1. - Os Adventistas e as Jóias - André Reis

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1 www.AdventismoHoje.com © André Reis, 2013. D esde os primórdios do movimento adventista, a abstenção do uso de joias, adornos, maquiagem e pinturas estabeleceu-se como marca registrada da identidade adventista. As razões para essa prática encontram-se primariamente em duas passagens do Novo Testamento, 1 Timóteo 2:9, 10 e 1 Pedro 3:3, 4. Tal tradição intepretativa chegou ao Adventismo através do Metodismo e John Wesley da qual Ellen White fora seguidora até sua conversão ao Milerismo em 1840. Evidência dessa influência é que a revista oficial adventista da época, a Review and Herald publicou em 1855 o sermão completo de Wesley intitulado “Sobre o Vestuário”. 1 Na Conferência Geral de 1866 são adotados doze pontos normativos sobre o vestuário e adornos. 2 O ponto número sete, por exemplo, condena inclusive o “cavanhaque e o bigode” como sendo um “grave erro contra a sobriedade cristã”. Em 1874, Ellen White escreveu: “A abnegação no vestir faz parte de nosso dever cristão. Trajar-se com simplicidade e abster- se de ostentação de jóias e ornamentos de toda espécie está em harmonia com nossa fé.” 3 Quase cem anos depois, a liderança da igreja adventista mundial reunida no Concílio da Primavera de 1971 adotou três princípios sobre vestuário, renovando a proibição quanto ao uso de “colares, brincos, braceletes, anéis ornamentais” enquanto permitiu outros tipos de adorno tais como “relógios ornamentais, broches, abotoaduras, etc.,” desde que escolhidos segundo “princípios cristãos de modéstia e simplicidade”. 4 Em 1980, a codificação da doutrina adventista na forma de 27 crenças fundamentais incluiu também a recomendação pela abstenção ao uso de joias (crença número 22). No território da Divisão Sul Americana dos adventistas do Sétimo Dia, a constante ênfase no assunto de vestuário e ornamentos culminou com a adoção do documento intitulado Estilo de Vida adventista em 2012 cuja seção cinco e seis tratam do vestuário e joias e ornamentos respectivamente, renovando o compromisso com a abstenção do uso da joia. (Trataremos desse documento mais abaixo neste artigo.) Esse artigo tratará da questão dos adornos de quatro pontos de vista: (1) pano de fundo sócio-cultural das igrejas da Ásia; (2) breve análise linguística e exegese das passagens em questão; (3) Ellen White, joia e adornos; (4) o documento Estilo de Vida adventista. Textos, Contextos e Pretextos As duas passagens principais usadas para defender a abstenção das joias na igreja adventista são 1 Timóteo 2:9, 10: Quero, do mesmo modo, que as mulheres se ataviem com traje decoroso, com modéstia e sobriedade, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos custosos, mas como convém a mulheres que fazem profissão de servir a Deus, com boas obras. E 1 Pedro 3:3, 4: O vosso adorno não seja o enfeite exterior, como as tranças dos cabelos, o uso de jóias de ouro, ou vestidos, mas seja o do íntimo do coração, no incorruptível traje de um espírito manso e tranqüilo que é de grande valor para Deus. A abordagem adventista histórica a esses poucos versos é bastante simples e baseia-se no método “texto-prova” de interpretação bíblica. Em suma, esse método requer uma leitura literal do texto bíblico, frequentemente dissociada das implicações literárias (internas) e sócio-culturais (externas) do contexto da passagem, e leva à aplicação simples e direta do que está sendo dito à presente realidade do leitor. Em outras palavras, o método texto- prova pode levar à criação de uma doutrina ou um dogma a partir de um ou dois versos da Bíblia. Exemplos de extremos dessa prática interpretativa são as comunidades pentecostais manuseadoras de serpentes na região da Appalachia nos EUA que aplicam Marcos 16:17-18 de forma literal bem como as igrejas pentecostais que praticam o falar em línguas (1 Cor 12-14). O ADVENTISTA E AS JOIAS A NDRÉ R EIS _________________________ André Reis é Bacharel em Teologia pela Universidade Adventista de São Paulo, Mestre em Música pela Longy School of Music e atualmente é candidato ao Ph.D. em Novo Testamento pela Universidade Adventista de Avondale. Como autor, contribuiu dois capítulos para o livro “En Espíritu y en Verdad” (Pacific Press, 2013) e é moderador do site www.AdventismoHoje.com e colunista do site Adventist Today (www.atoday.com). Um estudo sobre o uso de adornos na igreja adventista à luz das Escrituras.

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  • 1www.AdventismoHoje.com Andr Reis, 2013.

    Desde os primrdios do movimento adventista, a absteno do uso de joias, adornos, maquiagem e pinturas estabeleceu-se como marca registrada da identidade adventista. As razes para essa prtica encontram-se primariamente em duas passagens do Novo Testamento, 1 Timteo 2:9, 10 e 1 Pedro 3:3, 4. Tal tradio intepretativa chegou ao Adventismo atravs do Metodismo e John Wesley da qual Ellen White fora seguidora at sua converso ao Milerismo em 1840. Evidncia dessa influncia que a revista oficial adventista da poca, a Review and Herald publicou em 1855 o sermo completo de Wesley intitulado Sobre o Vesturio.1 Na Conferncia Geral de 1866 so adotados doze pontos normativos sobre o vesturio e adornos.2 O ponto nmero sete, por exemplo, condena inclusive o cavanhaque e o bigode como sendo um grave erro contra a sobriedade crist.

    Em 1874, Ellen White escreveu: A abnegao no vestir faz parte de nosso dever cristo. Trajar-se com simplicidade e abster-se de ostentao de jias e ornamentos de toda espcie est em harmonia com nossa f.3 Quase cem anos depois, a liderana da igreja adventista mundial reunida no Conclio da Primavera de 1971 adotou trs princpios sobre vesturio, renovando a proibio quanto

    ao uso de colares, brincos, braceletes, anis ornamentais enquanto permitiu outros tipos de adorno tais como relgios ornamentais, broches, abotoaduras, etc., desde que escolhidos segundo princpios cristos de modstia e simplicidade.4 Em 1980, a codificao da doutrina adventista na forma de 27 crenas fundamentais incluiu tambm a recomendao pela absteno ao uso de joias (crena nmero 22).

    No territrio da Diviso Sul Americana dos adventistas do Stimo Dia, a constante nfase no assunto de vesturio e ornamentos culminou com a adoo do documento intitulado Estilo de Vida adventista em 2012 cuja seo cinco e seis tratam do vesturio e joias e ornamentos respectivamente, renovando o compromisso com a absteno do uso da joia. (Trataremos desse documento mais abaixo neste artigo.)

