermentador do individualismo e do egoísmo. Todavia, deve-se advertir que nessa essência da

reflexão, assumida como egoísmo egocentrado, não somente o homem singular, mas também

grupos e ligas inteiras, nações e povos, toda a humanidade da Terra pode vir a ser desolada e

aniquilada. A remissão reflexiva não precisa, necessariamente, limitar-se ao “eu” isolado.

Precisa, porém, referir-se sempre a um si-mesmo. O eu e o si-mesmo não são o mesmo. Não

existe apenas o eu-mesmo. Existem também o você-mesmo, o nós-mesmos, o vocês-mesmos.

Para cada essência da reflexão é decisivo o modo de determinação da mesmidade do mesmo, e

vice-versa.”12

Todavia retornamos agora ao texto base deste trabalho, A Sentença de

Anaximandro, pois a discussão sobre a tradução13

da sentença de Anaximandro nos traz

à compreensão dos rumos que o pensamento ocidental foi levado a traçar como destino

historial da errância do homem na epopéia metafísica do esquecimento do ser.

Em Nietzsche temos a denominação de pré-platônicos, em Diels temos pré-

socráticos e em Teofrasto e Hegel, a partir do primeiro livro da Metafísica de

Aristóteles, temos o rótulo de pré-aristotélicos para os pensadores da aurora do

pensamento grego antigo. Esses pensadores são chamados de physiólogoi, aqueles cujo

dizer e se dá em torno aos e sobre os phýsei ónta (entes físicos).

Heidegger vê em Platão e Aristóteles uma delimitação do que é designado pela

palavra physis em face do ethos e do lógos. Segundo ele, na Física, Aristóteles faz uma

delimitação entre as regiões distintas dos phýsei ónta e dos tékhne ónta: “Os primeiros

são aquilo que no seu emergir se produz a partir de si mesmo; os outros são aquilo que

12

Heidegger, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p.230. 13

Não nos importam os problemas de erudição amplamente ali discutidos, mas sim o tema da história do

destino do ser no ocidente.

31

é produzido através da representação e do fazer humanos”14

.

Essa é a oportunidade para expormos o que pensamos a partir de Heidegger, pois

não é uma análise minuciosa e erudita do pensamento dele ou de qualquer outro autor

que almejamos fazer, antes sim, como a partir da questão do acabamento da filosofia

como metafísica na instalação do controle incondicional do que é e está sendo sob a

forma de fundo de reserva enumerável (ou calculável), como a partir disso

compreendemos filosoficamente o domínio do que é produzido pelo fazer e representar

humanos nas ciências sobre a natureza, isto é, sobre o que se movimenta em um gerar

(gênesis) e corromper (phtorá) a partir de si mesmo, os phýsei ónta e a totalidade que os

constitui e abarca.

O império da técnica devastou a Terra, uniformizou os povos e culturas no

modo europeu de dizer o ser dos entes e com os entes se relacionar nas significações e

operações da linguagem, como a concebem os europeus, projetando uma humanidade

aniquiladora e isolada num egoísmo ontológico chafurdado no niilismo procedente do

acontecimento da morte de Deus no Ocidente.

Instituiu-se assim um modo de ser e se comportar face ao mundo

internacionalizado, um materialista ser-no-mundo globalizado e vigente em todos os

níveis, propagado pelos modos e modas de ser vendidos pela opinião pública forjada

pelos meios de telecomunicação, através dos quais falam especialistas e técnicos nas

diversas áreas de atuação humana, esportes, medicina, indústria, economia, educação,

comunicação, artes, entretenimento e outras.

Introduzimos agora a contribuição dos estudos que vimos fazendo sobre

Castoriadis. Retiramos deste pensador precisamente a distinção entre physis (ou phusis)

e nomos, caracterizando o ambiente humano da criação do novo, de fuga dos

determinismos da natureza e, talvez, do predomínio das teorias e das metodologias das

ciências da natureza sobre o discurso a respeito do ser humano e do que a ele diz

respeito, a saber, sua compreensão a partir do âmbito social-histórico e da imaginação

radical no âmago da psique singular.

14

HEIDEGGER, A Sentença de Anaximandro: Abril Cultural, 1973, p. 27.

32

Na physis não há esta criação do novo, há somente a determinação das leis

internas do movimento natural de gerar e corromper da própria natureza e do que nela

se insere; e nesse movimento a própria natureza é sua finalidade. Mas nós não

concordamos que o homem esteja fora disso. Pensamos ainda que todo projeto humano

de domínio do real através do legein (o lógos do discurso técnico da ciência e da lógica)

e do teukhein (a própria técnica humana e aplicação daquela lógica nas metodologias do

fazer e da instrumentação do mundo humano, a tékhne) consiste nessa tentativa de

dominar o que nasce e morre, uma tentativa frustrada de aspirar à superação da

mortalidade, embora esta seja reconhecida como inelutável. E isso se vê na atual

medicina ocidental, com seus transplantes de órgãos, suas tentativas de substituir

membros humanos por membros artificiais coordenados por computadores e

mecanismos cibernéticos, as próteses de metal que substituem estruturas ósseas

danificadas por fraturas etc.

Assim como na Idade Média a ontologia e metafísica fundamentais deviam

sustentar a idéia de Deus, após a morte de Deus enunciada e constatada por Nietzsche,

mas efetivada por toda a cultura materialista e cientificista ocidental, todo discurso

científico deve forjar algum construto teórico que legitime o ateísmo e o materialismo.

Com isso, não queremos defender religiosidade alguma, mas somente deliberar sobre o

ethos humano no mundo.

Não conceber o homem fora da natureza, como senhor dela, é o aspecto que

queremos ressaltar com a contribuição do pensamento de Heidegger a respeito do

domínio da técnica e das ciências, que extrapola o uso e o abuso da natureza como

fundo de reserva de matéria para o processamento incessante da produção humana.

O que acontece é que o homem, reduzido animal trabalhador, também se torna

matéria desse processo e, na plena vigência da técnica em todos os setores de atuação

humana, o próprio homem perde o controle e se vê obrigado a repensar sua conduta, seu

modo de estar-ser-no-mundo e de nele habitar.

Se o homem é capaz de criar novas instâncias ontológicas, de recriar as matrizes

originárias pelas quais o ente se deixa pensar e assumir novas formas, então ele deve

33

antes de tudo recriar sua conduta frente à totalidade do que é e está sendo em seu

simples movimento de gerar e corromper como auto-finalidade da natureza, já que “a

uniformidade incondicionada de todos os povos da terra sob a dominação da vontade

de querer evidencia a insensatez da ação humana colocada como absoluto.”15

O que nós temos em vista como foco central de reflexão filosófica é o problema

do meio ambiente, que hoje assola a humanidade, frente à preservação da Terra e, com

isso, a segurança possível da preservação do próprio ser humano. Percebemos ser

pertinente o assunto do modo de comportamento humano face à natureza, e aos seres

humanos em geral nas relações e transações político-econômicas que decidem os

destinos da humanidade, como foco principal de deliberação no estado atual da

civilização mundial. Por isso, referimo-nos agora ao conceito de nomos.16

O nomos é a lei ou convenção instituída pelo homem no seu fazer-se a si mesmo

no campo de deliberação política da sociedade democrática. E essa lei é criada pela

própria deliberação humana, levando Castoriadis a pensar o humano como um ser de

autocriação e auto-alteração no campo social e histórico, no qual se faz à luz do projeto

de autonomia social e coletiva.

Castoriadis identifica no humano a irrupção de um elemento disfuncional, a

imaginação radical da psique singular, caracterizando-a como fluxo representativo,

propulsão de intenções, afetos, desejos e tendência indeterminada a instituir

determinações ou formas, sentidos ou significados, para todos os domínios ou regiões

distintas do ser. O problema é que o elemento da criação tem sido ocultado e alienado

pela heteronomia das sociedades e sua tendência ao fechamento nas significações

instituídas.

Ele identifica esse fechamento na lógica conjuntista-identitária e na ontologia

unitária, que prezam pelo ocultamento do elemento da criação presente na psique

singular e no campo social-histórico. Heidegger teria somente constatado o fechamento

15

HEIDEGGER, Martin. A superação da metafísica IN Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001,

p. 86. 16

A nossa referência principal para compreender este conceito é o texto Phusis, Criação e Autonomia

situado em Feito e a ser feito – as encruzilhadas do labirinto V; trad. Lílian do Valle – Rio de Janeiro:

DP&A, 1999. pp. 211-221.

34

do ciclo dessa lógica e dessa ontologia desencadeado desde Platão e não teria saído

dele, segundo Castoriadis.

Aqui chamamos a atenção do leitor para um aspecto interessante da tradução que

Heidegger faz do fragmento 50 de Heráclito. Situamo-nos agora no texto Logos

(fragmento 50), para daí constatarmos o início e o fechamento do ciclo da lógica que

dispõe os entes em um conjunto e os unifica sob a forma da unidade, já que só pode

pensar o ser dos entes como determinação e o próprio ser como o elemento fundamental

de determinidade, de modo que o real possa ser disponível à classificação e à

enunciação humanas através do estabelecimento de gêneros e espécies, bem como da

formalização dos modos possíveis de ser mediante o uso de categorias e classificações

diversas dos entes.

Com efeito, citamos a seguir o sentido do Lógos de Heráclito, para Heidegger, e

esse sentido dá a entender o que Castoriadis denomina lógica conjuntista-identitária e

ontologia unitária. No entanto, nos primórdios do pensamento ocidental, não nos

esqueçamos que o lógos de Heráclito nada tem a ver com uma ciência analítica das leis

formais do pensamento, das estruturas formais do discursar humano e da capacidade

intelectual da subjetividade formadora de juízos, pois “a boa disposição do dizer o ser

enquanto o destino da verdade é a primeira lei do pensar, e não as regras da lógica que

apenas se tornam regras a partir da lei do ser”17

““Não escuteis a mim, o mortal, que vos fala; mas sede, em vossa escuta, obedientes à postura

recolhedora; se lhe pertencerdes, escutareis, em sentido próprio; uma tal escuta se dá (ist), quando acontece um deixar-disponível-num-conjunto, a que se dis-põe o conjunto de tudo, a

postura recolhedora, o deixar pôr-se que acolhe; quando acontece que o deixar dispor-se se põe,

dá-se, em sua propriedade um envio sábio, pois o envio sábio, propriamente dito, o único

destino, é: o um único unindo tudo.””18

Estas palavras que Heidegger pôs na boca de Heráclito, como sentido de seu

fragmento 50, soam como uma visão profética do que perduraria ao longo da história da

metafísica e do pensamento ocidental até sua consumação na constatação do

fechamento do ciclo da lógica conjuntista-identitária e da ontologia unitária, conforme

nos diz Castoriadis no seminário de 5 de março em Sobre o Político de Platão. Senão

17

Heidegger, Martin. Carta sobre o Humanismo. IN Os pensadores; Sartre e Heidegger. São Paulo: Abril

Cultural, 1973. p 373. 18

Heidegger, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 199.

35

leiamos o que Heidegger nos diz em seguida:

“(...) Desde o início do pensamento ocidental, o ser dos entes se desdobrou, como a única coisa

digna de ser pensada. Se pensarmos pelo destino histórico do Ocidente esta constatação

historiográfica, veremos, então, em que se planta o início do pensamento ocidental: no fato de,

na época dos gregos, o ser dos entes ter se tornado a coisa digna de ser pensada, esse fato é o

início do Ocidente, é a fonte escondida de seu destino. Se este início não preservasse o vigor

desta vigência, isto é, o recolhimento do que ainda vigora, o ser dos entes não dominaria nossa

época, a partir da essência da técnica moderna. Hoje em dia, esta essência maneja todo o globo e,

fixa ao ser tal, como o Ocidente o experimenta e representa na forma que a metafísica e a ciência

européia dão à verdade.”19

Isso dito, compreende-se que no fechamento do ciclo da lógica conjuntista-

identitária e da ontologia unitária em Heidegger instalou-se a consumação do que já

havia sido destinado nos primórdios da filosofia como metafísica desde Platão e

Aristóteles, em que vige a diferença entre ser e ente, determinando assim o modo de

pensar ocidental e o seu fazer ciência sobres regiões delimitadas do ser. O perfeito

acabamento das possibilidades da metafísica como ciência do ente (ser) enquanto ente

(ser) instaura o domínio das ciências particulares sobre as partes e características das

partes do ente; leiam-se as primeiras palavras do quarto livro da Metafísica de

Aristóteles.

Essas ciências sobre os entes configuram o mundo sob o modo da dominação

sobre o que é e está sendo no movimento de seu ser (a physis). A certeza da

objetividade dos entes configura a gnosiologia moderna e se assegura na certeza

primeira do ego cogito da filosofia de Descartes. A certeza da objetividade primeira da

subjetividade humana fundamenta o operar do conhecimento e prepara o terreno para as

ciências da natureza, cujo exemplo maior é a Física de Galileu e a de Newton, e sua

metodologia apoiada na linguagem matemática instala o projeto moderno de dominação

da natureza pela mensuração e pelo cálculo do espaço e do tempo e de tudo que é

passível de espacializar-se e de temporalizar-se como possibilidade a priori da

sensibilidade e da intuição de objetos de uma experiência possível (Kant). No século

XIX, o positivismo de Comte se apoiará no modelo das ciências naturais para elaborar

sua física social, do que nasce o projeto de uma sociologia.

O homem é fadado ao exercício maquinal de representar o mundo em

proposições, instituindo o domínio dos setores distintos de objetos como modos

36

específicos de controle dos entes, e, pela redução do sentido do lógos à ciência da lógica

e à análise lógica e neopositivista da linguagem, a fim de finalizar a metafísica para

instalar o domínio efetivo das ciências e disciplinas tecnicamente especializadas, o que

se efetiva é o domínio científico da funcionalidade e dos efeitos. A ciência assim se

efetiva como legítimo discursar veritativamente sobre o ser dos entes na esteira da

pulsão de calcular e de produzir um mundo funcional de efetividades e utilidades.

O lógos é reduzido a mero cálculo de proposições, e a physis a mero fundo de

reservas naturais para a vontade incondicionada de calcular, cuja aplicação nas técnicas

de discursar se legitima a si mesma como fazer científico no interior das fábricas

produtoras de saber, as academias e universidades; em meio a isso, um modo de

comportamento do homem em face da totalidade dos entes, um modo de habitação

sobre a Terra, um ethos desprovido de ética, embora não faltem volumes de teorias e

discursos repletos de erudição e de termos técnicos acerca da ética dos valores nas

bibliotecas.

Retornamos aqui, então, àqueles três aspectos fundamentais da filosofia que se

tornaram, a partir das escolas procedentes da Academia platônica e do Liceu

aristotélico, disciplinas distintas com delimitações específicas bem determinadas de

âmbitos isolados de abarcamento e investigação de objetos (entes): a ética, a lógica e a

física.

Assim delimitadas as regiões de objetos a serem sistematicamente estudadas, a

fim de que se estabeleça o fazer humano pelo fazer a si mesmo das ciências através do

labor humano, o modo de assegurar o domínio do sujeito (ego cogito) sobre o-que-é, o

domínio sobre objetos através do conhecimento, vai se configurando no ocidente como

projeto de constituição da civilização otimizada pela crença na eficácia da ciência e da

técnica, a crença no domínio teórico dos especialistas em certa área do saber.

As citações seguintes de um importante filósofo moderno ilustram nossas

reflexões, pois atestam o que vimos pensando sobre o pensamento ocidental. Chamamos

a atenção para o modo como se considera o conceito de matéria, extensão... sem vida,

19

Id. pp. 200-201.

37

que na experiência do ato de conhecer servirá somente de coisa formável, passível de

ser intuída e pensada por conceitos por um ser pensante. Isso nos leva a crer que o

domínio técnico-científico é ele mesmo uma mortificação da natureza, já que esta serve

de matéria para o fazer e o representar humanos:

“(...) não tomamos mais da experiência do que o necessário para nos dar um objeto, seja do

sentido externo, seja do sentido interno. O primeiro caso acontece pelo simples conceito de

matéria – extensão impenetrável e sem vida. O segundo, pelo conceito de um ser pensante – na

representação empírica interna “eu penso”.”20

E o mesmo filósofo nos diz mais ainda em outro lugar:

“Dividia-se a antiga filosofia grega em três ciências: a física, a ética, e a lógica. Essa divisão é

perfeitamente adequada à natureza das coisas, e nela nada há a corrigir. Mas conviria, quem

sabe, acrescentar o princípio em que se baseia para, desse modo, por um lado nos assegurarmos

da sua perfeição e, por outro, podermos determinar exatamente as subdivisões necessárias.”21

O parágrafo seguinte a este, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes,

classifica e divide a filosofia em formal e material. A primeira corresponde à disciplina

da ciência da lógica, que legisla sobre as leis do pensar em geral. A filosofia material

distingue seus objetos e os determina, legislando ou sobre a natureza ou sobre a

liberdade. A ciência das leis da natureza é a física, a das leis da liberdade é a ética.

