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Le monde Diplomatique Brasil
COMO EVITAR O CAOS CLIMÁTICO?
Da ciência à política
A 21ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 21), que será realizada em
Paris de 30 de novembro a 11 de dezembro, não tem o direito de fracassar. O tempo urge, e o
conjunto dos países industrializados precisa se comprometer a reduzir drasticamente suas
emissões de gases do efeito estufa.
por Philippe Descamps
Durante a noite polar, a temperatura dificilmente ultrapassa os 60 °C negativos nos
morros da Antártida. As novidades, além de poucas, não eram boas. O presidente norte-
americano Ronald Reagan acabara de divulgar sua iniciativa de defesa estratégica para
desafiar uma gerontocracia soviética incapaz de sair da estagnação econômica e do
atoleiro afegão. Dentro das frágeis barracas da base de Vostok, cantavam-se músicas de
Georges Brassens e Vladimir Vissotsky para manter o moral. Abastecidos por aviões
norte-americanos, cientistas franceses e soviéticos enfrentavam os elementos da
natureza a fim de descobrir juntos os segredos do clima. Objetivo: remontar no tempo,
descendo cada vez mais nas entranhas da geleira de 3.700 metros de espessura que
jazia sob seus pés. Em fevereiro de 1985, a equipe conseguiu extrair fragmentos de gelo
que conservavam informações cruciais sobre o ar e as temperaturas dos últimos 160 mil
anos. Após dois anos de exames, esses fragmentos trouxeram enfim a prova procurada:
o globo foi às vezes mais quente que hoje, às vezes mais frio, mas essas variações
acompanharam fielmente as da concentração de gás carbônico (CO2). Ora, sabe-se que
desde a Revolução Industrial, sobretudo desde meados do século XIX, o teor de CO2 na
atmosfera não para de aumentar e atualmente ultrapassa todas as referências históricas.
Essas descobertas, corroboradas pela perfuração de sedimentos marinhos e pelo estudo
de outros gases do efeito estufa, como o metano, convenceram as Nações Unidas a
criar, em 1988, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla
em inglês). Devotando-se ao estudo da literatura científica, o IPCC tem por missão
colocar o mundo a par do estado atual dos conhecimentos. Entre seu primeiro relatório,
publicado em 1990, e o quinto, concluído em 2013,1 ele apresenta suas conclusões com
um grau de probabilidade cada vez mais elevado: “O aquecimento do sistema climático é
incontestável. Inúmeras mudanças observadas desde os anos 1950 não têm
precedentes há décadas, talvez milênios”, diz o último relatório. “A atmosfera e os
oceanos se aqueceram, a cobertura de neve e gelo diminuiu, o nível dos mares subiu e
as concentrações dos gases do efeito estufa aumentaram.” Os especialistas já não têm
dúvidas quanto às causas desse fenômeno: “A influência do homem sobre o sistema
climático foi claramente estabelecida [...]. Para conter a mudança do clima, será
necessário reduzir drástica e duradouramente as emissões de gases do efeito estufa
(GEEs)”.
Com base em modelos, o IPCC apresenta um resumo das evoluções recentes e,
sobretudo, projeções para as décadas futuras em função de quatro cenários de emissões
de gases do efeito estufa. A hipótese mais pessimista (RCP 8,5) – pouco esforço de
redução – prediz, até o ano de 2100, temperaturas mais elevadas em cerca de 4 °C na
escala global e em cerca de 6 °C nas terras emersas, ou seja, o caos. Nem os cenários
médios (RCP 6,0 e RCP 4,5) podem garantir uma estabilização a médio prazo. Só a
hipótese otimista (RCP 2,6) permitiria manter a alta da temperatura global abaixo dos 2
°C, um patamar que não pode ser ultrapassado e, de preferência, nunca ser alcançado
(ver artigo de Eric Martin na p. 30). Além disso, deve-se contar com aquecimento fora de
controle, degelo rápido na Groenlândia, modificação da circulação oceânica profunda e
derretimento do permafrost2 nas terras boreais, o que acarretaria a liberação maciça de
CO2.
Contudo, a hipótese otimista supõe a contenção imediata das emissões, que devem
baixar para zero em duas ou três gerações. Oficialmente, todos os Estados reconhecem
esse imperativo desde a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992, e da adoção da
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima. Depois dessa ode
mundial à salvaguarda do planeta, entretanto, a situação ficou ainda mais grave. Em
2013, o total de emissões de CO2 ultrapassou 34,3 bilhões de toneladas, contra 23
bilhões em 1990.3 De 1980 a 2011, a “pressão antrópica” (a parte do aquecimento
resultante das atividades humanas) dobrou por causa da emergência de novos países
industrializados e do aumento da população.
O clima surge como um multiplicador de desequilíbrios, desigualdades e ameaças a que
estão sujeitos os mais pobres. Aridez, furacões, monções desreguladas: o Sul já padece
dos efeitos das mudanças sem ter conhecido os benefícios do desenvolvimento. Na
África, o deserto avança pelo Sahel e 620 milhões de pessoas ainda não têm acesso à
eletricidade. Uma responsabilidade colossal cabe aos países desenvolvidos, em
particular aos Estados Unidos (ver mapa na p. 24). Desde sua criação, a empresa
petrolífera Chevron teria, sozinha, mandado para a atmosfera mais de dez vezes o que
todos os países da África subsaariana (fora a África do Sul) emitiram desde 1850; a
Gazprom, tanto quanto a África; e a Saudi Aramco, mais que a América do Sul inteira.4
A maior parte do transtorno se deve à utilização do carbono, do petróleo e do gás.
Todavia, em 2013, as subvenções públicas aos combustíveis fósseis chegaram a 480
bilhões de euros, isto é, mais de quatro vezes a soma das que foram concedidas às
energias renováveis.5
Diante de tal desafio, a lógica da relação de forças entre nações se torna inoperante e o
caminho da cooperação continua acidentado. Após o Senado norte-americano se
recusar a ratificar o Protocolo de Kyoto, em 1997,6 e depois do fiasco de Copenhague,
em 2009, a Conferência de Paris foi minuciosamente preparada apostando em
declarações voluntárias: as “contribuições previstas determinadas em nível nacional”. Em
meados de outubro, 148 países, representando 87% das emissões, haviam apresentado
seus roteiros. Entre os grandes poluidores, faltaram apenas as contribuições do Irã e da
Arábia Saudita. Cada qual alardeia grandes ambições: a China pretende alcançar seu
pico de emissões e iniciar a redução em 2030; a União Europeia promete eliminar 40%
das suas em 2030 (em relação a 1990); e os Estados Unidos anunciam uma queda de
26% em 2025 (em relação a 2005).
No entanto, a embaixadora francesa encarregada das negociações sobre a mudança
climática, Laurence Tubiana, reconhece: “Ainda que positivas, essas contribuições não
serão suficientes para nos colocar, depois da Conferência de Paris, num rumo
compatível com o limite de 2 °C. Por isso, o acordo de Paris deverá conter dispositivos
que permitam fomentar regularmente o entusiasmo comum no curso do tempo, para que
cada período de contribuições seja mais ambicioso e possamos cumprir nossos objetivos
de longo prazo”.7 Para obter um acordo universal, que entraria em vigor a partir de 2020,
a estratégia da Presidência francesa se resume em evitar questões incômodas. Há fortes
dúvidas quanto ao objetivo global de redução, à definição de um máximo mundial de
emissões, aos mecanismos de controle... A taxação dos transportes marítimos e aéreos
continua sendo um tabu. E o questionamento de um modo de produção que está levando
a humanidade para o abismo ainda vai demorar.
Alguns países, como os Estados Unidos, a Alemanha e os emirados do Golfo, não
conseguirão jamais apagar os traços que deixaram na atmosfera; sua “dívida climática” é
irremissível. As nações do Sul receberiam deles uma compensação financeira para
poder alcançar um desenvolvimento sem carbono, saltando a etapa mortífera das
energias fósseis. Mas o objetivo de US$ 100 bilhões por ano, consagrados a esse fim,
ainda não encontrou quem o financiasse.
A preparação dessa 21ª conferência se caracteriza pelo papel crescente que lá
desempenham as multinacionais com este credo: o direito do comércio terá de
prevalecer sempre sobre a ambição social e ambiental. E os dirigentes que, com a mão
no peito, virão propor um acordo sobre o clima negociam na sombra a criação do Grande
Mercado Transatlântico (GMT), que visa “garantir um ambiente econômico aberto,
transparente e previsível na questão da energia, e um acesso ilimitado e sustentável às
matérias-primas”.8
O caos climático só será evitado caso a maior parte das reservas de energia fóssil
permaneça no solo. O desafio coletivo consiste em tornar esse esforço aceitável para
todos, pondo-se fim ao aumento das desigualdades que desencoraja a solidariedade.