    Esse artigo tratar da questo dos adornos de quatro pontos de vista: (1) pano de fundo scio-cultural das igrejas da sia; (2) breve anlise lingustica e exegese das passagens em questo; (3) Ellen White, joia e adornos; (4) o documento Estilo de Vida adventista.

    Textos, Contextos e Pretextos

    As duas passagens principais usadas para defender a absteno das joias na igreja adventista so 1 Timteo 2:9, 10:

    Quero, do mesmo modo, que as mulheres se ataviem com traje decoroso, com modstia e sobriedade, no com tranas, ou com ouro, ou prolas, ou vestidos custosos, mas como convm a mulheres que fazem profisso de servir a Deus, com boas obras.

    E 1 Pedro 3:3, 4:

    O vosso adorno no seja o enfeite exterior, como as tranas dos cabelos, o uso de jias de ouro, ou vestidos,mas seja o do ntimo do corao, no incorruptvel traje de um esprito manso e tranqilo que de grande valor para Deus.

    A abordagem adventista histrica a esses poucos versos bastante simples e baseia-se no mtodo texto-prova de interpretao bblica. Em suma, esse mtodo requer uma leitura literal do texto bblico, frequentemente dissociada das implicaes literrias (internas) e scio-culturais (externas) do contexto da passagem, e leva aplicao simples e direta do que est sendo dito presente realidade do leitor. Em outras palavras, o mtodo texto-prova pode levar criao de uma doutrina ou um dogma a partir de um ou dois versos da Bblia. Exemplos de extremos dessa prtica interpretativa so as comunidades pentecostais manuseadoras de serpentes na regio da Appalachia nos EUA que aplicam Marcos 16:17-18 de forma literal bem como as igrejas pentecostais que praticam o falar em lnguas (1 Cor 12-14).

    O AdventistA e As Joias

    Andr reis _________________________

    Andr Reis Bacharel em Teologia pela Universidade Adventista de So Paulo, Mestre em Msica pela Longy School of Music e atualmente candidato ao Ph.D. em Novo Testamento pela Universidade Adventista de Avondale. Como autor, contribuiu dois captulos para o livro En Espritu y en Verdad (Pacific Press, 2013) e moderador do site www.AdventismoHoje.com e colunista do site Adventist Today (www.atoday.com).

    Um estudo sobre o uso de adornos na igreja adventista luz das Escrituras.

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    Mas seria esse um mtodo seguro de interpretao das Escrituras? Abaixo analisaremos as passagens a fim de extrair princpios que possam ser aplicados de forma vivel para a conduta adventista atual respeitando, contudo, a inteno original dos autores bblicos.

    Contexto Sociocultural da Igreja Crist Primitiva

    O pano de fundo cultural das cartas de 1 Timteo e 1 Pedro revela aspectos importantes sobre o contexto imediato das igrejas da sia Menor no primeiro sculo da era crist. O texto Efesaca de Xenofonte de feso (c. segundo sculo AD) contm importantes paralelos com a terminologia usada no NT para o adorno feminino. Os mesmos termos gregos utilizados por Paulo em 1 Timteo para se referir ao adorno feminino esto presentes nesse texto para descrever os adornos usados no culto a Artemis de feso. De fato, Paulo parece contrastar a dedicao idlatra a Artemis de feso (gr. eusebeia) com o servio a Deus (gr. theosebeia, 1 Tim 2:10).

    Alm disso, por serem reprimidas socialmente, as mulheres viam nas joias a oportunidade para a liberao social. Enquanto os homens buscavam reconhecimento pblico atravs de insgnias, as mulheres buscavam nas joias sua realizao pessoal. Plnio, o Moo relata que as mulheres gastavam mais dinheiro em brincos de prola do que outro aspecto pessoal.5 Outros escritores tais como Sneca, Dio Crisstomo, Juvenal, Plutarco e outros tambm demonstraram repdio ao adorno feminino na poca pois ele era caracterizado por conotaes scio-polticas e at mesmo religiosas.6 De fato, surpreendente que as declaraes de Paulo e Pedro so bastante similares ao que Plutarco escreveu em seu tomo Moralia:

    No o ouro ou pedras preciosas ou escarlata que a tornam assim [decorosas], mas tudo o que a envolve daquilo que simboliza a dignidade, bom comportamento e modstia.7

    Sneca elogiou sua me por haver demonstrado repdio ostentao exterior.8 Para Paulo, as quatro virtudes da cultura greco-romano, a saber, a prudncia (phronsis), a moderao (sphrosyn), a coragem (andreia)

    e a justia (dikaiosyn) eram virtudes a ser imitadas pelas mulheres crists.

    As crticas ao adorno feminino do primeiro sculo eram tambm uma reao dos maridos romanos frente liberdade feminina na nova mulher romana que se contrapunha figura tradicional da mulher romana modesta. Os maridos romanos podiam proibir suas esposas de se engajar em muitas atividades, tais como beber vinho

    e usar adornos; certas leis locais proibiam a mulher de usar ouro e vestidos floridos por sua associao com a prostituio.9 Tal tendncia de controlar os avanos da feminilidade romana pode ser vista no fato de que moedas e esculturas buscavam influenciar as esposas romanas representando os penteados modestos e simples das mulheres dos emperadores.10 digno de nota que em suas recomendaes s mulheres de feso, Paulo reluta em quebrar completamente esse paradigma social, mas as insta a submeterem-se aos seus maridos atravs da moderao e decncia (1 Tim 2:11). O mesmo ocorre em suas recomendaes que as mulheres de Corinto continuem a usar o vu em lugares pblicos segundo as normas sociais da poca (1 Cor 11:5, 6).

    A extravagncia nos adornos e o uso de certos trajes tinham a conotao de sensualidade mesmo para a v e idlatra mente romana. E no era s para os romanos, essa idia pode ser vista no texto judaico O Testamento de Ruben 5 (c. 200

    AD) que afirma que mulheres dominadas pelo esprito de fornicao usavam do adorno para enganar as mentes [dos homens]. As mulheres romanas casadas deveriam usar a stola, um traje comprido que se vestia por cima de outras vestes que havia se tornado o smbolo da modstia; enquanto as hetairai, as prostitutas, vestiam-se de forma peculiar com muita ornamentao e vestidos com tons de prpura e dourados.11

    Assim, temos que levar em considerao as grandes questes sociais presentes no mundo greco-romano e a contrast-las com nossa realidade hoje. Como explicam Lea e Griffin, Padres aceitveis de modstia variam com o lugar e a gerao, mas Paulo desejava que as mulheres cultivassem o temor de Deus em lugar da vaidade.12 No poderamos seguir os mesmos padres sociais de feso sem ter que limitar a participao feminina no culto e em cargos de liderana na igreja, j que a mulher deve

    primordialmente aprender em silncio (1 Tim 2:11). Alm disso, Paulo tambm recomenda que homens homens orem em todo lugar, levantando mos santas (v. 8). Por que no insistimos hoje nessa prtica que faz parte do mesmo contexto?