Sob essa classificação, pressupõe-se o otimismo da soberana Razão humana e de

seu poder de legislar a priori sobre os princípios fundamentais das ciências e, assim,

constituir e delimitar setores específicos de objetos. Desse modo, a divisão do trabalho é

também otimizada por proporcionar a especialização do saber e dos ofícios, assim

configurando o acabamento da metafísica no imperar da técnica e constituindo a

civilização moderna e contemporânea pautada na autoridade dos oficiais e técnicos do

saber.

Mas isso somente oculta a categoria do trabalho elevada a uma determinação

ontológica tal que condiciona o homem sob o ser da produtividade incessante e

massificada. Como base desse processo de produção da civilização e do homem reside a

20

Kant, Immanuel. Crítica da Razão Pura; Apêndice à Dialética Transcendental – Doutrina

Transcendental do Método, Capítulo III – Arquitetônica da Razão Pura. São Paulo: Martin Claret, 2004.

p. 593. 21

Kant, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes; prólogo. São Paulo: Martin Claret,

2002. p.13.

38

dominação técnica da natureza, de tudo que e está sendo, na consumação da metafísica e

no projeto de apropriação do ser dos entes pela linguagem e representação humanas sob

o modo da subjetividade absoluta da vontade incondicionada. Antes de explicarmos

isto, leiamos o otimismo de Kant em face da razão legisladora e do domínio técnico-

científico que ela instaura:

“Todas as indústrias, artes e ofícios ganharam muito com a divisão do trabalho.

Necessariamente, à medida que cada um, em lugar de tudo fazer, limita-se a certo trabalho – que

pela sua técnica se distingue de outros – pode executá-lo com a maior perfeição e com mais

facilidade. Tem-se daí que, onde o trabalho não está assim diferenciado e repartido, onde cada

homem é um artífice universal, reina ali, em seus ofícios, um estado de absoluta barbárie.”22

Após a universalização desse modo de pensar poderíamos constatar que não há

barbárie em nossa civilização de perfeita divisão do trabalho e de um perfeito mundo

criado pela técnica e ciência? Em seguida no século XIX, surgiria mais uma ciência, e

não só uma como muitas outras ramificadas, especialmente a do materialismo histórico

e dialético, o socialismo científico, que projetava uma sociedade da igualdade absoluta

em meio a uma crescente e expansiva divisão do trabalho e especialização das ciências,

o que por si só já torna mais complexa ainda a hierarquização das funções e das

camadas sociais, mais ou menos valorizadas no mundo de O Capital conforme sua

qualificação técnica, no que reina vigente a categoria trabalho como uma determinação

do homem no mundo contemporâneo.

Mas agora retornamos ao nosso foco central na questão da constatação do

fechamento da lógica conjuntista-identitária e da ontologia unitária em Heidegger, mais

precisamente a questão do acabamento da metafísica no reinado da técnica a partir da

perspectiva da história do ser, delineada naquele texto com o qual iniciamos este

trabalho, A sentença de Anaximandro.

Pois o que questionamos é o domínio humano sobre a natureza através da

ciência e da tecnologia, a fim de processar a produção da civilização, sem que se

questione como o homem pode se harmonizar com a natureza e, nessa harmonia,

equilibrar-se em meio à crescente deliberação comum entre as nações do mundo

civilizado a respeito de como pode haver uma ação humana que não danifique tanto o

Planeta e nem deixe de produzir o mundo do nomos, o mundo da autonomia humana.

39

Mas não caberia um pouco de humildade do homem frente à totalidade do que é

e está sendo e reconhecer que não é tão autônomo quanto pensa, a ponto de suas

criações não serem capazes de submeter para si o ser do que é em-si e para-si, além e

independentemente de haver ou não humanidade?

O projeto científico de dominação da natureza, incluindo a natureza humana,

seja como for que o homem a considere e a convencione por deliberação, o projeto de

dominação de objetos por parte de um sujeito, ainda que certas filosofias

contemporâneas não creiam mais na subjetividade, como não crêem em coisa alguma

senão em uma humanidade sem crenças, enfim, o domínio da ciência e da técnica é bem

conforme ao sentido da citação de Nietzsche feita por Heidegger: “imprimir ao devir o

caráter de ser – eis a suprema vontade de poder”23

, onde “ser” é pensado sob a forma

do “eterno retorno do mesmo”, sob cuja constância a vontade de poder quer a si mesma

no interior do querer da vontade, assegurando “sua própria presença como ser do devir”.

Entretanto, essa vontade incondicionada, que configura a pulsão de calcular no

modo humano de representar objetos em proposições logicamente encadeadas, em

juízos sob a forma do pensar em geral, como diria Kant, não se objetiva completamente

como manifestação do ser antes da História do ser revelada na Fenomenologia do

Espírito, obra filosófica na qual a subjetividade humana alcança a total objetivação e

reconhecimento de si como princípio de objetivação do real na figura do saber absoluto,

o saber que sabe a si mesmo. Isso é o extremo de um esquema imaginário baseado em

uma lógica conjuntista e identitária fundada em uma ontologia unitária para

compreender o real, que não se difere do que é ideal ou racional.

Na filosofia de Hegel, a metafísica se consuma como uma fase do que Heidegger

denomina “escatologia do ser”, somente na qual este é contemplado sob a perspectiva

de sua destinação na história do ocidente; essa consumação manifesta o ser dos entes

como subjetividade absoluta da vontade incondicionada.

Essa vontade incondicionada apropria o homem para a essência do poder,

somente sob a qual se instalam as lutas pelo poder e se institucionalizam os líderes no

22

Id. p. 14. 23

HEIDEGGER, A Sentença de Anaximandro: Abril Cultural, 1973, p.31.

40

âmbito político. Esse desejo de poder e de assenhorear-se de tudo, por parte do homem,

somente mostra como a humanidade é apropriada pela essência do poder e da vontade e

demonstra a total falta de controle do sujeito sobre a objetividade do real.

Aqui acontece propriamente o completo isolamento da subjetividade humana até

perder-se na vontade (ser), postulada como princípio absoluto na filosofia de

Schopenhauer, a qual manifesta o princípio de conhecimento ou consciência somente no

homem. A vontade antecede à consciência ontologicamente e gera no organismo

humano a potência representadora de fenômenos (aparecer das formas), no que ela pode

aparecer para si mesma e tomar consciência de si como princípio absoluto do real. Esse

pensamento, porém, não se origina em Schopenhauer. (Basta ler o texto Quem é o

Zaratustra de Nietzsche, publicado em Ensaios e Conferências de Heidegger páginas 98

e 99, cuja edição citamos neste trabalho; ali a vontade já é reconhecida como essência

do real desde a mônada de Leibniz, esta definida como unidade de perceptio e

appetitus; isto já está presente também em Spinoza e sua teoria da substância única e

absoluta que conjuga em si pensamento e extensão (veja-se a proposição 49 da segunda

parte da Ética e seu corolário: a vontade e o intelecto são uma só e mesma coisa);

segundo Heidegger, aquele pensamento de Leibniz passa por Kant, Fichte, Schelling e

Hegel como vontade da razão, permanecendo vigente em Schopenhauer e Nietzsche.

Em seus Fragmentos para a História da Filosofia, Schopenhauer interpreta a história

do pensamento em prol de seu sistema, e o modo como ele concebe ali o pensamento de

Spinoza, o louvor deste à laetitia (alegria) e seu amor intellectualis Dei se assemelha ao

amor fati de Nietzsche, este tendo como ideal de deus a figura, por sinal desfigurada, de

Dioniso como princípio de transfiguração do real pensado como devir-diferença

absoluta sem causalidade ou finalidade.

Esse pensamento prepara o terreno para a filosofia de Nietzsche que,

concebendo a vida como vontade de poder o mais elevado valor, já não mais aceita

qualquer oposição e diferenciação hierárquica entre ser e fenômeno, essência e

aparência. Com efeito, a constatação da morte de Deus, em nível ontológico, anuncia o

fim da metafísica e dos princípios e fundamentos absolutos, por exemplo, o fundamento

inconcusso de Descartes, o ego cogito, a consciência, o intelecto, a subjetividade

transcendental. Resta somente o fazer e produzir inconsciente do eros humano no

domínio da ciência e da técnica a objetivar o mundo do consumo até a autoconsumação

41

da destrutividade corrosiva do des-vio. Instala-se o reinado do materialismo e do

ateísmo do mundo hodierno, no qual a natureza é mero fundo de reservas para a

produção de utensílios e experiências científicas.

Nós propomos que o foco atual de deliberação para essa sociedade aberta, a

sociedade democrática, deva ser a tomada de consciência, que já acontece, a respeito da

inconsciência dos modos humanos de produção frente às catástrofes naturais. Propomos

como objeto de deliberação a tomada de consciência universal, já que a globalização

dos modos de ser já é um fato inelutável, em face do vigente insulamento do eu

(humano) no deserto da desolação da Terra sob o domínio da técnica na consumação

da metafísica, segundo Heidegger.

O tema do aquecimento global, aqui filosoficamente abordado, nos evidencia

que as reservas naturais não são fontes inesgotáveis para o domínio da aplicação do

cálculo da ciência tecnológica e da produtividade humana. Não que isso fosse

preocupação de Heidegger ou de Castoriadis, mas em face da vigente dominação

técnica das ciências e da internacionalização do modo europeu de conceber o mundo,

concebemos que o assunto aquecimento global se constitui como importante objeto de

deliberação e de pré-ocupação para filósofos, educadores, cientistas, enfim, seres

humanos. Além disso, o enriquecimento de urânio, o perigo das armas nucleares, a

corrida das nações pelo crescimento econômico; em meio a isso, a natureza sendo

mortificada pela incessante volição humana manifestada na pulsão de calcular e de tudo

objetivar e planejar para garantir o domínio humano.

Retornamos agora ao problema filosófico do fechamento do ciclo da lógica

conídica e da ontologia unitária em Heidegger para fecharmos a questão, evocando o

poder de criação do homem para pensar um projeto de autonomia individual e coletiva

em face dos problemas de ordem ambiental e política que hoje assolam todo o globo

terrestre e, por isso, constituem objeto pertinente de deliberação comum.

Heidegger percebe que os pensadores antigos pensavam simplesmente o ser

como presença (parousia). O ser como einai é presentar, e o ón (eón) é o presente

(ente). Parmênides não pensou o “é” (éstin) como cópula de uma proposição, mas como

o estar presente do que é presente.

42

Aristóteles pensou o ser (presentar) do ente (presente) pela categoria, e nisso o

ente já era “manifesto para a enunciação” sob o modo do desvelamento (alétheia); a

verdade em sentido grego como o desvelar da presença do presente, o que não é ainda o

modo da adequação entre a coisa fora do pensamento e a coisa pensada, esta sendo a

idéia ou representação no sentido moderno.

A essência da substância (hypokeímenon) não era um sujeito da proposição, já

que se presentava manifestativamente como parousia (presença) da ousia (substância,

essência, o-que-é), sem que houvesse qualquer distinção entre uma primeira e uma

segunda substância, isto é, entre essência e existência, como na filosofia escolástica

medieval.

Somente em Platão surge a linguagem conceitual, pois este pensa a idéa. As

enunciações que são livres do conceito e de sua rigidez proposicional encontram a

manifestação da presença nas “palavras fundamentais do pensamento primordial:

Physis e Lógos (...) Alétheia e Hén.”24

Ente e ser, presente e presentar, eón e einai são palavras para tudo que se

presenta e para o próprio mostrar-se das coisas, mas isso só através do Hén (Um); disso

advém o destino do ser até a modernidade na Monadologia de Leibniz e na

Fenomenologia do Espírito de Hegel como substância plenamente substanciada.

Segundo Heidegger, a lógica não se origina em Parmênides, mas na metafísica

originada pelos pósteros que assim leram posteriormente as filosofias de Platão e

Aristóteles de modo historiográfico. Foi a metafísica que impôs o domínio da leitura do

“ser” sob a forma lógica, velando seu vigor essencial e original, tornando-o “conceito

mais vazio e mais geral”.

Isso também encobriu com o véu do esquecimento o sentido originário do Lógos

de Heráclito como légein, colher, recolher para a unidade do Hén (Um). Esse velamento

encobriu o sentido do ser como o presente a desdobrar-se na presença e na ausência, no

desvelamento (alétheia) que inclui o velamento, já que o esquecimento da diferença

24

HEIDEGGER, A Sentença de Anaximandro: Abril Cultural, 1973, p. 41.

43

entre ente e ser pertence ao enigma do ser, concernindo à sua retenção (retração)

clarificadora, cuja luz só permite ao homem perceber (ver) uma faísca de brilho, porque

sua visão, a capacidade de apercepção humana, não pode compreender a totalidade do

luzir do que é plenamente em seu vigor de ser, o raio fulgurante figurado na mitologia

grega como Zeus. (Lembre-se que quando uma mortal pede-lhe que se manifeste em

toda sua luz, em todo seu ser, Zeus que é imortal, o ser, o mortal acaba incinerado pelo

imortal (ápeiron?), o limitado e finito é absorvido pela origem infinita e sem limites de

todo ente a nascer e morrer, o ser, a physis, o cosmos em-si-para-si.)

Essa faísca de brilho é o que a nós aparece na demora repentina, transitória, na

presentação pelo desvelamento-velamento do ser, que mostra o ente. Assim é que o ser

se revela a nós como aparência, mostrando-nos um aspecto, uma forma. Daí o ente

aparecer em seu ser como Idea, esta se revelando a Platão como o ser dos entes. Mas o

ente como Physis também vale aqui como o surgido de si mesmo e por si mesmo

produzido, o ser que devém, que vem a ser a partir de si e que tem em si mesmo o fim e

o princípio de seu movimento; também há o ente como Tékhne, ou seja, fabricado pelo

ser humano. Desvela-se o ente, então, como érgon (obra) no pensamento de Aristóteles,

aquilo que foi produzido, uma obra que veio a ser e surgiu de si mesma e presentou sua

finalidade, ou foi fabricada pelo homem. Heidegger, então, nos diz que Aristóteles

concebe o ser do ente como enérgeia.

Essas palavras fundamentais são nomeações do mesmo. O mesmo nomeado por

cada pensador é pensado sob a unidade unificante do Hén (Um). Por isso, não há

sentido em diferenciar Parmênides e Heráclito, um como doutrinador do ser, e ou outro

como doutrinador do devir. Pois é igualmente necessário que o ente se torne presente e

ausente no desvelamento e no velamento do ser. No entanto, vem o tempo da tradução

de enérgeia por actualitas. A tradução latina converte atualidade em realidade, esta

vem a ser objetividade na era moderna, pelo que a vigência da presença é velada no ser

pensado como representação. A objetividade primeira e asseguradora de toda

representação e entidade possíveis vem a assumir o valor do fundamento inconcusso no

ego cogito de Descartes, inaugurando a gnosiologia moderna da relação sujeito-objeto

como fundamentação do conhecimento.

No século XIX, com o positivismo e o avanço das ciências, prepara-se o terreno

44

para o anúncio da morte de Deus, e o projeto de mensuração da natureza da ciência

moderna cada vez mais se instala como domínio técnico do real a fim de assegurar a

produção humana. Em tempos de discussão acerca das ações humanas, positivas ou

negativas, frente ao problema do clima no planeta, do esgotamento das fontes de água

potável e de reservas naturais em geral, junto a problemas de ordem política, social e

econômica, as palavras seguintes soam atuais aos nossos ouvidos:

“O homem está a ponto de atirar-se sobre a totalidade da terra e sua atmosfera [como já o fez],

de arrebatar para si o oculto imperar da natureza na forma de forças e de submeter o processo da

história à planificação e ordenação de um governo planetário.

(...) A totalidade do ente é o único objeto de uma única vontade de conquista. A simplicidade do

ser foi sepultada num único esquecimento.

Que mortal seria capaz de esgotar, pelo pensamento, o abismo desta confusão? Pode-se tentar

fechar os olhos diante deste abismo. (...) O abismo não se arreda.

As teorias da Natureza, as doutrinas da História, não resolvem esta confusão. Elas confundem

tudo no incognoscível, porque elas mesmas se alimentam da confusão, que se estende sobre a

diferença entre ente e ser.25

27 HEIDEGGER, A Sentença de Anaximandro: Abril Cultural, 1973, p.53.

45

O EU ISOLADO DE SI EM SI MESMO E O DESERTO DA DESOLAÇÃO DA

TERRA.

Este trabalho procedeu do que me veio à mente numa primeira leitura parcial do

tratado lockiano da identidade de Balilar. Parece-me que há uma confusão no seio da

própria linguagem, no meio pelo qual discursamos e, assim, construímos o mundo

através das significações dos termos utilizados no ato mesmo do discursar.

