Joao Ildebrando Bocchi - CRISES DÉCADAS DE 60 E 70 V Encontro Iberico de HPE
1. O Romanceiro Iberico Tradio e Recriao
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Nmero especial ago-dez de 2008. Doralice Fernandes Xavier Alcoforado
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O ROMANCE IBRICO NO BRASIL: TRADIO E RECRIAO1
O romance Gerinaldo, um dos mais difundidos na Pennsula Ibrica, no teve na
Amrica a mesma difuso, segundo Menendez Pidal. No Brasil, a primeira referncia a esse
romance que se tem conhecimento a de Celso Magalhes no seu livro A Poesia Popular
Brasileira, editado em 1966, com uma verso fragmentria de apenas 04 versos, recolhida no
Maranho2. Hoje a situao no to diferente se comparada com a de outros ttulos. At o
momento, temos conhecimento de apenas mais 08 verses brasileiras distribudas em quatro
estados (Quadro 01). Dos sete romanceiros j publicados, em apenas trs aparecem verses
deste romance.
Na Bahia, recolhemos 06 verses: quatro na comunidade galega e duas na rea
metropolitana da capital do Estado. Como a pesquisa do romanceiro tradicional na Bahia se
encontra em fase inicial e a proposta do Projeto estende a pesquisa por todo o Estado, s
poderemos avaliar a penetrao deste romance ibrico em terras baianas ao trmino da
recolha. H indcios da sua existncia em cidades do interior, segundo informaes de pessoas
que o conheciam de j o ter ouvido, embora no mais se lembrassem dele.
Em nosso trabalho utilizaremos as verses recolhidas de informantes brasileiros, j
publicados ou no. No trabalharemos com as verses coletadas na comunidade galega uma
vez que esse material no entrou em um processo de tradicionalizao brasileira.
No confronto entre as verses brasileiras e as 09 verses portuguesas e 01 verso
espanhola com o objetivo de avaliarmos as permanncias da tradio ibrica e possveis
elementos recriados pela nossa tradio, tomaremos como ponto de referncia a verso n 02
da Bahia (1984), por se tratar de uma verso cujas seqncias temticas se assemelham
bastante a uma verso espanhola considerada por Menndez Pidal do tipo arcaico: Gerinaldo
y la Infanta (MENNDEZ PIDAL, 1984), e as verses portuguesas trabalhadas por ns, tendo
inclusive algumas seqncias idnticas.
Destacaremos as seqncias temticas da verso 02 da Bahia para em seguida compar-
la com as demais verses brasileiras e ibricas. Estas apresentadas em esquemas em suas
seqncias temticas (Quadro 03).
1 In: Literatura Popular Portuguesa. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1987. v. I. p. 43-58. 2 Edio organizada por Domingos Vieira Silva a partir da recolha de artigos publicados em jornais.
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Por ltimo, comparar-se-o os dois esquemas narrativos: o brasileiro (Quadro 2) e o
ibrico (Quadro 3), quando detectaremos as permanncias e as provveis recriaes do
romance Gerinaldo no Brasil.
1. O ROMANCE GERINALDO
REGINALDO
Narrado/cantado por Esmeralda Arajo Zuanny, 71 anos, natural de Salvador (BA). Salvador, 06.05.84.
Era uma vez um rei que tinha uma filha. O rei era muito rico e s queria casamento
igual para a filha. Quando tinha um prncipe que era menos rico e era apaixonado por ela.
Disse:
Oh, meu Deus! Como pode ser pra eu me aproximar de D. Infncia? Porque D.
Infncia uma princesa to rica e o pai dela muito orgulhoso... No h possibilidade.
E ele pensou, disse:
Eu vou procurar um emprego no reinado dele! Se vestiu de uma pessoa humilde e foi
a ele procurar um emprego. Ele disse:
Ns estamos com a vaga completa. A nica vaga que eu tenho aqui de jardineiro,
voc aceita?
Aceito.
