1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos...

23
1 Análise de uma política educativa D'Hainaut, L. (1980). Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua clarificação (1) Sua função Os responsáveis por uma educação quando se debruçam sobre o sentido da sua acção, são levados a pôr questões tais como as seguintes: - O bem da sociedade ou da comunidade prevalece sobre o bem dos indivíduos? - É a educação destinada a todos, será a mesma para todos, ou, se não, qual será o critério da diferenciação? - A educação deve antes de tudo transmitir uma tradição, ou deve pretender integrar o indivíduo no mundo actual, ou até prepará-lo para o mundo de amanhã e, neste caso, que hipótese adoptar para caracterizar esse mundo? - Esta situa-se relativamente a uma política de tradição, de mudança, ou de revolução? - Que margem de decisão é deixada aos cidadãos, aos alunos e aos professores? - Qual será a natureza da relação entre estes? - Que grau de formalização será necessário dar à educação? - Qual deve ser a duração da educação? As respostas a estas questões permitem circunscrever uma política educativa. A função desta é, pois, definir prioridades e traçar eixos; fazendo isto ela apoia-se sobre valores sociais, morais e políticos mais ou menos organizados numa filosofia da educação. Uma política educativa pode ser precisa, imposta, geral e planificada ou, pelo contrário, vaga, deixada ao acaso do humor individual, mas tanto num caso como no outro ela existe nos factos. O termo de política implica uma certa consciência da filosofia

Transcript of 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos...

Page 1: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

1

Análise de uma política educativa

D'Hainaut, L. (1980). Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71

1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua clarificação

(1) Sua função

Os responsáveis por uma educação quando se debruçam sobre o sentido da sua acção, são levados a pôr questões tais como as seguintes:

- O bem da sociedade ou da comunidade prevalece sobre o bem dos indivíduos?

- É a educação destinada a todos, será a mesma para todos, ou, se não, qual será o critério da diferenciação?

- A educação deve antes de tudo transmitir uma tradição, ou deve pretender integrar o indivíduo no mundo actual, ou até prepará-lo para o mundo de amanhã e, neste caso, que hipótese adoptar para caracterizar esse mundo?

- Esta situa-se relativamente a uma política de tradição, de mudança, ou de revolução?

- Que margem de decisão é deixada aos cidadãos, aos alunos e aos professores?

- Qual será a natureza da relação entre estes?

- Que grau de formalização será necessário dar à educação?

- Qual deve ser a duração da educação?

As respostas a estas questões permitem circunscrever uma política educativa. A função desta é, pois, definir prioridades e traçar eixos; fazendo isto ela apoia-se sobre valores sociais, morais e políticos mais ou menos organizados numa filosofia da educação.

Uma política educativa pode ser precisa, imposta, geral e planificada ou, pelo contrário, vaga, deixada ao acaso do humor individual, mas tanto num caso como no outro ela existe nos factos. O termo de política implica uma certa consciência da filosofia

Page 2: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

2

da acção educativa, e uma certa estratégia na sua realização, mas, mesmo que estes caracteres falhem, poderemos falar de uma política educativa implícita pare designar as linhas de força ou as tendências que sustentam as acções educativas.

Uma política educativa não nasce do nada, ela inscreve-se no quadro mais largo de uma filosofia da educação e é o resultado de múltiplas influências provenientes dos sistemas sociais que agem sobre o sistema educativo e que eles mesmos estão sob a influência do contexto filosófico, ético, religioso e histórico, do quadro geográfico e físico, assim como do contexto sócio-cultural.

Por outro lado, uma vez realizada, nos factos, a política educativa, terá geralmente uma repercussão sobre o conjunto dos quadros e sistemas que a determinaram.

Podemos figurar estas relações no seguinte esquema:

(2) Seu lugar

Quadro filosófico ético e religioso

Sistema político

Sistema

demográfico

Sistema

económico

Sistema

administrativo

Política educativa

Conteúdo

histórico

Conteúdo sócio

cultural

Quadro físico e geográfico

Page 3: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

3

O nosso propósito não é estudar como se elabora uma política educativa, embora a questão seja muito interessante e não tenha recebido até agora a atenção que merece. Não iremos pois mais longe na procura das determinantes da educação, e consideraremos a política educativa como o nosso ponto de partida: isto será para nós um facto e a nossa preocupação será responder à seguinte questão:

0 modelo de elaboração dos objectivos que aqui apresentamos diferencia-se pois do de Tyler (1950) no sentido em que não tentamos determinar as fontes dos objectivos gerais, mas antes nos colocamos dum ponto de vista mais operatório, partindo da política educativa. Esta, quer seja implícita quer explícita, é determinada pelas características sociais, políticas, morais e filosóficas dos grupos e das pessoas que nela são responsáveis; a filosofia da educação intervém assim, desde o ponto de partida, enquanto parte significativa de um quadro mais largo que é o de uma concepção da sociedade, da vida e da organização social. Esta maneira de ver aproxima-se da de Goodlad (1966), citado por Landsheere (1975), que crê que os valores e as posições filosóficas estão na origem de um curriculum e determinam toda a sua concepção.

A posição que adoptámos é também coerente com a de Lawton (1975) que considera que a elaboração de um curriculum deve começar por uma tomada de posição sobre as questões filosóficas relativas aos fins da educação, e sobre as questões sociológicas relativas ao tipo de sociedade na qual nos encontramos ou que queremos promover. A nossa abordagem distingue-se da de Lawton pelo facto de tentarmos libertar mais os valores embora a função destes seja evidente na concepção deste autor; a principal diferença reside antes no facto de que Lawton recomenda um processo que implica tomadas de posição da parte dos que constróem o curriculum, enquanto que a nossa metodologia sugere, não uma tomada de posição, mas uma clarificação das posições e das opções fundamentais. Há aqui uma distinção essencial, porque esta maneira de apreender as coisas alarga a aplicação da metodologia a todos os casos em que não são as mesmas pessoas, os mesmos grupos ou as mesmas instituições que determinam a política educativa e que elaboram os curricula. Esta separação das funções não somente corresponde melhor à prática de muitos sistemas educativos, mas corresponde também melhor à divisão dos níveis nas organizações e harmoniza-se melhor com a separação desejável entre a política e a técnica.