O título deste trabalho é o eu isolado de si em si mesmo. O eu é um modo ser

essencial do humano, que se isola de si na medida em que isola tudo o que é, isola o

mundo de si e os entes situados no mundo do insulamento humano. O eu se isola de si

na medida em que se aparta do mundo e deseja conhecê-lo sob a determinação da

objetividade e da representação do mundo e dos entes no mundo fragmentado pela

vivissecção que o homem científico e técnico empreende com seus cálculos

proposicionais e suas operações lógico-metodológico-instrumentais na aplicação das

ciências atuariais, isto é, nos setores de atuação do saber sobre e do conhecer o(s)

modo(s) de ser dos entes (objetos), a fim de que se estabeleça e vigore o mundo da

técnica e do cálculo, no qual hoje o homem habita.

O insulamento do homem no eu tem como desdobramento e abertura

manifestativa de seu modo de ser o aprofundamento no subconsciente do eu e gera uma

análise e descrição dos fenômenos psíquicos a partir não mais somente do conceito e

determinação da consciência. Com isso não nos posicionamos a favor de coisa alguma,

apenas constatamos um fenômeno no âmbito do homem se cons-des-truindo na história

e na cultura, que são outros modos de seu habitar e de seu ser no mundo, pelo quê seu

modo de lidar e interagir com o ente em geral e com os entes em particular se determina

e passa a vigorar enquanto momento de vigência do fenômeno do ser no tempo, e deste

naquele.

O eu se isola de si e se perde no ser da objetividade do ente, a fim de que o ser

da ciência se instaure no mundo humano, e este seja reduzido a mero operador da

função do fazer-se a si mesmo do conhecimento em sua elaboração autocrítica, cuja

finalidade é reavivar seus próprios mecanismos internos de funcionamento. Isso tudo,

porém, acontece no mundo do homem, o isolamento de si do humano acontece em si no

46

humano, e se aprofunda mais conforme o homem queira se isolar do não-humano, a fim

de que vigore no modo de ser da humanidade como um ser-para-si egoíco, que agora

passa a preocupar-se com o Globo Terrestre porque vê na preservação da Terra a sua

própria preservação, o mesmo valendo para a sua destruição.

O isolamento do eu e o deserto da desolação da Terra se manifestam como co-

incidências dos diversos modos de ser do humano nos seus muitos modos de lidar com

o ente em geral na multiplicidade de áreas específicas de saber. Hegel descreve

fenomenologicamente o vir a ser do espírito até o modo da consciência de si como o

saber que sabe a si mesmo, a figura do absoluto como estágio final do evolver do

espírito; este evolve no tempo, mas não só no tempo, e sim em um ente especial jogado

no jogo do tempo, o homem. Isso é Ciência Absoluta porque é Saber do Absoluto.

Talvez Castoriadis considerasse isso um elevadíssimo estado megalomaníaco da lógica

conjuntista-identitária da determinação do ente em seu ser e da ontologia unitária do ser

do ente como determinidade. Aqui então citamos algumas pérolas do idealismo alemão,

a título de ilustração elucidativa:

“(...) o movimento dialético da Fenomenologia prossegue como aprofundamento dessa situação

histórico-dialética de um sujeito que é fenômeno para si mesmo no próprio ato em que constrói o

saber de um objeto que aparece no horizonte de suas experiências. Assim, transfere para o

próprio coração do sujeito – para o seu saber – a condição de fenômeno que Kant cingira à esfera

do objeto. (...)” (nota do tradutor, p. 15)

“Na totalidade do movimento, compreendido como [estado de] repouso, o que nele se diferencia

e se dá um ser-aí em particular é conservado como algo que se rememora, cujo ser-aí é o saber

de si mesmo; como esse saber é também imediatamente ser-aí.” (p.53, prefácio de Hegel)

“A consciência, ao abrir caminho rumo à sua verdadeira existência, vai atingir um ponto onde se

despojará de sua aparência: a de estar presa a algo estranho, que é só para ela, e que é como um

outro. Aqui a aparência se torna igual à essência, de modo que sua exposição coincide

exatamente com esse ponto da ciência autêntica do espírito. E, finalmente, como apreende sua

verdadeira essência, a consciência mesma designará a natureza do próprio saber absoluto.”

(contracapa)

“(...) A meta – o saber absoluto, ou o espírito que se sabe como espírito – tem por seu caminho a

rememoração dos espíritos como são neles mesmos, e como desempenham a organização de seu

reino. Sua conservação, segundo o lado de seu ser-aí livre que se manifesta na forma da

contingência, é a história; mas segundo o lado de sua organização conceitual, é a ciência do

saber que se manifesta. Os dois lados conjuntamente – a história conceituada – formam a

rememoração e o calvário do espírito absoluto; a efetividade, a verdade e a certeza de seu trono,

sem o qual o espírito seria a solidão sem vida; somente

‘do cálice desse reino dos espíritos

espuma até ele sua infinitude.’”26

26

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito, tradução de Paulo Menezes; com

colaboração de Karl Heing Efken, e José Nogueira Machado. Petrópolis, RJ: Vozes:Bragança Paulista:

47

Ora, para Fichte, em consonância ao ecoar do ideal moderno da crença na

cientificidade, saber e liberdade são intrinsecamente unificados num todo; a liberdade é

talvez o ideal mais caro à humanidade; basta ler a doutrina da ciência e do saber

absoluto. Mas é na introdução à teoria do Estado que Fichte declara:

“Conhecimento é imagem do ser de Deus: mas não o conhecimento que põe outra vez um ser a

partir de si mesmo, e sim o que põe um vir-a-ser: a imagem da liberdade eternamente criadora,

pairando acima, com suas leis que se enunciam por toda eternidade em conceitos puros – este é o

mundo (...)”27

Tendo em vista essa colocação de Fichte, cuja preocupação central é o eu ou a

subjetividade transcendental como posição, citamos agora uma consideração de

Schelling a respeito da filosofia de Hegel, centrando o modo como ali Deus é

considerado, o que não exclui uma consideração também a respeito do humano, que

também tem como modo de ser o estar-frente-ao-Divino. Leiamos Schelling:

“Hegel está tão pouco inclinado a reconhecer sua filosofia como a meramente negativa, que, pelo

contrário, assegura: ela é a filosofia que não deixa absolutamente nada fora de si; sua filosofia se

atribui a mais objetiva significação e, em particular, um conhecimento inteiramente perfeito de

Deus e das coisas divinas – o conhecimento que Kant negou à razão é alcançado por sua

filosofia. (...) O Deus-pai, antes da criação, é o conceito puramente lógico, que se desenrola nas

puras categorias do ser. Mas esse Deus, porque sua essência consiste em um processo necessário,

tem de revelar-se, e essa revelação ou exteriorização de si mesmo é o mundo, e é o Deus-filho.

Mas também essa exteriorização (...), essa negação de seu ser meramente lógico, Deus tem, mais

uma vez, de suprimir, e tem de retornar a si, o que através do espírito humano, ocorre na arte, na

religião e, completamente, na filosofia, e esse espírito humano é ao mesmo tempo o espírito-

santo, somente através do qual Deus chega à perfeita consciência de si mesmo.”28

Com isso, o desdobramento da filosofia ocidental já alcança o momento do

surgimento do pensamento de Schopenhauer, o mestre de Nietzsche e figuração do

cume da tradição filosófica ocidental, preparando o terreno do pensar o ser para o

enunciador do grande acontecimento ontológico na história do ser, a morte de Deus.

Nietzsche empreende sua crítica do modo de valoração da tradição com o intuito de sua

transvaloração; a genealogia da moral exprime sua crítica de modo sistemático e

compreensível. A morte de Deus abre o espaço do tempo mais propício para o

acontecimento do declínio do pensamento na efetivação aterradora do niilismo sobre a

Terra. Quando se pensa matar a subjetividade para dar lugar à vitalidade29

, inicia-se o

USF,2002. 27

Fichte. Introdução à teoria do Estado. São Paulo: Nova Cultural, col. Os Pensadores, contracapa. 28

Schelling. História da Filosofia Moderna: Hegel. São Paulo: Nova Cultural. 1989, p.159. 29

Vide: Nietzsche. A genealogia da moral, primeira dissertação,§13. No conceito de vitalidade já estão o

48

mais terrível momento do processo do isolamento do eu e da desolação da Terra. Mas

agora, voltamos ao Tratado Lockiano da Identidade de Étienne Balibar.

*

A certeza exprimida na fórmula eu sou, eu existo parece atestar que o eu é o

fundamento do mundo e da realidade enquanto o que primordialmente é, existe. E disso

advém certeza desse ente que é como um ser pensante, na medida em que o eu é certo

de si enquanto eu pensante; pois, se não pensasse, não poderia estar certo de que é e

existe. Daí a concomitância entre o eu sou e o eu penso.

Na página 14 do tratado, o eu penso (eu sou) é multiplicado em suas

modalidades, a saber: eu duvido, eu concebo, eu afirmo etc. Mas quando se pergunta

pelo pensado, concebido, duvidado, afirmado, isto é, na interrogação: O quê eu penso?

O quê afirmo? O quê concebo? Acontece que a resposta é: eu penso isto, eu afirmo

aquilo, eu concebo algo. Sim, e daí? E daí que o quê se repete é sempre o eu como

fundamento do discursar e tecer a realidade no seio mesmo das significações da

linguagem, de modo que cada sujeito pensante se constitua e constitua seu próprio

mundo de isolamento, de modo que quando cada alma se encontra e dialoga dá-se um

encontro e diálogo entre mundos distintos, que, todavia, permanecem unificados pela

comunidade das significações no seio da linguagem como instrumento de urdidura do

real; metáfora usada por Platão em seu diálogo Político:

“(...) a verdadeira função dessa arte real de tecedura: jamais permitir o estabelecimento do

divórcio entre o caráter moderado e o caráter enérgico, antes uni-los pela comunidade de

opiniões, honras e glórias, pela troca de promessas, para fazer deles um tecido flexível, e, como

se diz, bem cerrado, confiando-lhes sempre em comum as magistraturas nas cidades.”30

Deste trecho da fala do Estrangeiro ao final do Político de Platão queremos

somente extrair a ideia de que por meio dessa arte real da tecedura se estabelece o

casamento ou a conexão harmoniosa entre os entes distintos, na citação o caráter

moderado e o enérgico, e a disposição da diferença entre os entes numa reunião

unificante que permite a ordem, Cosmos, da cidade. A cidade é onde habita o homem e

onde é possível o ser homem no mundo humano, o ser um eu pensante, ou simplesmente

impulso e ação como modos determinantes do ser da vida. 30

Platão. Político. São Paulo: Abril Cultural, col. Os Pensadores; 311 a.

49

ser (existir); a cidade é o mundo do homem e o ser-no-mundo daquele que o habita e

nele se constrói mediante as significações da linguagem; a cidade é a linguagem e o

pensar-fazer do humano, onde moram e se avizinham numa relação de co-pertença ser e

pensar, mundo e homem.

Mas onde primordialmente habita isolado este eu sou, eu existo, eu penso, o

Homem (Ocidental) moderno, aquele cujas raízes se tenta buscar na grecidade da

filosofia e na filosofia da Grécia como renascimento daquilo que não pode ser senão

uma ressurreição da interioridade ascética cristã no processo social-histórico de

sincretismo entre dois mundos na formação da modernidade: o pagão e o cristão, o

greco-romano e o judaico-cristão, embora este mesmo homem espiritual queira o

ateísmo e o materialismo das ciências empíricas modernas, do Estado laico de Direitos

Universais do Homem, do socialismo de Marx e do vitalismo de Nietzsche, do

evolucionismo de Darwin, do positivismo de Comte, do sexualismo psicanalítico de

Freud...?

O sexualismo psicanalítico de Freud, pela indeterminação do modo de ser da

sexualidade, determina todas as formas e formações, bem como as deformações do

ponto de vista moral, dos diversos distúrbios de sexualismos no modo de ser da

sexualidade hodierna: a discussão da liberação do sexo junto à liberação da mulher, o

homossexualismo, o trans-sexualismo; junto a isso a provocação do impulso ao

consumo pela evocação exacerbada da pulsão do prazer; e nisso todos se julgam livres e

realizados enquanto humanos plenamente humanizados no cotidiano humano,

demasiado humano da vida, ontologicamente determinada como vontade de poder, que

se exprime como querer a si mesmo do próprio querer-viver, em antítese a

Schopenhauer, na afirmação do eterno retorno no pathos afetivo do amor fati como

sendo um tipo de Carpe Diem. Como poderia uma moral que preconiza o sexo dentro

do casamento heterossexual e com vistas à procriação da espécie e preservação do

princípio de geração da natureza e de conservação de si nas futuras gerações ser

considerada como antinatureza? E Nietzsche ainda intenta sustentar toda moral como

antinatureza a fim de constituir seus valores pretensamente aristocráticos de uma

cultura superior baseada em uma ainda mais pretensiosa estética da vida e da existência

como arte; o máximo que seu pensamento estético-existencial pagão pode promover, se

seguido à risca (e seu pensamento é muito claro), é a autodestruição da humanidade,

50

como ocorreu muito rápido, por sinal, na civilização greco-romana antes do

cristianismo, e não por culpa do ressentimento deste à uma suposta nobreza

aristocrática dos fortes, mas porque tudo que nasce, simplesmente, morre.

O eu-isolado do Homem habita em si mesmo e esquece o ser no sem mundo do

que Heidegger denomina a desolação da Terra; esquecendo-se o ser, esquece-se

também o pensar; e se pensar e ser são esquecidos, restam unicamente o eu-isolado de

si em si na sua Ilha, prestes a afundar-se no revoltoso Oceano que o circunda em

furiosos maremotos de desespero humano kierkegaardiano, e o ser-desolado na Terra

em angústia, enfim, a Terra-desolada; o eu-isolado do Homem e o ser-desolado da

Terra co-incidem.

Na enunciação de Parmênides se dá a mesmidade ou identidade entre ser e

pensar, mas é só no homem moderno judaico-cristão que advém com toda sua força de

interiorização e isolamento o eu sou, eu penso. Aqui a co-pertinência entre ser e pensar

tem o eu como elo de conexão identitária entre dois estados distintos do eu, que se

vêem, assim, numa relação equacional, cuja cópula é fundamentada no próprio eu: eu

sou = eu penso. Mas Parmênides e Balibar não vêem pensar e ser como o mesmo?

Aqui colocamos o problema da linguagem a que nos referíamos, pois na resposta

à pergunta O que é este ente, a saber, o eu sou? Eu sou algo (um ente ou uma coisa)

que pensa; em tal resposta há, a nosso ver, um processo de primeira modalização do eu

sou no eu penso, que somente se torna uma relação equacional após a reflexão de si do

próprio fundamento do pensar e do ser, o eu a ser um se pensar em pleno isolamento do

autopensamento e da certeza de si.

Não adianta perguntar: o pensamento pensa o eu, ou este pensa o pensamento?

Pois o eu sou já é, o eu existo já existe e, sendo-existindo, põe como primeira

representação de si o eu penso a fim de assegurar-se na certeza de si através da certeza

do pensamento de si, assim confundindo ser e pensar na permanência do eu em seu ser

isolamento na atividade de autopensamento a refletir sobre o ser do eu o pensamento do

ser do eu, uma vez que o pensamento já pensa, somente pelo que é possível ao eu que é

a percepção de si mesmo como eu que pensa.

51

Assim, o gráfico na página 14 do tratado lockiano nos mostra primeiramente o

eu sou e ultimamente o eu sou no movimento de ser do próprio eu-isolado a refletir-se

na autopercepção de suas múltiplas operações modais, uma das quais e a primeiríssima

é o pensar, com o qual se identifica; senão vejamos o esquema na página seguinte:

Eu sou = Eu penso =

Eu duvido

Eu concebo

Eu afirmo

Eu nego

Eu (não) desejo

Eu imagino

Eu sinto

Eu caminho

Eu respiro

Etc.

Mas temos também o movimento recíproco, no qual todas as modalidades de

meu pensamento estão reunidas em uma única ideia simples:

Eu duvido

Eu concebo

Eu afirmo

Eu nego

Eu (não) desejo

Eu imagino

Eu sinto

Eu caminho

Eu respiro

Etc.

