1 - Tradução - O que é o externismo - Katalin Farkas [Luiz Helvécio Marques Segundo]

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013. O que é o externismo? * Autora: Katalin Farkas Tradução: Luiz Helvécio Marques Segundo Revisão: André Abath Resumo: O conteúdo da tese externista sobre a mente depende crucialmente do modo como definimos a distinção entre o “interno” e o “externo”. De acordo com a compreensão comum, o limite entre o interno e o externo é o crânio ou a pele do sujeito. Neste artigo argumento que a compreensão comum é inadequada, e que apenas a nova compreensão da distinção externo/interno sugerida por mim nos ajuda a entender o problema da compatibilidade do externismo e do acesso privilegiado. Introdução O externismo sobre o conteúdo cognitivo tem sido discutido há quarenta anos, e tornou-se quase que ortodoxia na filosofia da mente. Essa ortodoxia entende a tese externista bastante a grosso modo, sem que haja qualquer acordo unânime sobre a sua natureza precisa. Os detalhes de uma definição precisa não importam para certos propósitos, mas são importantes se queremos extrair conseqüências da doutrina; por exemplo, ao considerar a compatibilidade do externismo e do autoconhecimento. Esse debate chegou a um estado de confusão quase que desesperador, e a razão disso, penso, está em certa confusão sobre o que o externismo é. No que se segue, tentarei clarificar essa questão. * Tradução de “What is Externalism?”, de Katalin Farkas, originalmente publicado em Philosophical Studies, 112: 187-208, 2003. 1

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.

O que é o externismo?*Autora: Katalin FarkasTradução: Luiz Helvécio Marques SegundoRevisão: André Abath

Resumo: O conteúdo da tese externista sobre a mente depende crucialmente do modo como definimos a distinção entre o “interno” e o “externo”. De acordo com a compreensão comum, o limite entre o interno e o externo é o crânio ou a pele do sujeito. Neste artigo argumento que a compreensão comum é inadequada, e que apenas a nova compreensão da distinção externo/interno sugerida por mim nos ajuda a entender o problema da compatibilidade do externismo e do acesso privilegiado. Introdução O externismo sobre o conteúdo cognitivo tem sido discutido há quarenta anos, e tornou-se quase que ortodoxia na filosofia da mente. Essa ortodoxia entende a tese externista bastante a grosso modo, sem que haja qualquer acordo unânime sobre a sua natureza precisa. Os detalhes de uma definição precisa não importam para certos propósitos, mas são importantes se queremos extrair conseqüências da doutrina; por exemplo, ao considerar a compatibilidade do externismo e do autoconhecimento. Esse debate chegou a um estado de confusão quase que desesperador, e a razão disso, penso, está em certa confusão sobre o que o externismo é. No que se segue, tentarei clarificar essa questão. * Tradução de “What is Externalism?”, de Katalin Farkas, originalmente publicado em Philosophical Studies,

112: 187-208, 2003.

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.

1- A linha divisória entre o externo e o internoDiversas teses têm sido chamadas de “externistas”, mesmo na filosofia da mente. Não posso esperar discutir todas elas aqui, de modo que darei atenção àquilo que se pode chamar “externismo da Terra Gêmea”, a versão do externismo claramente motivada pelo tipo de argumentos da Terra Gêmea. Esse tipo de argumentos visa estabelecer – pela análise de exemplos concretos – que o seguinte é possível: que dois sujeitos teriam estados internos qualitativamente idênticos e ainda assim o conteúdo de (alguns) seus estados mentais seria diferente por causa de alguma diferença em seu ambiente externo.1 O protótipo desses argumentos é, com certeza, o argumento de Putnam em “The Meaning of ‘Meaning’”. Esses argumentos são usados para apoiar a tese do externismo, que pode ser formulada, por exemplo, como se segue:• O conteúdo dos pensamentos de um sujeito depende, ou é individuado, por fatos

externos ao sujeito; ou que • O conteúdo dos pensamentos de um sujeito não sobrevém de seus estados

internos; ou que• Ter certos pensamentos pressupõe a existência ou a natureza particular das coisas que são externas ao sujeito. Pode haver outras versões, mas todas elas concordam num ponto, a saber, traçam uma linha divisória entre o externo e interno ou entre algumas noções correlatas. Essas formulações certamente capturam pelo menos parte do que o externismo é, mas serão incompletas se não responderem a uma pergunta crucial: o que significam as expressões “externo” e “interno”? Como deveríamos traça a linha entre o interno e o externo?