(3) Sua clarificação

Weiss (1973) considera como um carácter fundamental de um curriculum, aquilo a que ele chama a sua «transparência», quer dizer o grau de explicitação das suas relações.

Sendo tal política educativa, escolhida por nós, que nós queremos

promover, ou que nos impõem, como clarificá-la e caracterizá-la com

vista a determinar os objectivos pedagógicos coerentes com essa

política?

Page 4: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

4

É esta precisamente também uma das nossas maiores preocupações e pensamos que o esforço neste sentido deve começar ao nível das finalidades da educação considerada.

É essencial clarificar tanto quanto possível a política educativa de maneira a não trair as intenções: a elaboração dos programas e dos curricula deve efectuar-se segundo uma abordagem que harmonize as intenções expressas na política educativa e os objectivos realmente perseguidos ao nível da aula. Isto não significa necessariamente que um agente de ensino esteja estritamente ligado a uma política educativa que lhe é imposta ou sugerida, mas que os seus desvios em relação a esta sejam conscientes e intencionais.

Por outro lado a clarificação da política educativa deve permitir avaliar os resultados do ensino em relação às intenções, na medida em que os objectivos operacionais são o reflexo destes, o que é tanto menos difícil de avaliar quanto melhor clarificada for a política educativa.

A análise de uma política educativa deve efectuar-se em dois níveis:

- ao nível das intenções declaradas que se podem encontrar em textos e análises de documentos oficiais, de discursos políticos ou de ensaios.

- ao nível da realidade que podemos conhecer pela análise das decisões e a observação dos factos.

A extracção das intenções, dos textos que as contêm, pode fazer-se com a ajuda das técnicas de análise de conteúdos, de maneira a obter uma síntese das intenções tão objectiva e tão válida quanto possível. Em certos casos os textos podem ser bastante claros para que o recurso a estas técnicas seja indispensável.

A política educativa realmente seguida pode ser posta em evidência pela análise das leis, regulamentos e decisões, da mesma maneira que por certos indicadores tais como a presença de exames de selecção, a repartição das diferentes classes sócio-económicas nos diferentes níveis de ensino, a taxa de analfabetismo dos homens e das mulheres, a estrutura da administração da educação, a atribuição dos orçamentos, o conteúdo dos programas, o tipo de regime político e as estruturas de participação no poder.

É preciso notar finalmente que num sistema educativo complexo pode haver, ao lado da política global, uma política particular segundo os níveis ou segundo o destino do ensino.

3.2 Análise das opções fundamentais

(1) Focalização da educação

Page 5: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

5

Uma primeira questão fundamental que se põe a quem reflicta sobre a educação é a seguinte: a educação é antes de tudo um meio de formar indivíduos, ou de construir uma sociedade? Noutros termos, o bem dos indivíduos deve prevalecer sobre o bem do grupo enquanto tal, ou o que deve ser é o inverso disto?

Chamaremos «focalização» da educação a esta prioridade que ela deve, em caso de oposição, conceder ao indivíduo, ou à sociedade, e nestes termos falaremos de educação focalizada para o indivíduo, para a sociedade, ou em «equilíbrio social».

Poder-se-iam designar as duas localizações extremas pelos termos de «sociocrática» e de «individualista» e a posição intermediária pela de «humanista»; neste último caso reconhecem-se as necessidades sociais mas concede-se todavia ao homem (e não ao indivíduo enquanto tal) uma prioridade sobre a sociedade.

A escolha necessária entre o indivíduo e a sociedade não é somente uma questão de política educativa, é uma posição política, mais ainda, é a expressão de «duas filosofias, duas concepções gerais do homem, duas mundividências que se defrontam» como o diz e muito bem M. Duverger (1965) na sua análise dos regimes políticos e que prossegue deste modo:

A doutrina comunitária parte de um postulado de base, muitas vezes, aliás, não formulado e por vezes inconsciente: «os indivíduos não são senão os elementos componentes dos grupos sociais, grupos esses que constituem os únicos seres verdadeiros, entidades distintas. Para esta doutrina o organismo social é comparável ao corpo humano: as células que formam este podem viver, em rigor, separados dele, como o provaram as experiências de laboratório; mas esta vida é anormal, excepcional.

Para a doutrina individualista, a sociedade tem uma realidade secundária, uma existência subordinada. Cada homem, cada indivíduo constitui, pelo contrário, uma entidade fundamental, uma realidade primordial. Sem dúvida que o homem é um animal social, um ser incapaz de se bastar a si mesmo isoladamente; a vida comunitária é, pois, uma necessidade, muitas vezes mesmo uma feliz necessidade: as sociedades conservam os valores civilizadores repartindo as vantagens entre os seus membros. Mas o indivíduo permanece o fim último ao qual tudo deve estar subordinado: o papel dos grupos sociais é somente assegurar a cada homem possibilidades de vida e de desenvolvimento em conformidade com a sua própria natureza.

O mais célebre defensor da posição sociocrática é sem dúvida Durkheim (1906) que considera que o tipo de homem que a educação deve formar é o que a sociedade impõe e que a economia desta exige.

A sociedade é uma coisa boa, desejável para o indivíduo que não pode existir fora dela, que não pode negá-la sem se negar.

Page 6: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

6

Danton, ao afirmar que «as crianças pertencem à República antes de pertencerem aos pais» exprimia a posição sociocrática de uma maneira muito radical.

Makarenko (1938) ilustra também a focalização social extrema:

Os membros isolados da colectividade não se consideram como «embriões de personalidades futuras. Devemos naturalmente adoptar os seus pontos de vista e considerá-los como cidadãos munidos de todos os direitos. Enquanto cidadãos eles têm o direito de participar no esforço social na medida das suas forças. Participam nele, pois, não por via pedagógica mas pelo seu trabalho, quer dizer, sem malbaratar o material, mas antes fabricando coisas úteis, e não por altruísmo ou interesse pessoal, mas no seu entusiasmo para ganhar a sua vida e da colectividade, e eles respondem com o seu trabalho, com todo o rigor requerido, face à colectividade que absorve aquilo que fizeram de útil e o que fizeram de mau.

