1 Pedro - N. Comentario

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1 PEDRO Introdução Plano do livro Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 INTRODUÇÃO I. AUTORIA Embora, de vez em quando, se ponha em dúvida a autoria desta epístola, aceita-se geralmente que se trata de um documento autêntico, da lavra do apóstolo Pedro, aquele mesmo Pedro que conhecemos através dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. As dificuldades alegadas para se aceitar a autoria desse apóstolo baseiam-se na correção da linguagem e do estilo e na sua forma bastante idiomática, o que não podia ser obra de um pescador galileu, “iletrado e ignorante”, para quem o grego era idioma estranho. Outra objeção que se faz funda-se na semelhança notável que certas partes desta epístola têm com algumas das epístolas de Paulo. Tais dificuldades se dissipam à vista de 1Pe 5.12. O papel desempenhado por Silvano na redação desta carta não pode ser ignorado. Ele é mencionado em 1Ts 1.1 e 2Ts 1.1 como colaborador de Paulo e Timóteo na produção destas duas epístolas. O Silvano das epístolas é o mesmo Silas que se menciona nos Atos dos Apóstolos (veja-se At 15-18). No primeiro século era costume generalizado empregarem-se escribas ou amanuenses na redação de documentos; os deveres e privilégios dessa classe de funcionários parecem ter sido consideráveis. Atuando na qualidade de amanuense, Silvano seria o responsável pelo teor literário, arranjo e estilo da epístola. As idéias foram de Pedro; a linguagem e o estilo foram contribuição de Silvano. A cooperação que este prestou a Paulo, na qualidade de amanuense, responde à objeção feita à autoria de Pedro, baseada essa objeção na

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NOVO COMENTÁRIO DA BÍBLIA Intervarsity Press (Leicester, Inglaterra)

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1 PEDRO

Introdução Plano do livro Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5

INTRODUÇÃO

I. AUTORIA Embora, de vez em quando, se ponha em dúvida a autoria desta

epístola, aceita-se geralmente que se trata de um documento autêntico, da lavra do apóstolo Pedro, aquele mesmo Pedro que conhecemos através dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. As dificuldades alegadas para se aceitar a autoria desse apóstolo baseiam-se na correção da linguagem e do estilo e na sua forma bastante idiomática, o que não podia ser obra de um pescador galileu, “iletrado e ignorante”, para quem o grego era idioma estranho. Outra objeção que se faz funda-se na semelhança notável que certas partes desta epístola têm com algumas das epístolas de Paulo. Tais dificuldades se dissipam à vista de 1Pe 5.12. O papel desempenhado por Silvano na redação desta carta não pode ser ignorado. Ele é mencionado em 1Ts 1.1 e 2Ts 1.1 como colaborador de Paulo e Timóteo na produção destas duas epístolas. O Silvano das epístolas é o mesmo Silas que se menciona nos Atos dos Apóstolos (veja-se At 15-18). No primeiro século era costume generalizado empregarem-se escribas ou amanuenses na redação de documentos; os deveres e privilégios dessa classe de funcionários parecem ter sido consideráveis. Atuando na qualidade de amanuense, Silvano seria o responsável pelo teor literário, arranjo e estilo da epístola. As idéias foram de Pedro; a linguagem e o estilo foram contribuição de Silvano. A cooperação que este prestou a Paulo, na qualidade de amanuense, responde à objeção feita à autoria de Pedro, baseada essa objeção na

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 2 semelhança dos pensamentos e expressões daquele apóstolo, como se vêem em alguns dos seus escritos.

Objeção mais séria está no seguinte argumento: se Pedro foi o autor da epístola que traz o seu nome, devia-se esperar maior número de referências aos fatos da vida terrena de nosso Senhor, visto como o autor gozou o privilégio de conviver intimamente com seu Mestre. (Este ponto é defendido tenazmente por Beare em seu comentário). Contudo, depois da ascensão e do Pentecostes, os apóstolos se dispunham mais a olhar o cumprimento futuro da gloriosa esperança da segunda vinda do seu Senhor do que olhar retrospectivamente para os fatos de Sua vida terrena que culminaram na crucifixão.

Não temos dúvida em concluir que a epístola ora diante dos nossos olhos é obra de Pedro, portadora de sua autoridade e testemunho apostólicos, ao passo que a forma literária da mesma é da lavra de Silvano. Quem desejar um estudo amplo e satisfatório do assunto veja a obra First Epistle of St. Peter, de Selwyn (Macmillan, 1946), Introdução, págs. 9-16, 27 e segs., e Essay II, págs. 363-466.

II. ONDE FOI ESCRITA A vista da declaração de 5.13, deduz-se que a epístola foi escrita

em «Babilônia». Nos tempos apostólicos conheciam-se duas cidades com este nome. Uma ficava no Egito, sendo provavelmente um posto militar do Império Romano, no local onde hoje é a cidade do Cairo. A Igreja Copta ainda é de parecer que essa é a Babilônia referida na epístola; todavia, não parece haver bom fundamento para essa idéia. A Babilônia do Eufrates é considerada por muitos como o lugar aí designado. Judeus, em número considerável, ainda moravam em Babilônia. Muito se tem escrito a favor e contra este parecer. Forte objeção a este ponto de vista vem do fato de que não existe notícia nem tradição de qualquer apóstolo ter estado na Mesopotâmia, salvo Tomé.

Uma terceira opinião é que o termo «Babilônia» aí se emprega como símbolo de Roma. Existe uma tradição, do segundo século, em

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 3 abono desta idéia. Roma é chamada Babilônia em Ap 17 e 18, assim como em Ap 11.8 Jerusalém é denominada «Sodoma», sendo a idéia a seguinte: Jerusalém trazia então as marcas da impiedade relacionada com a Sodoma de Gn 18 e 19. Assim, na mente de Pedro, a Roma dos seus dias lembrava a antiga Babilônia em riqueza, luxúria e licenciosidade. Pode bem ser que empregasse o termo «Babilônia» em vez de Roma por uma medida de prudência, doutra sorte a carta, caindo por inadvertência nas mãos de algum funcionário romano, este ao ler o pós-escrito se ofenderia, o que não podia deixar de ser possível, e isto então desse lugar a duras conseqüências para os cristãos. A opinião de que o termo «Babilônia» usa-se aqui para significar Roma era aceita universalmente na era cristã primitiva e ainda hoje se tem como plausível.

III. DATA Perseguições aos cristãos, na segunda metade do primeiro século,

eram coisa tão comum que as palavras de Pedro podiam aplicar-se a qualquer década daquele período. Pouco aproveita, portanto, procurar deduzir de seus termos e de sua mensagem, com alguma exatidão, a data da epístola.

Porém, no cap. 1.1, Pedro dirige-se aos seus leitores chamando-os «eleitos, forasteiros da Dispersão» nas regiões que menciona. O uso do termo «Dispersão» indica que os cristãos, a quem Pedro escrevia, davam valor à sua nacionalidade judaica e gozavam dos muitos privilégios que os funcionários do Império Romano tornaram extensivos aos judeus. O martírio de Tiago, irmão de nosso Senhor, ocorreu, segundo Josefo, em 62 A. D. e foi isto que tornou inevitável a separação entre o Cristianismo e o Judaísmo, abrindo caminho à tempestade de perseguições que tão cedo haveriam de ameaçar os cristãos. Dentro de dois anos, a partir da morte de Tiago, os privilégios até então gozados foram cassados aos cristãos, passando o Cristianismo a ser considerado ilegal. Historiadores romanos, como Tácito e Suetônio, deixam claro que em Roma, no ano 64 A. D., crescia a indisposição contra os cristãos.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 4 Foi fácil Nero encontrar apoio para as acusações que alardeou

contra eles, especialmente a de serem incendiários. Ora, Pedro ensina claramente que aos cristãos cumpre estar sujeitos a toda ordenação humana por amor do Senhor e considerar as autoridades civis como divinamente designadas para governá-los (2.13-17). Tal exortação não seria feita depois, senão antes que a perseguição neroniana os alcançasse. Sendo assim, a carta deve ter sido escrita antes do verão de 64 A. D. Outrossim, parece mais que provável que referências como aquelas feitas à ressurreição (1.3-2.21) e à morte de Cristo como cordeiro sem defeito (1.19), indicavam a intenção de que a carta fosse lida nas cerimônias da páscoa, na Ásia, naqueles dias. Neste caso, a epístola teria sido escrita na segunda metade do ano 63 A.D., a tempo de ser recebida pelos destinatários na páscoa de 64 A. D., antes que a tempestade de perseguições de Nero caísse sobre eles.

IV. CARACTERÍSTICAS ESPECIAIS Esta é essencialmente a epístola da esperança, esperança viva,

fundada na ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos. É portadora da certeza de uma herança gloriosa, descrita como incorruptível, incontaminada e imarcescível. Pedro coloca estes pensamentos, acerca da viva esperança e da herança gloriosa, no princípio de sua carta, para encorajar seus companheiros de fé com as consolações do evangelho, a fim de que permaneçam firmes no dia da prova de fogo, suportando pacientemente seus sofrimentos e triunfando sobre as perseguições, aflições e tentações.

PLANO DO LIVRO

I. SAUDAÇÃO - 1.1-2 II. A GRANDE SALVAÇÃO - 1.3-12 III. CONVITE A SANTIDADE - 1.13-2.10 IV. DEVERES CRISTÃOS - 2.11-3.12

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 5 V. SOFRIMENTOS E GLÓRIA - 3.13-4.19 VI. VITÓRIA E SERVIÇO - 5.1-11 VII. CONCLUSÃO - 5.12-14 1 Pedro 1 I. SAUDAÇÃO - 1.1-2 Chamando a si mesmo pelo novo nome que Cristo lhe deu (cf. Mt

16.18), Pedro saúda seus leitores declarando seu ofício e autoridade de apóstolo de Jesus Cristo (1). Como Selwyn faz notar, Pedro escreveu na qualidade de apóstolo, com aquela autoridade apostólica de que tanto precisavam aqueles a quem se dirigia, em tempo de provação para eles, a prova de fogo que estava para chegar (ainda não havia chegado). O termo “apóstolo” significa pessoa comissionada ou delegada, e assim combina as idéias de autoridade, capacidade e garantia. A autoridade, porém, não é propriamente sua. Recebeu-a de Cristo, a quem deve sua chamada e perante quem afinal é responsável.

Sua carta é dirigida aos eleitos (2), isto é, os chamados por Deus. O termo emprega-se nos LXX em referência ao povo escolhido de Deus, sendo que a eleição foi um fato que caracterizou a Israel em sua generalidade (cf. Dt 4.37; 7.6; 14.2). O mesmo pensamento passou para o Novo Testamento. No cap. 2.9 os cristãos são declarados «raça eleita». A eleição depende inteiramente de Deus e não de alguma idoneidade ou ato especial da parte dos eleitos. No caso em apreço, os eleitos eram pessoas do vulgo, pertencentes em sua maioria à classe dos escravos.

