1 - COSTA, F. Breve Ensaio Sobre o Humano - As Diferentes Maneiras de Sermos o Que Somos _UFBA

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Breve ensaio sobre o humano: as diferentes maneiras de sermos o que somos Fábio Costa 1 1. Antecedentes etimológicos e mitológicos Iniciaremos nossa jornada pela origem do ser humano, ou melhor, da palavra que o nomeia, já que a origem do próprio homem é motivo de grande controvérsia entre as diferentes formas de pensamento. Por hora, nos basta saber que a palavra “humano”, que define tudo aquilo que proporciona e resulta do homem, é uma junção de HOMO (homem, em latim) e HÚMUS (matéria orgânica degradada, que compõe a terra, o barro, a lama). Não por acaso, algumas mitologias, como a grega, a judaico-cristã e a ioruba, atribuem a esse elemento a origem do homem, como um ser moldado, modelado ou construído, seja das mãos de Zeus, de Jeová ou de Oxalá. No caso deste último, foi Nanã, a mais velha dos orixás, quem lhe deu a lama para o homem fosse feito. Assim como na mitologia bíblica (judaico-cristã), onde fomos moldados do barro e a ele retornaremos (desfeitos em pó), para os gregos antigos, foi também desse elemento que Zeus criou os primeiros homens, destruindo-os sucessivamente por achá- los imperfeitos. Só quando o titã Prometeu, tio de Zeus, interviu e deu aos homens o fogo roubado da morada dos deuses – para que se defendessem do mau humor de seu criador –, foi que nossa espécie pôde sobreviver, espalhando-se então sobre a superfície do planeta. Incompleto, imperfeito, mas portador da “centelha divina”, o ser humano se pôs a vagar pela terra, em busca de sobrevivência. Voltando à mitologia bíblica, sua expulsão do Jardim do Éden foi motivada por algo que se iguala a esse “fogo dos deuses”, embora tenha sido chamada de “fruto do conhecimento” ou “fruto proibido”, numa infração estimulada por um “anjo caído” chamado Lúcifer, que significa “portador da luz”. No entanto, antes mesmo dessa infração, assim que foi criado “à imagem e semelhança” de seu criador, o ser humano foi designado para nomear e governar as demais criaturas: daí para provar do tal “fruto proibido” foi um passo pequeno, mas muito significativo. Para nossa investigação, mais relevante que a importância do “cargo” que lhe foi conferido (o de nomeador da criação) é o fato do 1 Psicólogo e Professor, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas.

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Breve ensaio sobre o humano: as diferentes maneiras de sermos o que somos

Fábio Costa1

1. Antecedentes etimológicos e mitológicos

Iniciaremos nossa jornada pela origem do ser humano, ou melhor, da palavra que o

nomeia, já que a origem do próprio homem é motivo de grande controvérsia entre as

diferentes formas de pensamento. Por hora, nos basta saber que a palavra “humano”,

que define tudo aquilo que proporciona e resulta do homem, é uma junção de HOMO

(homem, em latim) e HÚMUS (matéria orgânica degradada, que compõe a terra, o

barro, a lama). Não por acaso, algumas mitologias, como a grega, a judaico-cristã e a

ioruba, atribuem a esse elemento a origem do homem, como um ser moldado, modelado

ou construído, seja das mãos de Zeus, de Jeová ou de Oxalá. No caso deste último, foi

Nanã, a mais velha dos orixás, quem lhe deu a lama para o homem fosse feito.

Assim como na mitologia bíblica (judaico-cristã), onde fomos moldados do

barro e a ele retornaremos (desfeitos em pó), para os gregos antigos, foi também desse

elemento que Zeus criou os primeiros homens, destruindo-os sucessivamente por achá-

los imperfeitos. Só quando o titã Prometeu, tio de Zeus, interviu e deu aos homens o

fogo roubado da morada dos deuses – para que se defendessem do mau humor de seu

criador –, foi que nossa espécie pôde sobreviver, espalhando-se então sobre a superfície

do planeta.