Todos os nossos métodos decorrem deste ponto de vista fundamental sobre a colectividade infantil.

Fornecemos à colectividade composta pelas crianças e pelos adolescentes: a escola, a universidade operária, a oficina, os engenheiros, o plano financeiro da empresa, o salário, as responsabilidades, o trabalho e o direito às responsabilidades, o que quer dizer que lhe damos uma disciplina.

Na posição oposta, a focalização da educação sobre o indivíduo pode ser ilustrada por esta afirmação de Hubert (1959):

A educação tem por fim conduzir o homem da sua natureza à sua essência ideal, ajudá-lo a libertar-se da primeira, mas também a utilizá-la e a modelá-la com vista a permitir-lhe ser ele próprio, senhor do seu corpo, obreiro do seu saber, legislador dos seus actos e, sobretudo, criador de si mesmo como membro consciente da sociedade.

Kant (1803) exprimiu também uma posição individualista muito nítida:

A ideia de uma educação que desenvolve no homem todas as suas disposições naturais é absolutamente verdadeira.

O excesso na concepção individualista pode arrastar à inadaptação do homem e das suas aptidões no mundo em que forçosamente está inserido; produz a revolta isolada (que é preciso não confundir com a revolução), o desemprego dos jovens e a desagregação social.

O excesso na concepção social corre o risco de conduzir ao endoutrinamento, à educação estereotipada e ao pensamento dependente dos modelos admitidos.

Page 7: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

7

Tanto num caso como no outro, o resultado é a infelicidade do indivíduo e a construção de uma sociedade desumana, o que leva muitos educadores a preferir uma solução intermediária que poderemos qualificar de «humanista».

V. e G. de Landsheere (1975) precisando a sua posição face às finalidades essenciais da educação, exprimem de maneira clara e concisa esta posição: «Mas existindo a sociedade para o homem, e não o inverso, este guarda a prioridade. Esta prioridade encontra o seu limite na prioridade dos outros.» Os autores citam então a carta da escola pluralista que propõe «realizar em cada circunstância a síntese dos interesses de todos na aceitação das inevitáveis coacções de toda a vida colectiva».

Era já o ideal de Rousseau porque, como o diz tão bem Gal (1966):

Emílio está destinado a ser bom cidadão, bom pai de família, / bom trabalhador. O seu fim está tanto na sociedade como em si / mesmo.

Uma declaração de princípio do «Grupo Francês de Educação Nova» (G.F.E.M.) precisa também a concepção «humanista»:

A posição do G.F.E.N. é clara sobre este ponto: não pode haver, para ele, educação nova sem uma referência a uma sociedade democrática na qual o indivíduo não é um ser anónimo, mas uma pessoa aberta e capaz de agir sobre as decisões gerais a tomar, seja sobre o plano da vida da Cidade, seja sobre o da vida nacional. Não pode haver educação nova sem a procura de um equilíbrio entre as exigências sociais e os direitos do indivíduo, sem que o indivíduo e o grupo estejam ao serviço um do outro.

Finalmente, a estes dois pólos da acção educativa que são o indivíduo e a sociedade, poderíamos juntar um terceiro eixo que acaba de aparecer e que é a espécie. Com efeito, desenvolve-se uma educação centrada sobre os problemas das relações do homem com o ambiente e inspirada por uma filosofia biológica. A posição desta «educação para a sobrevivência» foi explicitada por Shane (1970) e merece ser mencionada por causa do número crescente e considerável de estudos consagrados à «educação e ambiente».

Hersberg (1968) considera que a educação tem sempre uma focalização social, e que esta é orientada pela classe dominante:

Todo o Estado tende a utilizar o ensino como elemento essencial de um projecto político geral. Na maior parte das nações da Europa ocidental, a escolaridade obrigatória até aos 16 ou 18 anos é certamente chamada a substituir-se ao serviço militar obrigatório para fazer entrar a maioria da população no molde social desenhado pela classe dominante.

Esta afirmação leva a aprofundar o problema da focalização da educação e a pô-lo da seguinte maneira: quem deve obter o maior proveito da acção educativa?

Por proveito, é preciso entender a palavra no seu sentido mais elevado e mais vasto, como também na sua acepção mais pragmática.

Page 8: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

8

A resposta poderá ser:

- a espécie

- a sociedade ou a comunidade no seu conjunto

- grupos particulares na sociedade

- o indivíduo que recebe a educação.

Por grupo particular é preciso entender:

- uma classe social mais que outra

- um grupo local

- um grupo de pressão

- um grupo político

- um grupo privado (uma empresa, por exemplo).

0 regresso a uma focalização da educação sobre a realidade imediata e tangível de uma comunidade local, é uma ideia que se manifesta cada vez mais e que se traduz pela importância particular que se concede, em certos países, à educação rural, pela criação de escolas baseadas sobre culturas locais ou ainda por acções educativas específicas baseadas sobre a comunidade local, tais como os «EPA» na Grã-Bretanha que são «zonas de prioridade educativa (Educational Priority Areas)». 0 protagonista das EPA, Midwinter, disse a propósito (1972) que «nas EPA, a necessidade fundamental diz respeito à regeneração comunal e ao desaparecimento das doenças sociais que atormentam os habitantes».

(2) A orientação da educação

Uma opção fundamental da política educativa é relativa ao horizonte que o educador visa ou, em termos mais precisos, a escolha entre o passado, o presente e o futuro no que diz respeito à pessoa que se educa e à sociedade que se quer construir. Quando se trata do futuro é preciso ainda saber se se visa um modelo preciso ou, pelo contrário, se não se concebe outra hipótese de sociedade futura para além da imagem que uma visão prospectiva e extrapolada pode dar.

Podem-se pois distinguir quatro orientações possíveis:

- o passado e a tradição

- o presente

Page 9: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

9

- um futuro não especificado (embora baseado numa hipótese de sociedade)

- um futuro especificado por um modelo definido de sociedade.