Diz que o fundamento da eleição é a presciência de Deus Pai (2). O pensamento aí envolve a idéia de plano e propósito divinos, tendo em vista escolher e chamar.

Em santificação do Espírito (2). A eleição ocorre sempre por meio de um agente e tem um desígnio. Santificação significa separar ou pôr à parte, do uso comum para o serviço de Deus. Isto é obra do Espírito Santo. A eleição do Pai na eternidade torna-se efetiva pela obra do

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 6 Espírito Santo no tempo, o qual opera na alma, separando-a para Deus. O propósito da eleição, segundo declara, é para a obediência (2). A eleição envolve dever e obrigação, tanto quanto privilégio. A obediência é uma exigência divina e uma conseqüência inevitável da eleição.

A aspersão do sangue de Jesus Cristo (2) diz respeito ao estabelecimento do novo concerto entre Deus e Seu povo pela morte de Cristo, e a ratificação dele pelo Seu sangue. Pedro aí faz alusão ao sacrifício do concerto de Êx 24.

Mas não eram somente eleitos, eram também forasteiros da Dispersão, espalhados por toda a Ásia Menor ao norte da cordilheira do Tauro. «Dispersão» tornara-se um termo técnico para significar os judeus que se achavam espalhados pelo mundo, fora da Palestina. Aqui, entretanto, Pedro lhe dá aplicação mais ampla, referindo os cristãos, de modo geral, nas províncias nomeadas. Com toda probabilidade, as pessoas aí visadas eram em sua maioria gentios e escravos. São chamados «forasteiros» (peregrinos), termo que indica a transitoriedade da moradia deles.

Graça e paz vos sejam multiplicadas (2). Ordinariamente a saudação grega era charein (veja-se At 15.23; 23.26; Tg 1.1). Charis, derivada da mesma raiz, veio em substituição e tornou-se um termo técnico do evangelho, sendo traduzida por “graça”, e significando o favor gratuito, livre, não merecido, de Deus, Seu amor em ação, em Jesus Cristo, a favor dos pecadores. A saudação hebraica, tanto nos encontros como nas despedidas, era shalom (“paz”). É o que resulta da graça, e inclui reconciliação e descanso, embora estas idéias secundárias venham depois do sentido básico.

II. A GRANDE SALVAÇÃO - 1.3-12 O apóstolo começa sua carta de consolação com um ato de louvor. Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (3). Era

costume judaico começar as orações com louvor a Deus por Suas

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 7 abundantes misericórdias. Pedro aqui tributa louvor ao Deus que Se revelou na Pessoa de Seu Filho Jesus Cristo. Ver também 2Co 1.3 e Ef 1.3.

Segundo a sua muita misericórdia (3). O apóstolo quer lembrar aos seus leitores que toda bênção, e de modo especial a nova vida em Cristo, não lhes vem porque as mereçam, mas unicamente por causa da abundante misericórdia de Deus (cf. Ef 2.4-6: ver também Lm 3.22). Novo nascimento (Jo 3.3-8) é o título que se pode dar a todas as bênçãos que acompanham ou decorrem da grande salvação. Somos gerados de novo para uma viva esperança (3), isto é, esperança que jamais pode ser extinta.

Note-se que é a ressurreição de Jesus Cristo (3) que nos faz nascer para a esperança, mesmo até no caso de Pedro, quando ele foi tirado do desespero que lhe sobreveio no julgamento e crucifixão de Jesus, desespero que se expressou na tríplice negação de seu Senhor. Quando ele soube que Cristo ressuscitara, infundiu-se-lhe uma viva esperança. A ressurreição é um dos pontos essenciais, indispensáveis, do evangelho. Sua importância vem enfatizada em 1Co 15, onde se vê que ela é parte integrante da poderosa obra salvadora de Deus, por meio da qual, somente, podemos nascer de novo.

Os que nascem de novo gozam de três grandes bênçãos, além da “viva esperança”, que já foi referida. São elas uma herança (4), uma proteção (5) e uma salvação perfeita (5-9). Todo judeu, dos tempos do Velho Testamento, conhecia por experiência a bênção que uma herança podia proporcionar (cf. Dt 15.4; 19.10; cap. 24).

No verso 4 Pedro contrasta essa velha herança com a herança do cristão. A velha esteve sujeita a destruição pelos exércitos invasores, que lhes roubaram sua terra. A herança cristã é incorruptível. O apóstolo usa freqüentemente esta palavra (1.18-23; 3.4; 5.4). Veja-se também Lc 12.33. É sem mácula. A herança terrena dos judeus por vezes veio a contaminar-se com o pecado de Israel. A do cristão está reservada nos céus, onde nada entra que possa contaminar (Ap 21.27). Não murcha.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 8 Canaã muitas vezes estivera sujeita à devastação da mangra e dos ventos cálidos do Oriente, que freqüentemente traziam pragas de gafanhotos, assim como seca (2Cr 6.28; Dt 28.22-24; 1Rs 8.37; Am 4.9; Ag 2.17).

A herança do cristão está fora do alcance da praga das variações. A palavra grega reservada é um termo militar (gr, tereo; «guardar») e sugere vigilância constante. Nenhum dano pode sobrevir à herança, porque está guardada em segurança, ou está conservada no céu, além do alcance dos poderes terrenos ou dos seus malefícios. Porém não somente a herança está guardada para os herdeiros; estes de igual modo estão guardados para a herança. Estão guardados pelo poder de Deus (5), que é muito mais forte do que a força dos perseguidores. Esta guarda divina opera na experiência do crente mediante a fé.

Salvação preparada para revelar-se no último tempo (5). A salvação não somente é uma bênção presente, por meio da qual recebemos perdão, justificação, santificação e outros dons divinos; atingirá sua plenitude somente quando formos apresentados sem defeito diante do trono, feitos semelhantes a Cristo, perfeitos sem falta de nada. Tal salvação, em seu sentido mais amplo, está preparada agora e aguarda sua manifestação no último tempo (cf. 1Jo 2.18; Jd 18; Jo 6.40). A luz da natureza escatológica desta epístola, a frase em apreço pode ser considerada equivalente a «o fim de todas as coisas» (4.7).

O apóstolo passa a referir às provações que os cercavam. Mesmo no meio de tais provações e perseguições, eles podiam regozijar-se grandemente na posse segura da salvação. Esta parece ser a força do sentido do vocábulo nisso (6). Melhor tradução talvez seja «portanto», isto é, em conclusão das considerações que acabam de ser feitas. Porque têm essa viva esperança, herança, salvaguarda e salvação perfeita é que podem alegrar-se grandemente, embora que por breve tempo estejam contristados por várias provações (6). Seus sofrimentos eram passageiros apenas e não eram para comparar com a glória que lhes pertencia em Cristo. Estavam contristados por causa da variedade, intensidade e freqüência de suas provações. Cumpre-lhes todavia lembrar que as

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 9 provações têm um propósito e a fé não se tem por genuína enquanto não é provada pelo sofrimento.

A prova da vossa fé (7). A palavra grega dokimion Hort traduz por “o que é aprovado como genuíno” em vossa fé. Refere àquilo que resta, depois de destruído o que é falso. Como o ouro é provado e purificado pelo fogo, assim é testada a fé. Somente o que suporta o teste é de genuína qualidade. Porém mesmo o ouro, depois de assim purificado, ainda pertence ao mundo das coisas perecíveis. A fé, por outro lado, purificada pelo sofrimento, ocupa seu lugar entre as coisas imperecíveis. Daí ser muito mais preciosa do que o ouro que, mesmo purificado, perece. Na revelação de Jesus Cristo (7). Toda a provação e sofrimento necessário ao processo de refinamento parecerão nada em comparação com o louvor, a honra e a glória, que serão a recompensa.

A quem, não havendo visto, amais (8). Se bem que não tivessem tido o privilégio de ver e conhecer a Cristo em carne, como Pedro o tivera, apesar disso a fé triunfava sobre esta falta de conhecimento visual e assim podiam alegrar-se. O gozo deles era indizível, isto é, profundo demais para ser expresso por palavras, e já estava marcado com o esplendor do céu, onde eles iriam vê-Lo face a face (cf. 1Co 13.12). Através das provações que sobre eles pesavam, ligavam-se pela fé a Cristo e assim eram capazes de alegrar-se no cuidado e livramento dEle.

Obtendo (9) implica receber e apropriar-se, ou fazer seu. O fim da vossa fé (9) refere a realização e coroamento da confiança deles. Já sentiam um antegozo dessa perfeita salvação, que haveriam de gozar em sua plenitude logo mais. A grandeza e a glória desta salvação têm como apoio dois fatos. Primeiro, os escritores do Velho Testamento apontavam para ela; segundo, os anjos anelavam perscrutá-la.

Os profetas (10). Os homens do Velho Testamento olhavam para o tempo futuro, quando as promessas de Deus, que eles haviam recebido acerca da salvação do Seu povo, seriam cumpridas. Olhavam para o Messias que havia de vir redimir Seu povo Israel.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 10 Os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada (10).

Hort cita At 11.23 e aplica as palavras aí à graça demonstrada na admissão dos gentios na Igreja Cristã. Todavia, não parece haver motivo para essa limitação, e não seja antes a frase aplicável a todo o transbordamento da graça na vida e experiência cristã deles, de que a admissão dos mesmos na Igreja Cristã era apenas um exemplo.

Investigando atentamente qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava (11). Nos tempos do Velho Testamento reconhecia-se que os profetas falavam sob a inspiração do Espírito (cf. 2Sm 2.32; Is 61.1), assim como na era cristã (2Pe 1.21). Note-se que o Espírito Santo é chamado aqui “o Espírito de Cristo” (cf. At 16.7; Rm 8.9; Gl 4.6; Fp 1.19). Estas passagens mostram que os escritores do Novo Testamento foram movidos pelo Espírito de Cristo, sendo interessante que o mesmo se diz do Espírito que inspirou os profetas do Velho Testamento (cf. Hb 3.7; 9.8-10.15). Ele veio glorificar a Cristo e falar dEle. Estivera nos profetas como o Espírito da revelação, comunicando verdades que eles não podiam prever ou descobrir por si, e como o Espírito de inspiração, propiciando ajuda espiritual na enunciação e declaração da verdade. Diz dos profetas que estes investigaram atentamente, isto é, nas Escrituras deles, a fim de acharem quando e em que condições o Messias viria. Fora-lhes revelado que Ele viria como o Servo Sofredor (cf. Is 53), porém que aos Seus sofrimentos seguir-se-iam Suas glórias ou «triunfos» (gr. doxas). A forma do plural corresponde a sofrimentos. A forma do singular doxan é empregada em 1Pe 1.21, onde a referência é à ressurreição, e em 2Pe 1.17, onde a glória aludida é a da transfiguração. O resultado dessa investigação intensa deles foi outra revelação de que no seu trabalho de profetas do Messias estavam servindo não à sua própria geração, mas àquela à qual Pedro agora se dirige.