1 Alguns filósofos usam a estratégia da Terra Gêmea para definir o externismo. Veja por exemplo McLaughlin e Tye (1998), p. 285, e Davies (1998), p. 327. Jackson e Pettit traçam uma distinção entre conteúdo “estrito” e “amplo” em termos da noção de um Doppelgänger; veja Jackson e Pettit (1996), p. 220.

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.Há uma interpretação que parece ser aceitável em muitas discussões: a de que “externo” significa “externo ao corpo ou à pele (ou ao cérebro) de um sujeito”.2 A tese externista afirma assim que o conteúdo dos pensamentos ou das frases de um sujeito depende dos fatos externos à sua pele. Essa concepção certamente tem apoio na formulação original de Putnam, a de que “os significados não estão não cabeça”. Tentarei, no entanto, mostrar que na verdade o ponto principal do externismo não é sobre os fatos individuadores estarem dentro ou fora da pele. Como eu disse, o meu interesse aqui é na versão do externismo claramente motivado pelos argumentos do tipo dos da Terra Gêmea, que apresentam dois sujeitos cujos estados internos são estipulados como sendo os mesmos. Isso sugere uma maneira de descobrir o que “externo” e “interno” significam. Temos de nos focar na relação entre

os Gêmeos; que coisa é essa que eles compartilham e que, de acordo com o extenista, não é suficiente para individuar o conteúdo de seus pensamentos? Se pudermos dizer o que é, então teremos uma apreensão do que o “interno” é; e tudo o que os Gêmeos não puderem compartilhar será “externo”.Dada a suposição de que “interno” significa “dentro da pele” e “externo” “fora da pele”, a estratégia comum apresenta dois sujeitos cujos estados dentro da pele são (qualitativamente) fisicamente idênticos. Assim, a relação entre os Gêmeos é de identidade na constituição física qualitativa. No que se segue, argumento que a estipulação sobre a identidade na constituição física não é nem necessária e nem suficiente para o argumento do externista proceder. Isso significa que a interpretação de “interno” como “dentro da pele” é inadequada; a linha divisória entre o interno e o externo não deveria ser traçada na pele.

2 Os exemplos são muitos; veja por exemplo Davies (1998), p. 322; McLaughlin e Tye (1998), p. 285; McDonald (1998), p. 124, Boghossian (1997), p. 163. A maioria dos autores referidos nesta artigo fazem suposições similares, veja McCulloch (1995), p. 189, Jackson e Pettit (1996), p. 220; Burge (1988), p. 650.

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2- A estipulação da identidade na constituição física não é suficiente Se um argumento é bem sucedido em mostrar que dois sujeitos cuja constituição física é idêntica mas que, não obstante, têm conteúdos mentais diferentes, essa conclusão excluirá diversas teorias da mente. Uma vez que estado cerebrais, estados funcionais e disposições comportamentais (numa certa interpretação) sobrevêm a estados corporais, o externismo fora da pele pode ser usado para refutar, por exemplo, a teoria da identidade, o funcionalismo, e (certas versões de) o comportamentalismo.3 Tal argumento, no entanto, não consegue lidar com versões dualistas do internismo. Para se opor ao dualismo num espírito externista, deveríamos apresentar dois sujeitos cujos estados mentais são idênticos de acordo com o critério dualista, e então argumentar que seus pensamentos são diferentes devido a alguma diferença em seu ambiente. Mas estipular a identidade qualitativa na constituição física dos sujeitos não será suficiente para assegurar a identidade dos estados mentais de acordo com a concepção dualista; estados de almas imateriais ou propriedades não físicas de estados mentais não precisam sobrevir a estados corporais. Dada a ampla aceitação do materialismo, lidar com o dualismo talvez não seja considerado uma questão importante. O ponto, porém, não é tão polêmico, mas explicativo. A teoria cartesiana da mente é geralmente considerada como o arquétipo do internismo; mas a razão para se considerar Descartes um internista não pode ser a de que de acordo com sua teoria os estados mentais são individuados por estados corporais. Assim, a compreensão comum deixa inexplicado em que sentido o cartesianismo é uma teoria internista.4De fato, o próprio Putnam pensava que seu externismo tinha de excluir o dualismo. Ao descrever o cenário da Terra Gêmea, ele diz “suponha que tenho um