Contrariamente ao que se poderia pensar na primeira abordagem, estas quatro orientações não são mutuamente exclusivas porque um aspecto da educação pode ser orientado para o passado enquanto que outro é dirigido para o presente ou para o futuro.

É assim que certos países africanos tentam construir uma educação afectiva e estética baseada na tradição e nos valores da sua herança cultural, ao mesmo tempo que se esforçam por promover uma educação cognitiva assente sobre o desenvolvimento, quer dizer, orientada para um futuro definido por um modelo económico (capitalista ou socialista segundo a orientação política do país). Esta bipolaridade da educação é muito evidente em muitos países em vias de desenvolvimento, mas existe também numa certa medida na maior parte dos sistemas educativos, e o problema da orientação da educação é a maior parte das vezes um problema mais de prioridade do que de escolha exclusiva.

Numa ordem de ideias próxima, Skilbeck (1975) considera que, face à mudança exterior, a escola pode adoptar quatro estratégias: seguir o costume, preservar o melhor, ignorar a mudança e olhar para o futuro. A primeira estratégia conduz a reivindicar o ajustamento e a pertinência do curriculum ao mundo tal como ele é, a segunda é um conservantismo selectivo que implique critérios de escolha consciente, a terceira não é uma estratégia propriamente falando, mas uma atitude mais ou menos consciente de conservantismo e a quarta implica que a escola fixe a si mesma objectivos claros, antecipando os efeitos futuros da sua acção actual.

Mialaret (1966) exprime bem a necessidade de uma visão prospeciva para uma educação orientada para o futuro:

A educação nova deve voltar-se para o futuro e adoptar uma atitude «prospectiva», a fim de definir tão bem quanto possível esse futuro para o qual ela deve preparar as crianças de hoje.

G. Ferry 1(1968) fornece-nos um exemplo de análise de uma visão prospectiva que constitui uma hipótese de sociedade:

É difícil de imaginar o que será o mundo do ano 2000. Podemos no entanto admitir que certas tendências que actualmente se manifestam persistirão ou se acentuarão:

- a intensificação das permutas internacionais no que concerne a todas as formas de actividade humana;

- a mobilidade social e profissional.

- o advento de uma cultura audio-visual;

- o alargamento imprevisível das informações disponíveis;

- a participação crescente nos lazeres e nas necessidades culturais;

Page 10: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

10

- as transformações aceleradas do ambiente e dos modos de vida;

- a era das estruturas em movimento.

Em consequência, a educação tornar-se-á a função social primordial e será caracterizada por:

- o prolongamento generalizado dos estudos;

- a impossibilidade de aquisições definitivas durante o período escolar, donde a necessidade de desenvolver e renovar as aquisições durante toda a vida;

- a articulação estreita do ensino com as fontes exteriores de informação;

- o lugar privilegiado que será o das línguas e das técnicas próprias para facilitar as comunicações entre os indivíduos e entre os grupos.

Mas o que parece o mais provável é que as mudanças de toda a natureza irão, acelerando-se, aumentando sempre mais a incerteza do futuro. Na vida profissional, na vida social, na vida familiar, cada um deverá fazer face a situações imprevisíveis, resolver problemas sempre novos, mudar periodicamente os seus métodos de trabalho e os seus modos de vida.

A interacção entre a focalização da educação para o indivíduo ou para a sociedade, e a sua orientação para o passado, o presente ou o futuro, leva a perguntar se a finalidade da educação é a de preparar o indivíduo a inserir-se numa sociedade passada, presente ou futura não especificada, ou se ela deve antes de tudo contribuir para realizar um modelo de sociedade futura, preparando os homens a inserir-se nesse modelo, o que conduz à sua inadaptação ao modelo actual e constitui uma estratégia para o modificar ou destruir; noutros termos, trata-se de saber se a educação deve ser um fim em si ou essencialmente um instrumento de acção ou de pressão política.

0 problema é, aqui, ainda uma questão de prioridade entre o fim educativo em si e a concepção da educação como meio de provocar transformações na sociedade e, descrita nestes termos, a questão revela bem que não há aqui incompatibilidade mas hierarquia porque é bem evidente que, para mudar as coisas, é preciso também mudar os homens.

Existem aliás posições intermediárias entre a prioridade absoluta dada a uma ou a outra opção. Entre estas é conveniente citar o importante movimento do «reconstrucionismo» e, mais particularmente, do «reconstrucionismo social» cujos defensores se situam entre os dois extremos, com uma margem bastante larga de variação. Eis, por exemplo, uma declaração de Metcalf e Hunt (1970) que ilustra esta posição:

Foi definido por vezes um curriculum como pertinente pelo facto de dizer respeito aos problemas da juventude. Não é perfeitamente correcto. É mais pertinente implicar os jovens num estudo dos problemas da cultura mais vasta

Page 11: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

11

na qual os seus problemas pessoais encontram a sua origem, (...) os estudos históricos e culturais são muitíssimo pertinentes quando nos ajudam a prever o futuro ou a fazer a transição.

Voltaremos mais adiante a esta concepção transformista da educação. Queremos sobretudo fazer notar aqui que, sem negar o interesse das necessidades individuais, muitos reconstrucionistas admitem mais ou menos explicitamente que um dos fins da escola é o de preparar o advento de uma nova sociedade. É preciso também notar que, para alguns (Skilbeck, 1973), o reconstrucionismo tem mais um carácter cultural que social; tornaremos ao assunto quando examinarmos as concepções da cultura na política educativa.

(3) A dinâmica política

As finalidades da educação estão inevitavelmente, ou felizmente (segundo os pontos de vista) ligados à política e, como o fazem notar Kirst e Walker (1971), é surpreendente que este termo não seja reposto no index das obras sobre o curriculum (TyIer 1949, Taba 1962, etc…).

É assim que a natureza e a intensidade das transformações que as, forças políticas querem introduzir, determinam também a natureza e a intensidade das transformações que deve introduzir a educação que assenta sobre essas forças políticas.