    Com o contexto cultural acima, agora podemos analisar aspectos lingusticos dos textos em questo.

    Penteado romano, c. 90 AD similar ao referido no texto bblico. (Museu Capitolino, Roma).

    O princpio da busca pelas qualidades interiores

    uma faca de dois gumes: seu fio atinge queles

    cristos que tentam fazer do exterior o centro da sua

    identidade atravs do adorno exageradamente aparatoso, mas tambm atinge queles

    que tentam fazer da absteno do adorno o centro da sua

    identidade.

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    A Influncia Semtica no Novo Testamento A questo que reger essa seo : Ao

    dizer no seja o enfeite exterior e no com tranas, ou com ouro, ou prolas, ou vestidos custosos, estariam Pedro e Paulo de fato proibindo sumariamente uso de adornos? Para responder essa pergunta, temos que analisar uma caracterstica do pensamento hebraico. Vrios eruditos13 demonstraram de maneira convincente a existncia do que chamam da negao dialtica ou negao relativa14, uma caracterstica comum ao pensamento e lngua hebraicos (hebrasmo). Zerwick explica:

    Em proposies disjuntivas15, uma peculiaridade semtica expressar um membro de forma negativa a fim de colocar maior nfase no outro, dizendo no A mas B onde o sentido no tanto A mas B ou B em vez de A.16

    Em outras palavras, a idia no tanto [ou primordialmente] A mas muito mais [ou preferivelmente] B ou muito mais B do que A. Assim a construo frasal no encapsula uma negao absoluta de A mas simplesmente prioriza B: o autor quer dar prioridade e nfase a um elemento sobre o outro sem anulao mtua. Gousset explica que essa caracterstica denota uma figura de linguagem, como hiprbole, um exagero a fim de dar maior nfase ao ponto pretendido.17 Sobre esse ponto Flacius afirma que tais negaes encontradas no AT quando lidas sem considerar-se condicionalidade ou o contexto seriam simplesmente falsas ou absurdas.18 isso que vemos em Jer 7:22-23 por exemplo quando Deus afirma:

    Pois no falei a vossos pais no dia em que os tirei da terra do Egito, nem lhes ordenei coisa alguma acerca de holocaustos ou sacrifcios. Mas isto lhes ordenei: Dai ouvidos minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vs sereis o meu povo; andai em todo o caminho que eu vos mandar, para que vos v bem.

    Uma leitura sem o pano de fundo lingustico poderia considerar a afirmao como uma prova de Deus nunca falou de sacrifcios aos Israelitas. Mas essa concluso seria falsificada pelo estabelecimento do ritual do tabernculo pelo prprio Yahweh no Pentateuco. Mas a nfase em Jeremias

    no fato de que, embora Deus tenha de fato dado muitas instrues sobre holocaustos e sacrifcios desde que os Israelitas chegaram ao Sinai, estes em si no eram o centro do seu relacionamento com o povo mas sim a obedincia do dar ouvidos voz de Deus. Em outra palavras, Deus est dizendo No falei tanto de holocaustos e sacrifcios aos vossos pais mas muito mais de obedincia. Outros exemplos da negao relativa no Antigo

    Testamento so:Os 6:6: Pois misericrdia quero, e no

    sacrifcios; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos.

    Gn 45:8: Assim no fostes vs que me enviastes para c, seno Deus.

    1 Sam 8:7: Ouve a voz do povo em tudo quanto te dizem, pois no a ti que tm rejeitado, porm a mim, para que eu no reine sobre eles.

    2 Crn 19:6: Vede o que fazeis; porque no julgais da parte do homem, mas da parte do Senhor.

    Tal semitismo est presente tambm no NT pois a maioria dos seus autores eram de origem semtica. Jesus por exemplo, falou em aramaico tudo o que temos no NT que foi posteriormente traduzido para o grego. Outro exemplo disso o livro do Apocalipse que no original grego est repleto de construes gramaticalmente incorretas que apontam para forte influncia do hebraico e pensar semtico do autor.19 Essa influncia tem importantes implicaes

    para o correto estudo e traduo do NT. Exemplos da negao relativa no NT esto em Lucas 10:20 que diz na ARA: Contudo, no vos alegreis porque se vos submetem os espritos; alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos cus. Sob o prisma da expresso semtica em questo, o verso deveria ser lido da seguinte forma: Contudo, no vos alegreis primordialmente porque se vos submetem os espritos; antes muito mais alegrai-vos por estarem os vossos nomes escritos nos cus; Joo 6:27: Trabalhai, no tanto pela comida que perece, mas muito mais pela comida que permanece para a vida eterna (Veja tambm Lucas 12:4; 14:12; 23:28; Mat 10:20; Mar 9:37; Joo 7:16; 12:44; 1 Cor. 1:17). A nfase no tanto A [a justificada alegria pela submisso dos espritos/a alimentao] mais muito mais B [os nomes estarem escritos nos cus/a vida eterna]. Outro exemplo dessa dialtica est em Mat 23:23:

    Ai de vs, escribas e fariseus, hipcritas! porque dais o dzimo da hortel, do endro e do cominho, e tendes omitido o que h de mais importante na lei, a saber, a justia, a misericrdia e a f; estas coisas, porm, deveis fazer, sem omitir aquelas (Mat. 23:23).

    Podemos ver a influncia dessa caracterstica semtica tambm nos escritos de Paulo. Em 1 Cor 1:17a ele diz: Porque Cristo no me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho. Sob o prisma do pensamento hebraico, a declarao deve ser lida Porque Cristo no me enviou primordialmente para batizar, mas muito mais para pregar o evangelho. A idia aqui no negao absoluta do chamado para batizar, j que Paulo continua afirmando que de fato batizou vrias pessoas em Corinto (cf. vv. 14-16), mas sim prioridade do chamado: a pregao.20 Veja tambm 1 Tess 4:8: Portanto, quem rejeita isso no rejeita [primordialmente] ao homem, mas [muito mais] a Deus, que vos d o seu Esprito Santo.

    1 Timteo 2:9, 10A influncia da negao relativa

    crucial para a correta exegese das passagens de 1 Timteo 2:9, 10 pois como vimos, uma caracterstica da maneira Paulina de se expressar. Assim poderamos ler sua declarao sobre o adorno das mulheres de feso em 1 Tim 2:9, 10 da seguinte forma: Quero, do mesmo modo, que as mulheres se

    Mulher romana do segundo sculo AD usando o peribolaion, o vu referido por Paulo em

    1 Cor 11. Ela tambm usa a stola que cobre a maior parte do seu corpo.

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    ataviem com traje decoroso, com modstia e sobriedade, no tanto [ou primordialmente] com tranas, ou com ouro, ou prolas, ou vestidos custosos, mas muito mais como convm a mulheres que fazem profisso de servir a Deus: com boas obras.

