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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016 O comércio de escravos yao e os missionários britânicos na África Centro-Oriental (1850-1890) Thiago de Araujo Folador 1 1. O comércio de escravos yao e o projeto missionário O Processo histórico do tráfico de escravo entre as sociedades yaos, ao norte do atual Moçambique, enquadra-se em um contexto de expansão das atividades comerciais escravistas na costa oriental da África sob influência europeia. Especificamente, observa-se a partir da década de 1770 um aumento da demanda francesa por escravos associada às plantações de açúcar nas ilhas Mascarenhas. Esse tráfico foi intensificado pela exploração portuguesa da mão de obra escrava no Brasil, em especial a partir da década de 1790, e depois da independência por mercadores propriamente brasileiros. Além disso, a presença árabe na região costeiras da África, com o deslocamento da sede de Omã para Zanzibar em 1840 e a exploração de produções agrícolas, especialmente as plantações de cravo, que sustentaram o comércio de escravos do interior ao longo do século XIX. (ALPERS, 1975, p. 84- 87; SHERIFF, 1987). Decorrente desses processos, configuram-se entre os yaos, assim como em outras sociedades africanas envolvidas nesse mesmo cenário, importantes transformações em suas organizações político-sociais, como demonstraram J. Capela e E. Medeiros para os macua- lomué (1987, p.91-94). As pequenas organizações associadas ao núcleo familiar yao 1 Mestrando em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas/Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Dr. Maria Cristina Cortez Wissenbach. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]

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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões

XV Simpósio Nacional de História das Religiões

ABHR 2016

O comércio de escravos yao e os missionários britânicos na África Centro-Oriental

(1850-1890)

Thiago de Araujo Folador1

1. O comércio de escravos yao e o projeto missionário

O Processo histórico do tráfico de escravo entre as sociedades yaos, ao norte do atual

Moçambique, enquadra-se em um contexto de expansão das atividades comerciais

escravistas na costa oriental da África sob influência europeia. Especificamente, observa-se a

partir da década de 1770 um aumento da demanda francesa por escravos associada às

plantações de açúcar nas ilhas Mascarenhas. Esse tráfico foi intensificado pela exploração

portuguesa da mão de obra escrava no Brasil, em especial a partir da década de 1790, e

depois da independência por mercadores propriamente brasileiros. Além disso, a presença

árabe na região costeiras da África, com o deslocamento da sede de Omã para Zanzibar em

1840 e a exploração de produções agrícolas, especialmente as plantações de cravo, que

sustentaram o comércio de escravos do interior ao longo do século XIX. (ALPERS, 1975, p. 84-

87; SHERIFF, 1987).

Decorrente desses processos, configuram-se entre os yaos, assim como em outras

sociedades africanas envolvidas nesse mesmo cenário, importantes transformações em suas

organizações político-sociais, como demonstraram J. Capela e E. Medeiros para os macua-

lomué (1987, p.91-94). As pequenas organizações associadas ao núcleo familiar yao

1 Mestrando em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas/Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Dr. Maria Cristina Cortez Wissenbach. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]

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(mbumba) sofreram mudanças com o desenvolvimento do comércio de escravos a partir do

final do século XVIII e, sobretudo, nos anos 1830-1840 decorrentes do aumento da

exportação de escravos no final do período do tráfico legal para as Américas. Assim,

desencadeou na formação das chamadas grandes chefaturas entre os yaos, por exemplo,

Matola, Metarica, Macanjila e, principalmente, Mataca. (PHIRI, 1984, p. 53-69; ALPERS,

1969, p. 405-20).

Os acordos entre as nações europeias pelo fim do tráfico transoceânico não

encerram nem o próprio tráfico, nem a escravidão. J. Capela (2002, p. 54) demonstra como

esse grande negócio continua em operação, ainda que ilegal ou sob a forma de contratos

(livre engagé), prática empregada por comerciantes franceses. Além disso o tráfico de

escravos e o uso dos mesmos no mundo árabe permanecia. As plantações de cravo, grãos e

coco eram ainda grandes consumidoras da mão de obra escrava nas ilhas de Zanzibar e

Pemba até a década de 1870, além disso, o tráfico legal para o Golfo Pérsico não cessaria

antes da década de 1890 (SHERIFF, 1987, passim).