Poder-se-ão assim conceber três opções essenciais na dinâmica política da educação:

- o conservantismo

- o progressismo

- a revolução

Um outro aspecto importante da dinâmica política na educação e que foi sublinhado por Berlak (1970) é a medida na qual a política educativa visa mudar as relações entre o cidadão e a sociedade. Podemos, sob este ponto de vista, encarar cinco características.

A educação pode tender a aumentar ou a diminuir:

- o poder do cidadão relativamente ao Estado

- a influência do cidadão no sistema social

- a tensão social ou política

- as diferenças entre cidadãos

- o sentido, pelo cidadão, do seu próprio valor pessoal.

Page 12: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

12

Finalmente, uma característica importante da política educativa é também o modelo político para o qual ela prepara eventualmente o aluno. Para só citar os princípios, podemos referir-nos aos seguintes modelos:

- totalitário

- democrático ocidental de tipo presidencial

- democrático ocidental de tipo parlamentar

- democrático popular de tipo soviético

- democrático popular de tipo chinês

- anarquista.

(4) A abertura e a política de eficácia da educação

Designaremos sob o termo global de «abertura» quatro características importantes e muito ligadas de uma política educativa:

- a extensão do público visado

- o regime de acesso aos diferentes níveis

- a selectividade no interior dos diferentes níveis

- a possibilidade de acesso para diferentes idades.

(4.1) A extensão do público visado

A maior parte das intenções educativas expressas tendem a aumentar todos «os benefícios da educação». A realidade está, neste domínio, por vezes muito afastada do discurso ou do ideal: não existe nenhum país onde todos os homens beneficiem da mesma maneira de todas as possibilidades da educação.

A extensão do público alcançado pela educação pode ser calculada pela taxa de escolarização nos diferentes níveis: primário, secundário geral ou técnico e superior, não universitário ou universitário.

A política educativa passada, no que diz respeito à abertura, reflecte-se na evolução da taxa de escolarização; a política expressa é revelada pelas declarações e projectos relativos à evolução futura desta taxa, nos diferentes níveis.

A taxa de escolarização não é um indicador perfeito da abertura da educação porque existe uma educação extra-escolar ou, mais exactamente, não institucionalizada,

Page 13: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

13

mas na hora actual a parte desta no esforço educativo é ainda muito pequena para que possa afectar, de maneira substancial, as conclusões baseadas sobre a taxa de escolarização.

Um outro indicador da extensão do público visado é a duração da escolarização obrigatória.

Finalmente, um aspecto particular extremamente importante da extensão do público abrangido pela educação é a taxa de analfabetismo e a sua evolução.

(4.2) O regime de acesso aos diferentes níveis

Podemos distinguir, neste domínio, três escalões de abertura:

- o acesso aberto no qual nenhuma condição é exigida à entrada; o acesso totalmente aberto não existe a não ser ao nível primário (todavia com restrições de idade).

- o acesso limitado: por condições de diploma; por um exame de entrada; por condições não funcionais (custo, nacionalidade, privilégio, opinião política...).

- o acesso muito restrito: por um concurso; por condições não funcionais.

(4.3) A selectividade no interior dos diferentes níveis

Esta característica depende do nível de competência exigido á entrada e da eficácia do ensino. É bem evidente que o primeiro factor diz respeito à política educativa porque depende da vontade dos responsáveis da educação e está sujeito a pressões de natureza política (exigência dos patrões ou, no sentido oposto, tendência para a generalização dos diplomas). O segundo factor, a eficácia do ensino, escapa sem dúvida parcialmente à vontade dos responsáveis, mas não é de todo estranha a ela: é também na política educativa que se inscreve a opção por um ensino eficaz, e a execução dos meios que aí conduzem (investigação, formação de professores, etc.).

A selectividade no interior de um nível pode ser apreciada pela relação do número de finalistas «directos» (que não repetiram) com o número de primeiranistas correspondente. Quanto mais fraca é esta relação, maior é a selectividade. A taxa de repetição, quer dizer, a relação do número de alunos que frequentam o grau repetindo, com o número de alunos que entram, pode ser também um indicador da selectividade, se se considera o aumento da taxa de desperdício, quer dizer, a relação do número de alunos que abandonam com o número de alunos primeiranistas num mesmo «magote. Na mesma ordem de ideias, a relação da duração média dos estudos com a duração mínima no grau, é também um indicador interessante da taxa de desperdício porque

Page 14: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

14

pode aplicar-se a sistemas de ensino individualizado ou sistemas que não se apoiam sobre as estruturas habituais da educação.

(4.4) As possibilidades de acesso nas diferentes idades

A educação deveria ser permanente, já ninguém põe em dúvida. 0 problema está em que a realização deste ideal implica meios e exige escolhas.

A política educativa fixa ou sugere até onde se pode ir no ideal da educação permanente. Podem distinguir-se diferentes modalidades:

- a educação limitada à formação inicial

- a formação continuada (reciclagem, ano sabático, etc. ....)

- a educação permanente (inicial e continuada)

- a educação reencontrada (acção do tipo universidade de segunda oportunidade, alfabetização dos adultos, educação para a terceira idade, etc…).

(5) A homogeneidade da educação

Esta característica da política educativa justifica em que medida a educação é a mesma para todos. Pode ser concebida sob dois aspectos intimamente ligados:

- a questão da estratificação ou da compartimentação da educação

- o problema do curriculum comum ou diversificado.

(5.1) A estratificação da educação

Uma questão importante é saber se a política visa ou não dividir a educação em fileiras mais ou menos intencionalmente reservadas a diferentes categorias de população.

Poderemos notar desde logo que a educação é quase sempre estratificada segundo a idade. Ela pode sê-lo também segundo o sexo: assim é somente com Fénelon nos fins do século XVII que se começa a conceber «a educação das meninas».