Incompleto, imperfeito, mas portador da “centelha divina”, o ser humano se pôs

a vagar pela terra, em busca de sobrevivência. Voltando à mitologia bíblica, sua

expulsão do Jardim do Éden foi motivada por algo que se iguala a esse “fogo dos

deuses”, embora tenha sido chamada de “fruto do conhecimento” ou “fruto proibido”,

numa infração estimulada por um “anjo caído” chamado Lúcifer, que significa

“portador da luz”. No entanto, antes mesmo dessa infração, assim que foi criado “à

imagem e semelhança” de seu criador, o ser humano foi designado para nomear e

governar as demais criaturas: daí para provar do tal “fruto proibido” foi um passo

pequeno, mas muito significativo. Para nossa investigação, mais relevante que a

importância do “cargo” que lhe foi conferido (o de nomeador da criação) é o fato do

1 Psicólogo e Professor, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas.

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humano ser portador do mesmo princípio criador da divindade: a palavra. Afinal, no

princípio era o Verbo...

Se fizemos bom uso do presente de Prometeu ou das qualidades do “fruto do

conhecimento” é uma pergunta difícil de responder. O fato é que desde sua origem

remota, o homem necessita desse “fogo”, desse “fruto”, ou dessa “luz” para guiar-se na

escuridão de sua existência, cuja meta, muitas vezes, parece ser descobrir a si próprio,

encontrar a si mesmo. Expulso do paraíso, onde era uma criatura entre as criaturas, uma

besta entre as bestas – ainda que dotado da palavra nomeadora –, vê-se obrigado a

“ganhar o pão com o suor do próprio rosto”, ou seja, a trabalhar. E é nessa condição de

sobrevivência que o ser humano passa não a procurar, mas a construir a si próprio, por

meio das modificações que impõe a seu meio para obter o sustento e manter-se vivo.

Seja enquanto ser mítico ou científico, expulso do Éden ou no ápice da “escala

evolutiva” de Darwin, o ser humano se destaca por ser aquele com maior capacidade de

adaptação, intervenção e transformação das características de seu entorno e de si

mesmo, equiparando-se, dessa forma, a seus criadores míticos. É como se, ao tempo em

que modificamos nosso ambiente, víssemos remodelar-se o barro do qual somos feitos,

numa transformação mútua, sucessiva e interminável. Um dos fatores que mais

influenciam nessa capacidade de transformação é o fato de, enquanto indivíduos de uma

espécie, nascermos relativamente “prematuros”. Nas palavras do mitologista Joseph

Campbell,

Já é ponto pacífico na biologia observar que o homem, em seu caráter animal, nasce pelo menos um ano antes da hora, completando na esfera da sociedade um desenvolvimento que outras espécies realizam dentro do útero. Tem-se observado que nossa falta de pelos é uma característica fetal, que nossas numerosas dificuldades psicológicas são resultantes da prematuridade de nosso nascimento (...). Entretanto, uma visão mais generosa reconhece na falta de pelos da nossa espécie a relevância da pele como órgão sensitivo e o realce de partes do corpo em focos de interesse óptico. Porque, no homem, os nervos sensoriais que percorrem a coluna são muito mais numerosos do que em qualquer das espécies peludas e a extensão e sutileza de estímulos sinais proporcionados, não apenas pela nossa nudez, mas também pelas nossas várias maneiras de cobri-la e descobri-la, provocam reações de uma diversidade muito maior que as do mero apetite e consumação animais. (...) A mutação, pode-se dizer, não foi negativa, mas positiva e a longa gestação, indo além da capacidade do útero da mãe para suportá-la, foi a consequência de um grande progresso2.

2 CAMPBELL, 2011, p. 44-45.

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Constituída de indivíduos que nascem “prematuramente”, nossa espécie é a que

menos possui atributos físicos para um meio específico ou para defesa própria.

Enquanto os outros animais possuem garras, presas, pelos, nadadeiras, asas, chifres,

substâncias tóxicas, cascos etc., nós trocamos grande parte desse aparato pela postura

bípede, polegares opositores (e seu sofisticado movimento de pinça) e um cérebro três

vezes maior que o de nosso ancestral mais próximo, sendo este órgão o principal

responsável por grande parte das aptidões que nos emanciparam da pura animalidade

instintiva.