3 Veja McCulloch (1995), p. 168.

4 Há filósofos que parecem reconhecer esse ponto e tentam definir o externismo de modo que seja aplicável a teorias imaterialistas. Veja por exemplo Burge (1986), pp. 118-119; Pettit (1986), pp. 17-18. Gabriel Segal distingue entre propriedades “intrínsecas” e “localmente sobrevenientes”, e define o internismo primariamente em termos do primeiro (Segal, 2000, p. 9 ff.). Penso, no entanto, que, por razões a serem esmiuçadas na próxima seção, a noção de “intrínseco” não é adequada para definir o internismo.

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Doppelgänger na Terra Gêmea que é molécula a molécula ‘idêntico’ a mim [...] Se você for um dualista, então suponha que meu Doppelgänger tenha os mesmos pensamentos verbalizados que eu, que tem os mesmos dados dos sentidos, as mesmas disposições, etc.” (Putnam, 1975, p. 227). Em outro ponto ele diz que os Gêmeos têm as mesmas crenças, pensamentos, sentimentos, e assim por diante (ibid. p. 224). O problema com isso é familiar: o argumento original de Putnam visava apoiar o externismo sobre significados, e depois é que se estendeu ao externismo para o conteúdo mental. Se o objetivo do argumento da Terra Gêmea é mostrar que o conteúdo das crenças do Gêmeo é diferente, então você não pode apresentar o argumento dizendo que eles têm as mesmas crenças ou pensamentos. Assim, embora Putnam pudesse talvez se beneficiar da relação de “ter os mesmos pensamentos” para argumentar a favor do externismo semântico, a mesma formulação não pode ser usada num argumento a favor do externismo sobre o conteúdo mental.5

Não podemos caracterizar a relação entre os Gêmeos como “ter os mesmos pensamentos”. Mas se o argumento exigisse apenas que os Gêmeos fossem idênticos molécula a molécula, então o argumento não lidaria com o dualismo. Assim, a estipulação de identidade na constituição física não é suficiente para a formulação de um argumento externista geral. 3- A estipulação da identidade na constituição física não é necessária Defensavelmente, pelo menos algumas doenças são tipos naturais: elas têm algumas propriedades superficiais (os sintomas) com base nas quais normalmente as identificamos, e alguma estrutura subjacente que é responsável pelas propriedades superficiais – por exemplo, certa inflamação causada por alguma bactéria. Podemos construir o seguinte caso da Terra Gêmea: suponha que a doença conhecida como “meningite” na Terra Gêmea tenha exatamente os mesmo sintomas e todos os efeitos que