A estratificação social da educação é também uma sua característica importante: no passado essa estratificação era desejada e a intenção claramente declarada. Hoje a escola aristocrática tende a desaparecer e a esconder-se por trás de um certo pudor

Page 15: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

15

social dos governantes, mas não deixa ainda de ser verdadeiro, em quase todo o lado, que aqueles que saem das escolas superiores são em maioria descendentes dos estratos mais favorecidos da população. É indispensável, quando se analisar uma política educativa, avaliar o vigor e a sinceridade das intenções dos responsáveis da educação no combate contra este estado de coisas. Poder-se-ia assim falar duma política educativa:

- igualitária

- democrática

- aristocrática

segundo o grau de igualdade de oportunidades dado aos diferentes estratos sociais da população.

Um outro factor de estratificação na educação é a aptidão; alguns poderão pensar que se trata de um «factor natural» contra o qual não se pode grande coisa; outros acreditarão, pelo contrário, «que se deve perguntar se é mais justo favorecer e recompensar alguém por causa do seu Q. I. elevado do que por causa do rendimento elevado do seu pai» Lawton, 1975). Naquilo que nos diz respeito, a questão está em saber se nas suas intenções ou na realidade a política educativa quer:

- reforçar a selecção pela aptidão

- manter a selecção pela aptidão

- compensar a selecção pela aptidão.

Condorcet tomava já sobre este problema uma posição clara:

Finalmente, a instrução bem dirigida corrige a desigualdade natural das faculdades, em lugar de a fortificar, como as boas leis evitam a desigualdade natural dos meios de subsistência.

A questão reaparece em parte para saber se se quer:

- seleccionar mais que orientar

- orientar e seleccionar

- orientar mais que seleccionar.

Põe também o problema da individualização: em que medida a educação visada terá em conta diferenças individuais para compensar ou acentuar as desigualdades de partida?

A educação pode também ser estratificada por privilégios:

- a adesão a um partido político ou a actividade no seio deste

- a pertença a uma classe ou casta social

- a adesão a uma religião ou a uma filosofia.

Page 16: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

16

Existem, com efeito, países onde a actividade no partido e as atitudes políticas intervêm com uma parte importante na «ascensão dos alunos aos diferentes níveis escolares, e há ainda países onde a pertença a uma religião é uma condição indispensável para receber uma educação.

A compartimentação da educação opera-se também segundo uma dimensão geográfica: em todos os países a educação tem um carácter nacional mais ou menos acentuado e cada nação tem a sua própria política educativa e os seus próprios programas. É este um facto bem conhecido e bem estabelecido, o que não implica todavia que seja esta a única maneira possível de conceber a educação; existem, aliás, sob o impulso da UNESCO, por exemplo, programas e acções regionais, quer dizer (na terminologia deste organismo), que interessam a diferentes países de uma mesma região do mundo; sob o impulso da O.U.A. desenvolveu-se uma política educativa africana com muito grandes variações internas, bem entendido, mas também com bastantes traços comuns para que o conceito não seja vazio de sentido e para que esta política se distinga das políticas de outras regiões do mundo por características próprias.

Inversamente, apareceram na Grã-Bretanha, por exemplo, políticas educativas orientadas para as necessidades locais; são as «community schools» desenvolvidas sob a direcção de E. Midwinter, em Liverpool.

Finalmente, existem ainda muitos países onde os contrastes geográficos impõem uma estratificação da educação: um esquimó do Alaska tem muito menos hipóteses de terminar a Universidade que um habitante de Chicago.

(5.2) A homogeneidade do curriculum

Uma questão importante e vizinha destas que acabamos de evocar é a de saber se o curriculum deve ser o mesmo para todos ou se, pelo contrário, deve ser diversificado segundo a aptidão. Em todos os sistemas educativos, o curriculum das classes de idade superior é diversificado porque a quantidade das necessidades sociais e a variedade dos talentos e dos interesses individuais que se manifesta sobretudo a partir da adolescência, impõem uma diversificação dos estudos. O problema resume-se, pois, a perguntar: até que idade é preciso propor a todos um curriculum comum (no interior do qual os alunos poderiam, aliás, operar escolhas)?

Lawton (1975) insiste no facto de «que um curriculum comum não é um sistema para fazer chegar cada um ao mesmo nível de conhecimento, mas é «um meio de abrir o conhecimento e a experiência a todos os alunos, qualquer que possa ser a sua capacidade».

Nesta ordem de ideias pode pensar-se também na opção que consiste em considerar que existe um «mínimo de base» que todos os alunos devem dominar, e matérias complementares eventualmente optativas para os melhor dotados, ou os mais motivados. Esta atitude explicitada por White (1973) como política de determinação de

Page 17: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

17

um curriculum, é muitas vezes implícita mas efectiva ao nível da classe, sob o efeito do realismo do professor, ou talvez, de uma «regulação» das suas ambições.

(6) A justificação da acção educativa

A política educativa e o curriculum podem encontrar uma justificação em razões de duas ordens: filosóficas por um lado, pragmáticas por outro.

As razões filosóficas, religiosas, culturais ou políticas podem ter três fontes de justificação:

- a concepção do homem

- a concepção da sociedade

- a concepção da cultura.

As razões pragmáticas podem ser de diferentes espécies, das quais as principais são:

- a necessidade, em particular a necessidade económica e a necessidade social

- a procura, seja dos educados ou dos seus pais, seja dos empresários

- a necessidade prática e em particular a preparação para um emprego ou uma profissão, ou até a satisfação das necessidades individuais elementares (saúde, sobrevivência, vida prática) e a necessidade de ascensão social ou cultural.

A política educativa definiu prioridades nestas justificações e perguntar-se-á desde logo se a pressão das razões filosóficas é mais forte que a pressão das razões pragmáticas. Foi o que aconteceu na revolução cultural chinesa, do mesmo modo que na educação francesa do século XVII e do começo do século XVIII onde, apesar da necessidade económica e social que a indústria nascente criava, se limitaram, no secundário, a uma concepção literária da formação; foi preciso esperar por Diderot para reclamar a prioridade à formação em ciências aplicadas, e é somente no fim do século XVIII que, sob o impulso de Lakanal, foram criadas as «Escolas Centrais» que visavam a satisfação desta necessidade.