Nesse momento da formação de lideranças político-militares baseada nos processos

de escravização e comércio de escravizados e ampliação de uma atividade anti-tráfico por

parte do governo britânico, observa-se a atuação dos missionários da UMCA entre os yaos e

outras populações africanas. Se de um lado os acordos britânicos com outras potências

europeias e lideranças locais, em especial árabes, para o fim do tráfico de escravos e em

alguns casos sua emancipação, por outro lado observa-se a continuidade de uma demanda e

de redes de abastecimento até o final do século XIX.

Os missionários providos de sua ideologia antiescravista marcados pelo ideologia do

cristianismo e o comércio como elemento de civilização marcada no pensamento de D.

Livingstone, produziram consequentemente uma série de escritos nos quais é possível

perceber, direta e indiretamente, as dinâmicas existente do comércio de escravos. Cria-se,

então, uma arena de disputas de interesses econômicos e políticos, por parte da atuação do

governo britânico na África, e cultural, com a presença do cristianismo frente as culturas

africanas.

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2. As origens e atuação da Universities’ Mission to Central Africa

A expedição liderada pelo missionário David Livingstone ao Vale do Zambeze, em

meados do século XIX, foi significativa para a atuação missionária que se desenvolveria na

região, consequentemente na relação com os yao. Após o regresso a Londres, o missionário

organiza um livro de grande sucesso editorial sobre sua expedição. O texto foi baseado em

seus escritos compilados por seu irmão Charles Livingstone, que também o acompanhara

durante a viagem. (LIVINGSTONE, 1865). Na ocasião, David Livingstone pronunciou-se diante

do público britânico em um discurso entusiasmado, relatam os missionários, sobre a

existência do comércio de escravos no hinterland e sobre a necessidade de uma atuação do

cristianismo e o comércio legítimo, em geral, produtos agrícolas, que teria marcado o

projeto missionário britânico no século XIX, em especial na África Centro Oriental

(ANDERSON-MORSHEAD; 1897, p. 4-5).

Nesses termos foi organizada a segunda expedição de Livingstone para a África

Centro-Oriental, em 1866, viagens que se mantiveram até seu falecimento, em 1873.

Seguindo o curso do Rio Rovuma e a margem leste do Lago Niassa foi possível um contato

mais próximo com as populações yaos e importantes lideranças, como os Mataca, Metarica

e Macanjila. (WALLER, 1874). Deve-se destacar que no período da expedição de Livinsgstone

a região era tomada pelas hostilidades entre os yaos e os angonis e os nianjas e mesmo

entre os próprios chefes yaos que alimentava o comércio de escravos (STUART, 1985, p. 14).

Assim havia o interesse britânico na política antiescravista como justificativa para sua

ocupação por meio da defesa do comércio e uma atuação missionária (PACHAI, 1973, p. 71).

Para o historiador René Pélissier, Livingstone teve um papel importante na opinião

internacional sobre a atuação dos yaos no despovoamento do Niassa por meio do comércio

de escravos (PÉLISSIER, 1987, p. 346).

A partir das proposições colocadas anteriormente por Livingstone, as universidades

inglesas Oxford e Cambridge organizaram The Oxford and Cambridge Mission to Central

Africa (1859), posteriormente com a entrada das universidades de Dublin e de Durham

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(1860) renomeada para Universities' Mission to Central Africa (Missão das Universidades

para a África Central). (ANDERSON-MORSHEAD, 1897. pp. 4-6).

O primeiro grupo de missionários mobilizados para a região do Niassa e Vale do Alto

Chire foi chefiado pelo bispo Charles Mackenzie, em 1861. A missão não chegou a alcançar a

costa do lago Niassa, dadas as dificuldades de penetração no interior e da malária, tendo

sido o próprio Mackenzie vítima da doença, em 1862. Nessa altura as primeiras atividades da

UMCA se concentraram em Mangomero, próximo ao lago Chirua, ao sul do Niassa. (ROWLEY,

1867, passim).

Diante das dificuldades de se manter nas regiões mais ao interior, sob a ordem do

bispo sucessor George Wiliam Tozer, a Missão é transferida para a Ilha de Zanzibar, em 1864.

São significativos nesse período a criação de escolas para formação de professores africanos

para atuação na região e para permitir a expansão da missão para o interior.

A situação seria alterada após a circum-navegação e o mapeamento do Lago Niassa

pelo tenente da Marinha britânica E. D. Young, em 1875, com o início então a uma "corrida

ao Niassa", na expressão de Pélissier (1987, p. 347) dada a expansão da atividade na região

para além da UMCA, a Free Church e a Established Church, com um considerável número de

missionários mobilizados para atuarem no interior

De acordo com os estudiosos, baseados nos relatos dos missionários da UMCA, por

volta da década de 1870 os britânicos eram o principal grupo de europeus nas proximidades

do Niassa e Vale do Chire a atuarem junto aos africanos (MEDEIROS, 1997, p. 115-6). Em

1874, o missionário Edward Steere assume o cargo de bispo da missão e dirige maior

atenção para as relações com o interior. As primeiras aproximações com os chefes yaos são

realizadas em 1875. Entretanto, o estabelecimento de uma estação da missão só ocorreu em

1893. (ANDERSON-MORSHEAD, 1897. P. 378).