Note-se que os que lhes pregaram o evangelho (12) foram inspirados e capacitados a proclamar as boas novas pelo mesmo Espírito Santo que inspirou os profetas a escrever.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 11 Coisas essas que anjos anelam perscrutar (12). Não só os

profetas, como também os anjos estão ansiosos por compreender o mistério. “A palavra traduzida «perscrutar» ou atentar, embora possa significar simplesmente «inclinar-se para olhar” (cf. Lc 24.12; Jo 20.11), muitas vezes sugere um olhar furtivo, sendo provável que o sentido aqui seja que os anjos querem com muito prazer espiar a bem-aventurança de nossa salvação, mas que realmente não podem fazê-lo porque ela está além da apreensão deles» (First Epistle of Peter, por C. E. B, Cranfield).

III. CONVITE À SANTIDADE - 1.13-2.10 a) Os remidos são chamados à obediência (1.13-21) Pedro passa agora às implicações práticas do que lhes acabou de

dizer. Em vista das considerações atrás feitas, (por conseguinte) apela para eles no sentido de viverem de modo santo. Esta é a responsabilidade que pesa sobre eles agora, como cristãos. O supremo desígnio da redenção é santificar os homens.

Cingindo o vosso entendimento (13). É alusão á necessidade de prender as vestes soltas, que se usavam no Oriente, as quais tolhiam a liberdade dos movimentos. É um convite à atitude dos peregrinos. Note-se que o apóstolo refere os lombos da mente ou entendimento. Ele quer convidá-los a pensar vigorosamente, de modo a poderem compreender o que lhes está dizendo e serem capazes de exercer uma fé inteligente (cf. 1Co 14.20 e Ef 1.18). O temperamento do peregrino é sóbrio, moderado (cf. também 4.7-5.8). Embora intemperança no beber fosse para eles uma tentação premente, a exortação à sobriedade (13) significa mais do que absterem-se da embriaguez. Quer dizer seriedade e vivacidade de pensamento e conduta. Devem exercitar um conveniente domínio próprio e viver uma vida equilibrada e firme. Diante das dificuldades do caminho, o peregrino vai encontrar forças na esperança (13). Já lhes fez saber em que consiste essa esperança (3). Agora anima-os a olhar para a

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 12 frente e antecipar a graça que lhes será trazida na revelação de Jesus Cristo (veja-se o verso 10).

Como filhos da obediência (14). O convite para a santidade é necessariamente um convite para a obediência. Pedro emprega muito nesta epístola a palavra obediência (cf. 1.2-22; 3.1,6; 4.17). O primeiro dever do homem sempre foi obedecer a Deus, guardando-Lhe os mandamentos e fazendo-Lhe a vontade (Lv 18.4-5). Cristo, em Seus ensinos, deu ênfase a isto constantemente. A obediência manifesta-se em a pessoa não se amoldar às paixões que tinha anteriormente na («no tempo de») sua ignorância (14). A paixão (concupiscência) é inclinação natural que se torna bravia, vencendo toda resistência e impondo sua vontade imperiosa. As velhas concupiscências pagãs, de outrora («o tempo de vossa ignorância», sugerindo que os destinatários da carta eram na maior parte gentios), continuavam a atraí-los insidiosamente. Obedecendo a Cristo, livrar-se-iam dos ardis de tais paixões, se estivessem preparados a deixá-las para trás, evitando amoldar-se a elas.

Segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós (15). Esta exortação vem reforçada por uma citação de Levítico (Lv 11.44), livro este cuja palavra-chave é “santidade” (cf. Lv 19.2; 20.7,26). No Velho Testamento o sentido fundamental da palavra “santo” é separado, retirado do uso ordinário e posto à parte para uso sagrado. O pensamento latente na exortação parece ser que o Deus Santo os escolhera para serem povo Seu, portanto, devem igualmente ser santos, se querem gozar de Sua comunhão (cf. a frase neo-testamentária «chamados para ser santos»). Procedimento (15); «vida». Tal santidade expressar-se-á na conduta externa.

Se invocais como Pai aquele que... julga (17). O argumento é o seguinte: visto como afirmam que Deus é seu Pai, e O invocam assim em oração, devem respeitar Sua autoridade. Ele é Pai; é também Juiz, e Seu julgamento é imparcial, sem acepção de pessoas (17). Daí exorta o apóstolo a que se portem com temor durante o tempo da

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 13 peregrinação deles - não mero temor do castigo do Juiz, mas temor de ofender ao Pai.

Todavia, o motivo mais sério e mais forte do temor é o fato da redenção.

Resgatados (18); gr. elytrothete, significando libertos contra pagamento do preço do resgate. O substantivo lytron significa o preço pago; aqui não é dinheiro, mas o sangue de Cristo (19), que «veio dar Sua vida em resgate de muitos» (Mt 20.28; Mc 10.45; veja-se também 1Tm 2.6). O apóstolo provavelmente tinha em mente o livramento de Israel do cativeiro, quando referiu a libertação dos cristãos de sob a escravidão do pecado.

Se assim foi, devia ele ter em mente o Cordeiro Pascoal, ao empregar a frase como de cordeiro sem defeito e sem mácula (19; ver Êx 12.5). A referência a prata e ouro pode ser alusão à alforria de escravos. Qualquer escravo podia economizar dinheiro por ele ganho com vistas à compra de sua liberdade. Alguns daqueles a quem esta carta foi dirigida provavelmente esperavam fazer assim. Mas, enquanto prata e ouro podiam comprar essa liberdade, eram impotentes para efetuar a libertação do domínio do pecado. Nada menos que o sangue de Cristo, o Cordeiro de Deus, era suficiente para realizar isto. Fútil procedimento (18); isto é, tradicional maneira de vida, sem conteúdo, vazia; vida sem propósito ou direção.

Conhecido antes da fundação do mundo (20). A redenção foi uma parte do eterno propósito de Deus. Na plenitude do tempo Cristo Se manifestou para tirar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo. Note-se como vem traduzido na ARA – “manifestado no fim dos tempos, por amor de vós». «Com estas palavras por amor de vós» o escritor focaliza para os leitores todo o conselho divino da redenção” (Selwyn). O evangelho é essencialmente pessoal.

Que, por meio dele, tendes fé em Deus (21). Mediante Cristo nós cremos e por Ele também nos conservamos leais a Deus.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 14 Como um sinal de estar satisfeito com a obra acabada de Cristo e

de ser ela adequada à nossa redenção, Deus o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória (21). Hort vê estas palavras em correspondência com Is 52.13. Deus é o autor divino da ressurreição (cf. At 3.15; 4.10; 5.30; 10.40). De sorte que a vossa fé e esperança estejam em Deus (21); isto é, este é o propósito que Deus teve em manifestar o Cristo (20). Note-se como a fé e a esperança estão intimamente entrelaçadas nesta epístola.

b) Necessidade de crescimento espiritual (1.22-2.3) Tendo purificado as vossas almas pela vossa obediência à

verdade (22). Alguns comentadores vêem aqui uma referência ao batismo. Os novos convertidos submeteram-se à verdade do evangelho, foram batizados e, desse modo, purificados. Se, como tem sido sugerido, esta epístola era qual homilia batismal para ser lida pela páscoa, pode haver aí tal alusão (cf. 3.21). Porém as palavras a verdade podem aqui equivaler ao evangelho inteiro que, quando crido e obedecido, purifica a alma. Essa purificação manifestar-se-á no amor fraternal não fingido (22). Mera ostentação de amor seria uma negação da verdade. A prova prática de santidade de vida e de obediência à verdade é o amor aos outros (cf. 1Jo 4.7,11,20). Esse amor deve ser ardente. A palavra grega é ektenos, significando tenso, esforçado, levado ao máximo. Deve também ser produto de um coração puro, porque somente quando o coração é puro podem os motivos ser puros.

No verso 23 Pedro volta a referir o fato da regeneração deles (veja-se o verso 3). A origem ou fonte sobrenatural do novo nascimento dos crentes é aqui a Palavra de Deus, que não é nenhum mero instrumento perecível, ou sacramento simbólico, que se perde com o uso, e daí corrutível, mas algo que vive pelo divino princípio da vida que transmite, donde ser incorrutível.

Em 1.24-25 temos uma citação de Is 40.6-8 que serve para contrastar a transitoriedade da vida humana e de tudo quanto é humano,

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 15 embora gloriosos, com a Palavra de Deus sempre viva e eterna. Toda carne é como a erva e não pode resistir à devastação do tempo. Por outro lado, permanece a eterna verdade de Deus, a qual é viva e doadora de vida. São estas as boas novas de Jesus Cristo e de Sua obra redentora, que lhes têm sido declaradas por Seus arautos.

1 Pedro 2 Prossegue o apóstolo apresentando outros índices de vida santa e,

assim fazendo, descreve os cristãos sob quatro figuras. São crianças recém-nascidas (2), que agora devem crescer na graça alimentando-se da Palavra de Deus. São pedras vivas (5) do templo celestial, do qual Cristo é a pedra principal da esquina (6). São sacerdócio santo (5; cf. o vers. 9) para oferecerem sacrifícios espirituais. São o povo de Deus (10), o verdadeiro Israel, que traz os honrosos títulos aplicados no Velho Testamento ao Israel segundo a carne.

Portanto (1); esta conclusiva faz o pensamento retroceder aos que são “regenerados”, e introduz alguns aspectos práticos da posição deles em Cristo e da vida que lhes cumpre viver. Devem despojar-se de toda maldade, palavra que compreende todo o mal do mundo pagão (Selwyn), e dolo ou engano, e hipocrisias, isto é, a tentação de aderirem à Igreja levados por falsos motivos, e invejas, que são a ruína da obra religiosa, o que se evidenciou até entre os Doze (Lc 22.24 e segs.) e toda sorte de maledicências, fruto da inveja. Todos estes são pecados do espírito e conseqüentemente estorvam o progresso na santificação. Aqui se verbera o hábito de depreciar, menoscabar, antes que de caluniar abertamente. Tais coisas cumpre sejam abandonadas, como uma vestimenta que se põe de lado (cf. Ef 4.22; Cl 3.9; 2Co 4.2). A renúncia ocupava muito lugar na vida e no ensino do primitivo Cristianismo.

Removendo-se os empecilhos, era razoável esperar progresso. Eles ainda eram apenas crianças em Cristo, de sorte que Pedro os exorta a que sejam quais recém-nascidos no desejo de alimento espiritual, necessário ao crescimento espiritual. Precisam desejar ardentemente nutrição

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 16 espiritual, isto é, o genuíno leite da palavra; «leite espiritual sem dolo, não falsificado». A interpretação depende da tradução do termo logikon, que a ARA traduz por “espiritual”. Alguns comentadores, adotando o significado de logos e seguindo a Versão Autorizada inglesa, vertem assim: “que dimana da Palavra de Deus”. Hort e outros traduzem por “racional”, «razoável», como em Rm 12.1. Embora logos signifique “palavra”, o adjetivo logikos nunca se emprega no sentido que lhe dá aqui a Versão Autorizada. Naturalmente é certo que a Palavra de Deus alimenta a alma, assim como o leite nutre o corpo, sendo que à vista dos últimos versículos do cap. 1 é possível inferir que esta seja de fato a analogia usada aqui por Pedro.