    Dessa forma, sob o prisma do pensar hebraico de Paulo, no vivel a idia de que h aqui uma proibio absoluta quanto ao uso de adorno exterior. O que vemos na verdade a priorizao do interior sobre o exterior, sem necessariamente que um seja proibido ou anulado. Esse aspecto da passagem tambm reforado quando consideramos que os termos no original grego traduzidos comumente como modstia, decncia (gr. aidous, latim pudor) e respeito, discrio, moderao, auto-controle (gr. sphrosyn , latim prudentia) no so necessariamente incompatveis com o uso do ouro, prolas, vestidos e cabelos tranados. O princpio aqui a moderao e no proibio.

    Assim evidente que na segunda parte da admoestao, Paulo parte para uma nfase no fato de que so as boas obras e no tanto na aparncia exterior que devem marcar a ndole da mulher crist. A passagem torna-se uma nfase no servio a Deus (gr. theosebeia), sem que haja necessariamente um descuido com a aparncia. Acima de tudo, diz Paulo, que haja sphrosyn , auto controle, moderao, a virtude por excelncia da mulher romana. O conceito to importante que Paulo o repete no verso 15 instando as mulheres a permanecerem na f, no amor e na santificao com sobriedade [sphrosyn ]. Marshall explica que as duas palavras [modstia e moderao] expressam o decoro prprio da mulher crist e que se contrape seduo e ostentao de riqueza da mulher mundana.21 Era a falta de sphrosyn no adorno e no vestir que abria as portas sensualidade e indecncia.

    Sob este prisma, a leitura correta da passagem revela que devemos evitar proibies taxativas sobre adorno que pretendem fazer do exterior uma marca registrada do testemunho cristo. Essa nfase no exterior justamente o oposto da inteno de Paulo e de Pedro.

    A verdad que o princpio da busca pelas qualidades interiores uma faca de dois gumes, seu fio atinge queles cristos que tentam fazer do exterior o centro da sua identidade atravs do adorno exageradamente aparatoso, mas tambm atinge queles que tentam fazer da absteno do adorno o centro

    da sua identidade. O ponto chave simples: o exterior no o que deve marcar a vida do cristo, mas sim o seu testemunho. A razo de Paulo tambm bem mais profunda: usar ou no usar no faz diferena se meu testemunho, o que ocorre dentro do meu ser destitudo do poder do Esprito. A proibio do adorno inverte a inteno do texto bblico ao tornar o exterior e a aparncia um teste de f. (Veja 1 Sam 16:7; Atos 10:34; Tiago 2:-3, 4). Afinal, seria contraproducente que Paulo quisesse enfatizar o interior e ao mesmo tempo criasse proibies quanto ao exterior! A modstia, embora importante, no deve se tornar um fim em si mesma.

    Alm disso, a idia de que Paulo estivesse proibindo algo taxativamente estranha ao pensamento Paulino. Afinal foi o mesmo Paulo que escreveu contra aqueles que impunham um rigo asctico atravs de regras como no toques, no proves, no manuseies o que Paulo chamou de preceitos e doutrinas dos homens as quais tm, na verdade, alguma aparncia de sabedoria em culto voluntrio, humildade fingida, e severidade para com o corpo, mas no tm valor algum no combate contra a satisfao da carne (Col 2:20-23). Paulo no poderia ter sido mais direto: o problema do homem est no interior e no no exterior. Ele possivelmente teria dificuldades com a preocupao exagerada com o exterior no af de manter a identidade adventista.

    1 Pedro 3:3, 41 Pedro 3:3, 4 tambm um caso

    da negao relativa.22 Assim o verso deveria ser lido: O vosso adorno no seja primordialmente o enfeite exterior, como as tranas dos cabelos, o uso de joias de ouro, ou no colocar vestidos, mas muito mais seja o do ntimo do corao, no incorruptvel traje de um esprito manso e tranqilo.

    No livro de Atos, Pedro utiliza o mesmo artifcio ao afirmar: No mentiste primordialmente aos homens, mas muito mais a Deus. (Atos 5:4). A mentira foi sim aos homens, mas a nfase da declarao na a seriedade de um mentira contra Deus. Assim, a traduo da Nova Verso Internacional de 1 Pedro mais coerente ao dizer: A beleza de vocs no deve estar nos enfeites exteriores, como cabelos tranados e joias de ouro ou roupas [finas]. Ao contrrio, esteja no ser interior...

    Talvez a evidncia mais contundente de que no h uma proibio por parte de Pedro o fato de que, ao contrrio de Paulo que diz vestidos custosos, o original grego de 1 Pedro 3:3 traz literalmente vestir roupa (gr. h endyses himatin) ou simplesmente roupa. (A verso Almeida Revista e Atualizada diz luxo dos vestidos e a Nova Verso Internacional roupas finas, ambas tradues incorretas). Assim, o texto original de 1 Pedro refora a idia da negao relativa semtica, a ttulo de contraste apenas entre o exterior e o interior, j que seria incoerente a proibio de vestir roupa. Em outras palavras, para Pedro, o mesmo que ele diz sobre joias e penteados podem ser dito sobre a roupa: no nestes que reside o valor da mulher crist. Pelo contrrio, era assim que tambm costumavam adornar-se as santas mulheres do passado, que colocavam sua esperana em Deus, atravs da beleza de uma vida dedicada a Deus. E assim como Paulo, Pedro segue as convenes sociais da poca ao associar a moderao no adorno submisso da mulher ao seu marido (cf. 1 Ped 3:1, 5).

    A idia de que vestir-se bem e usar adornos no incompatvel com o servio a Deus pode ser vista j no Antigo Testamento. O Sumo Sacerdote vestia-se dos melhores tecidos e joias preciosas no servio do templo que eram para glria e ornamento (xo 28:2); ele era santo ao Senhor (xo 28:9-12, 17-21, 36) enquanto o livro de Provrbios descreve a mulher virtuosa, que teme ao Senhor

    A leitura correta desses textos revela que devemos evitar proibies taxativas

    sobre adorno que pretendem fazer do exterior

    a marca registrada do testemunho cristo. Essa

    nfase justamente o oposto da inteno do texto bblico, pois torna o exterior e a aparncia um teste de f. Paulo teria dificuldades

    com a preocupao exagerada com o exterior no af de manter a identidade

    Adventista.