= Eu penso = Eu sou

Isso nos parece uma operação ou um movimento interno do sujeito rumo a si

52

mesmo na certeza de ser ele próprio um eu que é através da certeza de pensar na

afirmação eu sou, eu existo, portanto eu penso. Essa certeza de pensar que é do eu é

através dos pensamentos das atividades que realiza em referência ao mundo exterior, o

qual, no entanto, é uma projeção das significações construídas mediante a linguagem e a

disposição das ideias em conceitos concatenados, em um processo de tecer o complexo

de configurações do mundo em uma totalidade que abrange a indeterminação da

diversidade da matéria, magma psíquico enquanto coisa ainda não convertida em um

objeto, ou seja, um ente cognoscível para a atividade construtora de mundo do sujeito-

isolado, assim reduzido a função mental operadora da atividade imperativa de conhecer;

sujeito-isolado que é o homem moderno, a saber, cada um de nós enquanto

determinados como meros trabalhadores e sujeitos de conhecimento. Assim, Balibar nos

fala que:

“A expressão: «eu sou pensante», ou: «eu sou uma coisa que pensa» é, em suma, um

equivalente geral de todas as modalidades infinitamente diversas do pensamento, com seus

objetos e suas referências próprias. Observe-se que o termo «coisa» não é, de forma alguma, uma

maneira de desnaturar a subjetividade, mas antes, para Descartes, a forma de nos fazer entender

que é do ponto de vista de um sujeito que «pensamento» e «existência» podem ser

imediatamente identificados31

. Nessa meditação, o sujeito (ego) se reconhece como o autor de

todos os seus pensamentos32

.”

E logo em seguida Balibar nos apresenta um novo esquema, no qual relaciona as

modalidades ao pensar como pensamentos da atividade pura e simples do pensar do eu

sou que é. Ora, o que dizemos é que os pensamentos são pensamentos do eu que é e,

sendo, realiza a operação sempre constante de pensar; e o pensado da atividade do

pensar é a ideia, o conceito, o objeto, a representação da coisa, mas nunca esta em si

mesma, em sua realidade formal numênica, e sim em sua realidade objetiva e

fenomênica, isto é, como algo qualquer de magmático ou de matéria indeterminada a ser

passível de tornar-se objeto determinado para a operacionalidade cognitivista do pensar

31

Antes de ser substituído pelo termo «substância», do qual Descartes faz, aliás, um uso profundamente

desviante, no que se refere à tradição, «coisa» é uma expressão oxímora, denotando, ao mesmo tempo, a

questão que sua coincidência coloca para o sujeito e o suplemento de singularidade que ego cogito ou ego

sum cogitans comportam, em relação à essência da cogitatio. Pode-se falar, neste sentido, de heceidade

do pensamento, que é propriamente o sujeito cartesiano. 32

O que não quer dizer, necessariamente, como sua causa: na Meditação III, Descartes operará esta

distinção, mostrando que, entre todas as minhas idéias, há pelo menos uma (a idéia de Deus) de que não

posso ser a causa, pois ela me supera infinitamente em perfeição: mas eu não deixo de ser,

«formalmente», seu autor, nesse sentido em que sou de fato eu que a penso. Por isto, a acuidade da tensão

entre Ego e Ille, Homem e Deus, primeira e terceira pessoa, que então se cria, e o risco a que ela submete

minha identidade. Cf. E. Balibar, «Ego sum, ego existo», Descartes au point d’hérésie, Bulletin de la

53

reflexivo do eu sou, que retorna a si e se reconhece como consciência de si, enfim,

como espírito, já que se pensa a si mesmo e se percebe como o verdadeiro fenômeno na

presença a si do eu sou, que se auto-re-presenta no eu penso e, assim, do mundo se

ausenta, na desolação da Terra e no esquecimento do ser, que ora se apresenta.

O que estamos tentando propor é o que não foi pensado ainda por Parmênides,

nem pela tradição a respeito da co-relação entre pensar e ser. Estamos tentando

problematizar o que Balibar afirma com a tradição, a saber, que pensar e ser são o

mesmo, tendo em vista que na modernidade esse mesmo é o eu, o sujeito isolado,

somente para o qual o(s) pensamento(s) é (são), senão vejamos o esquema da página 15:

Já sabemos que Balibar parte da mesmidade identitária entre pensar e ser,

modernamente falando, entre eu sou, eu existo e eu penso, e que o pensar dos

pensamentos é o pensar do eu-pensante. Mas nós concebemos que o pensar é o primeiro

modo em que o eu-isolado em seu interior se converte, para, através do(s)

pensamento(s), operar as representações do mundo exterior como ideias ou

pensamentos correspondentes às afecções ou modificações da alma, na qual se dá a

atividade pura e simples do pensar como auto-referência e certeza de si do eu que é e,

assim, assegura seu ser-existir face à incidência dos entes, que percebe como exteriores

a si ou diferentes de si; pois mesmo a percepção de sensações e de operações

intelectuais internas da atividade do pensar do eu constitui ideias dessas sensações e

operações, que servem de matéria para a causa eficiente do mundo e do ser do mundo e

dos entes no mundo do sujeito isolado; essa causa eficiente é o eu sou que, ao refletir-

se, se percebe como pensamento que, antes de pensar o outro, pensa a si mesmo e

Société française de philosophie, nº 3, 1992.

escutar

imaginar

sentir

ver

caminhar

etc.

= pensar (pensamentos)

54

identifica seu ser à atividade reflexiva do pensar, como projeção no eu sou que se

exterioriza em si e retorna como certeza e saber de si, enfim, como espírito. Ser e pensar

não são o mesmo, mas sim o eu que, sendo, é a mesmidade sempre presente como

unidade sintética da apercepção transcendental.

Mais adiante, a alma pensante será vista a partir da dupla relação entre ideia e

objeto por ela representado, permitindo a proposição do pensamento como reflexão e,

daí, como consciência, conforme Balibar nos fala a respeito de Arnauld na página 21 do

tratado. As ideias modificam a alma, que se volta para elas e as percebe (representa)

como modos de seu ser-estar para o pensamento na atividade sempre reflexiva do eu

sou através do eu penso, assim constituindo a atividade cognoscitiva do espírito, o qual

se percebe em um sentimento interior, que posteriormente se denominará consciência.

Importa-nos agora falar das idéias para chegarmos à subversão do pensamento

herdado da tradição, que não resolve a aporia da separação ou ligação entre corpo e

alma, e nem consegue escapar de uma limitada dicotomia de mútua exclusão entre

matéria e espírito.

É Balibar quem nos diz que as ideias são o meio termo de uma dupla relação

entre a alma que pensa, o eu penso, e os objetos representados para a atividade de

pensar do eu sou. Ora, se em tal atividade pensante é somente o eu sou que se reflete,

quando pensa as puras formas do pensar como intelecções do espírito, e mesmo quando

pensa o sensível e exterior como afecções corporais ou coisa extensa, só o pensa

enquanto pensável, isto é, enquanto representável (objetivável) ou perceptível para o eu

penso do isolado e fundamental eu sou, sempre a projetar-se no mundo e construí-lo a

seu bel prazer de conhecer mediante a brincadeira das significações da linguagem, então

o eu sou, ao assegurar-se como certeza de si através do pensar que se certifica como eu

penso, não pensa o seu ser como pensamento e nem mesmo o pensar em seu ser em si

formal, mas sim a realidade objetiva do pensar, isto é, o pensamento pensa o

pensamento como objeto e representação para si, e não como coisa em si mesma ou

como o ser mesmo do pensar.

A confusão se esclarece quando se entende que na distinção típica do século

XVII entre realidade objetiva e realidade formal da ideia já se pré-figura a distinção que

55

Kant faz entre númenos e fenômenos, pois realidade objetiva indica a representação do

objeto como coisa determinada pela sua representação no pensar do eu sou, ao passo

que realidade formal indica o que a coisa é em si mesma, o ser em si, que não é

cognoscível e, portanto, permanece no plano magmático da indeterminação ou da

matéria não pensável porque não passível de tornar-se objeto de conhecimento para a

constante atividade reflexiva do espírito.

Pois realidade formal ou em si da coisa nada mais indica que o estado

magmático da matéria sem forma como ente-em-si incognoscível. O magma assume

forma e determinação para a consciência só enquanto experimentável e representável

em cálculos proposicionais, pois, no domínio incondicional da disciplina lógica sobre os

saberes, as leis formais do pensamento são o próprio conteúdo material do pensar o real

enquanto tal, embora os lógicos pretendam com fracasso distinguir forma de conteúdo,

forma de matéria, sem perceberem o hylemorfismo aristotélico velado, mas vigente em

tal fracassada distinção. Indicamos aqui o Heráclito de Heidegger, para uma

compreensão mais originária do pensar e do próprio lógos não pensado na ciência

lógica.

A representação dos fenômenos para a consciência é o acontecer do pensar pelo

qual este converte o magma-coisa indeterminado em ente-objeto determinado, assim

possibilitando a experiência do conhecimento. O eu sou indeterminado pensa a si

mesmo sob a determinação de si como eu penso e, assim, funda a possibilidade das

muitas modalidades de pensar e de experimentar da alma através de suas modificações

ou afecções no eu afirmo, eu duvido, eu respiro... A realidade formal mesma do eu sou

não lhe é dada a pensar, o que ele é como coisa em si, pois o ente-em-si é o nada, mas

só enquanto se representa primordialmente na objetividade do pensamento e

fundamenta a objetividade do mundo dos entes pensáveis para o eu que é; do mesmo

modo, o pensamento não pensa a si mesmo em seu ser, mas enquanto ideia ou realidade

objetiva do pensar, ou seja, enquanto o pensar já se tornou um objeto determinado e

deixou seu ser em si como coisa indeterminada. O que acontece é uma confusão que

identifica a ideia como realidade objetiva ou representação da coisa com o próprio ser

da coisa em si mesma, assim como pensar e ser são identificados, pois o mesmo é a

pensar e a ser, pensamento de que é, onde o mesmo que é para o pensamento e o ser é o

eu-isolado, o sujeito moderno, ainda não desvelado no tempo de Parmênides.

56

Isso nos permite ainda pensar a respeito da dicotomia entre matéria e espírito,

pois sempre se tentou pensar a imortalidade da alma a partir de sua imaterialidade,

como nos fala Balibar sobre La Forge na página 22 de seu tratado. Mas como a alma é

capaz de tornar-se objeto para si mesma, conhecer-se e ter consciência de si como

espírito e saber de si como puro pensar reflexivo, já percebemos que o eu-isolado no

isolamento de sua reflexão se faz a própria matéria de seu pensar, experimenta a si

mesmo como sensação ou sentimento interior e se constitui como espírito e consciência

de si. No processo de instauração da matéria do pensar é o próprio pensar que se faz a

matéria mais importante e, como causa eficiente e material, imprime o movimento rumo

ao conhecimento de si como espírito, fazendo-se causa final e formal da constituição da

consciência de si do sujeito isolado como eu sou, eu existo, eu penso que assegura pela

certeza de si a certeza do ser-existir do mundo e dos entes do e no mundo como o que é

pensável e, portanto, experimentável e cognoscível.

O eu-isolado se isola de si em si mesmo como eu sou que na percepção de si

percebe que pensa a si mesmo e re-presenta o pensar como concomitância entre eu

penso e eu sou, já que pensar e ser são o mesmo, conforme o fundamento da lógica

identitária que é base do significar e fazer do humano no seio mesmo de seu habitar

social-histórico no mundo da linguagem. Mas na mesmidade entre ser e pensar jaz

escondido o fundamento identitário, o eu-isolado que, na certeza de si do eu existo,

pensa sua presença a si como uma representação de si em si no pensar que se percebe

como pensamento do eu penso. O eu sou pensa a ideia de si mesmo como uma realidade

objetiva achando que pensa sua realidade formal; ele sai de sua presença como eu sou e

permanece em si quando se re-presenta na percepção de si como eu sou a pensar que

sou, portanto eu penso o que em mim mesmo é, uma mesmidade entre ser e pensar, que

não passa de certeza da presença a si do sujeito-isolado como fundamento da

objetividade do fundamento de tudo que é, a saber, a subjetividade ou o sujeito

transcendental.

A consciência é gerada, assim, na atividade do representar-se do que já está aí a

sempre se apresentar como presença, o eu do sou-existo e do penso, para os quais se dão

as conseqüentes representações como modalidades do pensar-ser do eu-isolado na

desolação da Terra; a consciência é uma conseqüência do eu-presença em sua atividade

57

interior de isolar-se de si em si mesmo na re-presença da certeza de si como ser-pensar,

pelo que assegura a presença a si do primeiro objeto da representação, o eu-mesmo, que

se faz objeto, mas que só se percebe como sujeito de todo possível objeto, de todo

possível e passível de conhecer. Assim, o eu (humano) se isola na reflexão de si, na

atividade de seu existir como pensar, e a Terra (ser) se desola. Pois a Terra é a

totalidade de mundo em que o homem está, sob o céu, este também incluso nesta

totalidade ordenada de seres, o Cosmos, no qual habitam homens e deuses e se

harmonizam Terra e Céu, mortais e imortais, visíveis e invisíveis, entes sensíveis e

inteligíveis. Mas a fragmentação começa com o rompimento com o mito...

Em 3) Acerca do predomínio da reflexão e da subjetividade. A questão da

profundidade do pensamento puro e da re-virada (Rilke, Hölderlin) na doutrina

heraclítica do lógos, obra de Heidegger, este pensador nos fala de uma indicação do fim

da subjetividade em um trecho de um poema de Rilke. Com Hölderlin, pensa-se o

pensamento na profundidade em que é cunhada a essência mesma do pensamento puro,

de modo a esclarecerem-se alguns equívocos sobre a reflexão mesma, para que o

aprofundar-se do pensamento o remeta à reflexão originária, evocando o a-se-pensar, o

não pensado. Heidegger nos convoca para esse âmbito mais profundo do pensamento

por causa das indagações problemáticas relativas à subjetividade, em força da qual o

pensado se determina no modo da contraposição ao sujeito, o modo do objeto, bem

como o que pensa se determina como eu ou sujeito, pelo que a re-presentação configura

a posição sobre si mesmo do sujeito e dos objetos para si no modo da captura dos entes

pela atividade de apreensão de objetos em geral na apercepção da consciência de si.

Leiamos então as palavras do próprio pensador alemão:

“Caracterizou-se o pensamento, por um lado, do ponto de vista da reflexão, e por outro na

referência à sua própria profundidade. Nós, os hodiernos, só conhecemos a reflexão na

configuração da reflexão da subjetividade. Uma vez que costumamos justapor a subjetividade

com a egoidade do eu isolado, vemo-nos sempre no temor de que a reflexão constitua o solo

fermentador do individualismo e do egoísmo. Todavia, deve-se advertir que nessa essência da

reflexão, assumida como egoísmo egocentrado, não somente o homem singular, mas também

grupos e ligas inteiras, nações e povos, toda a humanidade da Terra pode vir a ser desolada e

aniquilada. A remissão reflexiva não precisa, necessariamente, limitar-se ao “eu” isolado.

Precisa, porém, referir-se sempre a um si-mesmo. O eu e o si-mesmo não são o mesmo. Não

existe apenas o eu-mesmo. Existem também o você-mesmo, o nós-mesmos, o vocês-mesmos.

Para cada essência da reflexão é decisivo o modo de determinação da mesmidade do mesmo, e

vice-versa.”33

58

É a Terra mesma que em seu sofrer enuncia a catástrofe do mundo, da

linguagem, da identidade e da humanidade; enquanto cada vez mais o eu se isola, a

Terra se desola: “- oh, existence tragique, je suis très désolé!”

*

No início deste texto falamos de uma confusão própria ao instrumental humano,

a linguagem. Seja qual for tal confusão, acreditamos que em alguma experiência

singular e original com a linguagem não há confusão; essa experiência nós a

concebemos como poesia, e apontamos para a Teogonia de Hesíodo como a experiência

máxima e fundamental do poetar originário.

Portanto acrescentamos a este trabalho nossa leitura de um curto texto intitulado

O “Programa Sistemático”, em torno de cuja autoria houve uma controvérsia. A nota do

tradutor nos informa sobre a discussão sobre este texto achado em 1917 por Franz

Rosenzweig. Não entraremos em detalhes do assunto, apenas ressaltamos que a disputa

pela autoria girou em torno de três nomes do idealismo e do romantismo alemão do

século XIX, a saber, Hölderlin, Schelling e Hegel.

Nossa pretensão com este texto é reanimar o elogio da poesia, da recuperação de

sua dignidade e da reivindicação do caráter filosófico do poetar. Aqui fazemos uma

menção à Lógica da Arte e do Poema de Baumgarten, sem termos muita clareza sobre o

que fazer com isso, apenas manifestando nosso desejo por estudá-la. Ali há uma bela

teoria sobre a alma humana, e uma expressão poético-filosófica do inconsciente antes de

Freud, de Schopenhauer, de Nietzsche, mas não antes da teoria dos afetos e do esforço

por perseverar em seu ser de Spinoza.

Aproveitamos ainda para indicar uma possibilidade de estudo e defesa do tema

da poesia como experiência originária com a linguagem, o ser e o mundo, a partir dos

estudos de Heidegger sobre a poesia de Hölderlin, mas somente com o intuito de

preparar o terreno para a consideração do poetar originário na Teogonia de Hesíodo. Eis

o que seria nosso Programa Sistemático.