Se já tendes a experiência de que o Senhor é bondoso (3), então naturalmente desejareis a nutrição espiritual mencionada e ao mesmo tempo vos desvencilhareis de todos os impedimentos já referidos. Este versículo baseia-se no Sl 34.8.

c) A Igreja como templo espiritual (2.4-10) O apóstolo muda agora de assunto e passa a tratar da Igreja, o

povo de Deus, o novo Israel. Cristo é a pedra que vive (4), tanto porque está vivo para sempre (Ap 1.18), como porque é doador da vida (ver Jo 1.4; 11.25; 14.6; 20.31). Os que se chegam a Ele tornam-se por sua vez pedras vivas, e sobre Ele, todos juntos, são edificados casa espiritual (5) ou templo. A palavra «casa» muitas vezes tem este sentido específico (por ex. Jo 2.17).

Rejeitada, sim, pelos homens (4). A frase alude ao Sl 118.22, citado no verso 7. Pedro tem em mente a rejeição de nosso Senhor pelos anciãos e povo de Israel, o que resultou na Sua morte.

Preciosa (4); a palavra grega entimos traduz-se regularmente por «estimado, honrado». Embora desonrado pelos homens, Cristo foi honrado por Deus (cf. Fp 2.9 e segs.).

O adjetivo zontes, vivos, emprega-se no verso 5 provavelmente para indicar o contraste entre o cristão, que é nascido de novo e recebeu

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 17 nova vida e o pagão que ainda está morto em transgressões e pecados, contraste igualmente entre a Igreja Cristã e os templos pagãos. As pedras vivas são edificadas em templo espiritual, sendo o próprio Jesus Cristo a pedra angular. A idéia de templo conduz naturalmente às idéias de sacerdócio e sacrifícios (5). Há um sacerdócio de todos os crentes; o sacrifício que eles oferecem não é de animais ou aves, mas é o sacrifício de si mesmos (cf. Rm 12.1). Tais sacrifícios porém não são aceitos por qualquer coisa que exista nos ofertantes ou nas ofertas. São aceitáveis (agradáveis) a Deus somente quando oferecidos por intermédio de Jesus Cristo, unidos ao Seu perfeito sacrifício, e oferecidos em Seu nome (cf. Hb 13.15).

Os versos 6-8 contêm uma série de citações feitas do Velho Testamento, que frisam ou elucidam o que acabou de ser dito a respeito de Cristo, a Pedra. A primeira é de Is 28.16, com o acréscimo de uma nota sobre a palavra «preciosa» (7a). Note-se que Paulo fez a mesma citação em Rm 9.33-10.11.

A segunda referência (7) é ao Sl 118.22, outra profecia messiânica favorita da primitiva Igreja, usada pelo próprio Senhor Jesus (Mt 21.42; At 4.11; Ef 2.20).

A terceira citação (8) é feita de Is 8.14 e foi também usada por Paulo em Rm 9.33. Note-se como a incredulidade (7) e a desobediência (8) estão inter-relacionadas, resultando em tropeço. Por sua atitude para com a Pedra é que os homens são julgados. Para o descrente que rejeita a Pedra, esta se torna rocha de ofensa e pedra de tropeço (cf. 1Co 1.18-25).

Para os que também foram postos (8). Isto igualmente é parte do propósito divino, pelo fato de ter sido previsto e ser inevitável. Tanto a missão como a obra redentora de Cristo, Sua rejeição, bem como os que O rejeitam foram incluídos no conselho e propósito de Deus (Hort), cf. Rm 9.22-24.

No verso 9 os títulos dados aos cristãos são tomados diretamente do modo como se descreve o povo de Deus no Velho Testamento (veja-se por ex. Êx 19.5; Is 43.21; ver também Ap 1.5-6). Os crentes assumem

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 18 tais títulos como o novo Israel, raça eleita, com direito a todos os privilégios, chamados para aceitar as responsabilidades de povo escolhido de Deus.

Cumpre-lhes ser um sacerdócio real (cf. Ap 1.6). Os dois ofícios de rei e sacerdote eram zelosamente conservados um separado do outro em Israel (cf. 2Cr 26.16-21), mas em Cristo eles dois se combinam. Cristo é sacerdote entronizado rei (Zc 6.13) e todos quantos O seguem são reis e sacerdotes para Deus. Tudo quanto o sacerdote era nos tempos do Velho Testamento, em sua relação com Deus e os homens, o cristão deve ser na sua coletividade e na sua vida individual.

Nação santa é um termo expressivo das relações de aliança que existiam entre Deus e Israel (Êx 19.6). Israel fracassou em guardar essas relações e temporariamente foi rejeitado; porém os que, sendo judeus ou gentios, têm aceitado Cristo, são constituídos em outra nação, obrigados a viver de maneira santa. Além disso, Deus escolhera Israel para ser Sua propriedade peculiar, vindo daí ser povo peculiar (“povo propriedade exclusiva de Deus”). Esta figura é igualmente aplicada aos crentes em Cristo, os quais são povo especial de Deus. O vocábulo grego traduzido «povo» é laos, que nos LXX é um termo técnico para distinguir Israel de todos os outros povos. Entretanto, o privilégio cristão é exercido sempre em serviço.

A fim de proclamardes, como arautos (cf. 1Co 11.26). As virtudes (“excelências”). Refere-se aí não só o caráter de Deus como também Seus atos poderosos e nobres (cf. Sl 40.2). Aqui o apóstolo tem em mente, de modo particular, a redenção operada para nós pela morte e ressurreição de Cristo. Fomos chamado das trevas da natureza, do pecado, da ignorância e da incredulidade, e trazidos para a luz e a liberdade do evangelho.

Vós que antes não éreis povo, mas agora sois povo de Deus (10). A referência é aos filhos de Gômer, Lo-Ruama e Lo-Ami (Os 1.6,8-9), nomes que descrevem com propriedade Israel alienado de Deus, porém mais tarde reconciliado com Ele. Os termos “antes” e “agora”

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 19 correspondem a “trevas” e “luz”, anteriormente referidas. Os 2.23 que fala de Deus revogar Seu repúdio por Israel infiel, cumpriu-se em Cristo. Não apenas a Israel como também aos gentios foi concedida esta bênção.

IV. DEVERES CRISTÃOS 2.11-3.12 a) O cidadão cristão (2.11-17) Havendo tratado dos privilégios especiais que lhes pertenciam

como novo Israel, o apóstolo passa a esboçar alguns princípios que devem governar a vida deles como membros da comunidade de que agora fazem parte e em relação com ela. É significativo o modo como se lhes dirige.

Amados é um vocativo comum no Novo Testamento, porém aqui é especialmente oportuno, visto como se deu ênfase à necessidade de amor fraternal em 1.22, como uma das manifestações da santidade de vida a que eles foram chamados.

Estrangeiros (11), “forasteiros”, gr. paroikos, significando pessoa que, vivendo em país estranho, não tem, aí, direitos de cidadão. Peregrinos; gr. parepidemos, pessoas que demoram temporariamente num lugar que não é sua terra. Se, como está implícito, a vida no país estranho é de nível inferior ao da terra natal dos forasteiros, estes não devem adotar os costumes desse país, porém lhes cumpre comportarem-se honrosamente e de tal modo que seja mantida a boa reputação de sua pátria. Negativamente, devem abster-se de concupiscências carnais, isto é, os desejos que se originam em a natureza corrompida do homem, assim como os relacionados com os apetites do corpo (cf. Gl 5.19-21).

Carnais descreve o homem alienado de Deus, e inclui toda a natureza humana em seu estado de queda. São forças que fazem guerra contra a alma (gr. psyche). Este termo (alma) ocorre também em 1.9,22; 2.25; 4.19 e indica o elemento superior da natureza do homem (cf. Rm 7.23; Tg. 4.1).

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 20 Positivamente, devem manter exemplar o seu procedimento entre

os gentios (12), recomendando-se ao julgamento moral dos homens, de modo que, mesmo que os não cristãos os caluniem, tais caluniadores sejam compelidos pela evidência da vida cristã, coerentemente vivida, a reconhecer o Deus dos cristãos e a glorificá-lo crendo nEle enquanto ainda visita o Seu povo. A significação exata do dia da visitação (12) é difícil de determinar. Em Is 10.3 indica o dia quando Jeová aparecerá para fazer justiça aos oprimidos e punir os opressores. Aqui pode simplesmente querer dizer o dia em que Deus visitará Seu povo, a fim de livrá-lo dos perseguidores, ou o dia em que visitará os opressores em juízo. Veja-se também Lc 19.44, onde o dia da visitação é identificado com a oferta de salvação a Israel, por Cristo. Devem manifestar este comportamento conveniente submetendo-se à autoridade civil, sendo súditos leais do imperador e obedecendo aos representantes deste. A nota dominante de toda esta seção é submissão ou subordinação (cf. 2.18; 3.1). Dando ordens, Pedro parece preferir o imperativo aoristo ao presente, indicando mais a decisão definitiva de se submeterem do que o ato contínuo dessa submissão.

A frase toda a ordenação humana (13) é difícil. O grego anthropine(i) ktisei literalmente é «criatura humana», ou criação. O sentido, portanto, pode ser, «Sujeitai-vos a todo homem por causa do Senhor», o que serve de introdução a toda esta seção que trata dos deveres dos cristãos nas várias relações da vida. A sujeição deve ser ato voluntário, a lembrar o exemplo de nosso Senhor, e deve ser praticado para honra do Seu nome. Por causa ou por amor de Cristo devem reconhecer e aceitar suas responsabilidades e obrigações de cidadania, em submissão aos direitos legítimos do Estado. Cumpre-lhes sujeitarem-se ao rei, como supremo, no caso deles, Nero, imperador romano, e aos seus representantes. A obrigação cristã não depende do caráter pessoal da autoridade, antes depende do ofício exercido e dos deveres de que essa autoridade está encarregada (cf. Rm 13.1-7). É da vontade de Deus que, procedendo correta e obedientemente por essa forma, emudeçam

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 21 (lit. “amordacem”; cf. Mc 1.25; 4.39; Mt 22.34) os seus caluniadores (15). A acusação de rebelião contra César, que fizeram a nosso Senhor, parecia já atingir os seguidores dEste, e provavelmente partia de uma interpretação errônea da liberdade cristã que eles reivindicavam. Eram livres, porém sua liberdade era limitada e condicionada pelo fato de serem servos ou escravos de Cristo. O verdadeiro cristão ainda encontra sua perfeita liberdade no serviço do seu Senhor, idéia esta que repugna à ideologia totalitária.