Não convém esquecer a proclamação de George H. Bush ao chegar à Cúpula da Terra,
no Rio: “O modo de vida americano não é negociável”. Um modo de vida impossível de
generalizar e cuja perpetuação nos custou vinte anos, tornando decisões futuras ainda
mais difíceis de tomar.
O risco será deixar o tempo correr, enquanto se insiste em soluções quiméricas ou
marginais, como a geoengenharia, que pretende fixar mais o carbono no solo ou reduzir
a radiação solar. Os países do norte da Europa abriram um caminho novo propondo a
partir do início dos anos 1990 uma “taxação do carbono”. Conseguiram uma redução
significativa dos gases do efeito estufa sem renunciar à prosperidade: liberaram créditos
para melhorar a eficácia energética dos transportes e construções, e para pesquisar
energias renováveis. Mas estas não atenderão a uma demanda crescente, pois logo
começarão a rarear os metais indispensáveis às instalações eólicas ou solares.9 A via do
“reduzir, reutilizar, reciclar” leva a repensar o consumo, fundamentando a qualidade de
vida em outros critérios que não a acumulação.
Os otimistas têm por si os últimos números da Agência Internacional da Energia: em
2014, a economia mundial progrediu 3%, enquanto as emissões de CO2 permaneceram
constantes.10 Efeito conjuntural ou início da dissociação? Acharemos motivos mais
sólidos para ter esperança na tomada de consciência dessas apostas, com o despertar
de uma miríade de associações, e nas posturas adotadas por algumas autoridades
morais, como o papa Francisco.
A multiplicação dos acidentes ecológicos vem forçando a China a questionar seu
desenvolvimento; e a candidata à Presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton,
também deverá rever sua posição, renunciando ao projeto do oleoduto Keystone XL,
concebido para facilitar a importação, pelos norte-americanos, das areias betuminosas
de Alberta – um símbolo de desperdício anacrônico. A Convenção sobre a Proteção da
Camada de Ozônio se tornou, em 2009, o primeiro tratado da história a ser
universalmente ratificado; a salvaguarda do clima requer uma mobilização coletiva não
menos ambiciosa.
O PLANETA COM FEBRE
Para entender a importância das medidas recentes e das hipóteses do IPCC (à direita), é
preciso olhar com cuidado a escala de tempo, bem diferente do gráfico à esquerda. A
evolução das temperaturas e do CO2 nos últimos 800 mil anos na Antártida pôde ser
estabelecida graças à extração de gelo realizada por cientistas europeus em 2007.
Philippe Descamps
Jornalista
1 Ao relatório do grupo 1, “Os elementos científicos”, juntaram-se em 2014 os do grupo 2, “Incidências, adaptação e vulnerabilidade”, e do grupo 3, “A atenuação da mudança climática”.
Todos os relatórios estão em .
2 Solo profundo congelado.
3 “Trends in global CO2 emissions: 2014 Report” [Tendências nas emissões globais de
CO2: Relatório de 2014], Netherlands Environmental Assessment Agency, Bilthoven-La Hague, 16 dez. 2014.
4 Richard Heede, “Tracing anthropogenic carbon dioxide and methane emissions to fossil
fuel and cement producers, 1854-2010” [Rastreando as emissões antropogênicas de dióxido de carbono e metano por parte de produtores de combustível fóssil e cimento, 1854-2010], Climatic
Change, v.122, n.1, Berlim, jan. 2014; e CAIT Climate Data Explorer 2015, World Resources Institute, Washington, DC. Disponível em: .
5 “World Energy Outlook” [Perspectiva da Energia Mundial], Agência Internacional de Energia (AIE), Paris, 2014.
6 Ratificado por 190 países, prevê compromissos de redução dos gases do efeito estufa
para 38 nações industrializadas.
7 .
8 Item 37 da diretiva europeia de negociação, 13 jun. 2013, tornado público em 9 de
outubro de 2014.
9 Cf. a contribuição de Philippe Bihouix em Économie de l’Après-Croissance [Economia do pós-crescimento], Les Presses de Sciences Po, Paris, 2015.
COMO EVITAR O CAOS CLIMÁTICO?
O teatro das negociações Internacionais
A lentidão das negociações sobre o clima contrasta com a rápida aceleração da história humana.
Enquanto isso, as instâncias internacionais mostram-se incapazes de criar ferramentas e modos
de pensar à altura dos desafios colocados
por Agnès Sinaï
Em construção em uma ilha artificial na Lagoa de Lagos, na Nigéria, a vila Eko Atlantic
periga ser submersa até o fim do século. Nas zonas costeiras do país, com a elevação
do nível dos oceanos decorrente do aquecimento global, a água pode chegar a penetrar
90 km continente adentro.1 Eko Atlantic se tornaria uma dessas ruínas do futuro que
servem para os geólogos reconstituírem a história da Terra.
Há 3 milhões de anos, na época do Plioceno, a quantidade de CO2 na atmosfera era a
mesma de hoje. A temperatura era de 2 a 4 °C mais quente, e o nível do mar, de 10 a 20
metros mais elevado que hoje. Hoje, não se sabe exatamente em que ritmo as geleiras
da Antártida derreterão. Algumas hipóteses, notadamente o cenário do Potsdam Institute,
estimam que, se todos os combustíveis fósseis fossem queimados, o mar se elevaria ao
ritmo de 3 metros por século no próximo milênio.2 Do ponto de vista químico, a
composição da atmosfera atual é excepcional em relação às variações naturais do efeito
estufa no último milhão de anos. Comparado à observação do clima no passado, o
aquecimento de 3 °C (cenário médio) que poderia ocorrer ao longo do século XXI
representa uma mudança abrupta e de amplitude comparável a uma transição
glacial/interglacial – porém acelerada, pois a transição glacial/interglacial ocorreu ao
ritmo de 1 °C a cada mil anos.3
A humanidade é hoje a força principal que governa o funcionamento do planeta. Em
pouco mais de duas gerações, tornou-se uma potência geológica. Além disso, um
conjunto de sinais prova que suas atividades produzem um impacto telúrico durável de
magnitude comparável ao que, no passado, caracterizou fenômenos como as glaciações,
o despertar dos vulcões ou a queda de meteoritos. Os estratos geológicos legados pela
urbanização, barragens, produção industrial, atividades mineradoras e agrícolas contêm
inúmeros fósseis dessa fase inédita sobre a Terra. Substâncias totalmente novas
emitidas pelos seres humanos desde 1945 são uma característica típica do Antropoceno:
radionuclídeos, gases fluorados, produtos oriundos de bio e nanotecnologias. A
globalização da petroquímica deu lugar a uma “paleontologia do plástico”, segundo a
expressão do geólogo Jan Zalasiewicz. As partículas de fuligem expelidas pelas
indústrias alcançam o Polo Norte. A sociedade industrial deixará seus rastros em
estratos do solo, do ar e dos oceanos por milênios.
A mudança climática se inscreve no que o geógrafo Will Steffen, o geoquímico Paul
Crutzen e o historiador John Mac Neill nomearam como a “grande aceleração” da história
humana.4 Esse período de exuberância, que vem de 1945 até hoje, coincide com a era
do petróleo, da descolonização, da democratização e do consumo. Diante dessas
dinâmicas, as negociações da ONU equivalem a uma usina de lentidão e fracassam em
colocar em questão o sistema produtivo e resolver problemas de energia, justiça e
desenvolvimento. Essa lentidão também caracterizou as sessões de preparação para a
COP 21, em Genebra e Bonn, por meio de textos que a unanimidade dos 196 países
considera muito complexos.
A externalização da natureza
Realizadas em uma bolha, as negociações patinam. A mudança climática coloca a
diplomacia ambiental perante uma nebulosa de incertezas e de incompatibilidade de
tempos. Durante a “COP”, os políticos do clima permaneceram impotentes diante da
necessidade de novas ferramentas e formas de pensamento que estejam à altura do
problema. Essa grande negação da realidade se manifesta primeiro por uma retórica
contábil oriunda das ciências econômicas, viciada em analisar custos e benefícios em
função de projeções estatísticas. Estimulada pela crença no crescimento indefinido (ver
artigo na p. 28), a modernidade industrial externalizou a natureza, percebida como um
estoque inerte, como um catalisador de fluxos financeiros que precisam remunerar “os
serviços prestados” pelos ecossistemas. Os 2 °C de aumento máximo da temperatura do
planeta, balizador das negociações, inscrevem-se nessa maneira de pensar, que
pressupõe certa estabilidade ou previsibilidade. Bastaria gerenciar o clima com a
engenhosidade humana e mobilização política. Em realidade, é difícil determinar um
nível aceitável de gases do efeito estufa para estabilizar o clima, pois ninguém sabe
quando será o ponto de virada catastrófico para a humanidade (ver artigo na p. 30).