Num trajeto progressivo que vai da célula procariota à eucariota, dos seres

aquáticos aos anfíbios, dos quadrúpedes aos bípedes, dos répteis aos mamíferos, o

organismo denominado “humano” se despiu lenta e gradualmente de diversas

qualidades animais e instintivas e se tornou, com isso, paradoxalmente, mais frágil e

mais forte: ao passo em que se fragiliza com a perda dos atributos naturais de defesa e

sobrevivência, torna-se poderoso ao suplantar essa fraqueza com aquilo que resulta de

sua ação e reflexão sobre os recursos materiais que o cercam, criando armas,

ferramentas e outros instrumentos. Dessa forma, não apenas supera sua fragilidade

física, mas interfere na natureza e transforma as próprias condições materiais de sua

existência.

2. Cultura: uma natureza humana?

Independente de ter sua origem contada de forma mítica ou científica, em algum

momento de sua trajetória rumo ao que é hoje (e ao que será no futuro), o ser humano se

dissociou das demais espécies animais e deu uma espécie de “salto qualitativo”.

Obviamente, esse salto não foi dado de uma hora pra outra, mas por uma sucessão de

pequenos e significativos passos (tal qual o que o levou a comer o tal fruto do

conhecimento). Publicado em 1859, “A Evolução das Espécies”, do naturalista inglês

Charles Darwin, afirma que as espécies surgem e são extintas ou se transformam ao

longo do tempo, buscando modificações adaptativas que assegurem a sobrevivência dos

indivíduos e da espécie. Como parte da natureza, o homem estaria submetido às mesmas

regras e necessidades adaptativas: no entanto, com nossa espécie, alguma coisa

diferente se processa.

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Grosso modo, a função de todo organismo vivo é perpetuar a própria vida. A

missão de cada indivíduo é manter-se vivo e assegurar a sobrevivência da espécie,

não necessariamente nessa ordem. Em princípio, o indivíduo é apenas um portador do

filamento, da herança genética de sua espécie, cabendo-lhe passá-la adiante por meio da

reprodução. Além disso, deverá manter-se vivo o máximo de tempo, de modo a

assegurar a biomassa da própria espécie. Obviamente, a escassez de alimentos pode

levar indivíduos de uma mesma espécie a brigarem entre si: nesse caso, a sobrevivência

do indivíduo mais forte corresponde à necessidade da espécie de que o mais apto

prevaleça e que transmita seus genes para a geração seguinte, fortalecendo-a.

Não foram poucos os que transpuseram a teoria de Darwin para o meio humano,

como se fôssemos um simples prolongamento da natureza selvagem. Em verdade, muito

de nosso sistema econômico e social, bem como de nossos valores e costumes, parece

refletir uma lógica do mais forte ou mais apto, com uma resultante direta de imperativos

de origem animal. Entre os chamados “darwinistas sociais”, um dos mais destacados foi

Francis Galton3, um primo de Darwin, que propôs uma teoria denominada “eugenia”,

defendendo a eliminação de genes fracos ou defeituosos dos seres humanos e a

transmissão de genes mais aprimorados para as gerações futuras. Por essa visão, a

mestiçagem, por exemplo, seria uma degradação da pureza racial, tomada como critério

não de definição, mas de valoração do humano. Podemos ver reflexos eugenistas nas

ideias do nazismo, por exemplo, quando o povo alemão julgou ser uma raça superior,

que tinha como missão assegurar o futuro da humanidade por meio da perpetuação de

seus genes e do extermínio de outros povos.

Mas isso foge às ideias do próprio Darwin, que jamais sugeriu coisa semelhante

em sua obra, tendo mesmo evitado aprofundar a noção evolucionista na espécie

humana. O que Darwin afirmou foi que decorremos de um salto qualitativo dado por um

primata – o mesmo do qual adveio o chimpanzé, a espécie animal mais próxima do

humano. Curiosamente, este salto qualitativo foi responsável pela gradual fragilização

física de nossa espécie, ao passo em que aumentou nossa aptidão para instrumentalizar a

natureza e dela nos servirmos. Não nos esqueçamos que, pelo princípio evolucionista,

aquele que sobrevive não é necessariamente o mais forte, e sim o mais apto.