Ele queria ficar perto dela, aceitou a vaga de jardineiro. Quando um dia, ele tava
regando o jardim, e ela, de vez em quando, contemplando ele, contemplando. Quando foi um
dia, ela no resistiu mais, chegou na janela e cantou:
Reginaldo, Reginaldo, vassalo do rei querido,
quem me dera, Reginaldo, passar uma noite contigo. (bis)
Ele olhou pra cima e respondeu:
No zombe de mim, senhora, que sou o vosso cativo.
Ela respondeu:
No zombo do Reginaldo, deveras o que digo. (bis)
Ele a respondeu:
Que hora quereis, senhora, que venha a vosso pedido? (bis)
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Ela respondeu:
De dez para as onze horas, quando o reis estiver dormido. (bis)
E ele foi. Acabou de fazer o trabalho dele, foi para o seu quartinho onde morava, ficou
l. Quando foi mais ou menos a hora marcada, ela veio pra janela e ficou debruada na janela
e ele psssou naquele cavalo pra baixo e pra cima. Ela a cantou da janela:
Que cavaleiro aquele, que passa e no me salva? (bis)
Ele respondeu:
Sou eu, Reginaldo que vem a vosso mandado. (bis)
Ela respondeu:
Vieste tarde nem cedo, chegaste a boa hora.
Meu pais j est dormindo e a minha me se deita agora. (bis)
Demorou um pouquinho, conversaram, eles a entraram, foram pro quarto dela e
passaram a noite os dois l no quarto.
Quando foi de manh, que o rei acordou, viu o jardim seco, sem jardineiro, sem nada.
Procurou ali pelo jardim, no achou; foi no quarto de Reginaldo, no achou Reginaldo. A, foi
chamar a mulher. Disse pra mulher:
Fui no quarto de Reginaldo, no encontrei ele a.
O Reginaldo morto ou a Infncia fugida. (bis)
Depois, ele procurou, procurou, foi no quarto de D. Infncia. Quando chegou no quarto
de D. Infncia, encontrou os dois deitados, abraadinhos, dormindo. Ele a olhou e puxou a
espada, botou entre eles dois e cantou:
No quarto de D. Infncia encontrei os dois deitados,
todos dois abraadinhos como se fossem dois casados.
Puxei pela minha espada, botei entre eles dois,
Para quando eles acordarem darem por pressentido. (bis)
A, quando ela t no melhor do sono, que acorda, que v a espada do pai entre os dois,
chorando, chorando, balanou ele:
Acorda, Reginaldo, que ns estamos perdidos.
Espada de rei meu pai entre ns est metida. (bis)
Ele a levantou e disse a ela:
Cala a boca, D. Infncia, deixa de tanto chorar.
Que dentro deste palcio tem que ser prncipe real. (bis)
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Quando amanheceu o dia, o rei muito furioso, mandou chamar os conselheiros para
ajudar, para ver quem ele era, porque, se ele fosse um pobre, ele ia mandar selar, fazer e
acontecer. Quando os conselheiros chegaram, que conheciam Reginaldo, a ele cantou:
Mandei chamar os conselheiros para conciliar
e os conselheiros me disse que podiam se casar,
que Reginaldo tambm era de uma famlia real.
E casaram os dois, fizeram muitas bodas, muitas festas, que at hoje ns tamos
comendo os doces.
Seqncias temticas do romance Gerinaldo (v.2)
Nesta verso, a primeira seqncia prepara a ambincia onde a ao narrativa vai
desenrolar-se, dando detalhes de um plano que o personagem masculino pretende executar.
a) Seqncia introdutria
Reginaldo, um prncipe pobre, apaixonado pela filha do rei, disfara-se de jardineiro e
busca emprego no palcio para ficar mais prximo da princesa e desse modo viabilizar o seu
plano.
b) Conquista Amorosa
Esta seqncia a mais importante porque desencadeadora da narrativa. Est presente
em todas as verses ibricas consultadas e em sete das oito verses brasileiras. talvez a
seqncia em que incida o menor grau de variao dos seus elementos.