Assim a última década do século XIX foi marcada pelo importante posto missionário

na vila de Unango, em 1893, decorrente de um longo processo iniciado, em especial, pelo

bispo Edward Steere de aproximação com os yaos, em especial o Mataca. A estação de

Unango, por sua vez esteve ligada a nova sede da UMCA que foi dividida em 1892, criando

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uma nova diocese para a região da Niassalândia além daquela existente em Zanzibar,

realizada sob o comando de Charles Alan Smythies, após suceder Steere, em 1883.

Além disso, a atuação da UMCA viria na década de 1880 sofrer com as rivalidades

entre as potências europeias na África. A região onde os missionários atuavam estava no

centro de disputas entre Portugal, Alemanha e Inglaterra. Favorecida pela atuação

missionária, em 1890 foi proclamado o Protetorado do Zanzibar e em 1891 o Protetorado do

Niassalândia, como parte do império britânico.

A partir desse momento as missões começam a dividir espaço com as expedições

militares e das explorações portuguesas na região e o estabelecimento de acordos com

lideranças locais. A instalação da Companhia do Niassa na década de 1890, mas atuando

mais ativamente nas primeiras décadas do XX, junto com a entrada de missões católicas

teriam o efeito de dispersar os missionários britânicos. Esses, por sua vez, se concentraram

nos domínios britânicos do Niassalândia e Zanzibar, onde exerceram uma atividade que

entra pelo século XX a dentro. Assim entre as décadas de 1880 e 1890, para o historiador R.

Stuart, a atuação da UMCA teve “um papel significativo ao neutralizar as ações dos yaos e

ngonis, inimigos dos nianja, e ao estreitar os laços com o que vira a ser o Niassalândia

Britânica” (STUART, 1985, p. 12).

3. A produção missionária: o acervo bibliográfico da UMCA

A atividade missionária não esteve distante das relações com a expansão das

fronteiras imperiais e atuação britânica. Assim, as produções dos escritos missionários estão

associadas a um contexto de disputas territoriais na África, descobertas científicas,

valorização das narrativas de viagem, bem como a perpetuação das memórias dos

missionários.

Nesse sentido, alguns veículos foram importantes para a difusão do exercício

missionário na África Centro-Oriental, como o periódico Proceedings of the Royal

Geographical Society (PRGS), as publicações editadas pela própria UMCA, além de outras

publicações dos próprios missionários. A Royal Geographical Society havia sido criada em

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estreita relação com esse contexto e com a de produção de um conhecimento e coleta de

materiais, associado com a elaboração de um pensamento geográfico científico, cujo o

período de 1850 a 1860 foi marcado por uma produção africanista.2 Nesse contexto são

marcantes das as publicações de D. Livingstone; no que se refere diretamente a presença da

UMCA podem ser considerados ainda alguns textos dos missionários Chauncy Maples (1882)

e W. P. Johnson (1882; 1884).

No entanto uma parcela considerável dos relatos – diários, ensaios, discursos,

correspondências – está disponível via publicações organizadas posteriormente a atuação

dos missionários, em alguns casos in memoria. Nesse sentido, encontram-se textos

realizados durante o exercício dos missionários organizados pelos missionários, sendo que a

própria UMCA também editou uma parcela considerável de obras, divulgando suas

memórias e atividades no continente africano.

Muitas publicações, ainda que em referência a escritos de agentes centrais das

missões, como os bispos das dioceses, foram realizadas por outros participantes das

estações que estiveram em contato com os missionários e o cotidiano da UMCA. Nesse

cenário podemos destacar as compilações realizadas por Horace Waller, membro da Anti-

Slavery Society e missionário da UMCA ligado a primeira atividade missionária durante a

atuação de C. Mackenzie. Waller era próximo a D. Livingstone, sendo assim lhe coube a

responsabilidade pelos seus escritos e a compilação da publicação de seus últimos diários.

(LIVINGTONE, 1874). Além disso, destacam-se outros escritos de sua autoria sobre a região

do Niassa e, em especial, sobre a escravidão na África centro-oriental (WALLER, 1877, 1887).