Os autores do magistral Gouverner le climat?avançam com a noção de “cisma de
realidade” para designar a desconexão profunda entre os processos materiais que
degradam o clima e as instâncias multilaterais que funcionam há vinte anos.5 Parece
frívolo pretender resolver os problemas causados pela combustão de energias fósseis
regulando apenas os rejeitos, sem colocar a questão da extração. De forma absurda, as
negociações focam emissões de CO2, sem atacar os modos de desenvolvimento
econômico, as regras do comércio internacional ou o funcionamento do sistema
energético mundial.
Outro exemplo de desconexão: o Protocolo de Kyoto não fez nada além de legitimar a
hegemonia dos mecanismos de mercado em nível internacional como meio de proteção
do meio ambiente, tomando o clima como um bem econômico mensurável e homogêneo.
Os “mecanismos de flexibilidade” tendem a promover a redução das emissões onde é
mais eficaz economicamente. Essa lógica de compensação foi estendida às emissões
decorrentes do desmatamento com o mecanismo REDD (Redução das Emissões por
Desmatamento e Degradação Florestal). Na Europa, o mercado de carbono, European
Trading Scheme, foi um grande fracasso.
Por fim, o terceiro cisma: a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do
Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) não tem nenhuma influência sobre o sistema de
livre-comércio empreendido pela Organização Mundial do Comércio (OMC), cujas regras
se sobrepõem à proteção do clima. Essa hierarquia de normas também está nas
negociações comerciais transatlânticas. As tratativas em torno do acordo de livre-
comércio entre Europa e Canadá que se desenrolam desde 2013 trazem uma sombra
sobre as políticas climáticas: a Europa abre suas portas ao petróleo não continental de
Alberta.6 Segundo um estudo da associação norte-americana Natural Resources Defense
Council (NRDC), as importações europeias de areias betuminosas, que aumentaram
para 4 mil barris por dia em 2012, podem crescer de maneira espetacular: até 700 mil
barris por dia daqui a 2020.7O oleoduto Energy East, construído pela TransCanada,
poderá abastecer as refinarias europeias por meio de um mercado transatlântico liberado
de qualquer entrave.
Como sublinha o historiador Dipesh Chakrabarty, a crise climática coloca na ordem do
dia a colisão entre três histórias: a da Terra, a da evolução humana sobre o planeta e,
finalmente, a mais recente, a da civilização industrial.8 Essas três histórias evoluem em
escalas e velocidades diferentes, e obrigam as sociedades modernas a rever seus
modos de pensamento. É preciso compreender que a vida terrestre não repousa sobre
bases estáveis. O Antropoceno abriu uma brecha na história da Terra, e essa fissura
obriga a repensar o destino humano segundo o princípio de uma incerteza radical quanto
aos efeitos do nível da temperatura, dos pontos de virada, dos fenômenos irreversíveis e
dos excessos possíveis do sistema climático.
Planejar o abandono do carbono
Nessas circunstâncias, o climatologista James Hansen recomenda aos políticos planejar
o abandono do carvão como combustível fóssil. Mais que um princípio de precaução,
trata-se de um “princípio máximo”, que permite visar ao “melhor dentro do pior cenário”.
Segundo um estudo de Christophe McGlade e Paul Ekins, da Universidade College de
Londres, um terço das reservas de petróleo, a metade das de gás e cerca de 80% das de
carvão deveriam permanecer inexploradas para evitar o superaquecimento do
planeta.9 As reservas fósseis do globo recuperáveis nas condições técnicas e
econômicas atuais representam um estoque de 2.900 gigatons (Gt) de CO2, ou seja, três
vezes mais que as emissões consideradas como teto dentro do objetivo de limitar o
aquecimento global a mais 2 °C.
“A crise climática levanta grandes questões de justiça: justiça entre gerações, entre
pequenas ilhas-nação e países poluentes (no passado e no futuro), entre países
desenvolvidos, industrializados (historicamente responsáveis pela maior parte das
emissões) e os países em via de industrialização”, resume Chakrabarty. Atualmente,
apenas alguns países (entre doze e catorze) e uma pequena parte da humanidade
(cerca de um quinto da população mundial) carregam a responsabilidade histórica das
emissões de gases do efeito estufa (ler artigo na próxima página).
Falta mencionar o aspecto do direito. Durante a Rio+20, em junho de 2012, um
movimento da sociedade civil de mais de quinhentas organizações surgiu para colocar
fim à impunidade das empresas transnacionais. O movimento End Ecocide on Earth
trabalha para modificar o Estatuto de Roma, fundador da Corte Penal Internacional, com
o objetivo de instituir o crime de “ecocídio”. Um grupo de juristas elaborou duas
propostas de convenções chamadas “Ecocrime” e “Ecocídio”.10 Ambas permitiram
reforçar e harmonizar em escala mundial a prevenção e repressão de crimes ambientais.
O ecocídio figuraria entre os crimes mais graves, no mesmo nível do crime contra a
humanidade. O relatório recomenda a instituição de um procurador internacional de meio
ambiente e a criação de uma Corte Penal Internacional de Meio Ambiente, além da
formação de um Grupo de Pesquisa e Opinião pelo Meio Ambiente (Green) e a
instauração de um Fundo Internacional de Indenização pelo Meio Ambiente e pela Saúde
Pública. Para concretizar esse conjunto inédito de medidas, escreve a jurista Mireille-
Delmas-Marty, é preciso “universalizar a reprovação” das medidas atuais e “se abrir à
esperança de um destino comum”.
BOX
DA DESCOBERTA CIENTÍFICA À TOMADA DE CONSCIÊNCIA POLÍTICA
1896. Em artigo publicado no Journal of Science, o químico sueco Svante August
Arrhenius (1859-1927), Prêmio Nobel de Química em 1903, propõe um cálculo do efeito
estufa associando concentração de gás carbônico e temperaturas terrestres.
1941. O geofísico sérvio Milutin Milankovitch publica sua teoria astronômica do clima,
que estabelece os principais ciclos climáticos responsáveis pelas variações da radiação
solar sobre a Terra.
1957. Instalação na Antártida da base soviética de Vostok.
1958. O cientista norte-americano Charles Keeling (1928-2005) começa, na base de
Mauna Loa (Havaí), a observar a concentração de gás carbônico na atmosfera.
Demonstra o papel da atividade humana no aumento rápido dessa concentração (315
partes por milhão em volume [ppmv] em 1958, 380 ppmv em 2005).
1972. A Conferência de Estocolmo coloca a proteção do ambiente na lista das
preocupações internacionais. Criação do Programa das Nações Unidas para o Ambiente
(Pnua).
1987, setembro. Assinatura do Protocolo de Montreal, cujo objetivo é eliminar as
substâncias que reduzem a camada de ozônio.
1987, outubro. Uma equipe franco-russa estabelece uma correlação direta entre
temperatura e concentração de gás carbônico na atmosfera ao longo de 160 mil anos
transcorridos.
1988, junho. O discurso sobre o aquecimento climático do climatologista norte-americano
James Hansen perante o Congresso dos Estados Unidos inicia um debate público a
respeito do assunto.
1988, dezembro. Criação, pelas Nações Unidas, do Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas (IPCC).
1992. No Rio de Janeiro, a Cúpula da Terra adota a Convenção-Quadro das Nações
Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), cuja autoridade encarregada da tomada
de decisões é a Conferência das Partes (COP). Estabelece-se um plano de ação para o
século XXI com vistas a permitir um desenvolvimento sustentável com proteção
ambiental.
1997. Pelo Protocolo de Kyoto, os 84 países signatários se comprometem a reduzir o
total de emissões de gases do efeito estufa, antes de 2012, em 5% com relação ao nível
de 1990. Mas os principais países emissores (Estados Unidos e China) não assinam o
documento.
2009. Fracasso da COP 15, em Copenhague, que termina com uma declaração de
intenções – não ultrapassar um aquecimento de 2 °C –, mas sem objetivo quantitativo
nem data estipulada.
2012, Dezembro. A COP 18, em Doha, prolonga o protocólode Kyoto, mas assiste ao
afastamento da Rússi, do japão e do Canadá. Pragrama-se um acordo global ambicioso
para 2015
Agnès Sinaï é jornalista e coordenador do Atlas do meio ambiente de Le Monde Diplomatique.
Ilustração: Reuters
1 Nnimmo Bassey, “L’Afrique et les catastrophes climatiques qui s’annoncent” [A África e as catástrofes climáticas que se anunciam]. In: Crime climatique. Stop! L’appel de la société civile[Basta de crime climático! O apelo da sociedade civil], Seuil, Paris, 2015.
2 Ricarda Winkelmann, Anders Levermann, Andy Ridgwell e Ken Caldeira, “Combustion of
available fossil fuel resources sufficient to eliminate the Antarctic ice sheet” [A combustão de combustíveis fósseis ainda disponíveis é suficiente para eliminar a camada de gelo da Antártida],Science Advances, Washington/Cambridge, v.1, n.8, 11 set. 2015.
3 Valérie Masson-Delmotte e Christophe Cassou, Parlons climat en 30 questions [Falando de
clima em 30 perguntas], La Documentation Française, Paris, 2015.