A princesa se enomora do jardineiro e reiteradamente o convida a passar uma noite
com ela. Dada a sua condio social, Reginaldo demonstra no acreditar no que est
ouvindo, achando que a princesa faz pouco caso dele. A princesa no apenas confirma como
desfaz qualquer dvida quanto sua inteno:
Reginaldo, Reginaldo, vassalo do rei querido, quem me dera Reginaldo, passar uma noite comigo (bis)
No zombe de mim, senhora, que sou o vosso cativo.
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No zombo de Reginaldo, deveras o que digo. (bis)
c) O encontro
tambm uma seqncia-chave, isto , uma seqncia fundamental ao desenrolar da
ao da narrativa. Est presente nas verses ibricas e na maioria das brasileiras. Compreende
trs segmentos temticos: o ajuste do encontro, a expectativa do encontro e o encontro
propriamente dito.
Ajuste do encontro
Os dois namorados acertam a hora e o local mais conveniente para o encontro.
Que hora quereis, senhora, que venha a vosso pedido? (bis) De dez para onze horas, quando o reis estiver dormindo. (bis)
Expectativa do encontro amoroso
Esta seqncia aparece apenas nesta verso brasileira (n 2) e na verso espanhola.
Quando foi mais ou menos a hora marcada, ela veio pra janela e ficou debruada na janela e ele passou naquele cavalo pra baixo e pra cima.
Encontro amoroso
Seqncia presente em todas as verses ibricas e na grande maioria das brasileiras. a
seqncia fundamental para o desfecho do romance, pois nesta seqncia que se dar a
transgresso de um cdigo moral que vai repercutir no desfecho da narrativa.
Reginaldo chega hora aprazada, cumprindo as ordens da princesa, e se dirige para o
quarto dela, onde passam a noite:
Que cavaleiro aquele, que passa e no me salva? (bis) Sou eu Reginaldo que vem a vosso mandado. (bis) Vieste tarde nem cedo, chegaste a boa hora. Meu pai j est dormindo e a minha me se deita agora. (bis)
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Demorou um pouquinho, conversaram, eles a entraram, foram pro quarto dela e passaram a noite os dois l no quarto.
d) Pressentimento
Seqncia tambm importante, da sua presena na grande maioria das verses
brasileiras e ibricas, no desenrolar da intriga. O pressentimento do rei pode ser sugestionado
por um indcio qualquer ou por meio de um sonho, menos comum, mais presente na verso
espanhola, em verso portuguesa e em uma brasileira (v.6).
Na manh seguinte, a ausncia despropositada do jardineiro s suas funes faz o pai
pressentir que algo estranho estava acontecendo:
Fui ao quarto de Reginaldo, no encontrei ele a. O Reginaldo morto ou a Infncia fugida. (bis)
e) Comprovao da falta
Outra seqncia marcante no desencadear da ao narrativa. Est presente em todas as
verses ibricas e na maioria das brasileiras.
Aps procurar por toda parte, o rei vai encontrar o seu jardineiro nos aposentos da
princesa dormindo abraado com ela:
No quarto de D. Infncia encontrei os dois deitados, todos dois abraadinhos como se fossem dois casados.
f) Sinal de transgresso
Presente em todas as verses ibricas, j se faz ausente de algumas verses brasileiras e
em outras, apenas sugerida. Talvez pelo fato da tradio da sociedade brasileira desconhecer o
cdigo jurdico de respeito virgindade simbolizada pela espada/punhal, embora o respeito
virgindade fosse um preceito moral defendido na Constituio at h vem pouco tempo, e a
no observao se constitua ainda hoje em crime de honra muito grave, em certos lugares,
sobretudo no interior, onde uma mentalidade conservadora dos costumes ainda bem
arraigada.
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Nas verses ibricas, aparece o smbolo da espada em apenas trs, sendo o punhal que
predomina nas outras sete verses. Nas verses brasileiras, a espada est expressa em duas,
sugerida em uma. O punhal aparece em uma e o cutelo aparece em uma outra. Nas restantes,
no h referncia ao sinal de transgresso.