Surge a questão: até onde o cristão está obrigado a obedecer às ordens das autoridades civis. Enquanto a obediência à lei civil não envolve desobediência a Deus, cumpre-nos submetermo-nos por amor de Cristo. É concebível que um cristão demonstre maior lealdade ao Estado desobedecendo às suas imposições, por exemplo, quando tais imposições são claramente ilegais e contrárias ao ensino da Sagrada Escritura. At 4.19-5.29 são passagens que orientam sem sombra de dúvida neste particular. A seção encerra-se com uma ordem quádrupla. Honrai a todos (veja-se o verso 13, acima).

Amai aos irmãos (cf. 1.22). Temei a Deus. Honrai ao rei (17). As duas últimas são uma adaptação de Pv 24.21, “Teme ao Senhor, filho meu, e ao rei”.

b) Servos e senhores (2.18-25) O pensamento que subjaz ainda é submissão. Servos, gr. oiketai,

isto é, servos ou escravos domésticos, em contraste com douloi, que indica escravos empregados, por exemplo, em turmas de trabalho. Com todo o temor (18); não temor de represálias da parte dos seus senhores, mas reverente temor de Deus que deve levá-los como cristãos a prestar serviço fiel. A frase por motivo de sua consciência para com Deus, no verso seguinte, parece apoiar esta interpretação. A submissão não deve depender do merecimento, ou desmerecimento do senhor. Cumpre-lhes servir fielmente não só aos senhores bons e cordatos, como também aos obstinados e indóceis, gr. skolios, tortos ou corcundas, termo aqui

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 22 empregado metaforicamente de torto moralmente ou perverso. Porque isto é grato (“aceitável”) (19). Não há mérito em sofrer castigo que se merece em conseqüência de mau procedimento; mas sofrer castigo que não se merece é digno de elogio, porque com tal coisa Deus é glorificado (cf. Mt 5.46-48; Lc 6.27-35).

Os comentadores acham-se um tanto divididos sobre a interpretação da frase por motivo de sua consciência para com Deus (19). Calvino, Alford e Westcott, por exemplo, acham que significa “por causa da consciência da presença e vontade de Deus”. Por outra parte Bengel interpreta como significando “em razão da consciência de uma mente que pratica coisas boas e agradáveis a Deus, ainda que não agradem aos homens”. Esta última parece preferível por ser mais conforme com o emprego que o Novo Testamento faz do termo «consciência».

Pois que glória há? (20); gr. Kleos, significando crédito, boa fama, ou renome. Esbofeteados; gr. kolaphizo. É a mesma palavra empregada em Mc 14.65.

Porquanto para isto mesmo fostes chamados (21). O sofrer mansa, submissa e pacientemente, sem o merecerem, é parte da alta vocação deles em Cristo.

Também Cristo sofreu em vosso lugar (21). Pedro tem o cuidado de dar ênfase ao aspecto vicário do sofrimento de Cristo. Foi «em nosso lugar» (cf. o verso 24, abaixo). Por causa disto há uma obrigação agradecida de agir de modo semelhante ao de Cristo, até no meio dos sofrimentos. Deixando-vos exemplo; gr. hypogrammos, traslado, cópia ou decalque; a idéia é de reprodução das letras escritas no alto de um caderno de criança.

O qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca (22; cf. Is 53.9). A impecabilidade de Cristo é essencial à Sua suficiência como Salvador, na obra sacrifical pelos pecadores, e é enfatizada não somente aqui como através de toda a narrativa do plano divino da redenção. Veja-se também Hb 7.26. Lembra o cordeiro sem defeito e sem mácula, mencionado em 1.19, acima.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 23 Pois Ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje (23),

referência, sem dúvida ao que Ele padeceu durante Seu julgamento. Quanto ao silêncio de Cristo, cf. Mc 14.61; 15.5, e cf. Is 53.7. Às acusações malignas de Seus inimigos Seus lábios não deram resposta. Deixou com o Pai a tarefa de vindicá-Lo, visto como Seu juízo é justo e Seu veredicto inatacável (cf. 1.17, acima).

No verso 24 o apóstolo torna a frisar a obra vicária de Cristo na cruz (cf. Is 53.12). Note-se a frase nossos pecados. Pedro já deixou claro que Cristo não cometeu pecado (22). Este aspecto da expiação é essencial à fé salvadora em Cristo. “O carregar nossos pecados significa sofrer o castigo deles em nosso lugar” (Cranfleld, ad loc.). O propósito dos sofrimentos de Cristo está claramente enunciado. Cristo identificou-Se com os pecadores que somos, carregando nossos pecados para a cruz. Identificamo-nos pois com Ele em Sua morte, e doravante nos cumpre viver para a justiça, isto é, nossas vidas devem estar relacionadas retamente com Deus e o próximo. Chagas; gr. molopi, contusões, ou feridas causadas por vergastadas. A palavra usa-se aí figuradamente do golpe do juízo divino vibrado em Cristo como nosso substituto na cruz.

Porque estáveis desgarrados como ovelhas (26; cf. Is 53.6). Na vida passada eles se haviam transviado como ovelhas perdidas. Selwyn encontra um paralelo disto em Ez 34, que se aplicaria tanto aos judeus decaídos da Dispersão como aos pagãos que foram trazidos às comunidades cristãs da Ásia Menor.

Agora, porém, as ovelhas perdidas foram recambiadas ao aprisco, convertendo-se no Pastor e Bispo de suas almas (25). O Pastor alimenta e sustenta, procura, reúne no curral, conduz, protege de inimigos e encaminha aos verdes pastos (cf. Jo 10.10; Sl 23.1-4; Is 40.11). O Bispo (gr. episkopos, «supervisor») guia e dirige. Esta palavra empregava-se como título dos funcionários, que os atenienses enviavam para cuidar dos negócios dos estados vassalos ou dependentes. Aqui não se emprega em nenhum sentido técnico ou eclesiástico, mas apenas no

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 24 sentido de supervisor. Mais tarde veio a usar-se como um dos títulos do ministério cristão.

1 Pedro 3 c) Maridos e esposas (3.1-7) Trata agora o apóstolo do dever dos cristãos na relação

matrimonial. É provável tivesse em mente, de modo particular, as esposas cristãs de maridos pagãos, e os maridos cristãos de esposas pagãs, embora seu conselho não se restrinja necessariamente a estes casos. Pela ordem natural das coisas, o primeiro grupo, como classe, seria mais numeroso do que o segundo, devido à autoridade maior exercida pelos maridos. Quando uma esposa pagã se convertia, não podia contar que o marido a acompanhasse nessa decisão. Por outro lado, se era o marido que se convertia, era de todo provável que sua esposa aderisse à decisão dele.

Igualmente (1). Assim como o espírito de Cristo devia manifestar-se nas relações sociais já mencionadas, igualmente deve fazer-se sentir na vida diária no lar. Note-se que Pedro tem em mente a relação conjugal, e não as relações que de modo geral existem entre homens e mulheres. Não há fundamento aqui para se argumentar em favor da inferioridade das mulheres em relação aos homens. A atitude que ele encarece não é apenas aquela convencional, de sujeição, vigorante em seus dias, mas é a expressão da prontidão cristã de subordinar-se uma pessoa às outras. Por tal manifestação de espírito semelhante ao de Cristo, por parte das esposas, é que os maridos, que não obedecem à palavra, são ganhos, sem palavra alguma, pelo procedimento delas (1). Aqui «palavra» usa-se em dois sentidos diferentes. No primeiro caso, refere-se à Palavra de Deus, ou o Evangelho, enquanto que, no segundo caso, refere-se simplesmente ao uso ordinário da palavra. Os maridos que recusam obedecer à Palavra de Deus podem ser ganhos pelo procedimento digno e cristão de suas esposas, sem que estas precisem

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 25 pronunciar uma só palavra, o que poderia até concorrer para endurecer o coração deles contra o evangelho.

Cheio de temor (2); isto é, essa reverência que é um fator essencial da vida cristã. A submissão da esposa cristã ao seu marido tem uma finalidade evangelística - ganhá-lo à fé em Cristo.

A verdadeira beleza da mulher não depende de enfeites, adereços ou exibição, mas depende do atavio de um espírito manso e tranqüilo (4; cf. 1Tm 2.9 e segs.). «Não a ostentação de atavios exteriores, mas a beleza interior do coração» (Selwyn).

O ouro e o aparato externo são corrutíveis e desaparecerão, porém o espírito manso e tranqüilo é muito precioso à vista de Deus. Bengel distingue entre mansidão e tranqüilidade, considerando a primeira como aquilo que não dá lugar a desassossego, ao passo que a segunda suporta com calma o desassossego causado por outros.

O homem interior do coração (4). «A Escritura tem o coração como esfera de influência divina (Rm 2.15; At 15.9)... O coração, por situar-se no profundo do íntimo, contém o homem interior, ou oculto (1Pe 3.4), o homem real. Representa o verdadeiro caráter, mas esconde-o» (J. Laidlaw em H. D. B.).

As santas mulheres (5). A referência é às «mulheres que preeminentemente representaram a santidade da vocação de Israel, isto é, seus «santos»; cf. Mt 27.52» (Selwyn). Elas confiavam ou esperavam em Deus que lhes fosse dada a honra de ser mãe do Messias.

Chamando-lhe senhor (6); veja-se Gn 18.1-15. Da qual vós vos tornastes filhas (6). As esposas cristãs tornar-se-iam veras filhas de Sara pela semelhança espiritual. O vocábulo grego tekna usa-se metaforicamente para indicar afinidade espiritual. A significação da frase e não temendo nenhum espanto (6) parece obscura. A palavra grega phobos usa-se sempre nesta epístola no bom sentido de reverência ou respeito, exceto aqui e em 3.14. A razão do temor (medo) podia ser a perseguição que seus maridos pagãos lhes moviam, os quais tentariam compeli-las a abandonar a fé; ou era uma exibição de mau gênio da parte

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 26 deles. Talvez, como Cranfield sugere, medo ou terror deve tomar-se em sentido geral, de sorte que «temendo a Deus devem livrar-se de outros temores».

Pedro prossegue e agora exorta os maridos a cumprir seus deveres para com as esposas. Cumpre-lhes coabitar com elas com discernimento (7), isto é, mostrando entendimento prático e tato em todas as relações da vida conjugal.