4 Will Steffen et al., “The trajectory of the anthropocene: the great acceleration” [A trajetória do Antropoceno: a grande aceleração], The Anthropocene Review, Londres, 19 jan. 2015.
5 Stefan Aykut e Amy Dahan, Gouverner le climat? 20 ans de négociations
internationales[Governar o clima? 20 anos de negociações internacionais], Presses de Sciences
Po, Paris, 2015.
6 Ler Emmanuel Raoul, “Sous les sables bitumineux de l’Alberta” [Sob as areias betuminosas de Alberta], Le Monde Diplomatique, abr. 2010.
7 Danielle Droitsch, Luke Tonachel e Elizabeth Shope, “What’s in your tank? Northeast and Mid-Atlantic states need to reject tar sands and support clean fuels” [O que há em seu tanque? Estados
do Nordeste e Médio Atlântico precisam rejeitar areias betuminosas e apoiar combustíveis limpos], NRDC Issue Brief, Nova York, jan. 2014.
8 Dipesh Chakrabarty, “Quelques failles dans la pensée sur le changement climatique” [Algumas falhas no pensamento sobre a mudança climática]. In: Emilie Hache(org.),De l’univers clos au
monde infini [Do Universo fechado ao mundo infinito], Éditions Dehors, Bellevaux, 2014.
9 Christophe McGlade e Paul Elkins, “The geographical distribution of fossil fuels unused when limiting global warming to 2 °C” [A distribuição geológica de combustíveis fósseis não utilizados quando a temperatura atingir o limite de mais 2 °C], Nature, Londres, n.517, 8 jan. 2015.
10 Laurent Neyret (org.),Des écocrimes à l’écocide. Le droit pénal au secours de l’environnement [Dos ecocrimes ao ecocídio. O direito penal a serviço do meio ambiente], Bruylant,
Bruxelas, 2015.1824. Em Memória sobre as temperaturas do globo terrestre e dos espaços planetários, o físico Joseph Fourrier enuncia, pela primeira vez, o princípio do efeito estufa.
COMO EVITAR O CAOS CLIMÁTICO?
Todos somos responsáveis?
A exploração dos recursos fósseis provocou o nascimento de uma nova era geológica na Terra –
uma proeza levada a cabo pelas nações industrializadas e por suas elites, as quais basearam sua
supremacia em trocas ecológicas desiguais
por Christophe Bonneuil
Antropoceno: o termo designa uma nova era na idade da Terra, aberta por uma
humanidade que se tornou força telúrica.1 O ponto de partida dessa nova idade geo-
histórica permanece controverso: a conquista etnocida da América? O nascimento do
capitalismo industrial, baseado em combustíveis fósseis? A bomba atômica e a “grande
aceleração” a partir de 1945? Mas há pelo menos um fato sobre o qual os cientistas
concordam: muito mais que uma crise ambiental, vivemos uma revolução geológica, que
só teve precedentes – a quinta extinção em massa, há 65 milhões de anos, ou o
optimum climático do Mioceno, há 15 milhões de anos – em tempos anteriores ao
aparecimento da humanidade. Daí uma situação radicalmente nova: a humanidade
deverá, nas próximas décadas, enfrentar estados do sistema Terra com os quais nunca
foi confrontada.
O Antropoceno também marca o fracasso de uma das promessas da modernidade, que
pretendia separar-se da história da natureza, libertar o destino humano de qualquer
determinismo natural. A esse respeito, os distúrbios causados à Terra representam uma
tempestade em nossa vida. Eles remetem à realidade dos milhares de laços de
pertencimento e retroações que ligam nossas sociedades aos processos complexos de
um planeta que não é nem estável, nem externo a nós, nem infinito.2 Agredindo e
jogando na estrada dezenas de milhões de refugiados (22 milhões hoje, 250 milhões
anunciados pelas Nações Unidas em 2050), alimentando injustiças e tensões
geopolíticas,3 as perturbações climáticas dificultam qualquer perspectiva de um mundo
mais justo e solidário, de uma vida melhor para grande parte da humanidade. Desse
modo, as frágeis conquistas da democracia e dos direitos humanos poderiam ser
aniquiladas.
LÓGICA DE ACUMULAÇÃO
Afinal, quem é esse anthropos que originou o Antropoceno, verdadeiro descarrilamento
da trajetória geológica da Terra? Uma “espécie humana” indiferenciada, unificada pela
biologia e o carbono, portanto uniformemente responsável pela crise? Afirmar isso seria
apagar a extrema diferença dos impactos, do poder e das responsabilidades entre povos,
classes, gêneros. Houve vítimas e dissidentes da “antropocenização” da Terra, e talvez
seja com eles que devamos aprender.
Na verdade, até recentemente o Antropoceno era um Ocidentaloceno! Em 1900, a
América do Norte e a Europa ocidental haviam emitido mais de quatro quintos dos gases
do efeito estufa desde 1750. A população humana cresceu dez vezes em três séculos,
mas imagine a disparidade dos impactos entre os diferentes grupos humanos! Os povos
de caçadores-coletores hoje ameaçados de desaparecer praticamente não podem ser
considerados responsáveis por essa transformação. Um norte-americano abastado emite
em sua vida mil vezes mais gases do efeito estufa que um africano pobre.4
Enquanto a população decuplicou, o capital centuplicou. Apesar das guerras destrutivas,
ele cresceu 134 vezes entre 1700 e 2008.5 Não é essa lógica de acumulação que
tensionou toda a dinâmica de transformação da Terra? Desse modo, mais justo seria
chamar o Antropoceno de Capitaloceno. Essa é, aliás, a tese das recentes obras do
sociólogo Jason Moore e do historiador Andreas Malm.6
Em dois séculos, um modelo de desenvolvimento industrial baseado em recursos fósseis
conseguiu, ao mesmo tempo, desviar a trajetória geológica de nosso planeta e acentuar
as desigualdades. Os 20% mais pobres detinham 4,7% da renda mundial em 1820, mas
apenas 2,2% em 1992.7 Existe uma ligação entre a história das desigualdades e a
história da degradação ambiental global do Antropoceno? Não, respondem os
defensores do “capitalismo verde”, que retomam o velho discurso do “todos ganham” na
relação entre mercado, crescimento, igualdade social e meio ambiente. No entanto,
muitos trabalhos recentes, fazendo o cruzamento entre a história e as ciências do
sistema Terra, evidenciam uma fonte comum para a dominação econômica e social, a
injustiça ambiental e os desequilíbrios ambientais, que agora adquiriram amplitude
geológica.
Embora qualquer atividade humana transforme o ambiente, os impactos são
desigualmente distribuídos. Apenas noventa empresas são responsáveis por mais de
63% das emissões globais de gases do efeito estufa desde 1850.8 As nações que
emitem mais são historicamente os países do “centro”, aqueles que dominam a
economia-mundo (ver mapa). Primeiro foi o Reino Unido, que na era vitoriana, no século
XIX, produzia metade do CO2 total e colonizava o mundo. Em seguida, em meados do
século XX, foram os Estados Unidos, em concorrência frontal com os países sob
influência soviética, cujo sistema não era menos destrutivo. Cada vez mais é a China,
que hoje emite mais gases do efeito estufa que os Estados Unidos e a Europa juntos. O
Império do Meio está em uma competição econômica com os norte-americanos que
passa, a curto prazo, por uma corrida pelos recursos fósseis e, a médio prazo, pelo
digital, as finanças e as tecnologias “verdes”. Diante dessa realidade histórica, podemos
limitar os desequilíbrios globais sem questionar essa corrida pelo poder econômico e
militar?
Mais profundamente, a conquista da hegemonia econômica pelos Estados-nação do
centro9 permitiu a supremacia de sua elite capitalista, além da compra da paz social
interna, graças à entrada das classes dominadas na sociedade de consumo. Mas isso se
realizou à custa do endividamento ecológico, ou seja, de uma troca ecológica desigual
com as outras regiões do mundo. Enquanto o conceito marxista de “comércio desigual”
designa uma deterioração dos termos de troca entre periferia e centro, medida em
quantidade de trabalho, entende-se por “troca ecológica desigual” a assimetria criada
quando territórios periféricos ou dominados do sistema econômico global exportam
produtos de alto valor de uso ecológico e recebem bens de menor valor, ou até mesmo
geradores de danos (resíduos, gases do efeito estufa). Esse valor ecológico pode ser
medido em hectares necessários para a produção de bens e serviços, por meio do
indicador denominado “pegada ecológica”,10 em quantidade de energia de alta
qualidade ou de matéria (biomassa, minerais, água etc.) incorporada nas trocas
internacionais e ainda em resíduos e danos gerados e desigualmente distribuídos.
Esse modo de análise das trocas econômicas mundiais trouxe nos últimos anos uma
nova perspectiva sobre o metabolismo de nossas sociedades e sobre a sucessão
histórica tanto de “ecologias-mundo” (Jason Moore) como de “economias-mundo”,
conforme a definição do historiador Fernand Braudel. Cada uma delas se caracteriza, de
acordo com o período, por determinada organização (assimétrica) dos fluxos de matéria,
energia e benefícios ou danos ambientais.