O rei pe sua espada entre os dois como sinal de transgresso da norma:
Puxei pela minha espada, botei entre eles dois, Pra quando eles acordarem darem por pressentido. (bis)
g) O despertar
Esta seqncia aparece no maior nmero de verses brasileiras e em todas as verses
ibricas. H, contudo, um detalhe a observar: nas verses brasileiras, com exceo de uma,
quem desperta primeiro e percebe que os acontecimentos da ltima noite j so do
conhecimento do rei a princesa. Enquanto nas verses ibricas, Gerinaldo. Nas verses
brasileiras, a princesa mostra-se desesperada, temendo a reao do pai, enquanto nas verses
ibricas, ao contrrio, Gerinaldo que se mostra temeroso do que poder acontecer. J a
princesa demonstra tranqilidade e segurana, dando mostras de que o seu ato tinha sido
pensado, no era fruto de um impulso do momento.
Ao despertar, a princesa toma conscincia de que seu ato j era do conhecimento de
todo o palcio. Aflita, acorda Reginaldo
Acorda, Reginaldo, que ns estamos perdidos. Espada de rei meu pai entre ns est metida.(bis)
h) Um plano
Das verses examinadas, esta a nica que apresenta esta seqncia. O prncipe ao
disfarar-se de jardineiro, tinha em mente conquistar a princesa e conseqentemente ocupar
um lugar de destaque na corte.
A tranqilidade do jardineiro por acreditar no sucesso do seu plano demonstra que ele
pretende reverter a situao:
Cala a boca, D. Infncia, deixa de tanto chorar
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Que dentro deste palcio tem que ser prncipe real. (bis)
i) Reconhecimento
Tambm a nica verso brasileira em que a condio de prncipe de Reginaldo,
ignorada at ento, reconhecida oficialmente:
Mandei chamar os conselheiros para conciliar E os conselheiros me disse que podiam casar, Que Reginaldo tambm era de uma famlia real.
Em apenas uma das verses brasileiras estudadas (v.6), no motivo introdutrio, a
ascendncia nobre do personagem masculino explicitada:
A viva de um fidalgo que morreu muito pobre deu o filho nico para um rei que criou o menino no seu palcio com toda a amizade.
Nas demais verses brasileiras ou vem explicitada a condio servil do personagem:
servo (v.1), criado (v.8) ou essa condio no definida: moo (v.4), menino (v.5), sem
referncia (v.7). Em duas verses aparecem: vassalo (v.2) e pajem (v.3).
Em oito das verses portuguesas aparece a sua condio de pajem e em apenas uma
(v.9) a de general. E em apenas duas dessas verses (08 e 09) vem, ao final, uma seqncia
em que o prprio personagem se identifica, quando a sua ascendncia nobre reconhecida:
VERSO 08: Eu sou um vassalo vosso
Mas de linhagens reais
Sou filho do rei de Espanha
Neto do rei de Cascais
Sobrinho do Padre Santo,
Que quereis que eu seja mais?
VERSO 09: Genro qurido sou del-rei,
Mas sou de sangue real,
Sou filho del rei das Frana,
Neto do rei de Cascais,
Sobrinho do Padre Santo,
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Qual de ns seremos mais?
j) Desfecho
Em seis verses brasileiras e em todas as verses portuguesas estudadas esta seqncia
apresenta um final feliz com o rei consentindo o casamento. Duas verses brasileiras
apresentam desfechos diferentes:
VERSO 01:
Condenado morte, o personagem masculino salvo do cutelo, mas no se livra da
escravido que lhe imposta pelo carrasco:
A, o empregado foi quem salvou ele. Pegou, tirou, que levou para matar, no matou logo na hora e ele foi livre do cutelo do reis. Porque do escravo... Ele, a, ficou sendo escravo do escravo.
E A VERSO 04:
Condenado ao degredo, o casamento s realizado aps a morte do rei:
O rei mandou prender Leonardo num navio e sair barra fora e deu ordem para dobrarem os sinos. A princesa, ouvindo os dobres, dizia: Ai, meu Deus, o que ser? Eu vejo os sinos dobrar. a voz de Leonardo que j vai a degredar. O navio saiu. Depois o rei morreu e a princesa foi se casar com Leonardo na terra onde estava.