33

Heidegger. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p.230.

59

Pois bem, o texto O “programa sistemático”, disponível em língua portuguesa

no volume da coleção Os Pensadores dedicado a Schelling e Fichte, inicia fragmentado

e apresentando o desembocar da metafísica na moral, constituindo uma ética que

sistematize todas as Idéias como postulados práticos, tema este não esgotado por Kant.

A primeira Ideia indica o caráter absoluto da liberdade da consciência de si, do

que o mundo surge inteiramente do nada, como criação ex nihilo. Isso nos lembra a

noção de Castoriadis do ser como criação e da subjetividade como capacidade de dar a

si os esquemas formais pelos quais os estratos da realidade emergem como entes

conjuntificáveis, processo de criação ex nihilo mediado pela imaginação criadora e

radical dos indivíduos e pelo imaginário criador das sociedades. Isso, porém, não é para

o momento. Importa lembrar que Castoriadis trabalha com a noção psicanalítica de

inconsciente e da psique como fluxo representativo de afetos e intenções (desejos). E o

que se chama aqui de consciência de si é uma referência ao humano pelas significações

do esquema imaginário social-histórico em que se situava o autor do texto analisado;

com a des-coberta do inconsciente não se exclui o modo de ser da consciência de si com

um existencial humano.

Mas a filosofia não fornece só as Ideias, fornece também os dados da

experiência, o que compreende também a física, ciência natural. Esta, porém, é

insatisfatória do ponto de vista do espírito criador.

A natureza é, então, abandonada para a consideração da obra humana. A Idéia

de humanidade exclui a de Estado, pois este reduz tudo à mecanicidade da máquina. A

Idéia perfeita é exclusivamente o que poder ser objeto da Liberdade. Aqui a negação do

Estado, de toda legislação e constituição parece ecoar o barulho anárquico da Revolução

Francesa. Enfim, a Razão persegue as Idéias de imortalidade, divindade e moral no

mundo; a física ou ciência natural também não compreende um mundo moral.

A Idéia da beleza é, portanto, colocada como força unificadora de todas as

idéias, retomando o sentido dado por Platão. Aqui o ato de unificar em um todo

conjunto todas as idéias é um ato estético que co-liga verdade e bondade na idéia do

belo. Deixemos o autor desconhecido cantar e assim fertilizemos o terreno para o poetar

60

cantante e originário da Teogonia de Hesíodo:

“A poesia adquire com isso uma dignidade superior, torna-se outra vez no fim o que era no

começo – mestra da humanidade; pois não há mais filosofia, não há mais história, a arte poética

sobreviverá a todas as outras ciências e artes.”

“(...) a grande massa precisa ter uma religião sensível. Mas não só a grande massa, o filósofo

também precisa dela. Monoteísmo da razão e do coração, politeísmo da imaginação e da arte, é

disso que precisamos.”

“(...) – temos de ter uma nova mitologia, mas essa mitologia tem de estar a serviço das Idéias,

tem de se tornar uma mitologia da Razão”34

Ora, a nosso ver, a poesia do começo, mestra da humanidade, cuja dignidade é,

foi e será superior; antes que houvesse filosofia, história ou ciências, entoada pelo

aeodo; a poesia da religião sensível, que cantava o hino que sensibilizava o povo frente

aos deuses, na contemplação das Idéias numênicas surgindo e formando o Cosmos sob o

lógos mítico da Razão universal (Zeus), é a Teogonia de Hesíodo.

BIBLIOGRAFIA:

BALIBAR, Étienne. Tratado Lockiano da Identidade; trad. Lílian do Valle.

FICHTE. Introdução à teoria do Estado. São Paulo: Nova Cultural, col. Os

Pensadores, 1989.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito, tradução de

Paulo Menezes; com colaboração de Karl Heing Efken, e José Nogueira

Machado. Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002.

HEIDEGGER, Martin. Heráclito: A origem do pensamento ocidental: lógica: A

doutrina heraclítica do lógos; tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. – Rio

de Janeiro, Relume Dumará, 1998.

PLATÃO. Político. São Paulo: Abril Cultural, col. Os Pensadores.

SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. História da Filosofia Moderna:

Hegel; seleção, tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:

Nova Cultural, col. Os Pensadores, 1989.

34

Schelling. O “Programa Sistemático”; IN col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p.43.

61

A QUESTÃO DA IMAGINAÇÃO.

O nosso tema tomará como base e objeto de estudo a teoria poética e estética de

Paul Valéry. A proposta consiste em pegar a filosofia estética de Valéry e identificar

suas relações com a faculdade humana denominada imaginação criadora, tomando-a por

oposição à razão operadora das ciências, sem, contudo, excluí-las absolutamente, antes

sim integrando ambas na totalidade da relação de contradição que configura o fazer

artístico e a ciência estética, com ênfase no predomínio da imaginação e de seu poder

criador, que transpassa os limites da mera repetição da operação de raciocínios, sob os

quais a realidade deve ser identificada com base nos princípios lógicos de não-

contradição, de identidade e de terceiro excluído, assim constituindo um princípio de

realidade objetivo para a atividade discursiva lógico-argumentativa das ciências

acadêmicas.

Ao contrário, ver-se-á que a razão operadora deve submeter-se à imaginação

criadora no processo de criação artística da obra de arte, ou melhor, que até na

demonstração lógica por argumentos e operações de raciocínio há certa ante-posição

(posição anterior) da imaginação face à razão.

Como um poeta interpreta a imaginação filosoficamente? O foco do tema incide

sobre a compreensão filosófica a respeito da imaginação criadora por parte de um

verdadeiro criador, o qual se vale, na construção de sua obra poética, desta potência

eminentemente criadora, a imaginação. A criação adequada deve exprimir o belo

ontológico, a fim de que não se produza a aberração dos totalitarismos, como nos ensina

João Ricardo Moderno.

O homem contemporâneo e moderno, isolado em si e na desolação da Terra, na

vigência do que Heidegger denomina o império da técnica na consumação da metafísica

ocidental, é o homem do esquecimento do ser, o homem da ausência do belo perdido no

mundo do que Adorno denomina indústria cultural.

As grandes teorias estéticas são elaborações de subjetividades profundamente

62

íntimas do fazer artístico. Essas teorias, exatamente por serem teorias, não podem

eximir-se da tarefa especial da expressão pelo discurso conceitual, cujo nome mais

adequado é filosofia; daí chamarem-se também filosofia da arte. Filosofia é a

desinteressada busca pela verdade. É necessário ter isso em vista, pois o abuso não-

estético da imaginação na criação discursiva pode gerar um uso e desuso instrumental

desta faculdade para a obtenção de fins ideológicos através de aberrações políticas.

Estaremos auxiliados neste trabalho pela História da Estética de Raymond

Bayer e pela Estética da Contradição de João Ricardo Moderno, tendo por base

também o texto de Valéry chamado Introduction a la methode de Leonard de Vinci. No

entanto ressaltamos que o estudo de Valéry é só um artifício para identificarmos na

Estética da Contradição a questão da distinção entre uma ciência da arte e uma ciência

da lógica, e disso passarmos ao problema mesmo da ciência, compreendendo a razão

que demonstra por cálculos proposicionais como posterior à imaginação que cria o ente

analítica ou logicamente demonstrável.

Valéry representa certa transição da arte, da literatura e da estética filosófica do

século XIX ao século XX. Ele nos leva ao conceito do gênio nas diversas áreas de

atuação a partir da atividade da criação. Isso não acontece somente na arte. Quando

surge efetivamente uma transformação e uma nova teoria na ciência em geral, ali se

manifesta o gênio sob a atividade da potência criadora da imaginação. Aqui temos em

vista o que nos diz Cornelius Castoriadis, citando a obra O casamento entre o céu e o

inferno de William Blake:

“What is now proved was once only imagined.

O que agora está demonstrado deve ter sido antes imaginado. Frase brilhante e ao mesmo tempo

banal, que diz uma verdade evidente: não se pode demonstrar nada se antes isso não foi

imaginado como possibilidade de enunciado a ser demonstrado.”35

E isso nos mostra como esta faculdade criadora é elementar e fundamental,

tendo precedência em relação à razão, o que quer dizer que a criação seja anterior à

mera operação; a imaginação é o a priori como faculdade instauradora do ser, a razão é

o a posteriori do calcular sobre o ser criado e do que será feito materialmente do ser no

processo técnico de produção dos entes como utensílios de consumo.

35

Castoriadis, Sobre o Político de Platão. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 140.

63

Lá onde impera o mero operar da razão calculadora, quando a imaginação

permanece adormecida, e o homem destituído do seu poder de criar, a humanidade

padece ao mero fazer-se da técnica e da ciência, a arte se torna produção em massa de

artigos de consumo no seio do que Adorno denomina indústria cultural, e as relações

humanas se tornam também relações mercantis de barganha e utilização do outro como

produto descartável, tão logo tenha sido utilizado para a realização da ação do consumo

no uso e abuso dos entes.

Leonardo da Vinci nos fala sobre o rigor. De todo modo, a ciência e a arte

diferem em seu rigor específico. No rigor científico impera a razão e o cálculo dos

discursos objetivos à procura de padrões repetitivos, nos quais se enquadre o real, a fim

de que se estabeleçam leis descritivas dos fenômenos naturais, psíquicos, e dos fatos

sociais e acontecimentos históricos e humanos.

Na arte, a imaginação criadora se vale do rigor discursivo, ou de expressão, em

prol da liberdade da atividade mesma do criar, através da qual o novo, ou diferente, se

manifesta e por força de sua natureza interna e essencial impõe a regra para a

determinação de padrões e técnicas de procedimentos atuariais humanos e de

processamentos de dados a serem objetivados em todos os níveis de atuação do fazer

humano, seja artístico, científico ou filosófico.

A arte realiza o deslocamento do campo racional consciente para o do

imaginário inconsciente, sendo assim capaz de propor-se e impor-se como atividade

criadora a manifestar-se como impulsividade do movimento mesmo do criar através da

produção de obras. A imaginação é capaz de sonhar e exercer-se como ficção mental ou

psíquica, mas só se torna criadora na medida em que produz obras e manifesta física e

sensivelmente, a partir desse produzir e fazer, o ente real como atividade

intelectivamente criadora do espírito. Sendo o poder criador do espírito, a imaginação é

o lugar em que se dá a impulsão do criar a fim de possibilitar a experiência do real (ser)

como arte. Nesse sentido, é possível uma metafísica da arte ou uma arte metafísica, na

medida em que na arte se manifesta mais originariamente a atividade criadora do

espírito, cuja criação nada mais é do que o ser mesmo.

64

Assim, a arte é a atividade humana de instauração primordial do ser como

realidade; essa atividade é realizada pela imaginação criadora; e nestes termos a estética

se configura como uma ontologia fundamental, pelo que o humano poder ser definido

como animal artístico: nem o animal trabalhador de Marx, nem o animal racional da

tradição metafísica, que ignorava a estética até sua fundação por Baumgarten no século

XVIII.

Todavia Baumgarten só queria legitimar uma ciência específica. Mas nós não

concebemos a estética como mera ciência de um ente específico, o objeto artístico e as

regras do fazer obras de arte, e sim como compreensão da imaginação criadora em todos

os âmbitos de realização humana como o poder de dar ser ao que ainda não é e, assim,

criar o novo e impulsionar o movimento de renovação do operar humano pela razão em

todos os setores da atuação humana.

Assim, a estética, a ética, a lógica, a política, a física, a psicologia e todas as

ciências se harmonizam e se integram somente quando o homem não se submete ao

mero trabalho técnico do fazer científico e assume conscientemente o controle sobre o

mundo que produz, e no qual habita, sem que assim precise exercer um domínio

incondicional e desbaratado sobre o que é indomável em sua vigência, a natureza em

todas as suas acepções possíveis.

Aqui, pretendemos restaurar o valor e a dignidade da poesia, perdidos no

pretenso rebuliço do progresso da humanidade em vista do desenvolvimento científico e

técnico e na exigência boçal da formalidade dos discursos acadêmicos e do discursar em

geral enjaulado no zoológico instituto de adestramento do homem, que são as academias

de ensino superior, verdadeiras indústrias da pesquisa e da formação de máquinas de

calcular e produzir conhecimento pelo mero processamento de informações, citações

bibliográficas e um convulsivo desejo de tudo apreender para demonstrar a vaidade dos

que querem tudo parecer saber.

A idéia da poesia, ou melhor, do poetar (poematizar) como experiência

primordial do homem com a linguagem, na qual o ser se desvela e acontece em seu

desvelar mais próprio, e a verdade vige no seu vigor mais originário, antes de ser

convertida na verdade como adequação sob o reinado dos princípios da lógica no

65

destinar-se da filosofia ocidental como metafísica, como queríamos dizer no início do

parágrafo, essa idéia é encontrada em alguns textos de Heidegger, como por exemplo:

“A sentença do pensar só se deixa traduzir no diálogo do pensar com o que nele é pronunciado.

O pensar, contudo, é poematizar, e não somente no sentido da poesia e do canto. O pensar do ser

é a maneira originária do poematizar. Somente, nele antes de tudo, a linguagem se torna a

linguagem, isto é, atinge a sua essência. O pensar diz o ditado da verdade do ser. O pensar é o

dictare originário. O pensar é o poematizar originário que precede toda a poesia, mas também o

elemento poético da arte, na medida em que se torna obra, no seio do âmbito da linguagem. Todo

o poematizar, (...), é, no fundo, um pensar. A essência poemática do pensar guarda o imperar da

verdade do ser. (...)”36

No entanto, nós somos obrigados a discordar em um aspecto elementar deste

trecho citado de Heidegger, porque gostaríamos de considerar o pensar como

poematizar somente no sentido da poesia e do canto, tendo como exemplo o antigo

aedo.

Assim, poderíamos considerar a declamação ou palavra cantada como

experiência mais originária do pensar humano com o ser em geral, com o ente múltiplo

em sua totalidade, a partir do estudo o mundo como função de musas de Jaa Torrano,

baseado na Teogonia de Hesíodo, resgatando a dignidade e o valor da declamação e do

canto sob a ótica de que, mesmo no silêncio e na solidão em que vive o poeta no mundo

hodierno, apartado da não-poesia deste mundo podre, no ato de compor seus versos no

seio dessa imensa solidão e desse silêncio assustador, que cala até mesmo o rebuliço do

mundo produzido pela técnica no interior do espírito que canta na composição da

palavra, como dizíamos, gostaríamos de resgatar a dignidade da declamação e do canto

sob a ótica de que o poetar é a ação mesma em que a imaginação criadora se faz em sua

atividade como operar da ação de criar, assim manifestando o surgimento do fenômeno

da linguagem em sua origem, e simultaneamente o co-pertencimento entre pensar e ser

no interior da palavra não só enunciada em proposições nas quais se dão posições de

representações e significações lingüísticas encadeadas em estruturas lógico-semânticas

e conexões de implicação lógica entre as proposições, a fim de apreender o real como

objeto para um sujeito, mas como palavra cantada que exprime a brotação mesma da

realidade e de tudo que existe no seu ato de emergência. Assim, deixamos Torrano

36

HEIDEGGER, Martin. A sentença de Anaximandro. IN Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural,

1973. (p.29,§5)

66

falar:

“O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e

distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne)

através das palavras cantadas (Musas) (...) O aeodo canta sem que ao exercício de seu canto se

contraponha outra modalidade artística do uso da palavra. Seus versos hexâmetros nascem num

fluxo contínuo, como a única forma própria para a palavra mostrar-se em toda a sua plenitude e

força ontofânicas, como a mais alta revelação da vida, dos Deuses, do mundo e dos seres. De

nenhum outro modo a palavra libera toda a sua força, nenhuma outra forma poética se põe como

alternativa à em que o canto se configura.”37

Todavia, hoje o poeta não é mais um aeodo, e, no que diz respeito ao seu poetar

há certo esquecimento no fazer-se do processo criador, a atividade criadora permanece

velada em sua essência, escondida na simplicidade do artista ao falar do movimento de

vir a ser da obra, da criação artística. A arte permite que se manifeste a perfeição, a obra

em seu acabamento, ainda que na imperfeição, o artista enquanto humano, demasiado

humano.

O poetar é como Heidegger falou, e com o que agora concordamos no jogo da

contradição estética sob o princípio do terceiro incluso desvelado como princípio da arte

na Estética da Contradição de Ricardo Moderno, o poematizar como dictare originário

da essência do pensar, em que reside o ser na vigência de seu desvelar-se, no imperar de

sua verdade, é o enigma da obra de arte, não só na poesia e no canto, mas em todo

processo criador da imaginação humana realizado em toda obra humana, em todo

operear-criar e criar-operar humanos, em todos os âmbitos de atuação do ser humano.

Assim, operar-criar é a operação mesma da criatividade da imaginação na atividade da

razão, e, dialeticamente, criar-operar é o impulsionar da imaginação para o exercício

calculador-operador da racionalidade humana.