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    como vestida de linho fino e de prpura (Prov 31:22, 24). J no Novo Testamento, lemos sobre a crist Ldia, vendedora de prpura, da cidade de Tiatira, e que temia a Deus (Atos 16:14). Como fornecedora dos custosos tecidos cor de prpura na cidade de Tiatira, Ldia muito provavelmente tambm era consumidora desses tecidos e tornou-se um grande acrscimo igreja crist primitiva, assim como vrias mulheres ricas de Tessalnica (Atos 17:4). No h nesses casos nenhuma incompatibilidade entre o vestir-se com tecidos caros e joias e o servio ao Senhor. Como concluiu Portela, Mas o contraste continua existindo, e esse contraste entre uma beleza exterior e uma beleza interior ou entre um adorno inferior e um adorno muito superior. Todavia, no interditando o primeiro que iremos chegar a plena realizao do segundo.23 Essa tambm posio da maioria dos comentrios evanglicos.24

    Se por outro lado, expandirmos o conceito presente em 1 Timteo e 1 Pedro substituindo joias, tranas e ouro por carros, casas, bens materiais, ser que leramos essas passagens como proibies a estes? Como isso impactaria nosso entendimento da moderao que o centro dessas passagens?

    inegvel que o uso exagerado de ornamentos tinha uma conotao negativa na sociedade greco-romana. Mas devemos nos perguntar se o uso do adorno discreto, com bom gosto e bom senso de joias e adornos como vemos em vrios exemplos nas Escrituras realmente caracterizam falta de moderao.

    Ellen White e o AdornoEmbora Ellen White tenha dito: Trajar-

    se com simplicidade e abster-se de ostentao de joias e ornamentos de toda espcie est em harmonia com nossa f27, ela no era completamente avessa ao seu uso. Em uma foto datada de 1878 (veja p. 6), Ellen White est em p com uma corrente de metal decorativa (provavelmente de seu relgio de bolso), com um broche na gola e um adorno no cabelo. Em uma campal em 1887, ela est acompanhada de outras mulheres, todas usando chapu. Em 1907, sua neta Ella est em p com um colar que lhe fora trazido como presente do Hava por Ellen White; em 1913, ela est ao lado de Ellen White com um colar ou de metal ou de bijuteria. Em outra foto, Ellen White veste o que parece ser um casaco de peles e em outra, um manto sobre a cabea. Tambm vemos

    homens com relgios de bolso cujas correntes eram visveis e formavam um adorno no colete. As mulheres das fotos utilizam broches, chapus e acessrios comuns da poca. Trs das fotos em close-up mostram diferentes tipos de broches, um lao e tranas e redes no cabelo.

    Apesar de ter de fato usado adornos comuns na poca, Ellen White no estava sendo extravagante. Mas ao mesmo tempo, no podemos negar que h adornos em seu vesturio que poderiam ser considerados suprfluos. melhor aceitar que Ellen White aquiesceu a alguns aspectos do adorno feminino da era vitoriana sem consider-los inapropriados. Nossa parte hoje continuar a manter a mesma moderao demonstrada por Ellen White em seu tempo. Ela explica:

    H alguns dos meus irmos e irms que, assim como eu, mantm a simplicidade no vesturio. Meus escritos so claros sobre esse assunto, mas eu no o coloco frente. Ele no deve assumir maior importncia do que as solenes e cruciais verdades para este tempo.28

    Ellen White tambm advertiu contra os extremos na questo do vesturio e adornos e contra torn-los um teste de f.29 Tambm temos que lembrar que, apesar de ter afirmado que a abstinncia absoluta do adorno est em harmonia com a nossa f, ela teve palavras muito mais duras para a bicicleta quando disse que o interesse em comprar uma bicicleta tem desagradado grandemente ao Senhor e desonrado a causa da verdade.25 Em outro lugar ela afirma que a histeria da bicicleta uma ofensa a Deus.26

    E assim como em outros assuntos da experincia adventista pioneira, uma das

    preocupaes sobre o uso da joia e adornos era seu custo frente s dificuldades econmicas vividas pela maioria dos primeiros adventistas e a necessidade premente de apoiar financeiramente o movimento. Mas cada gerao tem seus desafios, e o que era realidade para os pioneiros adventistas na era vitoriana pode no se aplicar a ns hoje. Os escritos de Ellen White necessitam ser lidos de acordo com o tempo e lugar em que foram escritos.

    Acima de tudo, apesar da importncia dos escritos de Ellen White para a teologia adventista, prtica salutar mant-la sempre em seu lugar de subordinao em relao s Escrituras (Veja Mensagens Escolhidas, vol. 3, p. 33). Assim no deveria nos causar espcie se a devida exegese de uma passagem difere da interpretao de Ellen White, j que ela nunca assumiu a posio de intrprete infalvel das Escrituras.

    O Documento Estilo de Vida AdventistaO recm votado (2012) Estilo de Vida

    adventista para o territrio da Diviso Sul Americana trata entre muitas coisas, do vesturio, joias e ornamentos. H muitos pontos positivos no documento de forma geral, como por exemplo, o chamado a um mais alto padro de conduta e testemunho cristo perante a sociedade no que tange conduta moral, sexualidade e sade, por exemplo.

    H, no entanto, pontos preocupantes no ponto de vista de interpretao bblica os quais no nos cabe analisar de forma completa aqui.30 Na questo do vesturio, basta dizer que, apesar das dificuldades de se extrair uma proibio taxativa quanto questo dos adornos das Escrituras os proponentes do documento concluem que Pedro e Paulo deixam bem claro a proibio quanto a esses.

    De fato, no podemos negar que para o cristo, a autoestima e a valorizao social esto fundamentadas no fato de o ser humano ter sido criado imagem de Deus (p. 10) e tambm que o adorno no deve ser fonte de de autoestima e valorizao social (p. 11). Mas problemtica a concluso de que o uso de joia conflita com a profunda experincia crist que Deus deseja para Seus filhos e filhas pois como podemos definir que o uso individual de joias tem esse objetivo? Como perscrutar o corao de quem usa o ornamento? No cabe a ns julgar que algum entre ns esteja usando joias e adornos para esse fim. plausvel que algum esteja usando joias e ornamentos da mesma maneira que usa a roupa, como uma prtica perfeitamente aceitvel

    H alguns dos meus irmos e irms que, assim como eu, mantm a simplicidade no

    vesturio. Meus escritos so claros sobre esse assunto,

    mas eu no o coloco frente. Ele no deve assumir maior

    importncia do que as solenes e cruciais verdades para este

    tempo. Ellen G. White

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    dentro dos padres sociais de sua cultura. Tais declaraes no documento pendem para o juzo de valor e acabam conflitando com o alerta dos autores para que o documento no seja usado como um elemento de crtica ou julgamento de outros (p. 15).

    O documento tambm condena a tatuagem e para isso se vale de Lev 19:28. Mas tal uso uma violao do sentido original da passagem que no trata da tatuagem ornamental e sim da

    tatuagem no contexto de rituais aos mortos. Isso no significa que o cristo deva abraar prtica da tatuagem somente porque no h um verso sequer na Bblia que trata disso. O princpio da moderao tambm pode se aplicar nessa questo.