2. ESTUDO COMPARATIVO DO ROMANCE GERINALDO
Verses brasileiras
Comparando-se as seqncias temticas das 08 verses brasileiras do romance
Gerinaldo (Quadro 2), observa-se que as seqncias que representam os verdadeiros
suportes da estrutura temtica (NASCIMENTO, 1996, 162) desse romance so as que mais
resistem, ao processo de variao, fato comprovado pela presena dessas seqncias na quase
totalidade das verses estudadas. Nas verses cujo processo de variao determinou
modificaes em sua estrutura temtica, ocorrncia observada em apenas uma verso, essas
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seqncias aparecem em nmero restrito, apenas o suficiente para se identificar o romance. O
mais comum encontrar-se um romance em que tais seqncias, embora no explicitadas,
podem ser inferidas. o que acontece com a verso 05, em que a seqncia sinal de
transgresso est omitida, mas pode-se inferi-la pela referncia que dela se faz na seqncia
seguinte, o despertar:
Gerinaldo, Gerinaldo, em perigo estamos metidos: A espada do rei meu pai entre ns est metida.
A verso 01apresenta alguns elementos de variao peculiares, nesse pequeno universo
das verses brasileiras. A comear pelo motivo introdutrio, o personagem masculino Genrio
era um homem casado, por quem a princesa se enamorou; o sinal da transgresso da norma
deixado pelo pai da moa o cutelo:
A, o pai dela pegou o cutelo e botou no pescoo dele.
O desfecho do romance tambm mpar, no tendo sido encontrado em qualquer das
verses pesquisadas. E a sentena de morte dada ao transgressor no aplicada, graas ao
corrupta do carrasco:
A, o empregado foi quem salvou ele. Pegou, tirou, que levou para matar, no matou logo na hora e ele foi livre do cutelo do reis. Porque do escravo... Ele, a, ficou sendo escravo do escravo.
Tambm a verso 04 apresenta segmentos de variao interessantes. O motivo
introdutrio apresenta o personagem masculino de nome Leonardo, como o encarregado de
enxotar as garas de uma lagoa, para elas no comerem os peixes do rei. Este motivo que
circula em contos populares no Brasil, observao j feita por Antnio Lopes (LOPES, 1967,
p. 43), possivelmente foi introduzida no romance por contaminao.
A variante brasileira do pronome de tratamento vossunc, usada por falantes do extrato
social mais popular, e a forma pronominal consigo, usada no reflexivamente, e o termo
camarinha so alguns dos aspectos lexicogrficos da linguagem dessa verso.
Vossunc, minha princesa, comigo quer caoar, Quem sou eu, Leonardo, para consigo me deitar?
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no desfecho, porm, que esta verso, parece, inovar. A sentena dada o degredo.
Talvez porque esse tipo de sentena tenha sido muito comum em tempos idos na histria do
Brasil. Esta observao igualmente feita por Antnio Lopes (LOPES, op. cit., 42). O
casamento dos dois s possvel aps a morte do rei, quando a princesa vai ao encontro de
Leonardo, final feliz bastante parecido ao dos contos populares, possivelmente outra
contaminao desse gnero:
Ai, meu Deus, o que ser? Eu vejo os sinos dobrar. a voz de Leonardo que j vai a degredar. O navio saiu. Depois o rei morreu e a princesa foi se casar com Leonardo na terra onde ele estava.
Mas na verso 06 que se encontra um processo de variao mais acentuado,
acarretando mudana na rea semntica deste romance. H apenas 03 seqncias basilares
presentes no Gerinaldo, o suficiente para no ser considerado um outro romance. No motivo
introdutrio h referncia ascendncia nobre do personagem masculino, chamado
Reginaldo, que se tornou secretrio do rei. Reginaldo namorou a princesa, mas o rei queria
cas-la com o rei de Castilha e por esse motivo o degreda em uma ilha, onde s tinha bichos.