A diferença entre o ser humano e os outros animais parte de sua base biológica e

se intensifica numa aptidão exclusiva de nossa espécie – a mesma que proporciona que 3 Galton é também o pai da Psicometria e um dos precursores dos testes de aferição da inteligência.

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esse texto tenha sido escrito e que você o esteja lendo. Antes de falarmos dessa aptidão,

no entanto, convém especificar algumas necessidades comuns à maior parte dos

mamíferos e que se relacionam justamente com nosso organismo biológico e suas

necessidades primárias. São elas:

• Respiração

• Hidratação / nutrição

• Excreção

• Defesa / proteção

• Descanso

• Cópula / reprodução

O fato de amamentar seus filhotes faz dos mamíferos seres mais relacionais que

répteis, anfíbios e insetos. Mesmo as aves, que dedicam certo tempo ao cuidado de seus

filhotes após o nascimento, perdem para os mamíferos no quesito social. Mas nenhum

animal se compara à espécie humana nessa necessidade e vocação, resultante de sua

prolongada fragilidade enquanto filhote – o que também prolonga bastante sua gestação

extrauterina. No entanto, como disse Joseph Campbell, isso nos habilita a desenvolver

aptidões exclusivas, transformando a fraqueza em força.

Se no organismo dos outros animais o registro genético determina uma ação

constitutiva dos instintos, que promovem a maturação involuntária do indivíduo em

direção às características fenotípicas e fisiológicas de sua espécie, entre os seres

humanos, essa “maturação” depende tanto de seu regulamento endógeno quanto dos

estímulos exógenos, o que torna nossa espécie infinitamente mais variada.

Um dos exemplos das infinitas possibilidades da espécie humana são os casos

registrados de “crianças selvagens”, ou seja, crianças que passaram seus primeiros anos

de vida privadas do contato humano ou que tiveram animais como “socializadores”

primários: Victor de Aveyron e Kasper Hauser, na França; Amala e Kamala, na Índia; e

mais recentemente, Genie, nos EUA, e Oxana Malaya, na Ucrânia, atestam, por um

lado, a imensa plasticidade de nossa espécie e, por outro, a imprescindível presença de

outro ser humano para que também nos tornemos humanos. A humanidade é uma

vocação humana que só pode ser acionada pelo próprio humano – como o barro mítico

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do qual fomos feitos, agora modelado por mãos humanas, que nos fazem à sua imagem

e semelhança.

Ao nascer, o ser humano possui algumas características bastante singulares: da

pouca quantidade de pelos à ausência de dentes, passando pelas imprecisões motoras e

posturais, a característica mais marcante desse “embrião imaturo” é o fato de sua caixa

craniana, recipiente de seu órgão mais precioso, encontrar-se parcialmente aberta, o que

lhe possibilita um crescimento considerável nos primeiros 12 meses de vida.

Popularmente chamada de “moleira”, essas duas aberturas, principalmente a frontal (ou

anterior), proporcionam a este cérebro imaturo aumentar seu tamanho em mais de 100%

nesse período, alcançando a metade do tamanho de sua versão adulta. Como um “teto

solar” que ilumina nossa “massa cinzenta”, estas aberturas são um dos indícios físicos

do quanto chegamos dispostos para influências do meio em que nascemos.

É indiscutível que, por causa da prematuridade de nosso nascimento, não temos tantas reações estereotipadas do tipo “chave-fechadura” quanto os outros vertebrados e que, possuindo consequentemente uma estrutura de reflexos mais aberta do que eles, somos menos rigidamente padronizados em nosso instintos, menos conservadores, confiáveis e seguros do que os animais. Mas, por outro lado, temos esse cérebro desenvolvido, três vezes maior em tamanho que o de seu mais próximo rival e que nos deu, não apenas novos conhecimentos (inclusive o da inevitabilidade de nossa própria morte), mas também a capacidade para controlar e até mesmo inibir nossas reações4.