Pode-se ainda perguntar quais são, entre as justificações filosóficas, as mais fortes: reencontramos então o problema da prioridade do homem, ou da sociedade, que já anteriormente evocámos, e o do academismo e do funcionalismo que opõe a prioridade do «saber» (sendo a disciplina um valor dominante) à do «poder» (sendo o saber um valor subordinado à acção ou à interacção).

Do mesmo modo podemos interrogar-nos sobre as prioridades no interior das razões pragmáticas: por exemplo, numa educação planificada a necessidade prevalece sobre a procura, enquanto que, numa educação liberal, é em princípio o inverso.

Page 18: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

18

(7) A margem de liberdade e de participação

(7.1) A partilha do poder de decisão

O problema está em caracterizar o grau de liberdade de participação ou de responsabilidade das diferentes pessoas interessadas pela acção educativa nos aspectos essenciais desta.

Para simplificar fixaremos somente quatro categorias de interessados: a instituição escolar, o agente de ensino, o aluno e os cidadãos (compreendendo entre estes os pais).

No que diz respeito aos aspectos essenciais da acção educativa, consideraremos três: a escolha dos objectivos, a escolha dos meios ou dos métodos e a avaliação.

Finalmente podemos considerar quatro graus de participação dos interessados nestas três fases da acção educativa: a liberdade total que, por sua natureza, não pode ser concedida senão a uma única categoria de interessados; a participação que implica a partilha de um poder de decisão entre os interessados e os dirigentes; a responsabilidade que não comporta participação na decisão mas deixa uma certa margem de iniciativa ao nível da execução; a submissão que exige a execução estrita, sem participação nem iniciativa.

Para caracterizar um sistema educativo determinado podemos representar as fases da acção educativa e as pessoas interessadas; neste quadro indicar-se-á por:

1 - a ausência de participação ou a submissão;

2 - a responsabilidade de execução;

3 - a participação;

4 - a liberdade.

(7.2) A descentralização

Por fim a partilha da decisão e da responsabilidade da educação pode ainda fazer-se segundo uma dimensão geográfica ou segundo uma divisão sectorial (geralmente de natureza religiosa). No que diz respeito à dimensão geográfica poderá perguntar-se qual é a extensão do poder de decisão e a autonomia aos níveis:

- nacional

- regional (províncias, departamentos)

- local {cidades, comunidades)

- institucional.

Page 19: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

19

A propósito da divisão sectorial investigar-se-á se existem redes paralelas de ensino e em que medida estas são aceites ou encorajadas.

- Redes toleradas mas desencorajadas

- toleradas sem encorajamento

- toleradas e reconhecidas

- toleradas e subvencionadas.

Estes diferentes graus de tolerância em presença das redes educativas paralelas reflectem também, numa certa medida, o carácter descentralizado ou não da política educativa.

(8) As relações do docente e do aluno

A política educativa orienta, pelas suas instituições e os seus regulamentos, as relações entre docentes e alunos; é bastante raro que ela as fixe porque, no interior de uma classe ou de uma instituição, largas margens de variação são muitas vezes possíveis.

Poderemos distinguir, neste domínio, quatro categorias que vão do ensino muito directo do mestre para o aluno, a uma directividade inversa:

- o docente concede o saber, a sua acção é centrada sobre ele mesmo;

- o docente reconstrói o saber; tem uma função de guia e .de animador; a sua acção está centrada sobre o aluno; - o docente é um catalizador, facilita o processo de ensino sem o orientar ou nele participar, e responde à solicitação dos alunos;

- o docente é ensinado.

Para situar os dois extremos das relações entre mestre e aluno, podemos referir-nos a P. Freire (1970) que opõe a noção de educação arregimentada» («banking») à de educação «libertária».

Na primeira concepção, o mestre omnisciente ensina uma matéria que ele escolheu a alunos reputados ignorantes que o escutam passivamente numa classe em que a disciplina é baseada na autoridade pessoal do mestre; na segunda maneira de ver, a educação é baseada sobre a resolução da contradição mestre-aluno de tal maneira que cada um seja ao mesmo tempo docente e aluno; põe os problemas sem propor qualquer solução definitiva, respeita a individualidade e preconiza o diálogo; obriga os homens a perceber, de maneira crítica, como existem no mundo com o qual e no qual eles se encontram.

Page 20: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

20

Estas duas visões, pelo carácter caricatural de uma e edílico da outra, definem bem os dois pólos da concepção dos papéis do aluno e do professor; esta não é, como se poderá crer, essencialmente uma questão metodológica; é também e talvez antes de tudo uma questão de política educativa; não foi por acaso que, neste domínio, citamos P. Freire: o seu propósito é essencialmente político e filosófico e as duas concepções que ele descreve são para pôr em relação com a finalidade essencial da educação: segundo este autor, a abordagem escolar «arregimentada» é uma política de opressão que faz dos homens «depositários», ,«ajustáveis» e «susceptíveis de ser facilmente dirigidos e dominados» enquanto que a educação que põe problemas é uma prática «libertadora», «revolucionária» e «política», .«ela não favorece, nem pode favorecer, os interesses do opressor porque põe a questão «porquê» e, continua P. Freire, os dirigentes revolucionários deveriam adoptá-la desde o começo, em vez de escolherem provisoriamente a educação centralizada».

Entre os dois extremos que Freire põe em oposição, situa-se a educação centrada no aluno com uma participação activa deste, não somente na construção do seu saber mas também na escolha das suas opções.

Uma posição mais avançada que consiste em não admitir para o docente senão a função de catalizador, e em não tolerar a sua intervenção na orientação do processo educativo é representada pela corrente de pedagogia institucional que ilustraremos por duas tomadas de posição esclarecedoras da função docente tal como ela é concebida nesta perspectiva.

«Em que se torna o docente neste sistema? Ele não está excluído, ou ausente, como numa pedagogia de «laissez faire», mas intervém no quadro e segundo as modalidades fixadas pelos alunos. Ele torna-se um instrumento ao serviço dos alunos que podem, segundo o caso, utilizá-lo pouco ou, pelo contrário, pedir-lhe para fazer exposições, precisar certos pontos, entrar em discussões com eles, etc. O princípio é que ele se limite em responder à solicitação dos alunos». (Lobrot, 1966).