Aps um ano, ele consegue fugir, compra um cavalo e retorna. A partir da, o romance perde a
objetividade da narrao, e o narrador passa a voz aos personagens que manifestam-se
exteriorizando os seus sentimentos, emoes e os sofrimentos decorrentes da separao dos
dois amantes. A expresso de sofrimento e tristeza passa de maneira to forte atravs da
cano que Reginaldo canta, que o rei, deslumbrado com a beleza da cantiga, sensibiliza-se e
resolve consentir com o casamento dos dois, retomando nessa seqncia o romance
Gerinaldo.
Esta verso expressa de maneira inconfundvel a sua natureza predominantemente lrica
em que o extravasamento do eu potico prevalece sobre o elemento narrativo. um exemplo
contundente de contaminao de outros textos, no caso os romances Conde Nilo e O
prisioneiro, j observado por estudiosos, entre os quais Antnio Lopes (LOPES, op. cit., p.
48-49), Joo David Pinto-Correia (PINTO-CORREIA, 1984, p. 306):
Acordai, linda princesa, desse sono em que est, Venha ouvir um lindo canto de quem no devia cantar.
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Verses brasileiras versus verses portuguesas
As verses portuguesas do romance Gerinaldo examinadas apresentam um esquema
narrativo bastante uniforme (cf. Quadro 3) com a presena das mesmas seqncias temticas
em todas as verses e um equilbrio de segmentos temticos por seqncia, o que demonstra
que o processo de variao no atingiu a sua estrutura temtica.
As verses brasileiras, ao contrrio, no apresentam essa uniformidade de seqncias,
embora as seqncias-chave se faam presentes na maioria delas, mas de forma diferenciada.
Os segmentos temticos so variveis. Geralmente h reduo, havendo casos de substituio
de segmentos, para no se falar de substituio de uma seqncia inteira, como o caso do
desfecho das verses brasileiras 01 e 04.
As verses portuguesas exploram mais conscientemente os motivos de livre escolha que
enriquecem com os desdobradamentos de segmentos no apenas a trama em si como o tecido
da linguagem, criando atravs do duplo sentido um nvel ambguo onde os significados
afloram. Essa riqueza de detalhes faz com que as verses portuguesas sejam mais longas que
as nossas, o que pode ser comprovado no confronto dos dois corpora (cf. quadros 02 e 03).
Outro fator do alongamento a incluso de comentrios sobre o comportamento de um dos
personagens no desfecho da narrativa, motivo que no aparece nas verses brasileiras.
Observa-se ainda nas verses brasileiras a necessidade do narrador introduzir uma
seqncia introdutria que explica determinadas circunstncias elucidativas necessrias ao
desenvolvimento da narrativa. possvel que essa necessidade relacione ao processo de
prosificao que se constata nas verses brasileiras dos romances em geral, a maioria deles
narrados como se fossem contos e com a parte cantada j bastante reduzida em muitos deles
(cf. verso brasileira 01).
A prosificao aponta para o processo de esquecimento por que passam os romances,
mormente os que no conseguiram refuncionalizar-se. Processo este que se mostra flagrante
em alguns romances, possivelmente em decorrncia da sua impossibilidade de adaptar-se
nova realidade e atualizar o seu tema aos tempos modernos. Creio ser exemplo disso o
romance Gerinaldo.
J o romance Juliana e D. Jorge (O Veneno de Moriana), refuncionalizado em drama e
com tema ainda bastante atual e universal (amor-cime-rejeio amorosa), recriando o
romance ibrico, , na tradio brasileira, o mais difundido, existindo no momento cerca de
160 verses levantadas em todo o Brasil, segundo informaes de Brulio do Nascimento,
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pesquisador responsvel pelo levantamento deste romance nas vrias partes do mundo para o
Arquivo Internacional Eletrnico do Romanceiro da Ctedra Seminrio Menndez Pidal.
A fragmentao ao lado da prosificao, parece ser no Brasil tambm indcio desse
processo de esquecimento. O informante ou no sabe mais cantar o romance integralmente,
entremeando trechos em prosa, ou apenas sabe narr-lo, ou intercala trechos de outros
romances, que a sua memria retm, sem saber ao certo se pertence ao romance que est
narrando ou cantando.