Nas ciências e nas disciplinas da lógica e da matemática há um mero processo de

rigor de calcular e repetição massiva do operar formal da racionalidade enquanto tal,

que se aplica nas matérias de cada uma das regiões específicas de abarcamento do ente e

da realidade, assim constituindo o fazer científico hoje muito bem academicamente

institucionalizado como poder de discursar veritativamente sobre as coisas e sua efetiva

existência, sob o pressuposto e a determinação da delimitação do real fragmentado em

áreas distintas de entes específicos para viabilizar o cálculo dos entes como objetos do

67

operar da razão no exercício da produção de conhecimentos, das técnicas de discurso,

das metodologias do fazer técnico e da mera produção de utensílios e de tecnologia

avançada.

Todavia, os grandes gênios destas ciências e disciplinas são os criadores de

novas teorias e práticas nesses ramos específicos de saber. Por isso, eles podem

adequadamente ser considerados artífices e filósofos da ciência; aqueles que fazem e

produzem refletindo sobre o fazer e produzir, e, na medida em que são criadores de

novos padrões de fazer-produzir-refletir, são também artistas, pressupondo-se que

artista seja sinônimo para criador.

A divisão entre ciências naturais (Naturwissenschaften) e ciências do espírito

(Geisteswissenschaften) compreende consigo que na linguagem das primeiras reina a

produção dos conceitos, dos objetos e da própria natureza a partir de elementos

provenientes do próprio espírito humano em sua atividade constante de inteligir, sentir e

criar, enfim de vivenciar e apreciar, pelo que a diminuição das ciências humanas, ou do

espírito, em relação às ciências da natureza constitui uma tolice do próprio espírito

humano, ainda em estado de certa ignorância quanto a si mesmo, já que também o

humano reside na natureza que quer conhecer pelo espírito, cuja atividade de inteligir-

sentir-criar forja para si o conceito e a representação da natureza como objeto de

conhecimento em suas leis padronizadas de funcionamento. Só assim é possível uma

adequada teoria da visão de mundo (Weltanschauung), para não nos esquecermos de

Dilthey.

“A estética francesa no século XX” por Raymond Bayer:

Raymond Bayer nos fala de um período racionalista até a Guerra, 1939-45. A

partir de 1945 e do que se denomina Libertação houve uma confusão entre gêneros

artísticos em vez de uma manutenção do rigor disciplinar. Divide-se a estética francesa

do século XX em dois períodos: um durante ou até a Guerra e outro que se sucede ao

ano de término dela, marcado pela Libertação.

37

Jaa Torrano, Teogonia – A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2007, pp. 16-17.

68

Paul Valéry faz parte do primeiro período e estabelece certa conexão entre

estética filosofia e até política; para ele, o indivíduo deve expressar-se como

universalidade egotista, não para afirmar seu ego somente, mas para que o poeta se

converta em pensador universal. Assim, constroem-se juntamente o eu e sua

cosmovisão, ou seja, sua visão de mundo. Aqui colocaríamos como exemplo máximo

do poeta como pensador universal o aeodo Hesíodo.

A estética enquanto ciência, se existisse, aniquilaria as artes por sua essência, já

que estas existem propriamente nas obras e pelos artistas. Mas, como a teoria estética é

uma tentação do espírito, configura-se como ciência da arte, de suas doutrinas e de seus

métodos de consecução.

Consideram-se três tipos de estética, a saber: a clássica, que fala das obras e de

sua linguagem; a histórica, cujos objetos são as influências e a origem das obras; e a

científica, que analisa as obras em seus procedimentos metodológicos e seus processos

técnicos. A estética deve, em geral, proporcionar o prazer nas obras ou o ensino da arte

de executá-las.

Em Discours aux Esthéticiens, Valéry considera a questão de uma ligação

essencial entre sentir, querer e fazer, em que o sentir oferece certo obscurecimento. O

prazer e a dor confundem o observador e o observado, inutilizando as especulações

teóricas sobre o fazer artístico.

Isso leva Valéry a distinguir a Estética da Poiética. A primeira constitui o estudo

das sensações sem função fisiológica determinada; a segunda trata da ação produtiva do

humano em geral. Valéry convida a ciência física a um estudo mais originário das

sensações, que vê no belo e no seu saber o fenômeno originário do aspecto mais

elementar da sensação.

Contudo, para nós a Poiética tem importância, sobretudo na compreensão de

Castoriadis acerca do ser como criação social-histórica, cuja dimensão é dada pela

poiética como imaginário a partir do magma e da historicidade, onde axiomas

69

heterogêneos e princípios de alteridade coexistem no mesmo38

, impedindo a redução da

coisa à operação de conjuntificação do real pela lógica conídica, conjuntista-identitária,

aliada à ontologia unitária do ser como determinidade; e ainda no tema acima exposto

do poetar ou poematizar da linguagem como experimentação originária com o pensar e

o ser no imperar da verdade como a-létheia; ali o poetar também assume outro

importante sentido do poiético na procedência da língua alemã dichten, dichtung (como

sinônimo para poesie), dichterisch, a saber: “compor, conceber, inventar, fingir,

projetar; composição, ficção, invenção, poema, poesia, projeção; poético, inventivo,

projetivo”39

, significados que articulados entre si permitem uma interpretação do

poematizar, como dictare originário da linguagem na essência da palavra e no domínio

da verdade do ser, considerando a poesia uma concepção projetiva que com-põe

originariamente a linguagem e projeta o ser como ficção do imaginário do poeta na

palavra, no caso do aeodo Hesíodo, na palavra cantada, na com-posição da poesia e do

canto.

Após esse parêntese sobre a Poiética em Castoriadis e Heidegger, retornamos ao

raciocínio de Valéry, para quem, tendo em vista o que dizíamos, o esgotamento da

retina na visão da cor vermelha cria espontaneamente a cor verde, que poderia ser já

conhecida pelo vermelho, caso alguém nunca a tivesse visto. Essa criação espontânea e

verdadeira mostra a necessidade de completar uma lacuna, a partir da compreensão de

uma relação de complementaridade entre elementos que efetiva a criação.

Portanto, essa ciência das sensações pede aos artistas que nos instruam a respeito

do belo e de sua criação pelo espírito. Pois este é o que deseja e age sobre a matéria,

atribuindo-lhe moldes e plasmando-lhe formas de configuração manifestativa de acordo

com as idéias que se lhe sobrevêm sem que o certifiquem definitivamente do resultado

do seu fazer, do seu operar. Tendo isso em vista, nas diversas áreas do saber, o impulso

à produção científica não pode acontecer com propriedade sem uma instrução a respeito

dos modos de criação do ser na busca pela inovação do saber, pois o homem é

responsável pela forma que dá ao real, assim configurando um mundo de sentido e de

realidade. Fazendo isso sem responsabilidade e consciência, o homem desfigura o

mundo e o real, em vez de configurá-lo harmoniosamente sem afrontar o segredo do ser

38

Castoriadis, Complexidade, Magmas, História IN Feito a ser feito. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, p.229. 39

Inwood, Michael. Heidegger; coleção mestres do pensar. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 162.

70

resguardado no véu da verdade como o desvelamento, a retirada do véu em que se dá o

ente no vigorar do aparecimento ou surgimento, a physis ou natureza.

*

Paul Valéry vem nos trazer a importância de entender a essência da obra de arte,

fazendo uma ontologia da arte. Isso implica a compreensão da diferença entre arte e

ciência. A obra de arte pode ser entendida também sob perspectiva histórica, no eixo da

simultaneidade entre o sincrônico e o diacrônico da história.

Mas o entendimento da criação da obra de arte perpassa também a compreensão

do talento a-histórico do artista, uma qualidade singularíssima que independe de fatores

externos, sociais ou históricos, e que floresce na criação artística, revelando o artista

como gênio criador.

Uma visão diacrônica sobre a obra de arte permite uma variedade de

interpretações de seu sentido, independentemente de determinações epocais e

circunstanciais nas quais a obra veio a ser. O eixo sincrônico dá uma dimensão de

linearidade e progresso histórico das épocas e estilos artísticos, enquanto a dimensão

diacrônica permite o diálogo de uma obra com todos os tempos, possibilitando uma

reinvenção de seu sentido.

Além disso, retornado à já referida questão da diferença entre ciência e arte, vale

ressaltar que o processo criativo se dá na imaginação criadora e manifesta na obra o

sentido mesmo do criar, que se não explica de maneira demonstrativa e rigorosa, como

as leis pretensamente objetivas descritas pelas experimentações dos fenômenos nas

ciências naturais. Com isso, entretanto, não queremos dizer que a arte não tenha seu

rigor próprio para manifestar a existência sob o delírio contemplativo-estético do belo

ontológico.

Dizemos pretensamente objetivas porque não compartilhamos da crença

dogmática na capacidade de penetração real da ciência no ser objetivo da natureza

enquanto tal, mas sim de uma compreensão que percebe o processo do fazer científico

como certa violência exercida pelo espírito, excessivamente racionalizado, sobre a

71

natureza, forçando-a a moldar-se nas estruturas de operacionalidade de cálculos e

proposições da linguagem humana sob a marca da representação de seu ser como objeto

para o espírito, que assim se reduz a sujeito da ação meramente cognoscente.

Como falamos acima, a arte, e mais propriamente o poetar, é o elemento

primordial do enunciar como força criadora da imaginação pelo canto, em um tempo em

que o fenômeno originário da linguagem se dá sem recorrência à ainda inexistente prosa

com suas leis e processos analíticos, suas proposições conceituais e suas leis racionais

de operação lógica, o princípio da identidade, da contradição e do terceiro excluído.

Essa linguagem originária, que se valia do poder da imaginação criadora no seu agir

primordial em um tempo em que, por ainda não conhecer a lógica e a metafísica da

razão, desconhecia toda epistemé, isto é, toda ciência sobre os entes, também nem

sequer poderia conhecer o princípio do terceiro incluído como princípio da arte, esta

como um ente determinado (a arte) de uma ciência específica sobre esse ente

determinado (a estética). Por isso, mais uma vez ressaltamos a dignidade do poetar

como experiência primordial do pensar com a linguagem e com o ser em geral.

Valéry, Leonardo e os filósofos:

O texto de Valéry sobre Leonardo e os filósofos partiu de uma instigação de

escrever sobre o pintor, relacionando-o à filosofia. Trata-se de aproximar a filosofia e a

arte mediante o estudo da estética, esta denominada “ciência dos valores e das criações

das emoções”. Valéry enfatiza o conceito de arte como criação de emoções.

No fazer artístico, no processo criativo da obra de arte o poder de calcular da

razão deve se submeter à criatividade da imaginação criadora artística. Por isso, um

músico é antes de tudo um músico, um artista dos sons, não um matemático, embora a

linguagem musical da partitura seja repleta de relações numéricas de cálculo.

Na poesia, a métrica da palavra serve ao ritmo nas rimas da composição de

versos, e a ordenação lógico-formal e predicativa das proposições, bem como as

significações das palavras, se submete às criações das figuras de linguagem, à imagem e

aos símbolos da produção poética.

72

Agora já nos introduzimos no assunto da relação entre filosofia e arte. O filósofo

é um especialista do universal, que só aparece sob a forma verbal e rigidamente

conceitual. Isso gera uma contradição dialética, o que não exclui, e sim inclui o filósofo

na qualidade de artista do discurso, mestre da palavra.

A filosofia se dá no seio da contradição dialética entre o universal e o singular;

este singular configura a diferença entre os vários pensamentos dos filósofos; a

singularidade dá a dimensão pessoal e configura o paradoxo da existência ou do ser em

geral, assim guardando o lugar do elemento imaginário e criativo na filosofia.

O universal é a determinação rigorosa na expressão filosófica. Ambos, universal

e singular, são igualmente necessários no fazer filosófico. O universal dá o rigor formal

do discurso e o configura sob a determinação da autenticidade do saber legítimo; o

singular dá o elemento criativo e qualifica o poder de criação para uma nova

expressividade do saber.

Valéry preconiza, assim, um reconhecimento da vitalidade do absurdo paradoxal

e da fecundidade da complementaridade na contradição dialética, pois esta reside no

interior do próprio espírito e na realidade enquanto tal, na relação de espírito a espírito,

nas relações intersubjetivas no seio do ambiente humano da cultura, da sociedade e da

história, da arte e da política, da filosofia e da ciência etc.

Apesar dessa comparação entre filosofia e arte, a contradição assume

manifestações distintas em cada âmbito específico. Porém, a contradição está

primordialmente no real enquanto tal, no espírito e na matéria, cuja relação efetua a

produção de obra em todos os níveis do fazer humano, pelo que todo obrar (operar) e

produzir são percebidos como efeitos da contradição fundamental do real.

A ética é a ciência dos valores; a estética, ciência dos valores da expressão e da

criação das emoções na arte. As emoções se expressam segundo uma forma artística que

as embeleza, pois a mera expressividade emocional sem a forma da arte não é arte. Esta

se exprime em sua forma própria e manifesta o poder de criar e embelezar as emoções

73

singulares, para que estas se tornem expressões dignas de se apresentarem como

representações universais do sentimento humano.

Nisso, compreende-se o belo como elemento ontológico no discurso artístico e a

estética como uma ontologia da arte. Só o produto da imaginação criadora exprime

universalmente o singular, trazendo-o às belas formas de expressão, porque a

imaginação criadora é o poder mesmo de universalizar a essência somente presente na

singularidade do artista, tomada pelo êxtase da universalidade do real contraditório e

enigmático enquanto tal.

A imaginação criadora traz à expressão na obra a singularidade criativa, que

resguarda consigo a universalidade da condição da existência humana. Eis o paradoxo

do real e da criação, a condição do espírito, a contradição estética no fazer artístico, a

arte do criar que se manifesta na palavra como estética da contradição de toda

verdadeira e completa teoria acerca do espírito, cuja ação elementar é a criação

proporcionada pela faculdade da imaginação.

Tendo isso em vista, podemos recorrer a uma explicitação mais clara, porém

resumida, da questão do princípio da arte como princípio do terceiro incluso, com base

na Estética da Contradição de João Ricardo Moderno. Com efeito, lá se diz com Valéry

que:

“Não há contradições lá onde não existe nada. Disso resulta que uma linguagem isenta de

contradições nada mais é que uma linguagem homogênea, ou tornada tal por uma refundição que

substitui definições explícitas convencionais em “sentidos” do uso. Mas nada de mais quanto às

coisas significadas. (Valéry, 1973:695)”40

Com isso, tem-se em vista a teoria estética da contradição considerando a

essência mesma da arte a partir da idéia da contradição estética inerente ao próprio ser

da realidade, humana e natural. Mas ali a dialética e contradição filosóficas são

analisadas no seio da história da estética em vista de problemas estéticos e filosóficos e

do próprio reconhecimento da contradição estética, assim procedendo a uma

monumental Estética da Contradição, na qual a própria Estética se visse legitimada

40

Moderno, João Ricardo. Estética da Contradição. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2006, p. 432.

74

enquanto ciência e com um princípio de realidade próprio e delimitado, a fim de

conferir-lhe autonomia, a saber, o princípio do terceiro incluso como princípio da arte.

Na introdução da belíssima e admirável obra do professor João Ricardo

Moderno, mais precisamente a partir das páginas 22 e 23, vê-se que a intenção da obra

era reivindicar a autonomia da ciência estética como contradição estética face à

contradição lógica.

Com efeito, é no âmbito da arte que a imaginação criadora se sobrepõe à razão

operadora, e a contradição ganha estatuto de princípio de realidade no âmbito do obrar

ou operar da arte, cuja teoria se reconhece legitimamente filosófica no seio da

investigação histórica da contradição estética, respeitando a dialética dos eixos

sincrônico e diacrônico da história, e assim viabilizando o projeto monumental da

Estética da Contradição.

O que se percebe é que a Estética da Contradição percorre o fio condutor do

seguinte pensamento: a indicação da distinção entre os objetos lógicos e os objetos

estéticos por Baumgarten, a fim de reconhecer a estética como ciência autônoma em

relação à lógica e à ciência natural, reconhecendo o princípio do terceiro excluso face ao

princípio lógico de não-contradição.

O princípio do terceiro excluso, ou do meio excluso, não admite a existência de

um meio termo entre a afirmação ou negação de uma proposição e é considerado como

autônomo em relação ao princípio lógico de não-contradição na Metafísica de

Baumgartem. A tese de Moderno é que Theodor Adorno foi quem rompeu

definitivamente com esse princípio, assim possibilitando a criação do princípio de

realidade da arte como princípio do terceiro incluso.