«O pedagogo pode intervir sem que tenha solicitação explicita da parte do grupo? Pode ele, por exemplo, fazer propostas de organização? Isto é perigoso: porque o grupo confrontado com problemas difíceis tem tendência a remeter-se a alguém mais «experimentado» para tomar as decisões em seu lugar. É indispensável, no nosso ponto de vista, que o pedagogo se atenha estritamente ao princípio da solicitação, quer dizer, que não intervenha antes que o grupo se tenha entendido para formular uma pergunta explícita. Isto cria uma angústia e um certo pânico entre os indivíduos. Mas estas não são necessariamente desfavoráveis. Tanto o psicanalista como o monitor do grupo de ensaio aceitam-nas e consideram-nas mesmo como uma etapa necessária». (Lapassade, 1971).

(9) A flexibilidade e formalização

Page 21: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

21

A política educativa pode encerrar a educação nas estruturas rígidas e instituições com um carácter muito formal ou, pelo contrário, abri-la para acções não formais fora do quadro de instituições rígidas: é esta a distância que separa a escola dos séculos passados, da «sociedade sem escola».

Deverá, pois, caracterizar-se uma política educativa pela primazia que ela concede à acção educativa no quadro:

- de instituições rígidas

- de instituições flexíveis

- de acções em que o aluno fica fora das instituições.

A escola tradicional inscreve-se no primeiro destes escalões, a Universidade Aberta no segundo, a «sociedade sem escola», a televisão educativa, os centros multi-média de auto-formação, pertencem ao terceiro nível.

Seria lamentável, neste ponto, não citar Illich (1971), que propõe a mais larga abertura e a mais larga flexibilidade para a educação:

Um verdadeiro sistema educativo deveria propor-se três objectivos. A todos os que querem aprender, é preciso .proporcionar acesso aos recursos existentes, e não importa em que época da sua existência. É preciso em seguida que aqueles que desejam partilhar os seus conhecimentos possam encontrar qualquer pessoa que deseje adquiri-los. Finalmente, trata-se de permitir aos portadores de ideias novas, àqueles que querem afrontar a opinião pública, de se fazer ouvir.

(10) As relações entre os fins e os meios

A política educativa pode definir ou implicar a prioridade dos fins, relativamente aos meios, ou a prioridade inversa. É surpreendente e paradoxal que uma política educativa, que é uma fase de orientação da acção, possa conceder uma prioridade aos meios em prejuízo dos fins porque, fazendo isto, ela nega-se a si mesma. Todavia, na realidade dos factos, e embora a opção seja raramente reconhecida, acontece muitas vezes que a adopção de uma doutrina, de um método, de um conteúdo ou mesmo de um utensílio, guia a acção educativa mais que os fins para os quais devia tender e ser remate. Isto não é novo e não faltam os exemplos onde a educação consiste, antes de tudo, em «fazer latim», «fazer ensino por grupo» ou «fazer televisão», transformando, a maior parte das vezes de maneira inconsciente, o que não é senão um meio, num fim. Por vezes também trata-se de uma política educativa consciente que pesadamente se engana, ou procura, por um subterfúgio, introduzir à força uma mudança considerada como boa em si, ou eventualmente justificada por finalidades que não se querem esclarecer, ou que se

Page 22: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

22

querem dissimular.

(11) O equilíbrio dos domínios

Uma questão importante é saber a que domínio a educação que se estuda ou que se visualisa se deve particularmente consagrar: dar-se-á prioridade ao domínio cognitivo, ou antes ao domínio afectivo, ou ainda ao domínio psicomotor? Noutros termos, a educação em questão deve visar desenvolver o espírito, a personalidade afectiva ou as capacidades físicas? Muitos educadores, mas não todos, muito longe disso, pretendem realizar um equilíbrio entre os domínios citados, consistindo o problema precisamente em tentar determinar onde situam este ponto de equilíbrio.

Uma educação orientada principalmente para o domínio afectivo mas comportando uma componente cognitiva importante e uma componente psicomotora muito fraca, seria representada pelo ponto A; uma educação que negligenciasse quase totalmente o domínio cognitivo mas que fosse centrada nos domínios afectivo e psicomotor (de igual importância), seria representada pelo ponto B (a educação militar é um exemplo); finalmente uma educação em que os três domínios tivessem uma importância igual seria representada pelo ponto C.

Muitos autores defenderam posições extremas; citar os principais seria refazer uma história da educação. Em geral, e particularmente na hora actual, insiste-se muito nas declarações de intenção sobre os objectivos afectivos, e é verdade que os conhecimentos não são nada sem as atitudes que os tornam operantes mas, da intenção à realidade, a distância é grande e, nos factos, muitas políticas educativas estão ainda particularmente assentes sobre o domínio cognitivo.

(12) A coerência e a hierarquia das opções fundamentais

O estabelecimento de uma política educativa não revela trabalho científico, e não é caso para espantar, ou lamentar sequer, observar aí, quando se analisa, contradições e defeitos de coerência. Isto radica em parte no facto que razões afectivas ou políticas levam por vezes a desejar alcançar fins que, considerados racionalmente em todas as suas implicações, aparecem como dificilmente compatíveis; por outro lado, as incoerências podem também provir do facto que uma política educativa raramente é obra de um só homem, e que o acordo e a coordenação entre os responsáveis raramente são perfeitos, particularmente quando, a nível superior, não é imposta uma linha precisa. Numa certa medida as incoerências na política educativa são o preço da liberdade e da maleabilidade no sistema educativo.

Para quem deve pôr em execução a política educativa, as suas incoerências e as suas contradições são embaraçosas e devem ser resolvidas com plena clareza. Para se

Page 23: 1. O papel de uma política educativa, o seu lugar e a sua ... · Educação - Dos Fins aos Objectivos, Coimbra, Livraria Almedina, pp.19-71 1. O papel de uma política educativa,

23

alcançar isto é preciso tentar definir as hierarquias entre as opções fundamentais e os limites que estas mesmas hierarquias põem.