Tais condições para humanização apontam para algumas necessidades

distintivas do ser humano, ainda que, em alguma escala, compartilhadas com parte dos

outros animais. São elas:

• Afeto / relação

• Ludicidade

• Prazer

Já vimos que os mamíferos desenvolvem laços diferenciados, proporcionados

pela própria amamentação: no entanto, mesmo entre outros primatas, nossos parentes

mais próximos, as relações afetivas não constituem condição para o ingresso nas

características distintivas da espécie, como se dá com os humanos. Da mesma forma, a

4 CAMPBELL, 2011, p. 45.

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dimensão lúdica e a do prazer alcançam em nossa espécie uma expressão incomparável,

aí incluída a necessidade de brincadeiras e jogos e de manter relações sexuais sem o fim

reprodutivo.

No entanto, como já mencionado, aquilo que de fato define a condição humana é

um atributo exclusivo da nossa espécie. Ainda que entre outros animais haja

mecanismos de comunicação (a própria genética seria um sistema informacional entre

gerações) por meio de sons e movimentos (como entre os golfinhos ou aves em bando)

ou mesmo por emissão química (como entre as formigas, o que lhes garante manter a

fila em ordem), o ser humano é o único capaz de registrar e difundir suas experiências

para além dos objetivos imediatos impostos pela sobrevivência e pela natureza. Para

isso, desenvolveu complexos sistemas de comunicação, denominados linguagens.

De acordo com Vygotsky (1989), a linguagem verbal provavelmente se origina

da fixação dos sons emitidos durante o uso coletivo dos primeiros instrumentos criados

por nossos ancestrais, por meio de uma reunião gradual entre o pensamento pré-verbal e

a linguagem pré-intelectual: a regularidade destes sons deve ter proporcionado a

associação entre sua emissão e aquilo que passaram a representar. Por outro lado, na

obra “Mito e Linguagem”, o filósofo Ernst Cassirer (1985) afirma que as primeiras

palavras se originaram das expressões vocais de espanto de nossos ancestrais diante de

fenômenos e elementos da natureza, reverenciados como manifestações de forças

superiores. Relâmpagos, trovões, chuvas, montanhas, rios, oceanos, grandes animais,

árvores colossais: foi diante daquilo que identificaria como divindades que nossos

antepassados formularam seus primeiros sons significativos, que depois se

transformaram em palavras. Considerando que, em sua origem, as ferramentas eram

tomadas como materializações de forças superiores e invisíveis, sendo inclusive tratadas

como divindades, ambas as hipóteses parecem ter em comum o fato de a linguagem ter

originado a ligação entre uma manifestação externa e sua dimensão interna, construída

gradualmente pelo desenvolvimento da língua enquanto instrumento de socialização e

internalização.

O uso de instrumentos (obtidos pela transformação de recursos e objetos da

natureza em armas, ferramentas etc.), a consciência (formulada pelo uso desses

instrumentos) e a linguagem (o registro de experiências instrumentais e conscientes por

meio de signos sonoros e visuais que possibilitam a internalização dos instrumentos e a

comunicação entre os indivíduos da espécie) constituem o patamar necessário para que

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o ser humano desenvolva sua mais significativa aptidão: a de refletir sobre o mundo e

sobre si mesmo. Essa seria, portanto a vocação e a necessidade humana que mais o

distancia dos outros animais:

• Linguagem / produção de sentido

Se o meio para o desenvolvimento animal é denominado de natureza, a condição

para a humanização, resultante da instrumentalização gradual e consciente dos recursos

naturais e das elaborações e registros coletivos formulados pelo uso de signos visuais e

sonoros, é chamada de cultura.

3. As diferentes formas de pensamento

Dentre as consequências diretas da descoberta, criação e uso de instrumentos, da

atividade consciente e da comunicação por meio de linguagens, encontram-se

significativas melhorias nas condições de sobrevivência de nossa espécie. Em paralelo a

essas “descobertas”, de caçadores e coletores nômades, nossos ancestrais passaram a

sedentários, ao encontraram lugares com recursos mais abundantes que outros (água e

alimentos), onde se fixaram. Com a sedentarização, torna-se possível uma observação

mais regular dos fenômenos naturais, como as alternâncias entre claro e escuro, calor e

frio, estiagem e chuva e a presença ou ausência do alimento, de origem vegetal ou

animal. Misteriosos, esses acontecimentos são vistos como obra de forças invisíveis. No

incipiente pensamento de nossos ancestrais, essas forças misteriosas se relacionam com

outro mistério, bastante presente em suas reflexões: o mistério da morte.