Isso nos lembra a jogada de Kant na Crítica da Faculdade do Juízo, na qual a

imaginação é ali inclusa como terceira faculdade intermediária entre o entendimento e a

razão. Ao entendimento cabe categorizar as intuições dos dados sensíveis da

experiência para assim formalizar os juízos conceituais de conhecimento sobre a

natureza; à razão cabe legislar a priori sobre a vontade, tendo como fim a liberdade sob

a lei, cujas regras são dadas como númenos puramente racionais, sem correspondência

com fenômenos naturais e leis objetivas da experiência, a fim de formalizar os juízos

75

morais e o imperativo máximo da moral a legislar a volição e a ação humanas, o

imperativo categórico; à imaginação cabe o jogo livre entre estas faculdades a fim de

produzir os juízos estéticos acerca do belo. O entendimento e a razão não escapam às

leis lógicas do funcionamento formal do pensamento como operador e cálculo de

proposições ou juízos, mas a imaginação faz uso destas faculdades para emitir um juízo

que em si não traz a necessidade de respeito às leis lógicas do pensamento, o juízo

estético.

Há uma citação da Estética de Baumgarten na introdução da Estética da

Contradição de Moderno, precisamente nas páginas 25-26, onde se reconhece uma

distinção clássica na antiguidade e na idade medieval entre coisas sensíveis (aisthéta) e

coisas inteligíveis (noéta). Os objetos da imaginação seriam as representações sensíveis

de objetos ausentes. As coisas inteligíveis são objetos para a Lógica, as coisas sensíveis

são objetos da ciência estética (epistemé aisthetiké). A partir disso, Moderno nos diz que

o princípio do terceiro excluído é inadequado para a teoria estética enquanto lei formal e

lógica do pensamento, a partir do que é possível reconhecer o princípio do terceiro

incluso como legítimo princípio de realidade da arte no seio da contradição estética.

Então, somente agora podemos clarificar um pouco mais o que pretendemos

pessoalmente fazer com base em Heidegger, pois essas considerações visam somente a

legitimar uma ciência entre outras a respeito de uma região do ente entre outras, visando

à legitimação dos objetos da estética face aos objetos da lógica, assim legitimando a

ciência estética face à ciência lógica.

E isso sem reconhecer que essa distinção entre objetos inteligíveis e objetos

sensíveis transita no interior do círculo da metafísica ao longo da história do ser sob a

determinação do velamento vigente da diferença entre ser e ente, que se destinou a

partir de Platão e Aristóteles e da instauração das disciplinas filosóficas como ciências

distintas a respeito de regiões distintas do ente, a saber, a ciência ética (epistemé ethiké),

a ciência física (epistemé physiké) e a ciência lógica (epistemé logiké).

Nós não pretendemos tratar da briga entre correntes de pensamento

diferenciadas pela fragmentação do mundo do saber empreendida pela destinação da

filosofia como metafísica do ser do ente em cada âmbito e delimitação específica de

76

circunscrição de regiões distintas dos entes como objetos de disciplinas escolares, que

se convertem em ciências teóricas sobre algo e, a partir de algo, querem determinar a

totalidade do ser e aprisionar o homem na escravidão do mero fazer da ciência como

império da técnica do pensar, que mata o pensamento em seu ser. Não nos importam

esta ou aquela espitemé, muito menos uma briga teórica entre cientistas, literatos,

críticos e acadêmicos, no seio da qual cada indivíduo humano só faz valer seu ego e

vaidade na calçada da fama universitária e publicitária, fazendo pela ciência e produção

acadêmicas a egocêntrica e existencial campanha publicitária de sua própria imagem.

No início citamos um trecho de Castoriadis que afirmava a precedência da

imaginação face à demonstração lógica; a precedência da criação da imaginação face à

operação da razão. O pensamento de Castoriadis é tal que se baseia de certo modo nas

descobertas da psicanálise, certa teoria da alma ou mente, certo discurso sobre a psyché,

uma psicologia ou ciência psicológica (espistemé psyché), ainda que não obedeça à

lógica dita conídica.

Castoriadis empreende seu projeto de considerar as sociedades como instituições

do imaginário dos povos e, nisso, o pensamento instituído pelos povos organizados em

sociedade. Não se perde de vista em tal empreitada o sentido histórico das sociedades, e

aproveita-se para ressaltar que o pensamento herdado manteve em separado a

consideração da sociedade e do histórico. Assim, ele quer nos fazer compreender o

sentido social-histórico do que é instituído no confronto com o que, socializando-se, se

configura como imaginação criadora instituinte, o imaginário radical da psyché no

conflito com as significações instituídas pelo imaginário social, no seio da confrontação

entre a heteronomia das sociedades e o projeto de autonomia do humano como

indivíduo.

O que se socializa é a psyché compreendida como fluxo representativo e impulso

de criar para si as significações de seu mundo próprio. No entanto, essa socialização é

traumática, porque compreende o choque da psyché com as significações instituídas

pelo mundo social-histórico. A interiorização dessas significações e a socialização do

indivíduo o alienam da sua capacidade criadora intimamente ligada com o projeto de

autonomia do humano no interior da heteronomia social.

77

Mas o projeto de autonomia pode ser reavivado na prática política democrática

através da constante deliberação que as sociedades livres processam no interior de uma

ardente pulsão coletiva produtora de críticas. Com isso, o imaginário radical instituinte

da psyché não é completamente recalcado no processo de socialização.

O que Castoriadis faz basicamente é recuperar em Aristóteles, no tratado sobre a

alma, o conceito de imaginação e renovar-lhe o sentido. Ele pretende sair do ciclo do

pensamento herdado da tradição filosófica da lógica conjuntista-identitária e da

ontologia unitária, vigente de Platão a Heidegger, retirando da ciência psicanalítica a

noção de psyché inconsciente, a noção de libido, formulando sua teoria da mônada

psíquica como fluxo representativo indeterminado de desejos e afetos, pretendendo

escavar na alma do humano uma nova região específica do ente em que se o determine

para fins de escapar da herança lógico-ontológica do ser como determinidade.

Junto a isso, em A Instituição Imaginária da Sociedade, empreende larga e

fulminante crítica do marxismo e apresenta seus conceitos renovadores e substanciais de

psyché e de sua inserção no mundo social-histórico. Em Complexidade, Magmas e

História, texto situado em Feito a ser feito - encruzilhadas do labirinto – V,

compreende o fenômeno da complexidade sob a transitoriedade do histórico presente

nas sociedades a partir da noção do ser como magma, cujo caráter magmático o

configura no modo do não conidizável, do não conjuntificável, escapando aos esquemas

sistemáticos da lógica conídica (conjuntista-identitária), pelo que reconhece o ser sob

certa dimensão poiética, ou seja, imaginária. O magmático se determina como tal na

criação e temporalidade na história; o ser sendo tempo e fora do horizonte do tempo.

Todavia, essa articulação de uma teoria psicanalítica sobre este ente, a alma

humana como psyché singular, e o social-histórico no seio da democracia e da política

como realização do homem enquanto habitante de uma pólis, uma coletividade, herança

do pensamento herdado pela cultura ocidental, ainda nos parece preso à preocupação

com a ciência do ser dos entes e da articulação entre as ciências sobre os entes

reduzidos à posição de meros objetos no processo científico, cujo processar-se reduz o

homem à ação operacional de conhecer os entes-objetos sob a sua autodeterminação na

forma do sujeito cognoscente, ainda que este tenha se reconhecido originariamente

como fluxo representativo capaz de criar ex nihilo novas formas, assim empreendendo a

78

emergência de novos estratos do ente e criando o novo no seio do fazer científico.

Enfim, epistemé psyché como determinação do ser humano tomado

individualmente pela psicanálise e epistemé politiké como determinação do ser humano

tomado coletiva e politicamente, embora saibamos do projeto de Castoriadis de fugir da

rigidez da determinação das teorias instituídas sobre as práticas instituintes.

Mas o que queremos colocar é que ninguém é capaz de fazer isso, mesmo o

discurso de Castoriadis é analítico, lógico-demonstrativo-argumentativo, prosaico como

todo discurso pós-socrático, para usar um termo nunca usado frente ao tão arcaico e

clássico termo pré-socrático. Talvez alguém tomado de um afeto tal e numa com-pulsão

do real que o arrebate além do tempo para a totalidade do que é, foi e será e cante como

um Oráculo a aurora do começo do mundo, do ser, do pensar e da linguagem, antes que

esta se torne teoria (epistemé logiké) e mero discurso apofântico (logos apophantikós),

um homem nascido numa sociedade arcaica rural que cante também os trabalhos e os

dias, que não tenha habitado uma polis e não conheça prática nem teoreticamente uma

epistemé politiké, tal como a que seu irmão empreendeu contra ele, Hesíodo, o qual só

pôde repreender-lhe à sua maneira, cantando os trabalhos e os dias.

E ainda, cada ciência sempre faz uma ontologia do ser dos entes específicos que

toma como seus objetos a fim de legitimá-los onticamente como fenômenos reais

existentes, assim legitimando seu discurso específico sobre o ser de um ente específico

no interior mesmo de sua instrumentalidade discursiva e das metodologias de

aplicabilidade de seu arcabouço conceitual e de seus termos técnicos no exercício e

vigor de sua operação.

Por exemplo, como vimos, a estética delimita seu campo de ação determinando

os objetos (entes) estéticos, fazendo-se uma ontologia ou metafísica da arte e assim

fundamentando uma espistemé aisthetiké, uma ciência estética; o mesmo processo vale

para as demais ciências.

Assim, delimitamos com clareza nossa pretensão e nosso objetivo no estudo de

pesquisa, já que não podemos escapar da estrutura acadêmica. Com base em Heidegger,

identificamos que não há discurso que tenha escapado à consumação da metafísica no

79

imperar da técnica.

Castoriadis pretende superar o ciclo do pensamento herdado da lógica

conjuntista-identitária e da ontologia unitária. Isso, porém, é assunto demasiado

complexo, e o que importa a nós é preparar o pensamento para apresentar a questão da

experiência mais originária com o pensar e o ser no seio da linguagem a partir do canto

de Hesíodo, a Teogonia.

Esta diz origem dos deuses e ao mesmo tempo é uma cosmogonia, isto é, uma

origem do universo; origem dos deuses quer dizer origem dos seres ou entes e origem

do ente múltiplo na totalidade, do ser-ente-total, em uma época anterior à filosofia,

mesmo à pré-socrática, anterior à historiografia atual, à polis democrática e à

experiência da divisão do logos, do ethos e da physis em disciplinas filosóficas distintas

no seio das escolas, como nos mostra Heidegger em pontos específicos de sua obra.

Ali em Hesíodo residia, porém, uma unidade dessas três dimensões em sentido

originário pleno: a physis como irrupção de emergência dos entes no seio do emergir do

ente múltiplo em sua totalidade, que vigora no canto das Musas; o logos como

enunciação das Musas, através do canto, no emergir atual da totalidade dos entes e

destes integrados no ser da emergência; o ethos como morada e comportamento humano

face ao emergir do ente múltiplo na totalidade como canto do aedo, que é ele próprio

tomado pela força de irrupção da realidade total em seu ser e em seu desvelar o ser dos

entes como presença dos deuses e da natureza, e nessa presença também está ali junto à

totalidade o destino humano na Terra.

Na origem do cosmos e dos deuses situou-se Hesíodo como veículo do canto

das Musas, que enunciava o princípio de toda a realidade na ação mesma do principiar

na presença dos seres como numes, entes numênicos por excelência, os seres em si

mesmos principiando-se e o ente múltiplo na totalidade vindo a ser e se fazendo

presença na articulação e equilíbrio entre os deuses, ordenando a ordem olímpica do

Cosmos sob o governo de Zeus.

Naquela experiência originária com a palavra e o ser não havia nada de

representação do ente no processo lógico-analítico do logos apophantikós da epistemé

80

logiké; o comportamento humano já se dava em meio à totalidade emergente em sua

harmonia presente sem re-presentar para si intelecções de princípios éticos em uma

epistemé ethiké; a natureza já estava ali presente em seu ser no canto do poeta sem que

se escravizasse como objeto a ser desvendado em suas leis fenomênicas para uma

consciência unitária, um ego cogito/ego sum, uma subjetividade transcendental que

calcula para si os entes físicos a fim de imperar sobre a natureza através da epsitemé

physiké.

Tudo era animado por psychai sem que houvesse uma teoria ou tratado De

Anima, uma epistemé psyché. Assim, deixamos a questão: pode o homem escapar do

isolamento da subjetividade ou do eu, o que inclui o eu-inconsciente da psicanálise e de

tudo que é analisado como objeto de uma epistemé theoretiké, ainda que se considere

pura práxis se fazendo na prática de seu próprio fazer, e da desolação da Terra no

império da técnica, que se consuma como acabamento perfeito da filosofia como

metafísica? Pode o homem escapar de sua redução cognitivista, de seu esgotamento no

trabalho e no modo do cálculo da vontade de querer, sem que deixe as Musas cantarem

a origem dos numes (seres-deuses) concomitantemente à origem do ente múltiplo na

totalidade, deixando a Terra ser e repousar em seu ser no resguardo que mantém todo

ente, tudo que é, no em-si-para-si enigmático do que se não mostra e, assim, permanece

no segredo e na vigência de sua própria verdade? Pode o homem contemporâneo, como

o velho Hesíodo, pastorear o ser, guardá-lo e protegê-lo com o escudo de Athená, a

sabedoria que nasce da cabeça de Zeus, a fim de que o ser mesmo vigore no âmbito da

verdade de si, não no da verdade do homem, de modo que o homem habite mais

propriamente a Terra e se avizinhe da clareira do ser, deixando-o vigorar como enigma

e cantando-o numa experiência primordial com a linguagem, a fim de poder habitar na

proximidade da origem na palavra poética e no canto?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAYER, Raymond. História da Estética. Ed. Estampa; Lisboa, 1995.

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de

Janeiro: Paz e Terra. 1982.

81

____________. Feito a ser feito: as encruzilhadas do labirinto V; tradução

Lílian do Valle. – Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

____________. Sobre o Político de Platão. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

INWOOD, Michael. Heidegger; coleção mestres do pensar. São Paulo: Edições

Loyola, 2004.

MACHADO, Marília Novais da Mata. (2002) Psicanálise e política no

pensamento de Cornelius Castoriadis. Psicologia Política, 2(4), 297-304.

MODERNO, João Ricardo. Estética da Contradição – Rio de Janeiro: Atlântica

Editora, 1997.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências; tradução de Emanuel Carneiro

Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes,

2001.

_____________. Os conceitos fundamentais da metafísica; mundo, finitude,

solidão; tradução Marco Antônio Casanova. – Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2003.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses; estudo e tradução de Jaa Torrano.

São Paulo: Iluminuras, 2007.

ADENDO: O SENTIDO EXISTENCIAL DO MITO

Ao lermos o trabalho “o lugar do mito de Er em A República” da professora

Izabela Bocayuva, bem como os outros trabalhos sobre a anamnese, um elemento

fundamental nos mitos de Platão, nos sentimos inspirados para uma idéia do sentido

existencial da linguagem mítica em geral.

82

Entendemos o mito como linguagem, discurso, enunciação (logos) em que o ser

aparece num modo de relação e co-pertinência com o homem que lhe permite

vislumbrar a experiência do haver mundo e do espanto com a percepção da totalidade a

partir de uma inspiração poética da própria linguagem originária do ser.

Na introdução de Os mitos platônicos, Geneviève Droz nos coloca diante da

oposição entre a narrativa mítica, o mythos, e a racionalidade filosófica, o logos, e

aponta para a exclusão da narrativa ficcional do mito quando se trata de procurar a razão

ou o fundamento de ser dos entes, ou do que é em geral.

No entanto, a verdade é reconhecida ali como não limitada ao discurso racional,

ao logismós, que, segundo Izabela Bocayuva, é o que permite ao homem ser capaz de

ascender da multiplicidade de sensações (parecer ser) à unidade inteligível da idéia

(ser). Essa operação do logismós é ali definida como “pensamento articulado que

calcula, que cuida da medida”41

, ou seja, a racionalidade do discurso filosófico.

Segundo Geneviève Droz, Platão reconhece essa ambigüidade entre mythos e

logos e, embora procure demonstrar suas teses por argumentos racionais mediante a

dialética, incrementa seu pensamento com a linguagem do mito. Particularmente

pensamos que isso se deva à limitação mesma da linguagem e do homem em face do

enigma do sentido do ser, do espanto sempre vigente com o haver mundo, ente,

totalidade, multiplicidade, cores, formas, entes sensíveis, entes inteligíveis,

sensibilidade, intelecção etc.

Geneviève chama nossa atenção para a diferença que o uso do mito por Platão

resguarda diante dos poetas da tradição grega, tão criticados pelo próprio Platão, a

saber, Homero, Hesíodo, os poetas trágicos e os órficos. Mas nós talvez escapemos um

pouco do tema restrito aos mitos em Platão para evocar o caráter poético da linguagem e

do ser e a dimensão originária da linguagem mítica como experiência primordial com o

sentido da realidade, tendo como matéria o poema Teogonia de Hesíodo.