    Joias, sinal de apostasia?O documento conclui que apesar de

    vrios personagens bblicos terem usado

    joias, o texto bblico deixa claro que o seu abandono caracteriza um movimento de total reavivamento e reforma espiritual do povo de Deus (Gn 35:2-4; x 33:5, 6) (p. 11). Mas a associao do abandono da joia a movimentos de reavivamento e reforma questionvel por vrias razes.

    Primeiramente, os textos usados no apoiam tal concluso. A nica joia mencionada em Gn 35:2-4 foram brincos os quais, juntamente com os dolos podem ter tido mais conotao idlatra e ritualstica do que de simples adorno pessoal. Ademais, se o texto uma condenao joia, somente brincos de ouro seriam proibidos, anis, colares e maquiagem e afins seriam permitidos.

    O segundo texto, x 33:5, 6 tampouco indica um contexto de reavivamento e reforma; a retirada dos atavios por parte de Israel fazia parte de um processo de preparao para castigo e risco de perda da presena de Deus por sua transgresso no Sinai. Tambm no h nenhuma indicao que houve um abandono universal desses; no lemos que estes foram destrudos ou retirados do povo. Eles simplesmente no os puseram naquele perodo. Que o uso dos adornos retornou a Israel em tempos de prosperidade espiritual pode ser visto no lamento de Davi pela morte de Saul, que vestiu as donzelas de rubros ornamentos, e suas roupas enfeitava com adornos de ouro (2 Sam 1:24).

    Mas mesmo que a retirada das joias por parte de Israel tivesse conotao de reavivamento e reforma em algum momento, isso no significa que tal prtica deveria ser esperada da igreja hoje. Afinal, xo 19:10-15 contm uma lista de preparaes que o povo deveria seguir para o encontro com Yahweh no monte Sinai, inclusive a abstinncia sexual. Lev 14:8-9 e Nm 8:7 exigem a remoo de todo o pelo e cabelo em sinal de purificao. Se vamos insistir num suposto paralelo entre o povo de Israel e a igreja, o que impediria

    de que a absteno sexual e e a proibio da barba e pelo corporal sejam um requisito para o reavivamento e reforma? Alm disso, os despojos de guerras na forma de adornos entregues para o uso no Templo resultariam em sua contaminao se eles fossem de fato smbolo de apostasia, rebelio e paganismo (cf. Nm 31:50).

    O mesmo se aplica passagem de Isaas 3:18-23 que frequentemente usada para demonstrar o desagrado de Deus quanto s joias. Nessa

    Fotos Ellen White Estate Inc.

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    passagem, Deus promete retirar de Jerusalm, dentre muitas coisas, os seus adornos. Segundo estudiosos, a lista de adornos bastante difcil de decifrar do ponto de vista do hebraico mas tudo indica que esses itens esto relacionados idolatria e funes polticas, tanto de homens quanto das mulheres.31 O contexto da passagem castigo e perda do relacionamento com Deus e no reavivamento e reforma (cf. Eze 16:39; 23:26; Os 2:13). Alm disso, no eram s os adornos que Deus iria retirar de Jerusalm mas tambm o po, gua, perfumes, cinto e o cabelo (Isa 3:1, 24). Se vamos conectar o adorno com apostasia com base em Isaas 3, ento sejamos coerentes e associemos apostasia o po, a gua, o cabelo, os cintos e o perfume tambm.

    Alm disso, a leitura literal dessa passagem ignora aspectos simblicos no texto. A prosperidade e os adornos simbolizam o orgulho e corrupo de Jerusalm j que, aps ser despida de tudo, a cidade de Jerusalm que desolada, se sentar no p (Isa 3:26; compare com Eze 16:1-17).

    A afirmao de que o abandono das joias sinal de reavivamento e reforma ignora que joias, adornos e vesturio suntuoso so justamente smbolo de restaurao e a aprovao de Deus em vrias passagens do Antigo Testamento. Em Isaas 61:10 a grinalda do noivo e as joias da noiva so smbolo do agrado de Deus (cf. 49:18). Ezequiel 16:3-17 apresenta um srio problema para o argumento de que a joia um sinal de apostasia. Nesse texto, as joias de Jerusalm, no sentido figurado obviamente, lhe foram dadas pelo prprio Deus num contexto de escolha, privilgio e restaurao e no de apostasia. Vejamos:

    Tambm te vesti de bordados, e te calcei com pele de dugongo, cingi-te de linho fino, e te cobri de seda. Tambm te ornei de enfeites, e te pus braceletes nas mos e um colar ao pescoo. E te pus um pendente no nariz, e arrecadas nas orelhas, e uma linda coroa na cabea. Assim foste ornada de ouro e prata, e o teu vestido foi de linho fino, de seda e de bordados; de flor de farinha te nutriste, e de mel e azeite; e chegaste a ser formosa em extremo, e subiste at a realeza. Correu a tua fama entre as naes, por causa da tua formosura, pois era perfeita, graas ao esplendor que eu tinha posto sobre ti, diz o Senhor Deus. Pelas suas joias, Jerusalm fora perfeita. Deus condena o fato de que as joias dadas

    por ele para adorn-la foram convertidas em dolos de ouro e de prata (v. 17).

    Tambm tomaste as tuas belas joias feitas do meu ouro e da minha prata que eu te havia dado, e te fizeste imagens de homens, e te prostituste com elas.

    Obviamente, a passagem baseada em linguagem simblica e no prescritiva. Mas, ao mesmo tempo, no podemos negar que a conotao dada s joias aqui no poderia ser mais positiva: elas simbolizam o ntimo relacionamento de Deus com seu povo. A Nova Jerusalm representa uma reverso do que ocorre em Isaas 3 e Ezequiel 16 pois a cidade desce do cu como uma noiva adornada com todo tipo de pedra preciosa, ouro e prolas (Apoc 21:18-21). L, os santos usaro coroas, adorno real associado ao reino de Deus sete vezes no Apocalipse (cf. 2:10; 3:11; 4:3; 10; 6:2; 12:1; 14:14).

    Outros textos que tratam positivamente do uso das joias como adornos so Gn 2:10-12. Cant 1:10, 11; J 42:11, 12; Prov 1:8, 9; 25:12.

    Jias funcionais X joias ornamentais?O documento tambm afirma que

    joias funcionais, usadas segundo o contexto sociocultural, tambm devem seguir os mesmos princpios (p. 10). Em outras palavras, acessrios tais como o relgio ou a aliana no ferem nenhum princpio porque tm uma funo especfica e prtica: marcar a hora e expressar compromisso matrimonial.