A consciência da finitude e a necessidade de sobreviver ao máximo criam uma

nova necessidade: a de procurar intervir nas forças invisíveis que condicionam a

transformação da vida em morte, e vice-versa. Sendo o único animal que sabe que um

dia vai morrer, não há como desprezar essa consciência como uma das forças motrizes

para o desenvolvimento dos diversos tipos de pensamento.

Nessa relação de opostos (vida e morte, claro e escuro, seca e chuva, alimento e

fome), um mundo invisível é imaginado como contraponto ao visível, ou material. Para

essa noção deve ter colaborado também o desejo de que a existência não acabasse: no

caso do animal caçado, para que retornasse à vida e servisse novamente de alimento; no

caso de um indivíduo da mesma espécie, como um consolo por sua ausência. Nesse

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caso, ao sentimento afetivo da perda misturava-se o temor pela própria finitude: afinal,

o que acontece com meu semelhante deve também acontecer comigo.

Os rituais fúnebres surgem na história justamente quando essa dimensão do

invisível passa a ser considerada como uma continuidade da visível, ou material. O

costume de enterrar os mortos (no princípio, com seus artefatos e objetos), colocá-lo

numa posição cômoda e a profunda reverência a eles prestada, decorre dessa ligação

intuída entre os dois mundos. Decerto, o surgimento do morto em sonhos, em meio à

profunda e assustadora escuridão na qual nossos ancestrais mergulhavam à noite, tenha

ajudado a fortalecer a crença de que havia algo além do que os olhos podiam ver ou que

as mãos podiam tocar.

Ao criar esse mundo invisível (ou visível na escuridão dos sonhos e em visões

“extraordinárias”) nosso ancestral atribui ao morto (animal ou parente) aquilo que

contemporaneamente denominamos de “alma”. Ao formular correlações entre o mundo

visível e o invisível, surgem os rudimentos de um primeiro tipo de pensamento, já

apoiado no uso de signos visuais e auditivos.

O pensamento mágico-animista tem como principal característica o desejo de

acionar as forças invisíveis que controlam o mundo visível para delas obter benefícios

práticos, como o sucesso em uma caçada. As pinturas rupestres são sua principal

expressão, bem como as representações físicas e sonoras da caçada em rituais liderados

por um xamã, curandeiro ou mago. Seus princípios são o da semelhança (o semelhante

age sobre o semelhante) e o da contiguidade (que afirma haver uma alma em todas as

coisas e que tudo está interligado). Por esse motivo, o animal flechado na pintura

rupestre seria flechado também na existência material, já que sua alma estaria

aprisionada na pintura que o representa.

Com o aprimoramento das ferramentas, armas, linguagens e demais

instrumentos, o modo de vida de nossos antepassados também se transforma,

gradualmente. Por uma vocação humana de projetar sua própria imagem em tudo o que

vê (afinal, precisamos dessa imagem para nos tornarmos humanos), as forças invisíveis

vão se transformando em deuses, criados à imagem e semelhança dos homens. Antes

disso, já tinham assumido a imagem de elementos da natureza, de animais e se

materializado nas próprias ferramentas e armas utilizadas para prover o sustento e gerar

fartura. Nesse estágio, em que as forças invisíveis, agora denominados deuses,

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aparecem com a imagem de seres humanos5, surge o pensamento mítico, em forma de

narrativas que expressam as mais profundas construções elaboradas pelo homem sobre

si próprio: basta pensar nas diversas mitologias e na força que emana de seus símbolos.