Ademais, essa idéia pode ser extraída do estudo da própria temática do lugar dos

mitos na obra de Platão, e é o que fazemos, já que o mito é ali um modo da linguagem

41

“Um estudo do mito da anamnese no diálogo Fedro”, p. 5.

83

capaz de dar sentido ao real, bem lá onde o raciocínio demonstrativo encontra seus

limites de significação e instauração de sentido de realidade.

Então, adentremos o assunto. O mito de Er é analisado em sua relação com a

problemática de A República, a questão do ser e do parecer ser, do que é realmente e do

que aparenta ser sem o ser realmente. Quanto ao justo e ao belo, até se admite o parecer

ser, mas isso não vale para o bem.

Quanto ao bem, somente o ser em sua verdade, a verdade de ser, tem seu valor e

sentido de realidade. Além disso, é só sob a perspectiva existencial do bem que cada

qual escolhe como vida eterna figurada na imortalidade da alma, sendo a eternidade a

escolha que fazemos aqui e agora nesta vida para nossa existência, como dizíamos, é só

sob a iluminação do bem que o existir humano escolhe a felicidade, a plenitude do ser,

seja na justiça, seja na beleza. Nisso reside a imbricação entre a ontologia do ser e do

parecer ser com a discussão ético-política de formação de caráter do guardião

(cidadão?) capaz de governar a cidade com justiça.

A escolha da vida futura é feita com base na vida anterior e envolve o estado de

serenidade em face da morte e da vida. No Livro I de A República, Céfalo põe a questão

do ser sereno na vida diante da morte, e isso desencadeia a discussão sobre o ser e

parecer ser, a ontologia, tendo em vista o ser justo ou parecer justo sem o ser. O mito de

Er, após demonstração racional da imortalidade da alma, conclui A República colocando

a questão da serenidade na morte diante da vida.

Ora, sereno em tais situações, a nosso ver, somente pode ser aquele que escolheu

(e escolhe agora e sempre a todo instante de seu viver) o ser (justo), não se perdendo na

ilusão de uma existência inautêntica aprisionada às correntes do parecer ser das opiniões

correntes e corriqueiras. Daí o sentido existencial desse mito para nós: o sentido da

experiência do advento do ser ao homem e da escolha que o homem faz em face de tal

advento; se escolhe a aparência de ser ou a verdade de ser, ou melhor, se escolhe um

aparecer do ser em si mesmo nas ações de sua vida sem velamentos de conduta, visto

que verdade é o manifestar-se que desvela o que é, ou se escolhe viver sob o véu das

ações que fazem aparecer aos outros uma manifestação exterior ou sensível não

correspondente ao que é verdadeiramente, sob o véu do invisível, no interior da

realidade perfeita e imutável que é a pura inteligibilidade de ser, a idéia, a justiça em si,

84

o belo em si, a sabedoria, a coragem e a temperança na alma, elevando-a ao sumo bem e

à verdadeira e suprema felicidade (eudaimonia).

E essa escolha envolve o ethos do homem porque quanto ao bem só vale o ser, e

quem escolhe o ser contempla o bem e é feliz em tal contemplação. Assim, pode ser

também mais verdadeiro quanto à justiça no trato com negócios públicos, a política, e

quanto à beleza no trato com coisas respeitantes à sensibilidade humana, a aisthésis.

Nesse sentido as dimensões estética, política e ética estão em perfeita comunhão umas

com as outras e com a chamada ontologia do ser e do parecer ser.

Essa existência bela, boa, justa, verdadeira, autêntica e corajosa quanto a ser,

também está vinculada ao comportamento do homem em face da totalidade do que é. O

modo desse comportamento e dessa relação de co-pertinência ou de impertinência em

face da totalidade do ser determinará também todo fazer, representar e circunstanciar a

si mesmo do homem no mundo, o modo como o homem é no mundo, e como o mundo

é para o homem.

A relação do homem com o ser e a verdade de ser, com o sentido de ser, tudo

está em jogo na aventura perigosa da linguagem e da doação de sentido à realidade.

Essa aventura, esse perigo, é o advento do ser e do mundo ao homem, determinando o

ser do homem em face do ser em geral e o ser-no-mundo do homem na totalidade do

mundo somente enquanto esta é circunstanciada para prover a necessidade existencial

do homem.

Por isso o perigo dessa brincadeira ou aventura. Porque depois de iniciada não

cessa de desdobrar-se em seus modos complexos de configurar-se e instalar-se

fenomenicamente como instância de realidade, pois se a aventura se perde no parecer

ser e no domínio do pensamento que calcula e estabelece medidas (o lógismós) para

esse parecer, a pura realidade fenomênica enquanto tal (a natureza), na medida em que

esse cálculo que estabelece medidas se torna uma desmesura impulsiva, então o homem

carece do sentido existencial que a linguagem do mito conferia àquelas civilizações que

não passaram pelo advento da filosofia.

E ainda que Platão esteja nesse e represente esse início da filosofia como

metafísica, preservando, embora em outro sentido que o dos poetas, a linguagem poética

85

do mito, um sentido poético para a existência humana em geral já não é mais possível, e

uma experiência originária com a totalidade dos entes (deuses, homens, natureza, céu,

terra...), como a do poema Teogonia de Hesíodo, já se encaminha para o completo

esquecimento em meio ao barulho do mundo construído pela linguagem técnica do

pensamento calculador, argumentativo, racionalmente demonstrativo, que hoje vige

como forma do enunciar veritativo da ciência oficial acadêmica.

Em meio ao barulho das teses, discussões e opiniões fantasiadas de um parecer

ser epistêmico, não há ouvidos para a bela voz de uma fala cantante que exprime

simplesmente o ser e nem sequer tem em conta uma problemática tal como a diferença

entre ser e parecer ser, entre inteligível e sensível, ser e ente.

Desse modo, o mundo cunhado pela divisão e especialização formal, técnica e

sistematizada do saber em regiões distintas e delimitadas de entes a se tornarem objetos

de uma ciência específica e disciplinar, o mundo cunhado por regras e parâmetros

metodológicos calculados, medidos e legislados pela Razão de uma subjetividade

transcendental, o mundo que re-presenta o ser do ente na forma do juízo e da verdade no

sentido de adequação e certeza, o mundo que reduz o sentido de ser à formalidade de

argumentos e evidências lógicas, análises de estrutura formal de discurso, aplicação de

métodos e subsunção do ser do real à forma do ser proveniente do fazer a si mesmo da

análise lógica e do cálculo proposicional, esse mundo perde todo seu sentido na

ausência de sentido de ser. Esse mundo, o nosso mundo hodierno, é um sem sentido de

mundo, uma vez que já perdeu de vista o sentido do ser e se tornou surdo de espírito

para auscultar o logos do sentido originariamente poético da linguagem.

No final do texto “O lugar do mito de Er em A República”, Izabela Bocayuva

nos diz que as almas se esquecem de algo atado a elas por necessidade, a saber, a

simplicidade de ser. Esse esquecimento restringe as almas ao plano das misturas de ser e

não ser, este plano sensível em que as coisas precisam ser discernidas e calculadas,

postas cada qual em seu lugar e regradas pela razão justamente porque este plano é

ilusório quanto à verdade de ser.

É o plano do conflito entre o ser e o parecer ser, condição em que devemos

escolher um ou outro, tendo em vista que quanto ao bem só vale o ser, e que na

contemplação do bem a experiência da justiça e da beleza são autênticas. É também o

86

plano da confusão ocasionada no pensamento pela diferença entre ser e ente, cujo

destino histórico se desdobra como o evolver da metafísica até sua consumação no

completo esquecimento de ser e na dominação técnica da ciência, na qual o homem se

perde em seu fazer e representar sobre a natureza, perdendo-se em meio ao ente e em

meio a uma dominação incondicional sobre todos os entes por meio de sua objetivação

em setores de aplicação de atividade técnica de produção e reprodução de objetos de

consumo, comércio, troca, venda, oferta e procura, fruição e deleite, entretenimento e

demais sentidos niilistas de viver e existir do homem hodierno, sem tempo e espírito

para se espantar com reverência e gratidão pelo simples fato de que há mundo (cosmos).

Em meio a isso, não se acredita nem mais em natureza ou deuses, mas em

criação humana de suas condições, o que só atesta a desmesura da dominação humana

sobre tudo que é e mostra o ethos atual do homem frente à totalidade, sua impertinência

na relação com o advento do ser na enunciação (logos).

Assim como os sofistas escolhem o parecer ser, os técnicos do saber e cientistas

acadêmicos se perdem em meio ao ente [simplesmente dado] e ao prosaísmo das

opiniões epistêmicas, da doxa erudita e oficialmente científica. Do mesmo modo, assim

como o filósofo escolhe o ser e contempla o bem, realizando o máximo de experiência

existencial de que a vida humana é capaz, o poeta canta o ser e experimenta uma relação

harmônica com o ente e a enunciação do que é, pois ele canta as origens da totalidade

do Kosmos exatamente como as Musas lhe inspiram a cantar conforme a melodia e o

ritmo em que a totalidade do que é veio a ser.

Portanto o sentido existencial do mito traz consigo também o sentido mítico da

linguagem do ser, cuja experiência é dada como poesia e canto da aurora da totalidade

do que é para aquele que está tomado pelo espanto de haver realidade, natureza,

universo, ente. Sobre a escolha entre o ser e o parecer ser como serenidade em face da

vida e da morte, seja que tipo de existência cada qual escolhe para si diante da vida e da

morte, indicamos a título de reflexão o pensamento do Eterno Retorno de Nietzsche,

precisamente o aforismo 341 de A Gaia Ciência intitulado O peso mais pesado, bem

como os aforismos 25 e 27 do texto O Eterno Retorno de 1881.

87

A ANAMNESE E A VERDADE COMO NÃO-ESQUECIMENTO

Em vista da fundamental importância da ananmnese nos mitos platônicos,

faremos uma relação deste conceito com o conceito de verdade no sentido de alétheia.

Esta palavra grega assume para nós, sob influência de Heidegger, o sentido de

desencobrimento, desvelamento, ação da tirada do véu que oculta o ser, mas que, na

medida em que o desvela, vela o ser e mostra o ente no movimento de retração próprio

do ser em que este se mantém em seu resguardo puro e simples. O ser ao mostrar-se em

sua verdade aparece, pois, como o ser do ente, ou o ser do aparecer (fenômeno) do

parecer ser. Seria, então, a verdade de ser o fenômeno de parecer ser?

Não temos resposta para esta pergunta, mas sabemos que o aparecer do parecer

ser só tem o seu sentido enquanto mantém uma relação de co-pertinência mútua com o

ser, ambos em uma unidade fragmentada de realidade, mas que, na conexão dos

fragmentos, reuni-os harmoniosamente no seio da totalidade que através deles é

percebida, primeiro como multiplicidade de particulares sensíveis e, depois, como

unidade no mesmo, este apenas vislumbrado pelo pensamento como princípio de

realidade no plano da pura inteligibilidade do real.

Pensamos concordar com o texto “O mito da anamnesis no diálogo Mênon” de

Izabela Bocayuva. Não querendo entrar nos detalhes da problemática gnosiológica do

diálogo entre Mênon e Sócrates, queremos trazer à tona a noção de physis sygennes para

o entendimento da anamnese, rememoração, recordação ou não-esquecimento (alétheia)

do ser, assim vislumbrando um sentido de verdade do ser não limitado à noção de

adequação entre intelecto e coisa exprimida na estrutura formal judicativa.

Portanto não cabe aqui pensar a verdade como dominação do sujeito (intelecto)

sobre a realidade do real como coisa, dominação sobre o ser do ente, como

representação e objeto de conhecimento e estabelecimento de leis e padrões do

fenômeno do conhecer hodierno e do que é hodiernamente conhecido. Trata-se de uma

experiência originária com a palavra (logos), que se exprime em figuras de linguagem e

atesta o alcance do sentido de realidade permitido pela linguagem mítico-poética.

Physis sygennes é uma expressão que designa a totalidade ou unidade do que

nasce com, a unidade de um mesmo nascimento do que é oposto como presente e

88

ausente no manifestar-se do real. Isso é também uma experiência de conhecimento que

a alma experimenta pela anamnese. E não nos furtamos em dizer que essa unidade ou

totalidade de physis sygennes se aplica ao ser e parecer ser e às demais oposições

complementares.

A alma aprendeu tanto o que é na Terra como no Hades, tanto na vida no corpo

como na morte do corpo que é a vida da alma; aqui a unidade de vida e morte é

vislumbrada com o problema da alma dos mortais como sendo imortal. Assim, physis

sygennes também se aplica a mortal e imortal, morte e vida, parecer ser e ser, homem e

deus, corpo e alma.

Essa anamnese ou recordação, esse não-esquecimnento não deixa de ser uma

alétheia, um desencobrimento que preserva junto a si na totalidade do surgimento o

encobrimento do que é (presença), o ser. Assim, a emergência do parecer ser implica a

do ser, o emergir do presente se dá junto ao emergir do ausente no ser (presença) da

ausência.

A mesma brincadeira se aplica a vida e morte, modernamente falando a orgânico

e inorgânico, do que podemos perceber que em qualquer presença do ente se presenta o

seu contrário como presença da ausência, de modo que se a natureza é concebida, em

sua totalidade, como morta, o movimento dos ciclos de estações, os planetas, os

sistemas solares, o universo, as matérias e os fenômenos todos nele classificados pelo

homem como orgânicos ou inorgânicos, com vida ou sem vida, aparecem como

natureza viva, natureza em sua totalidade no movimento de nascer e morrer, de gerar e

corromper (gênesis/phtorá).

Assim, como os modernos pensam, os fenômenos naturais revelavam aos gregos

a presença dos deuses. E estes, mais que os homens, são a vitalidade da natureza. A

natureza vela e desvela a presença (visibilidade) do invisível (inteligível). E é claro que

os olhos que captam tal realidade são os olhos da alma, na verdade um olho só, o

intelecto que, liberto do corpo e do sensível, contempla o ser e aspira ao bem em suas

ações, em sua vida, em sua existência.

E já que no texto em questão se fala do aprender e ensinar como experiência

comum pela rememoração, será que aos homens de hoje não caberia uma experiência

89

comum de não-esquecimento (verdade) do ser a partir da consideração da vitalidade e

divindade da natureza? Será que em meio ao esquecimento do esquecimento do ser não

caberia à humanidade globalizada pela técno-ciência uma experiência comum de

aprendizado-ensinamento, de modo que se instalasse um novo ethos humano menos

destrutivo e fragmentado, menos dilacerado pelo domínio da informação, da multimídia,

do consumo e da tecnologia?

E se a diferença é aqui pensada como unidade cindida em si mesma por

necessidade, como se lê na nota número dois do texto em questão, então não existe essa

mesma necessidade unitária entre a diferença entre mythos e logos, entre poesia e

filosofia, figura de linguagem e conceito? O que a Ciência, ou os seus representantes, os

cientistas especialistas, tem a dizer sobre o mundo construído pelo rigor da

experimentação e da regulamentação das leis objetivas da realidade enquanto fenômeno

para a capacidade representadora e formadora de juízos, a subjetividade transcendental?

Aqui nos vem à memória um texto chamado Sobre verdade e mentira no sentido extra-

moral de Nietzsche. Talvez este texto seja pertinente para essa reflexão.

No entanto precisamos concluir com uma breve indicação sobre a Teogonia de

Hesíodo como enunciação (logos) da realidade pura e simples em seu fenômeno

originário de surgimento. Numa época em que o logos não era a lógica, o logos do

mythos, o enunciar do acontecimento narrado e cantado do nascimento do mundo e do

ser total conforme ao ritmo e à melodia do próprio fenômeno originário do acontecer

nos foi legado pela herança cultural do ocidente, em um momento em que o enunciar

não era uma ação de dominar em cálculos o que dança segundo seu próprio tempo e

necessidade, a natureza, o universo, hoje mutilados pela vivissecção empreendida pelos

telescópios e microscópios, pelas naves espaciais e pelos antibióticos, pelo vai e vem

sem sentido do nosso cotidiano alimentado por esse negócio do uso e abuso dos entes na

era do consumo.

Concluindo nosso trabalho, não nos esqueçamos que precisamos rememorar, isto

é, estarmos dispostos a aprender, despojando-nos de nossos conteúdos informativos,

hoje abusivos no império da técnica e da difusão de informações em massa pelas

telecomunicações, a fim de que possamos participar da comum-unidade do diverso que

se origina do mesmo, universo. Não esqueçamos a physis como nascer simultâneo do

aparente e do inaparente, do sim e do não de nossas escolhas e de nosso ethos, pois o

90

canto do principiar do Kósmos foi concedido a Hesíodo pela Memória (Mnemosyne)

através das palavras cantadas (Musas)42

.

42

Hesíodo. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2007. (p.16).

91