A FOME ENERGÉTICA DOS “TRINTA GLORIOSOS”
O historiador Kenneth Pomeranz mostrou o papel da troca ecológica desigual na entrada
do Reino Unido na era industrial.11 A conquista da América e o controle do comércio
triangular permitiu uma acumulação primitiva europeia; acumulação aproveitada
principalmente pelos britânicos no século XVIII, graças à sua superioridade naval. Isso
lhes deu acesso aos recursos do resto do mundo, indispensáveis para seu
desenvolvimento industrial: mão de obra escrava para cultivar açúcar (4% do aporte
energético de sua população em 1800), algodão para as manufaturas, lã, madeira,
guano, trigo e carne. Em meados do século XIX, os hectares da periferia do império
equivaliam a muito mais do que a superfície agrícola útil britânica. O câmbio era
desigual, visto que, em 1850, trocando mil libras de têxteis fabricados em Manchester
contra mil libras de algodão cru americano, o Reino Unido ganhava 46% em termos de
trabalho incorporados (comércio desigual) e 6.000% em termos de hectares incorporados
(troca ecologicamente desigual).12 Assim, ele liberava seu espaço doméstico de uma
carga ambiental, e essa apropriação dos braços e dos ecossistemas da periferia tornou
possível sua entrada na economia industrial.
Da mesma forma, no século XX, o forte crescimento dos chamados “Trinta Gloriosos
Anos” do pós-guerra caracterizou-se por sua gula energética e sua pegada de carbono.
Enquanto na primeira metade do século XX bastou um aumento de 1,7% por ano de
consumo de energia fóssil para um crescimento mundial de 2,13% ao ano, entre 1945 e
1973 foram necessários 4,5% para um crescimento anual de 4,18%. Essa perda de
eficiência também atingiu as outras matérias-primas minerais: enquanto entre 1950 e
1970 o PIB multiplicou-se por 2,6, o consumo de minérios e produtos minerais para a
indústria multiplicou-se por 3,08, e o dos materiais de construção, por 2,94. Assim, a
pegada ecológica humana global saltou do equivalente a 63% da capacidade
bioprodutiva da Terra, em 1961, para mais de 100% no final dos anos 1970. Em outras
palavras, desde essa época excedemos a capacidade de o planeta produzir os recursos
de que precisamos e absorver os resíduos que deixamos.
A corrida armamentista, espacial, produtiva e consumista empreendida pelo bloco
ocidental e pelo bloco oriental durante a Guerra Fria exigiu uma gigantesca exploração
dos recursos naturais e humanos. Mas com uma diferença notável: o campo comunista
explorava e degradava sobretudo seu próprio ambiente (comércio exterior de matérias-
primas próximo do equilíbrio e inúmeros desastres ecológicos internos), ao passo que os
países industrializados ocidentais construíram seu crescimento por meio de uma
drenagem maciça dos recursos minerais e renováveis (com importações de matérias-
primas ultrapassando as exportações em 299 bilhões de toneladas por ano em 1950
para mais de 1,282 trilhão de toneladas em 1970).13 Esses recursos provinham do resto
do mundo não comunista, que se esvaziava de sua matéria e de sua energia de alta
qualidade.
Essa drenagem foi economicamente desigual, com termos de troca dos países “em
desenvolvimento”, exportadores de produtos primários, menores em quase menos 20%
entre 1950 e 1972. Mas também foi ecologicamente desigual. Por volta de 1973,
enquanto a China e a União Soviética atingiam uma pegada ecológica equivalente a
100% de sua biocapacidade nacional, a pegada norte-americana já era de 176%, a do
Reino Unido, de 377%; a da França, de 141%; a da Alemanha Ocidental, de 292%; e a
do Japão, de 576%, ao passo que muitos países da África, Ásia e América Latina
continuavam em 50%.14
Entende-se que o motor da “grande aceleração” desse período foi o formidável
endividamento ecológico dos países industrializados ocidentais, que venceram o sistema
comunista e entraram em um modelo de desenvolvimento profundamente insustentável,
enquanto suas emissões maciças de poluentes e gases do efeito estufa implicaram uma
apropriação dos funcionamentos ecossistêmicos reparadores do resto do planeta. Tal
apropriação criou um fosso entre as economias nacionais que geram muita riqueza sem
submeter seu território a impactos excessivos e outras cuja economia pesa muito sobre
seu território.
Hoje, a troca ecológica desigual continua entre, de um lado, os Estados e oligarquias que
constituem os 5% mais ricos do planeta, procurando assentar seu poder econômico e
sua paz social sobre emissões de gases do efeito estufa por pessoa significativamente
acima da média mundial (ver gráfico), e, do outro lado, as regiões (insulares, tropicais e
costeiras, principalmente) e populações (essencialmente as mais pobres) que serão as
mais atingidas pelos distúrbios climáticos. Essas regiões e populações também são
aquelas cujos ecossistemas – suas florestas – são os mais chamados a contribuir para
atenuar as emissões excessivas de resíduos das regiões e populações ricas; e aquelas
que, gratuitamente – uma dívida ecológica incomensuravelmente maior que as dívidas
soberanas – ou por uma pequena remuneração, via mecanismos como o REDD
(Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) e outros mercados
de bens e serviços ambientais, constituem uma nova forma de troca desigual.
Cabe à nossa geração e aos líderes mundiais romper com essa trajetória destrutiva e
injusta. Trata-se, a longo prazo, de uma virada fundamental da geologia planetária e, a
curto prazo, da vida e da segurança de centenas de milhões de homens e mulheres, das
zonas costeiras ao Sahel, da Amazônia a Bangladesh. Que essa violência já afete
gravemente as populações mais pobres e menos responsáveis pelas emissões do
passado é um legado do Capitaloceno. Mas a opção de somar ou não a esse balanço
dezenas de milhões de deportados climáticos, novas violências, sofrimentos e injustiças
é nossa responsabilidade.
Qualquer movimento que retarde o congelamento de parte das reservas fósseis e
qualquer emissão que conduza a superar o limite de mais 2 °C (ou mesmo mais 1,5 °C,
segundo alguns climatologistas – ler artigo de Eric Martin, na p. 30) devem ser encarados
como aquilo que são: atos que atentam contra a segurança de nosso planeta, com
muitas vítimas e sofrimentos humanos em potencial.15 Embora as causalidades e os
cálculos sejam complexos, já sabemos que a cada gigatonelada de CO2 emitida acima
do “orçamento mais 2 °C” correspondem milhões de deslocados e vítimas extras. Como
Condorcet ou o abade Raynal fizeram a respeito da escravidão, ousamos afirmar: essas
emissões não controladas de gases do efeito estufa merecem ser chamadas de “crimes”.
Depois dos crimes da escravidão, do colonialismo e do totalitarismo, eis novamente
ameaçada a ideia do valor intangível da vida humana. Disso decorre, como observa o
arcebispo sul-africano Desmond Tutu, outrora engajado na luta contra o apartheid, que
reduzir nossa pegada de carbono não é uma simples necessidade ambiental, é “o maior
campo de defesa dos direitos humanos”.16 Assim, é inaceitável que indivíduos e
empresas enriqueçam por atividades climaticamente criminosas. Tutu exorta a combater
as causas e os culpados do aquecimento global como se combateu o apartheid: pelas
armas da reprovação moral, do boicote, da desobediência civil, do desinvestimento
econômico e da repressão pela lei internacional.
ABOLIÇÃO DOS CRIMES CLIMÁTICOS
Há dois séculos, pedimos que os próprios líderes das colônias e territórios escravistas
propusessem uma redução do número de escravos importados? Teríamos negociado
com os traficantes negreiros quotas de escravos? Do mesmo modo, hoje, podemos ter
esperança de avançar contando com o compromisso de Estados envolvidos em uma
guerra econômica frenética ou confiando o futuro climático à mão invisível do mercado
de carbono, pela monetização e privatização da atmosfera, do solo e das florestas?
Não deveríamos, em vez disso, procurar as forças da mudança na insurreição das
vítimas do capitalismo fóssil (militantes antiextrativistas, refugiados climáticos...) e na
indignação moral daqueles que, nos países ricos, não querem mais ser cúmplices e
manifestam isso por várias ações – soluções para viver de outra forma e melhor com
menos, campanhas para forçar os bancos a desinvestir em empresas climaticidas,
pressão sobre os governos para que passem das palavras aos atos, em termos de
redução das emissões,17 resistência aos grandes projetos desnecessários etc.?