    H dois problemas aqui. O primeiro que a distino entre joias ornamentais e joias funcionais inexistente nas Escrituras. Tal distino hoje se torna artificial e arbitrria, pois as joias podem ter vrias funes, seja adorno ou como acessrio do vesturio, o que a torna tambm funcional. Por outro lado, o documento abre as portas para que contexto sociocultural tambm impacte o vesturio do cristo. Sobre esse aspecto podemos dizer que assim como no caso das crists no mundo greco-romano que precisavam exercer sabedoria na escolha dos vesturio e adornos, o uso do adorno com bom gosto atualmente pode estar perfeitamente dentro dos padres socioculturais imediatos de cada comunidade crist.

    Ademais, a noo de funcionalidade bastante subjetiva, afinal, toda joia tem uma funo, seja prtica ou ornamental. Como definir quando acaba o adorno e comea a funcionalidade? E quem detm o poder de

    deciso sobre o assunto? E por que no aplicar o conceito de funcionalidade roupa em si? Por esse prisma, no seria o pano-de-saco o tecido funcional por excelncia? Ele cumpre sua funo de maneira mais modesta possvel. A cor da roupa no tem nenhuma funo prtica, ela puramente ornamental. A aliana matrimonial sequer precisa ser de ouro, ela poderia ser de couro, de arame ou lata.

    Perceba o leitor que a tentativa de criar distines entre tipos de joias causa mais problemas do que resolve. O documento no explica por qu no se poderia aplicar os mesmos princpios aplicados na escolha de joias funcionais ao uso de joias ornamentais. O fato que no h nada de errado na busca pela beleza e esttica atravs do ornamento. A idia de que ornamentar-se de alguma forma pecado estranha ao texto bblico. Como vimos acima, a funo das joias usadas pelo Sumo Sacerdote eram para glria e ornamento (xo 28:2).

    A suposta distino entre joia funcional e joia ornamental nada mais do que uma tentativa para justificar o fato de que os adventistas

    em realidade no so contra todo o tipo de adorno, apenas alguns tipos de adorno. Mas a conveno que considera a gravata e seu prendedor, o colete, as abotoaduras, o enfeitado relgio de pulso, a aliana de ouro, o salto alto, o pintar o cabelo e as luzes como adornos

    aceitveis para o cristo precisa tornar-se coerente e considerar tambm como aceitvel o bom gosto e a moderao no uso de joias

    ornamentais tais como brincos, anis, colares, o esmalte e a maquiagem.

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    Talvez o maior problema com a distino artificial entre joias ornamentais e joias funcionais que ela pende ao legalismo extremista, semelhante ao judasmo cujo zelo desvairado criara centenas de regras paralelas ao declogo. Ela se torna uma grande distrao da real inteno dos autores bblicos cuja nfase est no adorno interior e no em qual adorno fere ou qual no fere algum princpio de modstia.

    A suposta distino entre joia funcional e joia ornamental nada mais do que uma tentativa de justificar o fato de que os adventistas em realidade no so contra todo o tipo de adorno, apenas alguns tipos de adorno. Mas a conveno que considera a gravata e seu prendedor, o colete, as abotoaduras, um enfeitado relgio de pulso, a aliana de ouro, o salto alto, o pintar o cabelo e as luzes (e a lista continua) adornos aceitveis pressupe o princpio que h o adorno aceitvel ao cristo desde que esteja alinhado com as melhores virtudes sociais da sociedade contempornea em geral. O que necessrio na posio adventista, alm de um melhor mtodo hermenutico nessa questo, a coerncia de aceitar que certas joias ornamentais tais como brincos, anis, colares e o uso do esmalte tambm podem ser aceitveis para o cristo. Afinal, Deus criou joias e pedras preciosas para o deleite

    de suas criaturas (Gn 2:10-12). Assim que as Escrituras no apoiam

    a diferenciao entre joias funcionais e joias ornamentais. A distino entre a beleza interior e a exterior. A interior mais importante que a exterior, mas a exterior no necessita ser repudiada.

    ConclusoNosso breve estudo demonstrou que no

    h no texto bblico uma proibio absoluta do uso da joia e adornos. O que os escritores bblicos pedem que as coisas sejam colocadas no seu lugar certo. Em estilo caracterstico da mente semtica, Pedro e Paulo no proibiram o uso do adorno e da joia antes enfatizaram que estes no devem ser a vitrine do carter da mulher crist. O mtodo texto-prova, que caracteriza a posio adventista sobre o adorno, insustentvel pois ignora aspectos

    lingusticos e culturais presentes no texto bblico de 1 Timteo e 1 Pedro.

    Em ltima instncia, porm, apesar da ausncia da proibio nas Escrituras quanto ao uso de joias e adornos, as evidncias analisadas aqui apontam para a necessidade de equilbrio e bom gosto na escolha dos adornos para que eles apenas emoldurem as qualidades interiores da mulher adventista moderna. Nosso estudo mostra que ela pode adornar-se dentro do que socialmente aceitvel no seu contexto. Assim, o argumento de que usar joias prejudica o testemunho adventista falso, j que o usar joias para embelezar-se e em si uma caracterstica comum e moralmente aceitvel da sociedade moderna. Esperar que o nosso testemunho dependa da ausncia de adornos uma inverso da inteno dos autores bblicos que colocam nfase no testemunho atravs do adorno interior que se expressa no exterior pela demonstrao de um carter transformado. Pior ainda, o testemunho baseado meramnte no exterior um barateamento do Evangelho.

    No que tange prtica adventista mundial, a igreja em vrios lugares (Amrica, Europa, ndia) tem abandonado as restries quanto ao uso de joias e adornos por falta de um claro respaldo bblico. O uso de joias prtica comum s igrejas da ndia; no Caribe,

    Romanos 14 (PaRfRase)

    VestuRio, Joias e adoRnos e a libeRdade cRist

    Ora, ao que fraco na f, acolhei-o, mas no para condenar-lhe os escrpulos. Um cr que de tudo se pode vestir e enfeitar, e outro, que fraco, se veste modestamente. Quem usa adornos no despreze a quem no usa; e quem no usa no julgue a quem usa; pois Deus o acolheu. Quem s tu, que julgas o servo alheio? Para seu prprio senhor ele est em p ou cai; mas estar firme, porque poderoso o Senhor para o firmar. Um faz diferena entre joia ornamental e o outro joia funcional, mas outro julga iguais todas as joias. Cada um esteja inteiramente convicto em sua prpria mente.

    Aquele que usa joia, para o Senhor o faz. E quem usa adornos, para o Senhor usa, porque d graas a Deus; e quem no usa, para o Senhor no usa, e d graas a Deus. Mas tu, por que julgas teu irmo? Ou tu, tambm, por que desprezas teu irmo? Pois todos havemos de comparecer ante o tribunal de Deus.