Dando honra à esposa (7). Se compararmos 2.13,17 com este versículo, veremos que a palavra honra traz em si alguma idéia de sujeição. Assim deve o marido exercer um pouco de auto-subordinação, com referência à esposa. A mulher é aí chamada parte mais frágil porque é fisicamente mais débil, em alguns respeitos, que o homem. Não se trata aqui de inferioridade intelectual ou moral, embora que no mundo antigo fosse isto admitido. O homem é havido como parte mais forte no sentido de ser mais musculoso e de arcar com maiores responsabilidades no lar, visto como é ele quem sustenta a família (cf. 1Ts 4.4). A razão de o marido honrar assim a sua esposa vem declarada na frase por isso que sois juntamente herdeiros da mesma graça de vida (7). O sentido pode ser este: visto como são ambos cristãos, partilham igualmente daquela vida eterna que a aceitação do evangelho traz. Pensam outros que, pelo fato de Pedro provavelmente se dirigir aqui aos maridos de esposas pagãs, refere-se ao poder de transmitir vida natural, trazendo outros seres humanos ao mundo. Por fim mais uma palavra. Falta de compreensão entre marido e mulher, egoísmo da parte de um ou de outro, ou qualquer coisa que provoque atritos no lar, certo que se farão sentir na vida espiritual, estorvando a vida de oração das pessoas em causa.

d) Vivendo juntos na comunidade cristã (3.8-12) Estes versos resumem toda a seção, introduzindo uma última

consideração. O advérbio finalmente (8) serve para indicar a transição, dos deveres pormenorizados já esboçados na relação referida, para uma

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 27 declaração geral dos elementos essenciais do caráter cristão. Os cristãos devem ser «todos de igual ânimo» (ou sentimento). As divisões na igreja ou na família não glorificam a Deus (cf. Jo 17.21 e segs.; Rm 15.5 e seg.; 1Co 1.10; Fp 2.2). Compadecidos; lit. «simpatizarem». A palavra significa sofrer com os outros. Pertencemos a um corpo em Cristo, daí a aplicação de 1Co 12.26. Fraternalmente amigos («amando os irmãos»). O amor fraternal é o distintivo do cristão (Jo 13.35) e o sinal de que passamos da morte para a vida (1Jo 3.14; 4.20). Misericordiosos («de coração terno»). Há o perigo de se ficar insensível aos sofrimentos alheios. Afáveis; ARA «humildes». Gr. tapeinophron, «de espírito humilde». A humildade é um dos elementos essenciais do verdadeiro caráter cristão, e a ela os apóstolos muitas vezes se referem (cf. 5.5; Rm 12.16; Tg 4.10).

O verso 9 aplica ao crente o exemplo de nosso Senhor, apresentado em 2.23. O termo ali traduzido «ultrajar» é o mesmo «pagar mal por mal», aqui. Passa o apóstolo ao ensino que ele próprio recebeu de Cristo. Veja-se por ex. Mt 5.44; Lc 6.27 e segs. O autor encerra esta seção da epístola com uma paráfrase do Sl 24, nos LXX. Com toda a probabilidade, a tradução, mais livre, e emenda do texto foi obra de Silvano.

Quem quer amar a vida (10); não o prolongamento dela, sim sua qualidade. E ver dias felizes provavelmente se refere aos bens (por ex. a herança do verso 9) reservados para eles (cf. 1.4). Tal pessoa deve abster-se da maledicência e de qualquer que seja o mal, entregando-se à prática do que é justo e verdadeiro. Cumpre-lhe ser incansável em buscar a paz (cf. Mt 5.9), lembrado de que Deus o vigia sempre para guiá-lo ou para lhe manifestar Sua aprovação ou desaprovação, e que Seus ouvidos estão atentos às orações dele por direção ou auxílio.

Por outro lado o rosto do Senhor está contra aqueles que praticam males (12). Rosto do Senhor, aí, representa a manifestação da presença divina, posta aqui em oposição ao caminho dos ímpios.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 28 V. SOFRIMENTOS E GLÓRIA 3.13-4.19 a) Cristo nos ensina como enfrentar hostilidades e sofrimentos

(3.13-22) A menção que faz dos malfeitores leva-o a outro pensamento,

expresso numa interrogação retórica. Zelosos (13); gr. zelotai. Os “zelotes” eram membros de um partido

intransigente, facção extremista dos fariseus, que se opunha tenazmente aos romanos. O termo traz a idéia de inteireza de coração e sinceridade de propósito; aqui o intuito de sua aplicação é claro. Contudo a proteção de Deus não os isenta de perseguições.

Mas ainda que venhais a sofrer (14). O modo optativo grego, usado aqui e no verso 17, considera uma contingência não atual e urgente, porém remota para alguns deles. Se sofrerem por causa da justiça, vejam nisso o cumprimento de Mt 5.10. Não devem tomar-se de terror, pois isso é o que os inimigos querem (cf. Is 8.12 nos LXX), mas pelo contrário devem ter um reverente temor de Cristo, o que os capacitará a entronizá-Lo como Senhor em seus corações (15).

Responder (15); gr. apologia, originalmente era uma alocução que os detentos faziam em sua própria defesa; mais tarde o termo foi dado aos tratados que se escreveram em defesa da fé cristã. Pedro dá a entender que os perseguidores os hostilizarão e caluniarão, criticando-lhes a fé, sendo necessário que, como convertidos que são, estejam bem alicerçados nas verdades fundamentais (cf. 1.13), de modo a darem uma razão (gr. logon peri, “uma explicação racional”) da esperança para a qual foram gerados de novo (1.3). Mansidão representa a atitude deles para com os inquiridores; temor («reverência»), sua atitude para com Deus. Portando-se deste modo, terão ou manterão boa consciência (16), levando seus falsos acusadores a ficar envergonhados. Aqui Pedro volta ao pensamento de 2.12.

Quanto ao verso 17, conferir 2.20.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 29 Também (18), esta palavra relaciona nosso Senhor com aqueles

que, de boa consciência, padecem por causa da retidão (justiça). Cristo está ao lado deles, compartilha desse padecimento, visto como foi também falsamente acusado, havendo morrido pelos pecados, que não eram Seus. Contudo, Ele não é só um exemplo. Sua cruz é em primeiro lugar uma expiação. Já se fez referência aos sofrimentos de Cristo (2.21 e segs.), mas lá a ênfase foi sobre Sua mansidão; aqui é sobre Seu triunfo. Igualmente aqui se diz que Sua paixão foi vicária - o justo pelos injustos (cf. Is 53.5) - e expiatória em sua eficácia - pelos pecados. Que Seu sacrifício foi completo vê-se da expressão uma única vez (cf. Rm 6.9 e segs.; Hb 7.27; 9.12,26,28; 10.10). O propósito da morte de Cristo vem declarado com simplicidade. Pelo pecado estamos alienados de Deus, porém Cristo, mediante a expiação que fez, tornou possível nossa volta para o mesmo Deus. Nosso acesso à presença dEle depende unicamente dos méritos da obra de Cristo na cruz. Morto na carne refere-se provavelmente à morte violenta que padeceu, bem como fala da realidade da mesma. Todavia foi vivificado no Espírito. Não se trata do Espírito Santo, mas do espírito humano de Cristo, distinto do Seu corpo.

Os versos 19-22 apresentam numerosas dificuldades; comentadores têm oferecido muitas explicações. Selwyn cita, a propósito, excelente nota de Alford.

No qual, (isto é, no qual estado de espírito vivificado, após Sua morte física) também foi e pregou aos espíritos em prisão (19). As primeiras três palavras são no grego en ho(i) kai. Moffatt, seguindo Rendel Harris e secundado por Schultz, procura contornar a dificuldade traduzindo assim: «Foi no Espírito que Enoque também foi e pregou aos espíritos aprisionados». Há porém dificuldades textuais e outras que desautorizam esta interpretação. Parece perfeitamente claro que não Enoque, mas Cristo mesmo é que foi e pregou. À vista do contexto, a frase espíritos em prisão indica a geração que foi desobediente nos dias de Noé, enquanto as palavras «espíritos» e «prisão» referem sua presente condição de desencarnados, num lugar de juízo no mundo invisível (cf.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 30 2Pe 2.4-9). O ponto nevrálgico da passagem está em se saber o que foi que Cristo lhes pregou. Embora o vocábulo grego ekeryxen - pregou - comumente venha seguido de seu complemento no Novo Testamento, algumas vezes vem desacompanhado dele, não parecendo haver boa razão para não se aceitar a interpretação que, de todas, se afigura a mais natural, a saber, que Cristo, morto na carne e vivificado no espírito, foi nesse estado espiritual e pregou àqueles espíritos que outrora tinham sido desobedientes; agora, entretanto se julga que a mensagem de Cristo encontrou possível receptividade da parte dos tais. (Selwyn é a favor da interpretação, não que Cristo lhes pregasse o evangelho, mas que lhes proclamasse estar próximo o fim do poder deles, como resultado de Sua vitória). Sobre a descida de Cristo ao Hades, veja-se At 2.27-31; Rm 10.6-8; Ef 4.8-10).

A longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé (20); isto é, dando tempo a que se arrependessem. O homem, todavia, não fez caso dos direitos de Deus, recebendo por isso o golpe do juízo divino (Gn 6; ver também 2Pe 3.5-9). Noé, sua esposa, três filhos com as respectivas mulheres (oito almas) obedeceram a Deus, entraram na arca e foram salvos através da água. O vocábulo grego dia pode-se considerar circunstancial tanto de lugar como de instrumento. Como Noé na arca passou seguro pelas águas do dilúvio, assim os batizados passam seguros pela água do batismo para a Igreja, e neste sentido dia indica circunstância de lugar.

Ou (como Alford, Plumptre) a alusão ao batismo no verso 21 requer dia como instrumental, isto é, como as águas do dilúvio levaram a arca em segurança, assim o batismo leva o cristão. A figura do batismo significa não a remoção da imundícia da carne, isto é, não a mera limpeza do corpo, mas a indagação de uma boa consciência para com Deus; melhor, «um penhor» a Deus, procedente de «uma consciência limpa», dado na promessa feita no batismo, de renúncia do mundo, da carne e do demônio. Quanto ao homem, o batismo é uma confissão de discipulado cristão; quanto a Deus, é um penhor de se viver de tal modo

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 31 que a consciência se mantenha «pura diante dEle e dos homens» (At 24.16). Isto é possível por meio da ressurreição de Jesus Cristo (21), a qual tanto é fundamento de retidão (justiça) como garantia de vitória. Cristo subiu ao céu e está em lugar de honra, à direita de Deus, subordinando-se a Ele toda a hierarquia celeste (22), Cf. 1Co 15.27; Ef 1.22; Fp 3.21.

1 Pedro 4 b) Novo apelo à santidade de vida (4.1-6) Volta Pedro a ferir o principal assunto de 3.14-18, depois do

parêntese dos versos 3.19-22. Ora, em 4.1, liga-se a 3.18, trazendo os sofrimentos de Cristo uma

vez mais à apreciação dos leitores. Armai-vos também vós do mesmo pensamento (1). A exortação aqui não é a mesma de Paulo em Fp 2.5. A palavra grega ennoia significa «consideração», «conhecimento», «pensamento» ou «idéia». A frase, portanto, significa: «revesti-vos da armadura deste conhecimento».

Note-se a redação que faz do verso 2 o motivo da exortação. É para que “não mais vivais de acordo com as paixões dos homens, mas segundo a vontade de Deus”. O mesmo pensamento Paulo expõe em suas epístolas, onde vem desenvolvido mais amplamente. Veja-se especialmente Rm 6, onde diz “assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus” (verso 11), o que corresponde aqui à exortação de Pedro.