Segundo Hollis (1998) “o mito reúne os valores conscientes e inconscientes de

uma cultura e expressa a necessidade humana de atribuir sentido à natureza, de

organizar o caos e estabelecer um relacionamento significativo com o mundo”. A

linguagem simbólica do mito reflete a possibilidade do homem encarar e esquivar-se

simultaneamente da realidade bruta, evocando o mistério da existência sem buscar

decifrá-lo. Além disso, constituem os mais belos sistemas explicativos da natureza que

o homem já inventou, como nos mitos agrícolas que expressam o brotar da semente por

meio da morte e renascimento de um deus.

Das mitologias, surgem as religiões, como institucionalizações dos pensamentos

mágico-animista e mítico. O pensamento religioso se caracteriza principalmente pela

formulação do dogma, uma afirmação inquestionável originada das divindades, que

deve ser obedecida à risca. A noção de autoridade se impõe pelo medo de uma punição

divina, o que, muitas vezes, faz desse pensamento um instrumento de submissão e

dominação.

Em meio a esses pensamentos, surge aquele que tem como vocação deslocar os

signos que formulam os demais, principalmente as palavras: o pensamento poético ou

estético se origina da potência metafórica do signo, ou seja, da possibilidade de

expressar algo para além de sua origem objetiva e denotativa. Dessa forma, o boi

pintado na parede da caverna ultrapassa o desejo prático nele expresso e se torna belo; a

palavra que designa um objeto ou um deus adquire novos significados e passa a ter

conotações, ou seja, expressar mais do que aquilo para o que havia sido formulada. É

graças às operações metafóricas do pensamento poético que podemos chegar aos dois

pensamentos seguintes.

O pensamento filosófico parte de uma visão crítica sobre os pensamentos

mágico, mítico e religioso, e utiliza das ferramentas proporcionadas pelo pensamento

poético para desenvolver novas explicações sobre os fenômenos, resultantes de

reflexões sobre o ser, o fazer e o conhecer. Suas explicações se voltam para a essência

5 Esse processo se chama de “antropoformização” das divindades, ou seja, a atribuição de formas humanas às forças invisíveis.

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dos fenômenos para chegar a verdades universais sobre o homem e o mundo, e

caracterizam a dimensão mais abstrata do pensamento.

Séculos depois, com o aprimoramento das tecnologias, o pensamento científico

se fortalece como método de construção do conhecimento por meio da razão, dos dados

empíricos e da lógica dedutiva ou indutiva, construindo sistemas de conhecimentos

nascidos da filosofia, que tentam chegar ao “por que” e ao “como” dos fenômenos, mas

sem a preocupação com sua essência transcendental, atendo-se a realidade natural e

tangível. A princípio, não quer a totalidade, mas a visão parcial, a construção de

modelos explicativos que permitam compreender e comprovar o funcionamento de

aspectos do mundo e da natureza, para melhor predizer, controlar e intervir.

Por fim, cabe dizer que o senso comum se apropria de partes de todos esses

pensamentos e constitui aquilo que denominamos de “visão de mundo”, ou seja, um

guia geral para as ações das pessoas que vivem em determinado tempo e local. Decorre

também de costumes herdados ou adquiridos, por meio de práticas consagradas ou por

imposições da mentalidade contemporânea, como preconceitos, chavões, clichês e

lugares comuns, que se impõem pela repetição e aceitação irrefletida.

Embora essas formas do pensamento tenham surgido, em alguns casos, uma

depois da outra ou em função da existência de outra – como o pensamento científico

que decorre do filosófico, que, por sua vez, não existiria sem o mítico –, uma não

substitui a outra, passando a coexistir como formas do ser humano atribuir sentidos a

sua existência. O fato é que tudo se origina no pensamento mágico-animista e é

possibilitado pelo pensamento poético, que desloca o sentido original das palavras e

demais signos e proporciona jogos semânticos como os que possibilitam aproximar o

homem do barro mítico por meio do vocábulo “humano”. Sem isso, não seria possível

escrever esse breve ensaio sobre nossa vocação para sermos moldados, moldarmos aos

outros e ao mundo e também nos moldarmos: refletirmos nossos semelhantes (como

num espelho) e refletirmos sobre ele e nós mesmos, sempre em busca de novos sentidos

que ampliem nossas já vastas possibilidades de sermos o que somos. Ou o que nos

tornaremos.

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Bibliografia utilizada

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