    Assim, pois, cada um de ns dar conta de si mesmo a Deus. Portanto no nos julguemos mais uns aos outros; antes o seja o vosso propsito no pr tropeo ou escndalo ao vosso irmo. Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus, que nenhuma joia de si mesmo imunda a no ser para aquele que assim a considera; para esse imunda. Pois, se pelos teus adornos se entristece teu irmo, j no andas segundo o amor. No faas perecer por causa do teu adorno aquele por quem Cristo morreu. No seja pois censurado o vosso bem; porque o reino de Deus no consiste em vesturio, adornos e joias, mas na justia, na paz, e na alegria no Esprito Santo. Pois quem nisso serve a Cristo agradvel a Deus e aceito aos homens. Assim, pois, sigamos as coisas que servem para a paz e as que contribuem para a edificao mtua.

    No destruas por causa do vesturio e adornos a obra de Deus. Na verdade tudo limpo, mas um mal para o homem dar motivo de tropeo pelo vestir e adornar-se. Bom no usar joias, nem vestido dispendioso, nem fazer outra coisa em que teu irmo tropece. A f que tens, guarda-a contigo mesmo diante de Deus. Bem-aventurado aquele que no se condena a si mesmo naquilo que aprova. Mas aquele que tem dvidas, se usa est condenado, porque o que faz no provm da f; e tudo o que no provm da f pecado. (Adaptado de Portela, 1998).

    A preocupao exagerada com joias e adornos pode ser

    um sintoma de problemas mais graves com a psiqu

    adventista atual: o legalismo, a confuso sobre a salvao

    e o perfeccionismo.

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    pregadores so confrontados com um oceano de grandes chapus caros e enfeitados das nossas irms aos sbados, impensvel ir igreja sem ele; na Europa, apresentadores e participantes do canal adventista Hope Channel usam joias, maquiagem e outros adornos.

    Por fim, a preocupao exagerada com joias e adornos pode ser sintomtica de problemas mais graves da psiqu adventista atual: o legalismo, a confuso sobre a salvao e o perfeccionismo. A boa notcia que, parafraseando o dizer de Paulo, o reino de Deus no consiste em vesturio, adornos e joias, mas na justia, na paz, e na alegria no Esprito Santo. Quem serve a Cristo assim agradvel a Deus e aceito aos homens. (Rom. 14:17, 18). ___________Referncias: 1 Veja Gerald Wheeler, The historical basis of Adventist standards, Ministry, Out 1989, p. 12, disponvel em portugus no link http://www.AdventismoHoje.com2 Veja Review and Herald, 22 de maio de 1866.3 An Appeal to the Young, 1874; cf. Testemunhos para a Igreja, 366.4 Veja http://www.adventistreview.org/2000-1551/story5-2.html5 Naturalis Historia, 11.50.136.6 Juvenal escreve: No h nada que uma mulher no se permita a si mesmo fazer, nada que acredite ser vergonhoso, quando ela envolve seu pescoo com esmeraldas verdes e prende prolas s suas longas orelhas; no h nada mais intolervel do que uma mulher rica. (Stiras 6.457-60). 7 Coniugalia Precepta 141.8 Ad Helviam, 16.3-5.

    9 Bruce W. Winter, Roman Wives, Roman Widows: The Appearance of New Women and the Pauline Communities (Grand Rapids: Eerdmans, 2003), p. 104-106.10 Juvenal explica que havia penteados extremamente complexos, com vrias camadas (Veja Stiras, 6:501-3).11 Diodoro, XII.21.1.12 Thomas D. Lea and Hayne P. Griffin, vol. 34, 1, 2 Timothy, Titus. The New American Commentary (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1992), p. 96.13 Veja Heinz Kruse, Dialektische Negation als semitisches Idiom, Vetus Testamentum no. 4 (Out 1, 1954): 386; Veja Max Zerwick, Vol. 114, Biblical Greek Illustrated by Examples. English ed., adapted from the fourth Latin ed. Scripta Pontificii Instituti Biblici (Rome: Pontificio Istituto Biblico, 1963), 150.14 Veja Das Idiom der relativen Negation im NT, ZNW, 43, (1950-1951), p. 263; cf. negationes improprietas em Jacob Gousset, Commentaria Linguae Hebraicae (Amsterd, 1702), 422 citado por Kruse, p. 387.15 Proposies disjuntivas se referem analogia de dois elementos em que um prefervel ao outro. 16 Zerwick, p. 150.17 Clavis Scripturae, Vol. 2 (Frankfurt 1719), p. 385, citado por Kruse, 387.18 Gousset, p. 422.19 Veja Steve Thompson, Semitic Syntax in the Apocalypse (Cambridge: Cambridge University Press, 1985).20 Do ponto de vista da gramtica grega, a idia da expresso semtica de negao relativa construda pelo uso da partcula de negao m seguida das conjunes adversativas de e alla.21 L. H. Marshall, The Pastoral Epistles 9 (Edinburgh: T & T Clark, 1999), p. 448-49.22 Veja Kruse, 389.

    23 Elizabeth Zekveld Portela, O Adorno da Mulher Crist: proibio ou privilgio? Fides Reformata 3/2 (1998). 24 George W. Knight, The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids, MI; Carlisle, England: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 1992), p. 136; J. Ramsey Michaels, 1 Peter. Word Biblical Commentary. (Dallas: Word, Incorporated, 1998). Comentando sobre 1 Pedro 3, ngel Manuel Rodrguez afirma em seu livro O Uso de Joias na Bblia (Casa Publicadora Brasileira, 2005) que no encontrou um nico caso em que a frmula [no...mas] significa no tanto...mas em casos de imperativo presente (p. 76). Rodrguez est equivocado j que h decalraes no Novo Testamento que utilizam a frmula no... mas no imperativo presente e que devem ser entendidas como negaes relativas (e.g., Mat 6:33, Lucas 10:20; 12:4, 5; 23:28; Joo 6:27; Fil 4:6). Ademais, no existe imperativo presente em 1 Tim 2:9-10.25 Manuscript Releases, vol. 5, p. 405.26 Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes, p. 367.27 Testemunhos Para a Igreja, v. 3, p. 366. 28 Life Sketches, p. 123.29 Testimonies for the Church, vol. 1, 458; vol. 4, 637.30 Uma dessas dificuldades encontra-se j na introduo do documento sob o cabealho A misso proftica da Igreja adventista (p. 5) onde lemos que a Igreja adventista o cumprimento da voz que clama no deserto de Isaas 40:1-5. Mas no h nada no contexto que permita essa interpretao.31 Veja Elizabeth Platt, Jewelry of Bible Times and the Catalog of Isa 3:18-23. Part I, Andrews University Seminary Studies 17(1), 71-84; Ibid., Jewelry of Bible Times and the Catalog of Isa 3:18-23. Part 2, Andrews University Seminary Studies,17(2), 189-202.