Também é necessário um retorno da coragem política. Não há dúvida de que, se
Bartolomé de las Casas, Condorcet, Jaurès, Gandhi ou Rosa Parks vivessem hoje, a
abolição dos crimes climáticos, o desmantelamento dos noventa negreiros do carbono e
a saída do Capitaloceno seriam sua grande luta.18
Christophe Bonneuil
Christophe Bonneuil, historiador, é coautor de L’Événement Anthropocène. La Terre,
l’histoire et nous [O evento Antropoceno. A Terra, a história e nós], Seuil, Paris, 2013; e
Crime climatique. Stop! L’appel de la société civile [Basta de crime climático! O apelo da
sociedade civil], Seuil, 2015
Ilustração: Nasa/Domínio Público
1 Paul J. Crutzen, “Geology of mankind” [Geologia da humanidade], Nature, Londres, v.415,
n.23, 3 jan. 2002.
2 Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz, L’Événement anthropocène. La Terre, l’histoire et nous, Seuil, Paris, 2013; Bruno Latour, Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau
régime climatique [Diante de Gaia. Oito conferências sobre o novo regime climático], La
Découverte, Paris, 2015.
3 Ler Agnès Sinaï, “Aux origines climatiques des conflits” [As origens climáticas dos
conflitos], Le Monde Diplomatique, ago. 2015.
4 David Satterthwaite, “The implications of population growth and urbanization for climate change” [As implicações do crescimento populacional e da urbanização na mudança climática],
Environment & Urbanization, Thousand Oaks (Califórnia), v.21, n.2, out. 2009.
5 Calculado em dólares de 1990 a partir dos dados de Thomas Piketty, em O capital no século XXI, Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014.
6 Jason Moore, Capitalism in the Web of Life [Capitalismo na teia da vida], Verso, Londres, 2015; Andreas Malm, Fossil Capital. The Rise of Steam-Power and the Roots of Global Warming
[Capital fóssil. A ascensão da energia a vapor e as raízes do aquecimento global], Verso, 2015.
7 François Bourguignon e Christian Morrisson, “Inequality among world citizens: 1820-1992” [A desigualdade entre os cidadãos do mundo: 1820-1992], The American Economic Review,
Nashville, v.92, n.4, set. 2002.
8 Richard Heede, “Tracing anthropogenic carbon dioxide and methane emissions to fossil fuel and cement producers, 1854-2010” [Rastreamento de dióxido de carbono antropogênico e
emissões de metano para combustíveis fósseis e produção de cimento, 1854-2010], Climatic Change, Berlim, v.122, n.1, jan. 2014.
9 Immanuel Wallerstein, Comprendre le monde. Introduction à l’analyse des systèmes-monde [Entender o mundo. Introdução à análise dos sistemas-mundo], La Découverte, 2006.
10 Para o método e os resultados recentes, ver .
11 Kenneth Pomeranz, Une grande divergence. La Chine, l’Europe et la construction de
l’économie mondiale [Uma grande divergência. China, Europa e a construção da economia global], Albin Michel, Paris, 2010.
12 Alf Hornborg, Global Ecology and Unequal Exchange. Fetishism in a Zero-Sum World [Ecologia global e troca desigual. Fetichismo em um mundo de soma zero], Routledge, Londres,
2013.
13 Anke Schaffartzik et al., “The global metabolic transition: Regional patterns and trends of global material flows, 1950-2010” [A transição metabólica global: padrões regionais e tendências
dos fluxos materiais globais, 1950-2010], Global Environmental Change, v.26, maio 2014.
14 “National Footprint Accounts 1961-2010, 2012 Edition” [Pegada ecológica por país, 1961-2010, Edição 2012], Global Footprint Network, 2014. Disponível em: .
15 Neyret Laurent (org.), Des écocrimes à l’écocide. Le droit pénal au secours de l’environnement [Do ecocrime ao ecocídio. O direito penal em defesa do meio ambiente], Bruylant,
Bruxelas, 2015; Valérie Cabanes, “Crime climatique et écocide: réformer le droit pénal international” [Crime climático e ecocídio: reformar o direito penal internacional]. In: Crime
climatique. Stop! L’appel de la société civile [Basta de crime climático! O apelo da sociedade civil], Seuil, 2015.
16 Desmond Tutu, “Nous avons combattu l’apartheid. Aujourd’hui, le changement climatique
est notre ennemi à tous” [Nós lutamos contra o apartheid. Hoje, o inimigo de todos nós é a mudança climática]. In: Crime climatique. Stop!, op.cit.
17 Ver, por exemplo, Andrea Barolini, “Une décision historique: un tribunal néerlandais
impose à l’État d’agir contre le changement climatique” [Decisão histórica: um tribunal holandês obriga o Estado a tomar medidas contra a mudança climática], 25 jun. 2015. Disponível em: .
18 Ver a petição “Laissons les fossiles dans le sol pour en finir avec les crimes climatiques”
[Deixemos os fósseis no solo para acabar com os crimes climáticos] . Disponível em: .
COMO EVITAR O CAOS CLIMÁTICO?
No início, eram só bolhas na Antártida
Ao revirar arquivos climáticos preservados nas calotas polares, um grupo de especialistas em gelo demonstrou o papel desempenhado pelo CO2 no aquecimento climático. Um deles conta aqui como essa descoberta científica se tornou um desafio político mundial
por Dominique Raynaud
Desde os anos 1960, nossa jovem equipe tentava extrair o gás contido em núcleos de gelo retirados da Antártida. A ideia fora de Claude Lorius, fundador do grupo, ao observar as miríades de pequenas bolhas que escapavam de um cubo de gelo, formado há milhares de anos, quando o mergulhava num copo de uísque.1 Com nossos colegas do Instituto de Física da Universidade de Berna, partilhávamos o sonho de reencontrar as variações do gás carbônico (CO2) na atmosfera do passado. As medidas tomadas sistematicamente desde 1958 por David Keeling no Observatório de Mauna Loa, no Havaí, sugeriam que as atividades humanas modificavam as concentrações desse gás. Esperávamos também confirmar a previsão do químico sueco Svante Arrhenius, formulada em 1896, a propósito do papel do CO2 no ciclo das glaciações. Nossa motivação vinha, sobretudo, da esperança de descobrir os tesouros escondidos da Antártida. A decodificação dos arquivos do clima
representava um desafio considerável, e não apenas porque nosso terreno de pesquisa era acossado por frios extremos e ventos impetuosos. Após o longo trabalho de instalar as brocas para perfurar uma calota com quilômetros de espessura, a datação dos núcleos de gelo e a determinação exata de sua composição representavam um verdadeiro quebra-cabeça. Mais de dez anos de trabalho em laboratório, pontilhados de momentos de esperança e desânimo, foram necessários para resolvê-lo. QUESTIONAMENTOS AO CONJUNTO DA HUMANIDADE Em 1980, as bolhas de ar aprisionadas pelo frio começaram a revelar seus segredos. Confirmaram que a atmosfera da última era glacial máxima, há 20 mil anos, continha menos gás carbônico. Esse valor corroborava a hipótese de Arrhenius, que atribuía o resfriamento da era glacial a uma queda de 40% na concentração de CO2. A etapa mais marcante ocorreu em 1º de outubro de 1987, com a publicação conjunta de três artigos na revista Nature.2 Com glaciólogos franceses e soviéticos trabalhando ombro a ombro, mostramos que o conteúdo de gás carbônico na atmosfera e a temperatura desta evoluíram paralelamente no curso dos últimos 170 mil anos, ou seja, a totalidade do último ciclo glacial-interglacial.3 Nossa demonstração se apoia, pois, na análise meticulosa do núcleo de gelo retirado na estação antártica de Vostok. Desde então, os arquivos polares confirmaram a correlação entre o CO2 e a temperatura ao longo de 800 mil anos, que perfazem oito ciclos astronômicos completos (ver a curva na p. 20).4 Outras medidas estabeleceram igualmente o vínculo entre a proporção de metano (CH4) na atmosfera e a temperatura, o que dá consistência à ideia de que as variações do efeito estufa desempenharam um papel importante nas mudanças climáticas do passado. Tais descobertas nos escaparam e passaram a questionar o conjunto da humanidade. Um ano após a publicação dos resultados de Vostok, por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM), nascia o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPPC). Sua missão, à qual nos associamos, era e continua sendo avaliar periodicamente o estado dos conhecimentos científicos, socioeconômicos e técnicos sobre as alterações do clima. O exame do vínculo provável entre as atividades humanas e a evolução climática se colocava dali em diante no âmbito dos governos. A curva de Mauna Loa mostrava, sem ambiguidade, o aumento constante do CO2, o que não permitia mais nenhuma dúvida quanto à sua origem antrópica. Além do mais, o ar fóssil capturado em Vostok revelava que a taxa de CO2 na atmosfera dos anos 1980 (352 ppm, isto é, 0,0352% em volume)5 sem dúvida não fora jamais igualada no curso do último grande ciclo glacial-interglacial. Assim, a curva de Mauna Loa e a de Vostok tinham uma dimensão icônica na gênese de uma tomada de consciência. Essas revelações abalavam a tranquilidade dos pesquisadores. Seria conveniente insistir na ciência fundamental ou entrar em contato, amplamente, com os dirigentes políticos e com os cidadãos? Certamente, devíamos de preferência continuar propondo nossos trabalhos às revistas científicas de repercussão internacional a fim de validar a qualidade dos