O processo de variao por aglutinao nos casos brasileiros tambm indcio de um
processo de esquecimento, procedimento observado de maneira exemplar na verso 06 do
romance Gerinaldo do corpus brasileiro. Mas sobretudo nas verses galegas, recolhidas
junto comunidade galega na Bahia, que essa tendncia observada: O Soldado que resulta
do Quintado + Apario e El Reino tia tres hijas que mistura Delgadinha, Conde Alberto e
Gerinaldo.
No permitindo ainda estudos conclusivos, observa-se no pequeno nmero de verses
do corpus brasileiro analisado que o romance Gerinaldo, embora conserve caractersticas de
um modo de pensamento e de sensibilidade de um contexto scio-histrico-cultural que o
gerou, no se limita ao legado dessa tradio. O texto incorpora no momento da sua produo
uma gama de elementos de natureza vria do nosso contexto que, mesmo conservando as
marcas da sua procedncia, mostra uma nova face pela necessidade de adaptar-se nova
realidade.
Transplantado para o Brasil no perodo colonial, o romance Gerinaldo aclimatou-se ao
novo contexto. Comea pelo ttulo. O Gerinaldo no Brasil, via de regra, difunde-se como
Reginaldo, Leonardo, Genrio. Na assimilao do lxico, de motivos de outras formas da
tradio oral, de um modo de pensamento e sensibilidade brasileiros.
Desse modo, o romance Gerinaldo segue seu caminho no tempo tambm em trilhas
brasileiras. permanncia de uma viso de mundo ibrica e tambm inovao, quando
recria essa tradio.
Salvador, 21 de Novembro de 1987.
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Referncias bibliogrficas:
BRAGA, Tefilo. O Romanceiro geral portugus. Ed. Fac-sim. Lisboa: Vega, 1982. BOUVIER, Jean-claude et al. Tradition orale et Identit culturelle. Paris: CNRS, 1980. COSTA, F. A. Folk-lore pernambucano: subsdios para a histria da poesia popular. Recife: Arquivo pblico estadual, 1974. GARRETT, Joo Baptista de Almeida. Romanceiro. Lisboa: Estampa, 1983. LIMA, Jackson da Silva. Folclore em Sergipe: romanceiro. Rio de Janeiro: Ctedra, INL, 1977. LIMA, Rossini Tavares do. Romanceiro folclrico do Brasil. So Paulo: Irmos Vitale, 1971. LOPES, Antnio. Presena do romanceiro: verses maranhenses. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967. NASCIMENTO, Brulio do. Processos de variao do romance. Revista Brasileira do Folclore, Rio de Janeiro: MEC IV (8/10): p. 59-126, jan./dez. 1964. NASCIMENTO, Brulio do. As seqncias temticas do romance tradicional. Revista Brasileira do Folclore, Rio de Janeiro: MEC 15 p. 159-190,1966. NEVES, Guilherme Santos. Romanceiro Capixaba Vitria, FUNARTE/Fun. Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1983. PIDAL, Diego Cataln Menndez. Memoria e Invencin en el Romancero de Tradicin Oral (I). Romance Philology. University of Califrnia. v. XXIV, n. 1, p. 1-25, august 1970. PIDAL, Diego Cataln Menndez. Memoria e Invencin en el Romancero de Tradicin Oral (II). Romance Philology. University of Califrnia. v. XXIV, n. 3, p. 441-463, feb. 1970. PIDAL, Ramn Menndez. Flor nueva de Romances Viejos. Madrid: ESPASA-CALPE, 1984. PINTO-CORREIA, Joo David. Romanceiro tradicional portugus. Lisboa: Editorial Comunicao, 1984. ROMERO, Slvio. Contos populares do Brasil. Belo Horizonte: ITATIAIA; So Paulo: EDUSP, 1985. SANTOS, Idelette M. Fonseca dos. O romanceiro brasileiro: tradio e criao. Curso Mestrado em Letras, UFBA, 1986. VILELA, Jos Alosio. Romanceiro alagoano. Macei: EDUFAL, 1983.