Gertrude Ward, enfermeira UMCA no posto em Magila (sul da atual Tanzânia)

também apresentou uma contribuição importante. Durante sua atividade entrou em contato

com outros missionários e proximidade com o cotidiano da missão. Assim escreveu alguns

relatos e organizou compilações de escritos, entre eles os bispos Charles Alan Smythies

(WARD, 1898) e William G. Tozer (WARD, 1902).

2 Uma discussão sobre a Royal Geographical Society pode ser encontrada em A. Gebara (2010) ao estudar os escritos de Richard Burton.

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A maior parte da produção observada está associada a figuras centrais da missão e a

suas principais lideranças na África. Mas os acervos ainda são compostos por algumas obras

de pessoas ligadas à missão que registraram a respectiva trajetória histórica entre as quais

podemos destacar Henry Rowley (1867) que apresenta uma história do primeiro momento

anterior a transferência da missão para Zanzibar. Um outro importante trabalho é o de Anne

Elizabeth M. Anderson-Morshead que, na sua primeira edição abordou o período de 1859 a

1896, registrando a partir do início das atividades missionárias desde de sua origem no

discurso de D. Livingstone até o momento da publicação. Esse período foi estendido em

edições posteriores para os anos de 1899 e 1909. O objetivo da publicação era direcionado,

sobretudo, para fornecer um suporte para estudantes da história da igreja e auxiliar no

entendimento das atividades e as condições nos campos missionários, apresentar o cenário

escravista na África Central, bem como perpetuar a memória de alguns missionários

especificamente (ANDERSON-MORSHEAD, 1897, p. xv).

4. A literatura de viagem como fonte histórica e o caráter missionário

Observou-se que a missão anglicana na África Centro-Oriental produziu um vasto

conjunto de escritos sobre a região, abordando tanto o sentido das atividades missionárias,

como descrições sobre as sociedades africanas locais. Esse material nos permite discutir a

atuação dos missionários nas regiões entre o atual sul do Malauí, norte de Moçambique e sul

da Tanzânia. Além disso, pode-se explorar aspectos específicos das transformações

históricas pelas quais passaram as populações africanas também inseridas nesses processos,

considerando-as não apenas como sujeitos passivos da atividade missionária.

Segue-se dessa forma uma tendência da História da África e da História social da

escravidão africana que busca privilegiar, na medida do possível, os agentes históricos.

Tendo em vista a dificuldade da abordagem dos contextos históricos africanos a partir de

fontes escritas, é necessário colocar as implicações teóricas e metodológicas relacionadas à

utilização das narrativas de viagem como fonte para a história africana. Essa abordagem

mais ampla tem sido uma ferramenta tanto para os historiadores de África, como para a

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produção brasileira sobre escravidão e no desenvolvimento de um importante corpo de

pesquisas que privilegiou os escravos e os africanos enquanto sujeito histórico.

Ao determinarmos isso nos colocamos dentro de um enquadramento que considera

as limitações que o texto documental oferece, operando com os filtros estabelecidos pelo

europeu, que enxerga o outro com suas lentes ocidentais. Sobre isso lembra Carlos Serrano,

ao discutir a produção europeia em Angola do período pré-colonial e colonial: “existe uma

inclusão do conhecimento sobre o outro e simultaneamente uma exclusão ideológica desse

mesmo outro”. (2008, p. 205). Para escapar dessa exclusão, a historiografia tem chamado

atenção para as circunstâncias em que os textos foram escritos, os autores e seus contextos

(WISSENBACH, 2015).

As narrativas de viagem foram empregadas criticamente em importantes estudos

como Os olhos do Império, de Mary Louise Pratt (1999). A partir do conceito de zona de

contato enfatiza as dimensões dos encontros coloniais e a maneira pela qual os como os

sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações uns com os outros, assim, como as

representações da metrópole são recebidas e apropriadas pela periferia, no processo

definido por transculturação.