Aquele que sofreu na carne deixou o pecado (1); esta sentença tem sido interpretada de vários modos. Alguns comentadores vêem aí apenas uma referência geral aos efeitos purificadores do sofrimento (cf. 1.6-7), o que, à vista do contexto, parece fora de propósito. Outros, dizendo que a referência ao sofrimento de Cristo na carne é alusão clara à Sua morte, interpretam a frase aqui neste sentido, dando-lhe a seguinte significação “fortalecei-vos com este pensamento, ao enfrentardes o martírio: a morte faz cessar a luta contra o pecado”. Todavia o contexto,

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 32 apelando fortemente para se deixar o pecado agora (isto é, durante “o tempo que vos resta na carne”), sugere que o pensamento de identificação agora com a morte de nosso Senhor está na mente de Pedro, acrescida talvez outra idéia de que os sofrimentos deles, presentes ou futuros, são um sinal dessa identificação. Sua vida passada (isto é, antes de se converterem) tinha sido suficientemente longa para se dedicarem à satisfação desses apetites, “fazendo o que os gentios gostam de fazer”, em oposição à execução da vontade de Deus.

Segue-se um catálogo desses desejos perversos (3). Dissoluções; gr. aselgeia, isto é, excessos, licenciosidade, desenfreio; concupiscências; gr. epithymias, isto é, desejo veemente de qualquer espécie (veja-se nota sobre 2.11); borracheiras, embriaguez habitual; orgias; gr. komos, provavelmente reuniões sociais para bebedeiras; bebedices, gr. potos. No grego clássico usava-se esta palavra para significar bebida, em oposição a comida, e não tinha implicações morais (veja-se Selwyn in loc.). Emprega-se como «festa» em Gn 19.3, LXX. Tais festas podiam facilmente tornar-se ocasiões de excesso no beber. Detestáveis idolatrias, gr. athemitos, abomináveis, perversas; traduzida por «proibida» em At 10.28. Bengel traduz por ações «pelas quais a sacratíssima lei de Deus é violada». Os três tempos perfeitos no grego (decorrido, terdes executado, e tendo andado) frisam que tais coisas eram já passadas para eles. Se estas palavras foram dirigidas aos neo-batizados, sua propriedade seria evidente, porque o batismo na primitiva Igreja representava uma crise na vida do cristão e significava um decidido rompimento com a vida velha. Seus ex-camaradas pagãos não podiam compreender tal transformação na vida deles, e então injuriavam-nos, talvez num esforço por abafar os clamores de suas próprias consciências. Pedro já declarou que tais pessoas seriam envergonhadas (veja-se 3.16); agora adverte que elas prestarão contas àquele que é competente para julgar vivos e mortos (5). Seu julgamento é imparcial e inapelável.

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 33 Várias interpretações têm sido dadas ao verso 6. Sustentam-se

opiniões muito divergentes entre si, pelo que seria imprudente formular qualquer doutrina importante à base deste único versículo. A parte a conexão aparente com a declaração de 3.19, parece haver pouca justificativa para, daí, se argumentar que o evangelho foi oferecido aos mortos como mortos, isto é, depois de haverem morrido. Provavelmente o sentido mais certo é que aqueles que hoje estão mortos ouviram a pregação do evangelho quando ainda vivos. Selwyn sugere que no v. 5 o apóstolo tinha em mente membros da Igreja, do passado e do presente e os seus perseguidores, enquanto que no verso 6 se refere só àqueles. Por causa de haverem confessado a Cristo, quando viviam, foram julgados e condenados pelos homens. A frase grega Kata anthropous significa «de acordo com os padrões dos homens». Ele não quer dizer que foram julgados como os homens o são, pois neste caso a frase seria kata anthropon. Deviam no entanto viver segundo Deus (gr. kata theon) no espírito. Viver no espírito é viver como Deus vive, isto é, eternamente.

c) Empregando os dons de Deus em benefício dos outros (4.7-11) Para que ninguém pense que o julgamento a que se refere está

muito longe, passa a avisá-los e exortá-los. Ora (7), como para enfatizar a importância do assunto. O fim de

todas as coisas está próximo (cf. Tg 5.8). No Novo Testamento a vinda do Senhor, que marcaria o fim da dispensação, cuidava-se que estava iminente; muito se aconselhava, então, quanto à maneira de viver com esse fim à vista. Pedro apresenta quatro linhas de conduta a serem observadas.

Primeiro, sede portanto criteriosos e sóbrios a bem das vossas orações (7). O termo grego sophrouein denota cabeça calma e espírito equilibrado, em contraste com mania, que é exacerbação. A oração é o grande corretivo de uma visão superficial, limitada, da vida, e capacita-nos a olhar para além das circunstâncias do presente, e a conservar o fim em vista (cf. Mc 13.33).

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 34 Segundo, tende amor intenso uns para com os outros (8). Vejam-

se as notas sobre 1.22 e 3.8. A cláusula porque o amor cobre multidão de pecados é algo obscura. É possível que signifique o seguinte: se amardes ardentemente os irmãos, estareis prontos a perdoá-los sempre; ou, o amor de Deus cobre a multidão dos vossos pecados, de modo que levados por gratidão a Ele deveis amar intensamente (extremamente). A primeira hipótese parece preferível como interpretação. Quanto a «cobrir», veja-se Sl 32.1.

Terceiro, devem ser mutuamente hospitaleiros sem murmuração (9). Isto pode-se considerar quer como exortação, em vista da aproximação do fim, quer como meio de demonstrar amor intenso (cf. Mt 25.31-46; Rm 12.13; 1Tm 3.2; Hb 13.1 e segs.).

Na primitiva Igreja os ministros eram itinerantes, tornando-se necessário que os mensageiros cristãos fossem recebidos nas casas e hospedados. Mas, mesmo assim, surgiam dificuldades. Alguns pregadores podiam abusar, tirando partido dos seus privilégios. Daí o apóstolo recomendar «sem murmuração».

Em quarto lugar, deve haver mordomia generosa de todos os dons cristãos (10). Cada pessoa foi dotada com algum dom particular, da parte de Deus, e deve usá-lo como quem vai dar contas de sua mordomia. O exercício de qualquer aptidão especial em algum trabalho para a Igreja, em o nome do Senhor, devia ser considerado como um serviço a Ele prestado. Vários dons se mencionam de modo especial. Há o da pregação.

Fale de acordo com os oráculos de Deus (11); isto é, como quem profere as palavras que Deus lhe comunicou. De igual modo, se alguém serve, faça-o na força que Deus supre. A palavra traduzida «supre» originalmente significava «dirigir um coro» no teatro; depois veio a significar «custear as despesas da exibição de um coro em festival público». Daí suprir, prover ou equipar, como se faz a um exército ou armada, e ordinariamente com o sentido de abundância. Veja-se Cranfield in loc. As provisões de Deus são vastas e ilimitadas. Tudo

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 35 porém há de ser feito para a Sua glória. Tal é o verdadeiro motivo de toda a atividade na vida do cristão. Esta seção termina com uma doxologia. Cf. 5.11-14.

d) Apelo à paciência e à resignação (4.12-19) A carta volta a ferir seu tema original e fundamental, referente ao

tempo de sofrimento que estava para vir ou já viera para a comunidade cristã da Ásia Menor. O apóstolo proferiu a doxologia e pode-se supor que sua intenção era terminar a epístola nesse ponto. Eis porém que outros pensamentos lhe surgem e como que acha não haver dito o bastante sobre o grande e urgente assunto acerca do qual escreve. Começa outra vez com o mesmo vocativo empregado em 2.11 - Amados (12). Não deviam estranhar que provações e perseguições viessem, antes deviam regozijar-se (13). Pela própria natureza do testemunho cristão, provações devem ser esperadas, visto como esse testemunho é uma repreensão ao espírito do mundo.

As provações que vão suportar se descrevem como fogo ardente (gr. pyrosei). Pyrosis significa queimadura, exposição ao fogo ou um teste pelo fogo. Pedro já referiu esse teste (1.6-7), o qual se ajusta ao sentido aqui. É pela tribulação e perseguição que se prova a realidade da fé. Principalmente, porém, deviam sentir-se confortados e encorajados pelo fato de serem co-participantes dos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1.24). A palavra grega katho significa «na medida em que» (veja-se a ARA). Alegrar-se com tais sofrimentos agora significará que, à aparição de Cristo na glória do Pai, eles rejubilarão, exultantes. Se pelo nome de Cristo são perseguidos, verdadeiramente abençoados são (Mt 5.11).

O Espírito da glória e de Deus (14); gr. to tes doxes kai to tou theou pneuma. Selwyn pensa que a expressão to tes doxes representa a Chequiná, o esplendor visível da glória da presença de Deus. “O Espírito Santo de Deus, que é glorioso e a fonte da glória, e cuja presença é o penhor da glória futura, repousa sobre Sua Igreja perseguida” (Veja-se Cranfield in loc.).

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 36 Naturalmente, quem por sua própria maldade ou loucura atrai

sofrimentos para si, nenhum direito tem de reivindicar estas consolações. Isto posto, ninguém desonre a Cristo sofrendo por males voluntariamente cometidos. O fato de se fazer necessário este aviso lembra como era baixo o padrão moral do povo, com quem os primeiros mensageiros cristãos tiveram de tratar.

O termo malfeitor (15) é de sentido amplo e inclui toda espécie de males. Intrometidos em negócio alheio (15). O zelo dos convertidos era proverbial e nem sempre eles tinham bastante habilidade no trato com outras pessoas. Era possível alguém atrair perseguição sobre si, interferindo sem necessidade em negócios dos outros. Mas, se sofrer como cristão, não se esqueça de que tal sofrimento nada tem de vergonhoso, e que a pessoa que se chama pelo nome de Cristo tem a responsabilidade de glorificar a Deus nos seus padecimentos. A palavra cristão encontra-se somente três vezes no Novo Testamento, aqui e em At 11.26; 26.28. Era possível que ainda fosse um termo afrontoso, quando Pedro o empregou.

A ocasião de começar o juízo pela casa de Deus é chegada (17). Os tempos tormentosos que já batiam à porta da Igreja eram o começo do processo de prova e de joeiramento; não era ainda o fim. A idéia de que o juízo divino começa na Igreja é tirada do Velho Testamento (cf. Jr 25.29; Ez 9.6). A casa de Deus representa aqui o povo de Deus, não apenas o templo. Se o julgamento é tão rigoroso para o povo de Deus, sua severidade para os incrédulos é indescritível (17-18; cf. Lc 23.31). Mas o cristão tem um segredo que o incrédulo não tem. Pode entregar-se às mãos de Deus em inteira confiança, ciente de que Ele não pode falhar.

1 Pedro 5 VI. VITÓRIA E SERVIÇO - 5.1-11 a) O ofício pastoral (5.1-4)

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 37 Agora Pedro se dirige especificamente aos que têm responsabilidades

especiais na Igreja. A prova ardente que sobrevirá à Igreja faz que se torne mais necessária ainda a fidelidade no ofício pastoral.