resultados e sua interpretação. Essa postura é imprescindível para garantir às descobertas um grau razoável de credibilidade. O mundo dos pesquisadores é tão diversificado quanto o gênero humano. Alguns querem tomar o máximo de precauções para garantir que eliminaram qualquer possibilidade de erro e de interpretação antes de apresentar seus trabalhos. Outros – a maioria – divulgam mais rapidamente suas descobertas, anexando uma lista das possíveis fontes de erro e das diversas interpretações viáveis. Debatemos acaloradamente essas duas opções no momento de publicar nossos resultados na Nature. Por fim, prevaleceu a atitude fundada sobre a dúvida racional, e os trabalhos posteriores corroboraram as primeiras demonstrações. Hoje, o estado dos conhecimentos evolui depressa graças aos progressos tecnológicos e à modelização. O número cada vez maior de publicações científicas permitiu à climatologia avançar celeremente durante as últimas décadas. Uma das principais missões do IPCC consiste, de resto, em examinar e avaliar essa literatura científica. Convidado pelo IPCC a me tornar um dos autores principais do capítulo concernente ao ciclo do carbono, pude vivenciar a extraordinária riqueza intelectual e científica da interdisciplinaridade. Outrora os pesquisadores, sobretudo jovens, não tinham tantas chances de intercâmbio. Isso também me permitiu acesso ao conjunto da literatura sobre o ciclo do carbono, a atmosfera, o oceano, os continentes, as diversas escalas de tempo. Todas essas enciclopédias vivas estavam reunidas em torno de uma mesa para elaborar o balanço exato do saber em seu campo, antes de confrontá-lo com o trabalho de outros grupos. Quando, em seguida, me tornei o autor principal e depois o revisor de um capítulo sobre a paleoclimatologia, meu entusiasmo não arrefeceu. Milhares de cientistas do mundo inteiro contribuíram para os trabalhos do IPCC desde sua fundação. Postas em comum, suas especialidades cobrem o conjunto dos domínios necessários à determinação do estado dos conhecimentos. Nada mais legítimo que questionar a independência dos cientistas, sobretudo quando eles são convocados pela política ou quando lobbies de poder financeiro considerável tentam promover conjecturas em interesse próprio. Como poderia o cientista não correr o risco de se enganar, de ver seus trabalhos instrumentalizados ao entrar no campo político, cujos códigos não domina? Creio ter contribuído com algumas realizações modestas, mas nem por isso consigo vislumbrar como os climatologistas oriundos da pesquisa pública, esses forjadores do saber em nosso campo, seriam globalmente utilizados por um grupo de lobistas ou renunciariam à sua independência de espírito. Não é fácil imaginar que todos os 259 pesquisadores em ciência do clima que integraram o último relatório do grupo 1 do IPCC sejam culpados de conivência – tanto mais que o processo de avaliação do documento reuniu perto de 50 mil comentários de especialistas dos mais variados domínios, aos quais os autores foram obrigados a responder. Hoje, os 195 países-membros do IPCC participam dos trabalhos sobre a compreensão da máquina climática e as causas da mudança (grupo 1), sobre suas repercussões potenciais (grupo 2) e sobre as estratégias de contenção (grupo 3). Será preciso lembrar também que essa pequena organização (doze funcionários), com sede em Genebra, requer a
colaboração desinteressada de vários especialistas? Criticado às vezes, o consenso que preside à redação dos relatórios provém de um processo, não de um posicionamento prévio. Esse modo de agir não é incompatível com o respeito aos escrúpulos do pesquisador: ele não sabe tudo e não esquece jamais que a verdade científica só existe de forma transitória. Novas descobertas podem sempre invalidar um resultado. Não obstante, haverá melhor maneira de orientar decisões? Encarregado de fomentar a reflexão política para fazer face a esse desafio maior que nossa civilização enfrenta, o IPCC constitui uma experiência institucional única. Hoje, ele é referência para o estudo da situação vulnerável da biodiversidade e talvez, amanhã, possa sê-lo para outros domínios, como os riscos tecnológicos. Desde Louis Pasteur e da doença do bicho-da-seda, os cientistas têm sido muitas vezes recrutados para encontrar armas contra as ameaças que pesam sobre os homens – nem sempre com êxito. Mas nunca um número tão grande deles se pôs a serviço de tantas nações a fim de resolver um problema ao qual ninguém poderá escapar. Eles desempenham um papel de destaque no diagnóstico do aquecimento em curso, e seus dados constituirão a base dos debates que serão travados e das decisões que serão tomadas durante a Conferência de Paris. Muitos se envolveram nas avaliações do IPCC; alguns testemunharam diante do Parlamento de seus países ou do grande público, por ocasião de cúpulas e debates. Os trabalhos e atos dos cientistas colocam os políticos frente a frente com suas responsabilidades para com as gerações futuras. Em nossa época – quando, por toda parte, as instituições investem principalmente na pesquisa aplicada –, podemos atestar, apoiados em nossa própria experiência, que não pode haver descobertas importantes nem análises confiáveis sobre o risco climático sem a colaboração da pesquisa de base. Para além do clima, conseguimos mensurar os benefícios de uma cooperação internacional desvinculada das rivalidades políticas – por exemplo, a que logramos estabelecer com os soviéticos em plena Guerra Fria. Dominique Raynaud Dominique Raynaud é diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), no Laboratório de Glaciologia e de Geofísica do Meio Ambiente de Grenoble, e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Ilustração: Nasa/Domínio Público 1 Claude Lorius e Laurent Carpentier, Voyage dans l’anthropocène. Cette nouvelle ère dont nous sommes les héros [Viagem ao Antropoceno. Essa nova era da qual somos os heróis], Actes Sud, Arles, 2013. 2 Nature, n.329, Londres, 1º out. 1987. 3 As imperfeições da mecânica celeste (efeito pião e obliquidade do eixo de rotação da Terra, excentricidade de sua elipse em torno do Sol) e o efeito estufa natural produzem há 1 milhão de anos fases glaciais
frias, de cerca de 80 mil anos, que sucedem a fases interglaciais quentes, de cerca de 20 mil anos. 4 Science, Washington, v.317, 10 ago. 2007; e Nature, v.453, 15 maio 2008. 5 Dados recentes indicam que a taxa de co2 atual (399 ppm, isto é, 0,0399%) não foi igualada no curso do último milhão de anos.
COMO EVITAR O CAOS CLIMÁTICO?
Crescimento ou clima: é preciso escolher
Os negociadores da COP de Paris vão varrer para debaixo do tapete a incompatibilidade entre a
limitação do aquecimento do planeta e a busca infinita por crescimento econômico. Quando este
for retomado pelos países desenvolvidos, os objetivos climáticos se tornarão inatingíveis. Outros
caminhos rumo ao progresso humano
por Jean Gadrey
Existem múltiplas explicações para a “queda tendencial da taxa de crescimento”1
observada há diversas décadas nos países ricos e mais recentemente nos emergentes.
Mesmo os economistas mais midiáticos começam timidamente a imaginar a hipótese de
um mundo sem crescimento, ao menos nos países ditos avançados. É o caso, nos
Estados Unidos, de Paul Krugman e Larry Summers, para quem “uma estagnação
secular é plausível”.2 Na França, Thomas Piketty também alerta: “Seria razoável apostar
no retorno do crescimento para resolver todos os nossos problemas? Isso não resolveria
os desafios essenciais que os países ricos devem enfrentar”.3 Por sua vez, Daniel
Cohen nos exorta: “Libertemo-nos de nossa dependência do crescimento”.4 Algumas
andorinhas não fazem verão, mas esses exemplos não são insignificantes, ainda que
nenhum reclame a intervenção de um fator explicativo essencial: o esgotamento, já em
andamento, da maioria dos recursos naturais do crescimento.
No entanto, o culto está tão impregnado na mentalidade dos dirigentes políticos que,
mesmo quando eles proferem discursos exaltados sobre a luta contra a mudança
climática, eles se apressam em lembrar que o crescimento continua um imperativo.
François Hollande deu o tom, em discurso em Sassenage (Isère), em agosto de 2015:
“Vocês sabem que a França vai acolher a Conferência sobre o Clima; ela deve, portanto,
ser exemplar. Ao mesmo tempo, a transição energética, a questão climática, também são
desafios para o crescimento. Nós queremos apoiar o crescimento, estimulá-lo.