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QUADRO I ROMANCE GERINALDO NO BRASIL
LOCAL DE REGISTRO TTULO MARANHO PERNAMBUCO BAHIA ESPRITO SANTO
ANO NATUREZA DA VERSO
N. VERSOS
GIRINALDO + 1921 CANT. 26 L REGINALDO + 1926 NAR./CANT. 20 L LEONARDO + 1948 NAR./CANT. 17 L GERINALDO + 1948 NAR./CANT. 22 L GERINALDO + 1908 CANT. 34 C REGINALDO + 1984 NAR./CANT. 25 L GENRIO + 1986 NAR./CANT. 6 L REGINALDO + 1953 CANT. 32 C *GERINALDO + 1986 RECITADA 23 L *GERINALDO + 1986 RECITADA 14 L *GERINALDO + 1987 NAR./CANT 25 L *GERINALDO + 1986 CANT. 23 L * Verses galegas Conveno: L (longos) C (curtos) Ano: data de publicao ou de recolha
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Boitat Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL INSS 1980 - 4504
Nmero especial ago-dez de 2008. Doralice Fernandes Xavier Alcoforado
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QUADRO II ROMANCE GERINALDO: VERSES BRASILEIRAS
Seqncias temticas
VERSO
NATUREZA VERSO
N. DE VERSOS (L e C)
ANO 1.
Motivo introdutrio
2. Conquista amorosa
3. O encontro
4. Pressentimento
5. Comprovao da falta
6. Ponderao do pai
7. Sinal de transgresso
8. O despertar
9. Um plano
10 Reconhecimento
11. Desfecho
01 NAR./CANT. 06 1986 + + + + + - cutelo Gerin. - - + 02 CANT./NAR. 25 1984 + + + + + - espada Princ. + + + 03 VERSO 1953 - + - + + + - - - - + 04 CANT./NAR. 1948 + + + sonho + - espada Princ. - - + 05 CANT./NAR 22 1948 + + + + - + - Princ. - - + 06 CANT./NAR 20 1926 + - + - + + - - - - - 07 VERSO 1921 - + + + - + - - - - + 08 VERSO 1908 - + - - - + - Princ. - - +
OBSERVAES: cantadas e/ou narradas, vindo em primeiro lugar a modalidade predominante.
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Boitat Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL INSS 1980 - 4504
Nmero especial ago-dez de 2008. Doralice Fernandes Xavier Alcoforado
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QUADRO III ROMANCE GERINALDO: VERSES PORTUGUESAS E ESPANHOLA
SEQNCIAS TEMTICAS VERSES AUTOR N. DE VERSOS
L e C
ANO
1 Conquista amorosa.
2. O encontro
3. Pressentimento
4. Comprovao da falta
5. Ponderao do rei
6. Sinal de transgresso
7. O despertar
8. Desfecho
9. Comentrios vrios ao final
01 TEFILO BRAGA
29 L 1867 + + sonho + + espada Gerin. + -
02 TEFILO BRAGA
82 C 1869 + + + + + punhal Gerin. + +
03 TEFILO BRAGA
82 C 1869 + + + + + punhal Gerin. + -
04 THOMAS PIRES
64 C 1920 + + + + + punhal Gerin. + -
05 THOMAS PIRES
56 C 1920 + + - + + punhal Gerin. + +
06 THOMAS PIRES
56 C 1920 + + - + + punhal Gerin. + -
07 PE. FIRMINO MARTINS
44 C 1928 + + + + + espada Princ. + -
08 ATHAYDE OLIVEIRA
64 C 1905 + + - + + punhal Princ. + -
09 ATHAYDE OLIVEIRA
80 C 1905 + + + + + punhal Gerin. + -
10 MENNDEZ PIDAL
+ + sonho + + espada Princ. + -
OBSERVAO: Verso espanhola (MENNDEZ PIDAL, 1984, 56/58).