O termo anciãos (1) aqui refere posição oficial que ocupavam na Igreja, e não a idade, como é o caso no verso 5. Inclui os que exercem alguma espécie de função autorizada de pastor e levam sobre si a respectiva responsabilidade. A palavra realmente é "presbítero", dando-nos assim um vislumbre da organização simples da primitiva Igreja, copiada do sistema de vida das vilas, e dos costumes da sinagoga judaica. Já aludimos ao ministério itinerante; aqui temos outra evidência de pelo menos o começo de organização local. O termo "ancião" ou "presbítero" era permutável com "bispo" ou "supervisor". Note-se que Pedro não assume nenhuma superioridade eclesiástica, mas com profunda humildade nivela-se àqueles a quem está exortando. Era de fato uma testemunha dos sofrimentos de Cristo (1) e podia conservar distinta sua posição de apóstolo. Já falou da glória que há de ser revelada (1; veja-se 4.13 e cf. Mt 19.28). Como em 1.5, ele sabe que no presente experimenta bênçãos cuja plenitude ainda está no futuro.

A obra dos anciãos é alimentar o rebanho de Deus (2), isto é, fazer todo o trabalho de pastor (cf. Jo 21.15-17; ver também 2.25, acima). Note-se que o rebanho é de Deus, não do ancião; Deus não fica indiferente ao modo como Suas ovelhas são tratadas. As pessoas devem tomar esses deveres a seu cargo voluntariamente, até mesmo com avidez, porém não com vistas a lucro financeiro. Pedro aqui não faz objeção á remuneração dos ministros ou ao salário dos obreiros. Adverte, sim, contra o pecado da cobiça, a caça ansiosa de rendimentos. Compare-se o verso 3 com Mc 10.41-45. Devem evitar andar atrás de autoridade ou posição, pelas quais podiam cair no laço de ostentar altivez ou arrogância para com os membros da Igreja.

Ao invés disso, pela santidade de suas vidas devem tornar-se modelos do rebanho (3). Todo o serviço deles deve deixar-se inspirar na perspectiva da vinda do Senhor e do galardão do serviço prestado. Os

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 38 que fielmente exercerem o ofício de subpastores receberão o prêmio das mãos do Supremo Pastor, quando vier em glória.

A recompensa se diz coroa imarcescível de glória (4), outro exemplo da aversão de Pedro por tudo quanto fenece e se corrompe. Essa coroa não é emblema de realeza, e sim a grinalda com que se galardoavam os vencedores nos festivais gregos de atletismo (cf. 1 Co 9.25; 2 Tm 4.8; Tg 1.12; Ap 2.10-3.11). Quando Cristo vier, Sua glória se revelará (veja-se o verso 1, acima). O prêmio do subpastor fiel e humilde é ser participante da glória e gozo do seu Senhor.

b) Apelo à humildade e confiança - 5.5-7 Agora dirige-se aos jovens, gr. neoteroi. O termo aqui provavelmente

não quer dizer apenas mais novos em idade, senão também na fé e na experiência cristã. Como tais, é possível que fossem tentados a rebelar-se contra a autoridade dos anciãos mencionados no verso 1. Recomenda-lhes Pedro que se sujeitem aos mais idosos, dentre os quais os anciãos da Igreja normalmente são escolhidos. Não está claro se o apóstolo está recomendando aos jovens que respeitem os mais velhos, ou se está exortando aos pastores mais moços que se submetam à autoridade dos presbíteros. Não adota a teoria de que a mocidade deve ser sufocada; diz apenas que os jovens mostrem deferência aos de idade avançada e à experiência destes.

Depois passa a uma aplicação geral do dever de humildade, que incumbe a todos os membros da Igreja, sem exceção. Devem "cingir-se" dela. A referência é ao pano ou toalha de linho usada pelos escravos; com uma dessas toalhas nosso Senhor cingiu-se para lavar os pés aos discípulos, ato que por si mesmo expressa o que o apóstolo recomenda aqui (veja-se Jo 13.4). Deus resiste aos soberbos (cf. Pv 16.5). Os humildes, por outro lado, são recompensados com provisões da graça divina, cada vez mais abundantes.

Humilhai-vos, portanto (6; gr. tapeinothete); a palavra não significa só "humilhai-vos", como também "deixai-vos humilhar, aceitai vossas humilhações" (assim entende Selwyn).

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 39 A poderosa mão de Deus (6) é figura que comumente se emprega

no Velho Testamento para descrever a intervenção divina nos negócios humanos (cf. Êx 3.20; 7.5; 15.6; Dt 4.34; 9.29).

Em tempo oportuno (6); gr. en kairo (i). No grego clássico a frase significa "no tempo propício"; aqui quer dizer "a Seu tempo", isto é, na revelação de Jesus Cristo. Entrementes, são exortados a manifestar o espírito de verdadeira humildade para com Deus, lançando todas as suas ansiedades sobre Ele, sabendo com certeza que Deus cuida deles (7: cf. Mt 6.26-32; Lc 12.23-31; veja-se também Sl 55.22).

c) Exortação à vigilância e firmeza (5.8-11) Sede sóbrios (cf. 1.13-4.7) e vigilantes (8; cf. Mc 13.33-37; 14.37

e segs.). O dever e a necessidade de vigiar, em obediência à ordem de nosso Senhor, devem ter-se gravado indelevelmente no coração de Pedro. Aqui recomenda sobriedade e vigilância por causa do adversário, gr. antidikos, em sentido legal acusador em julgamento, perante um juiz. O diabo; gr. diabolos, caluniador, acusador falso. Faz-se-lhe referência sob várias figuras, por exemplo adversário dos propósitos de Deus (Jo 12.31; 2Ts 2.8 e segs.; Ap 12.9 e segs.), pai da mentira (Jo 8.44; At 5.3; 2Ts 2.10; Ap 12.9); e grande acusador ou caluniador (Ap 12.10). Os títulos que Pedro lhe dá aqui expressam a hostilidade que o demônio move aos cristãos e à sua vida em Cristo, tanto quanto expressam os métodos de falsa acusação e calúnia que ele emprega.

Como leão que ruge. Esta comparação vívida do demônio com o leão descreve a força e voracidade desse adversário. O fato de ser apresentado a andar em derredor denota sua ubiqüidade (cf. Jó 1.7). Com toda a probabilidade Pedro tinha em mente a perseguição e a tentação de vacilar de que ela se acompanhava. Só havia um meio de enfrentar o adversário assim disfarçado (cf. Tg 4.7). Uma oposição tal ao diabo requer forte determinação, daí precisar ser firme (9), isto é, inabalável (ante o seu esforço por aterrorizar) "na fé", isto é, fé em Deus, que é poderoso para livrar. Não devem imaginar que a igreja da Ásia Menor é

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 40 a única que sofre perseguições. Há outras que estão cercadas do mesmo ambiente mundano e arrostam os mesmos sofrimentos. Resistindo a eles e lembrados desses fatos, provarão a suficiência da graça divina. O paralelismo entre 1Pe 5.10 e segs. e 1Ts 5.23 e segs., 2Ts 2.13 e segs. e Hb 13.21 e segs. seria sinal de um autor comum, ou leitura atenta de material comum, ou ambas as coisas. A influência e obra de Silvano podiam responder por isso.

O Deus de toda a graça; Ele é o Autor e Fonte da graça suficiente para toda e qualquer necessidade; que nos chamou à (isto é, "para participarmos da") sua eterna glória (já mencionada nos versos 1,4) em Jesus Cristo (10). Note-se como Pedro contrasta com a glória eterna os sofrimentos transitórios (cf. 2Co 4.17).

Ele vos há de aperfeiçoar. O grego katartizo significa tornar adequado ou completo; usa-se a propósito de remendar redes, em Mt 4.21 e Mc 1.19, e se traduz por "restaurar" em Gl 6.1. Não quer dizer necessariamente que o seu objeto tenha sido danificado, embora seja isto possível; antes significa dispor ou colocar em ordem exata. Cf. Tg 1.4.

Firmar; gr. sterizo, significando tornar estável, cf. o verso 9, acima, onde vem o adjetivo stereos, "firme".

Fortificar; gr. sthenoo não se encontra nos clássicos, mas sthenein, ser forte. Aqui provavelmente se refere à força necessária para se resistir ao diabo, a qual só Deus pode dar. Não se encontra nos melhores MSS, mas parece ter sido acrescentado provavelmente. sob a influência de Cl 1.23. Pedro termina aqui sua exortação com outra doxologia (cf. 4.11 e 5.14). Por assim dizer, ergue a voz para bendizer o Deus de toda a graça, o fiel Criador, que é capaz de realizar tudo quanto ficou delineado nas exortações.

VII. CONCLUSÃO - 5.12-14 Veja-se na Introdução uma nota sobre Silvano e Babilônia. Pedro

declara aqui seu propósito em escrever esta epístola. Exortou e testificou acerca da genuína graça de Deus, na qual estavam firmes. A ARA

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1 Pedro (Novo Comentário da Bíblia) 41 traduz as quatro últimas palavras como outra exortação: "nela estai firmes". "A graça que haviam experimentado na conversão, na bem-aventurança e no progresso da vida cristã, não era uma coisa ilusória, como seriam tentados a supor em face de suas tribulações, mas era a genuína graça de Deus" (Bennett). Nessa graça deviam ficar firmes (cf. "firmes na fé", no verso 9, acima).

Meu filho Marcos (13). Não parece haver dúvida que se trata do evangelista Marcos, o qual, segundo se reconhece, devia a Pedro muito do material apresentado no Evangelho que traz o seu nome. A tradição associa-o a Pedro, a partir do tempo em que Paulo pediu a Timóteo que lho levasse de volta a Roma (2Tm 4.11). Papias diz que ele, Marcos, veio a ser o "intérprete" de Pedro, e nessa qualidade compôs o segundo Evangelho utilizando os fatos que recordava ter ouvido no ensino desse apóstolo.

Saudai-vos uns aos outros com ósculo de amor (14). Veja-se também Rm 16.16; 1Co 16.20; 2Co 13.12; 1Ts 5.26. O ósculo ordinariamente fazia parte da cerimônia eucarística; e se, como alguns pensam, esta carta foi escrita para ser lida na celebração da Ceia do Senhor, na páscoa do ano 64 A. D., compreende-se de pronto o motivo desta exortação. O ósculo era sinal ou penhor de unidade e amor entre irmãos. Dava-se grande importância à necessidade de reconciliação entre pessoas desavindas, antes de se sentarem à Mesa do Senhor. O beijo era o sinal dessa reconciliação. O traidor Judas escolheu um beijo para com ele identificar nosso Senhor (Mc 14.44), dando a entender que era comum os discípulos de Jesus se oscularem. Servia como sinal de afeto bem como de reconciliação (cf. Lc 15.20; ver também Lc 7.45).

Paz a todos vós que vos achais em Cristo (14); cf. 1.2. Só os que se acham em Cristo conhecem esta paz; todos eles podem conhecê-la. "Paz" foi a saudação do Senhor ressuscitado (Lc 24.36; Jo 20.19 e segs. 26).