Definitivamente, ele está presente quando utilizamos os instrumentos da transição
energética”. O presidente francês em seguida pronunciou a palavra “crescimento”
catorze vezes em dois minutos, em particular nesta sequência: “Meu objetivo é a
diminuição do desemprego, e a redução dos impostos é também uma maneira de atingir
um maior crescimento. Pois há mais consumo, mais confiança, e haverá mais
crescimento. Tudo, assim, está ligado ao crescimento; o crescimento pode também nos
permitir atingir a diminuição dos impostos, e a redução dos impostos, a ter mais
crescimento”.5
Como pretender ser exemplar sobre o clima ligando tudo ao crescimento? Essa
contradição não incomoda diversos dirigentes, que partilham uma nova religião: o
“crescimento verde”, uma transição destinada a estimular o crescimento, o qual facilitará
a transição. O ex-presidente norte-americano George W. Bush tinha resumido seu credo
em matéria de meio ambiente com a seguinte fórmula: “O crescimento econômico não é
o problema, é a solução”.6
O MITO DO CRESCIMENTO VERDE
Com certeza, diante da mudança climática e de outras manifestações da crise ecológica,
seria preciso investir maciçamente nas energias renováveis, no isolamento dos prédios,
na eficiência energética, na agroecologia, na mobilidade sustentável etc., e então
organizar o crescimento. Mas, ao colocarmos a tônica nos setores específicos cuja
expansão seria desejável, ignoramos as questões mais incômodas. Quais atividades e
produções devem necessariamente diminuir, levando em conta seu impacto negativo
sobre o clima, a biodiversidade, a saúde humana...? Além disso, qual proporção dos
combustíveis fósseis seria imperativamente necessário deixar no solo para limitar o
aquecimento? E se for entre 60% e 80%, como afirmam as avaliações mais recentes,
que consequências podem existir num crescimento mundial ainda amplamente
propulsionado por essa matriz? Mais amplamente, o crescimento econômico, mesmo
fraco, é compatível com as taxas de redução de emissões de gases do efeito estufa hoje
exigidas para não ultrapassar os limites críticos de concentração na atmosfera?
Devemos ao economista Michel Husson7 projeções bem simples, que permitem
determinar daqui até 2050 a taxa de crescimento do PIB mundial – ou do PIB per capita
– compatível com os diferentes cenários do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC). Ele as estabeleceu em função das hipóteses sobre o ritmo de redução
da “intensidade CO2 do PIB mundial”.8 Conclusão: “O objetivo-piso do IPCC [uma
divisão por dois das emissões globais entre 2010 e 2050] só pode ser atingido graças a
uma combinação de hipóteses muito otimistas sobre o ritmo de redução da intensidade-
CO2 do PIB [menos 3% por ano, ou seja, o dobro do ritmo observado nos últimos vinte
anos] e a aceitação de uma diminuição marcada do crescimento do PIB per capita [0,6%
por ano em média no mundo]. Já o objetivo mais ambicioso – uma diminuição de 85%
das emissões de CO2 daqui até 2050 – parece completamente inatingível”. Isso exigiria
um efeito de redução drástica da intensidade-CO2 e uma redução absoluta do PIB per
capita.
É o mesmo que dizer que o “crescimento verde” é um mito, se postularmos, unindo
esses dois termos, um crescimento compatível com a finitude dos recursos materiais
(combustíveis fósseis, minerais, terras aráveis, florestas, água...) e com uma estrita
limitação dos riscos climáticos e outros danos causados aos oceanos, à biodiversidade
etc. Mas, então, como pensar em um mundo livre desse culto? Seria preciso aceitar uma
regressão social em nome da ecologia?
Os devotos do crescimento estão encerrados em esquemas de pensamento nos quais o
futuro só pode se parecer com uma reativação do passado. Eles não imaginam que se
possa “perseguir” outra coisa além das quantidades produzidas e consumidas com
grande reforço das campanhas publicitárias, da obsolescência programada e da vida a
crédito. E eles retomam seu argumento preferido: sem um crescimento suficientemente
forte e contínuo, não há criação de empregos, não há redução do desemprego! O
triângulo ideológico do liberal-crescimentismo – a competitividade das empresas produz
o crescimento, que produz o emprego – é de um simplismo aflitivo. No entanto, ele
continua orientando as decisões políticas.
Na realidade, os agentes dominantes do capitalismo neoliberal adoram o desemprego
como dispositivo disciplinar que os autoriza, por um lado, a frear as reivindicações
salariais e, por outro, a intensificar e aumentar a precariedade do trabalho para elevar os
lucros. Nenhum projeto pós-crescimento chegará ao fim se não convencer que a
“perseguição” do bem viver em um ambiente preservado é claramente mais eficiente
para vencer o desemprego do que as receitas batidas do liberal-crescimentismo.
E, contudo, o crescimento só é necessário para a criação de empregos no modelo atual,
que repousa na busca perpétua de ganhos de produtividade: produzir sempre mais com
o mesmo volume de trabalho. Nesse modelo, um crescimento nulo ou fraco, mais fraco
que os ganhos de produtividade, leva à regressão do volume de trabalho e, portanto, do
volume de empregos se o tempo de trabalho médio por pessoa permanece inalterado.
Podemos com certeza então reivindicar medidas de redução ou de partilha do tempo de
trabalho – é essa inclusive a resposta mais eficiente para o aumento do desemprego a
curto e médio prazo; mas nem por isso saímos do produtivismo.
Para isso, deve-se trocar o velho programa da “partilha dos ganhos de produtividade”,
herança dos “Trinta Gloriosos Anos” e do fordismo, pelo da partilha dos ganhos de
qualidade e sustentabilidade. Orientar o sistema de produção e de consumo segundo
uma lógica qualitativa do “tomar conta” (das pessoas, das relações sociais, dos objetos,
da biosfera...), colocando a qualidade dos bens comuns sociais e ecológicos no coração
das atividades humanas e da política: sobriedade na quantidade, prosperidade na
qualidade. Isso implica também combater as desigualdades, para que os novos modos
de consumo sejam acessíveis a todos. Aliás, esta é a principal condição para que os
meios populares não vejam essa transição como marca de uma ecologia punitiva.
OUTRA ECONOMIA, MELHORES EMPREGOS
Constataríamos então que essa economia mais suave com os humanos, com a natureza
e com o trabalho, privilegiando as low tech (as “baixas tecnologias”, em oposição às
“altas tecnologias”, que não por isso exigem menos inovação), oferece bem mais
empregos plenos de sentido do que a economia produtivista atual. Por uma razão
simples: para quantidades idênticas, portanto, sem crescimento, seria necessário mais
trabalho humano para produzir de forma limpa, verde e saudável, em boas condições de
trabalho e de emprego. A agricultura orgânica, por exemplo, requer cerca de 30% a 40%
a mais de trabalho do que a industrial e química para produzir as mesmas quantidades
de frutas, legumes, cereais etc.
Essa visão de outra “grande transformação” é irrealista? Não, porque tais soluções já
estão sendo empregadas um pouco em todo o mundo. Elas funcionam e tendem até
mesmo a se difundir, a despeito das tentativas de impedimento dos bajuladores do velho
modelo, que ainda estão no controle. Encontramos diversos exemplos comprobatórios –
na Índia, na América Latina, na África, nos Estados Unidos e na Europa –, em diversas
obras e documentários recentes,9 sem falar das experiências locais organizadas pela
rede Alternatiba e sua associação fundadora no País Basco, Bizi! (“Viver!”, em basco).
Cabe aos cidadãos, na maior parte das vezes contornando os dirigentes políticos e, mais
raramente, com seu apoio, se insurgir e generalizar essas lógicas nas quais a tríade
competitividade/crescimento-consumismo-empregos indecentes/desemprego dá espaço
a outra: cooperação/bem viver-sobriedade material-empregos decentes/atividades úteis...
Jean Gadrey
Economista
1 Cf. os quatro posts publicados a esse respeito em 2009 no blog do autor: .
2 Paul Krugman, “Secular stagnation, coalmines, bubbles, and Larry Summers” [Estagnação secular, minas de carvão, bolhas e Larry Summers], The Conscience of a Liberal, 16
nov. 2013. Disponível em: .
3 Thomas Piketty, “La croissance peut-elle nous sauver?” [O crescimento pode nos
salvar?], Libération, Paris, 23 set. 2013.
4 Le Monde, 6 jan. 2014.
5 “Discurso durante seu deslocamento a Sassenage em Isère”, 21 ago. 2015. Disponível em: www.elysee.fr.
6 Discurso diante da National Oceanic and Atmospheric Administration, Silver Spring (Maryland), 14 fev. 2012.
7 Michel Husson, “Un abaque climatique” [Um ábaco climático], nota n.89 (PDF), 20 ago.
2015. Disponível em: http: hussonet.free.fr.
8 O termo designa as emissões de CO2 por unidade de PIB produzido.
9 Cf. principalmente bénédicte manier, un million de révolutions tranquilles [um milhão de
revoluções tranquilas], les liens qui libèrent, paris, 2012; marie-monique robin, sacrée croissance! [crescimento sagrado!], la découverte, 2014; collectif des associations citoyennes (cac), l’écologie
au quotidien [a ecologia no cotidiano]. disponível em: www.associations-citoyennes.net