A abordagem de Pratt trouxe importantes contribuições para os historiadores

brasileiros, como Alexander Gebera. Ao estudar o viajante inglês Richard Burton, o autor

forneceu uma perspectiva a partir de seus escritos em relação à construção das

representações sobre as regiões da África Ocidental por onde viajou, a partir do conceito de

zona de contato. Deste modo analisa a dinâmica da relação entre a Inglaterra e África

Ocidental, tanto na esfera dos discursos científicos, geográfico e antropológico europeu,

quanto nas relações materiais, o contexto histórico das regiões visitadas e descritas pelo

autor e a política inglesa para África. Desta forma contribui-se para que

não mais se limita em demonstrar a violência epistemológica exercida sobre os não

europeus, mas ao fazer isto, recupera as experiências de embates, resistências e

colaborações oriundas do contato cultural e material que criam as necessidades de

representação que constituem o próprio discurso colonial. (GEBARA, 2010, p. 16)

Os trabalhos de Maria Cristina C. Wissenbach mostram, por sua vez, a possibilidade

do uso das narrativas como fonte histórica a partir da contextualização das expedições,

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como investigou no caso de Georg Tams vis-à-vis a discussão do tráfico de escravos em

Angola. Segundo sua interpretação, as narrativas não devem servir a “um uso esporádico e

fragmentado das observações de um viajante”, mas sim, como uma fonte histórica, na qual

esta “poderia ser reavaliada num esforço metodológico pelo qual se buscaria o

entendimento contextualizado da viagem, de seus participantes e das intenções que a

presidiram” (2011, p. 54).

Podemos contextualizar as narrativas, os diários e outros escritos dos missionários

dentro e a partir da sua atuação em África, no sentido de compreender a orientação do

projeto dos missionários. Além disso, observar como a expansão do projeto missionário

esteve diretamente relacionada com a questão do comércio de escravos em suas escolhas

para atuar junto às sociedades africanas e como com isso entrou em acordo ou contradição

com lideranças locais. Com isso, podemos olhar a atuação dos missionários que considere,

para além dos fatores externos europeus, as condições locais, isto é, entender o papel dos

africanos dentro desse processo da presença das missões.

Nesse sentido, também devemos estar atentos ao estudar as produções missionárias

para buscar encontrar evidências para um esforço em esboçar aquilo que o historiador

Gerhard Liesegang chamou a atenção, “historiar como os homens viram seu mundo, como

conceberam e classificaram a realidade à sua volta”, para as populações africanas (2009, p.

29), de modo que o historiador considere os espaços geográficos, o inter-relacionamento de

grupos sociais, concepções das instituições em sua dimensão diacrônica.

As leituras mencionadas propõem, portanto, acessar a história do tráfico e das

relações entre europeus e africanos por meio da literatura de viagem devendo ser

observado não apenas como o discurso dos europeus sobre as sociedades africanas, mas

também como fonte histórica, portadora de indícios e de informações a partir dos quais é

possível reconstituir uma história social da África. É nessa contraposição de descrições e

discursos que podemos encontrar indícios dos processos para pensar uma história não que

queira idealizar uma história africana sem o europeu, mas que reconheça a agência dos

africanos em um processo do qual ambos fazem parte. Ao mesmo modo que as expedições

podem ser tratadas a partir da literatura de viagem, podem ser também as missões. Os

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missionários chegam ao território onde atuam e entram em contato com outras culturas,

registram suas experiências, impressões, suas atividades na África e posteriormente o que

deveria ser publicados para o público europeu.

A partir de uma reconstituição da atuação da UMCA por meio das fontes lidas sob a

tônica das literaturas de viagem podemos identificar alguns processos de atuação dos

missionários e as relações com as lideranças e populações locais. Essa presença missionária

ao demonstrar uma preocupação com um atividade anti-escravista, fornecem em seus

registros elementos para discutir as relações do tráfico de escravos nas sociedades africanas.

Deste modo entendemos que os escritos resultantes da atuação missionária na região do

Niassa podem ser empregados como uma fonte para a leitura que considere as dinâmicas do

estabelecimento das missões no território africano como forma para obter um quadro do

comércio de escravos entre os yao de modo que possamos revisitar a discussão

historiográfica sobre essa problemática para pensar os sujeitos africanos nesse processo

5. Considerações finais

No presente texto procurou tratar de alguns aspectos sobre as missões na África

referente a minha pesquisa de mestrado em andamento. Deste modo, apresentei um

determinado contexto do comércio de escravos na região das populações yaos e como os

missionários estiveram presentes nesse contexto a partir de meados do século XIX. A partir

da proposta para discutir acervos missionários na África, pode-se observar a formação de

uma produção bibliográfica produzida por pessoas participantes das missões que relataram

suas atividades na região da África Centro-Oriental. Tendo em vista essa produção

missionária como as discussões sobre as narrativas de viagem, que desempenham um papel

relevante par a historiografia brasileira, deve ser colocada como proposta para pensar as

relações do comércio de escravos, a partir da premissa que os missionários procuraram

atuar contra o comércio de escravos.

6. Bibliografia

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