5 Veja Burge (1982).

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.a meningite na Terra, e que na verdade não é causada pela bactéria Meningococcus (como na Terra), mas por uma bactéria diferente a qual chamaremos “XYZ”. Considere Oscar1 na Terra, sofrendo de meningite antes de 1750, quando a bactéria causadora da meningite era desconhecida, e Oscar2 na Terra Gêmea, que é tão similar a Oscar1 quanto possível, exceto por ele estar sofrendo ao mesmo tempo da doença causada por XYZ. Parece, então, que o argumento poderia prosseguir do mesmo modo que no caso da Terra Gêmea: o pensamento de Oscar1 “a meningite é uma doença perigosa” tem um conteúdo diferente do pensamento paralelo de Oscar2, pois Oscar1 está pensando sobre a meningite, e Oscar2 sobre a doença causada por XYZ. Chegamos a uma conclusão muito similar em espírito à tese externista, mas os fatos individuadores nesse caso parecem estar dentro do corpo.6Pode-se notar que o exemplo original da Terra Gêmea envolvendo “água” é de fato similar ao caso da meningite: como se tem chamado a atenção repetidamente, os Gêmeos do exemplo original não podem ser fisicamente idênticos, uma vez que o corpo humano contém uma quantidade significativa de água. Essa objeção geralmente não é considerada tão grave; a impressão geral foi a de que poderíamos encontrar um exemplo melhor sobre uma substância que não fosse encontrada no corpo humano, de modo que todos continuaram a usar o exemplo da água. Sugiro que a nossa disposição em negligenciar esse problema no argumento original é melhor explicada pelo fato de que o ponto principal do externismo não é o de os fatos individuadores estarem dentro ou fora do corpo. Na verdade, isso se torna ainda mais claro numa versão posterior do argumento que Putnam oferece: nessa versão, a água da Terra Gêmea contém 20 por cento de álcool, e a química do corpo das pessoas da Terra Gêmea é alterada de modo que elas possam reagir a essa mistura do mesmo modo que reagimos à água (Putnam, 1981, p.23). Esse argumento parece funcionar como um argumento a favor do externismo da Terra Gêmea, e, contudo, a condição da igualdade física interna é obviamente violada. O exemplo da meningite ajuda a tornar o ponto ainda mais claro,

6 Presumo aqui que o argumento causal é independente dos tipos burgianos de argumentos a favor do externismo social e dos argumentos baseados na divisão do trabalho lingüístico.

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.uma vez que o nosso estereótipo sobre a meningite é formado com base na sua ocorrência no corpo humano, ao passo que o mesmo não se dá com a água. O que motiva a análise internista do argumento da água? Alguns filósofos recorrem a intuições simples, outros apóiam suas intuições com certa teoria dos termos para tipos naturais. Parece que qualquer que seja a motivação do exemplo original, ela também está no caso da meningite. Assim, se algum argumento a favor do externismo baseado nos termos para tipos naturais é digno de algo, o caso da meningite um exemplo tão bom quanto qualquer outra espécie de tipo natural. Ou, pondo de outro modo: se alguém dissesse que Oscar1 e Oscar2 se referiam a algo diferente por “meningite” por causa da diferença microscópica desconhecida de seus corpos, então teríamos um argumento perfeitamente bom a favor do externismo, em que a estipulação de que os Gêmeos seriam idênticos na constituição física não é necessária. Soa-me óbvio que o ponto do argumento da meningite é exatamente o mesmo do argumento da água ou do alumínio, mas alguns talvez discordem. A objeção poderia correr assim: “ninguém nega que alguns fatos dentro da pele fazem diferença no conteúdo de nossos pensamentos e, portanto, não seria surpresa que sujeitos com constituições físicas diferentes tivessem pensamentos diferentes. O ponto dos argumentos da Terra Gêmea é que ainda que você estipulasse a identidade molécula a molécula, os pensamentos ainda assim poderiam diferir. Dado que temos essa tese mais

forte, porque deveríamos nos preocupar com a tese mais fraca? De qualquer modo, o externismo é a tese de que os conteúdos mentais não sobrevêm aos estados corporais, de modo que a questão entre o internista e o externista é saber se Gêmeos idênticos

molécula a molécula podem ter pensamentos diferentes ou não. Os protagonistas do exemplo da meningite não são Gêmeos nesse sentido, de modo que o que quer que digamos sobre seus pensamentos será irrelevante para a questão do externismo”. Deixe-me oferecer a seguinte analogia para ilustrar o que me parece errado com essa objeção. Suponha que estipulamos que os nossos Gêmeos, Oscar1 e Oscar2, deveriam 7

Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.ser idênticos molécula a molécula, e, ademais, que deveriam usar gravatas “idênticas”. Aplicamos então o argumento da Terra Gêmea comum e terminamos com a seguinte tese interessante: os conteúdos mentais não sobrevêm aos estados corporais mais os estados gravatais [necktie states]. De fato, interessante, dirão, mas você não poderia usar o argumento sem as gravatas? E a nossa resposta vem prontamente: se temos a tese mais forte sobre estados corporais mais os estados gravatais, por que deveríamos nos preocupar coma tese mais fraca? De qualquer modo, o externismo de gravata é sobre os Gêmeos que satisfazem das estipulações dadas; assim, o que quer que você diga sobre os Gêmeos que são meramente idênticos molécula a molécula, será irrelevante para os nossos propósitos. Presumo que meus oponentes reconhecerão que defender o externismo de gravata é sem propósito, embora continuem ainda hesitantes. Eles agora admitirão que os Gêmeos não têm de ser idênticos molécula a molécula: por exemplo, Oscar1 poderia ser uma polegada mais alto que Oscar2, e ainda assim o argumento funcionaria. Mas embora pudéssemos todos concordar sobre casos particulares, eles insistirão que não há modo de especificar o que conta em geral como uma diferença relevante nos estados corporais – relevante no sentido em que concede ao externista o seu ponto – e o que não conta. Gravatas são arrancadas facilmente, mas partes do corpo não. Portanto, continua a objeção, o único modo lógico ou natural de traçar a linha divisória entre o externo e o interno é no corpo. Mas essa objeção funciona apenas se não houver de fato outro modo de traçar a linha entre o interno e o externo, e a tarefa deste artigo é mostrar o contrário. 4- Indistinguibilidade Subjetiva Deixe-me sumarizar as duas seções precedentes. Primeiro, aceitei que o debate externismo/internismo é ortogonal ao debate materialismo/dualismo. Portanto, parece que uma tese externista geral seria efetiva também contra versões dualistas do internismo. Segundo, argumentei que o externismo – ou algo muito próximo disso –

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.pode surgir no que diz respeito aos fatos dentro do corpo. Se isso estiver correto, então podemos perguntar se é possível definir o externismo de modo que acomode esses dois pontos. Claramente que a nova definição tem de partir da ideia de que a pele é a linha divisória entre o interno e o externo. Admito que isso cria certa dificuldade: se a compreensão comum se baseia na concepção dentro da pele/fora da pele, então perece que simplesmente mudei o sujeito se propus uma modificação. Afinal, se vários filósofos explicitamente disserem – e dizem – o que querem dizer por externismo, então deveríamos tomar aquilo que dizem. Não quero disputar isso. Contudo, penso que é legítimo perguntar que outros motivos podem estar por trás da tese externista, e que podem ser trazidos à superfície considerando-se os pontos sobre o dualismo e o caso da meningite. Tentarei explicar como a minha proposta se sobrepõe à compreensão comum, e deixarei que o leitor decida entre elas. Argumentarei também que essa escolha terá conseqüências significativas no debate sobre a compatibilidade do externismo e do autoconhecimento. Suponha então que pelo menos faz sentido perguntar se alguma compreensão do externismo pode acomodar os pontos levantados nas seções 2 e 3. O que precisamos então é de uma caracterização da relação entre os Gêmeos que (i) estabeleça uma identidade ou equivalência entre os Gêmeos em algum aspecto, (ii) torne os Gêmeos no caso da meningite equivalentes nesse aspecto; (iii) implique a igualdade “interna” de modo que seja aplicável a teorias dualistas. Como eu disse anteriormente, a caracterização dessa relação fornecerá a noção da linha divisória relevante entre o interno e o externo; o que quer que seja comum aos Gêmeos nesse aspecto é interno a um sujeito, e a conclusão externista é que isso é aquilo que é insuficiente para individuar o conteúdo mental. Uma boa maneira para começar nossa busca pela caracterização propriamente dita é considerar modos possíveis de danificar os argumentos da Terra Gêmea a favor do externismo. É crucial para o experimento mental de Putnam que a água (H 2O) e a água gêmea (XYZ) sejam indistinguíveis para os agentes em circunstâncias perceptuais 9

Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.normais (veja Putnam, 1975, p. 223). Se a água gêmea fosse azul e amarga em circunstâncias comuns, um internista poderia facilmente concordar que “água” significa algo diferente na Terra e na Terra Gêmea. Imagine que agora você vê um copo d’água, prova-o, e sacia sua sede. Sabemos que a situação da Terra e da Terra Gêmea é exatamente simétrica (eles chamam o nosso planeta de Terra Gêmea); ora, se esta fosse a Terra Gêmea com XYZ nela, o líquido chamado “água” pareceria, teria o mesmo cheiro e o mesmo gosto, e também saciaria a sua sede. (Nas versões em que a química do corpo varia da Terra para a Terra Gêmea, você deveria fazer uma troca contrafactual das químicas dos corpos). O argumento da Terra Gêmea não funcionaria se a água e a água gêmea parecessem diferentes; e também não funcionaria se os estereótipos de água e água gêmea fossem diferentes. Suponha que os Gêmeos tivessem algum conhecimento de química; se fosse parte da concepção de água de Oscar1 que é composta de H2O, e parte da concepção de Oscar2 que fosse composta de XYZ (no sentido de que se lhes perguntassem o que a água era, suas respostas incluíssem isso), então novamente um internista poderia facilmente concordar que “água” significa algo diferente na Terra e na Terra Gêmea. Assim, a fim de que o argumento a favor do externismo funcione, temos de excluir tais divergências; e é isso, acredito, o que Putnam tentou capturar ao dizer que Oscar1 e Oscar2 têm as mesmas crenças, pensamentos, etc. (Putnam, 1975, p. 224). Mas como eu disse anteriormente, não podemos usar a estipulação de que os Gêmeos têm os mesmos pensamentos ou crenças. Como podemos capturar esses dois pontos? Recorramos a alguma ajuda. Burge é um dos poucos filósofos que discutem o problema de se formular uma posição individualista que seja aceitável às teorias não-materialistas. A sua sugestão inicial é que o individualismo é “a tese de que os fenômenos mentais qualitativos, fenomenológicos, fixam todos os estados mentais da pessoa, incluindo aqueles (como pensamentos, desejos, intenções) com características intencionais e representacionais” (Burge, 1986, p. 117). Essa caracterização parece se adequar ao aspecto do cenário da Terra Gêmea 10

Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.que acabei de realçar: que a água e a água gêmea deveriam produzir as mesmas impressões e deveriam ser associados às mesmas características para os Gêmeos. Para usar a formulação de Burge, os Gêmeos deveriam ter os mesmos “fenômenos mentais qualitativos, fenomenológicos” ao experienciarem a água ou ao pensarem sobre ela.7No entanto, Burge percebe um problema: essa caracterização pressupõe uma distinção bem compreendida entre aspectos fenomenológicos e intencionais, e Burge pensa que é bastante dúbio que Descartes e a tradição não-materialista (que supostamente sustentam essa versão de individualismo) estivessem cientes disso, ou tivessem aceito tal distinção. Felizmente, podemos capturar a mesma ideia sem precisar da maquinaria conceitual pesada que essa distinção envolve. A chave é: se você fosse (efetiva ou contrafactualmente) trocado com sua contraparte da Terra Gêmea, as coisas

pareceriam as mesmas. Ser transportado para a Terra Gêmea (inconsciente, da noite para o dia) é diferente de ser transportado, digamos, para Marte. Nesse último caso, as coisas na manhã seguinte certamente pareceriam diferentes. Essa ideia parece-me constitutiva de um cenário da Terra Gêmea propriamente dito: que a sua situação é subjetivamente indistinguível da situação de seu Doppelgänger. Mas eu não gostaria de seguir Burge em pensar que a ideia pressupõe uma distinção entre o qualitativo e o intencional. Suponha que alguém não concorda com a compartimentalização dos fenômenos mentais em qualitativos e intencionais, e sustenta que todos os fenômenos mentais são intencionais. Seria bastante estranho se esse filósofo não pudesse conceitualizar o cenário da Terra Gêmea da maneira que fiz; se ele não pudesse entender a diferença entre ser transportado para a Terra Gêmea e ser transportado para Marte. Contudo, ele não explicaria isso dizendo que os fenômenos mentais qualitativos (como opostos aos intencionais) são os mesmos: ele não poderia, uma vez que não nega que tais coisas existam. A noção de indistinguibilidade subjetiva é fundamental na compreensão da natureza da experiência humana, e é anterior à distinção qualitativo/intencional, ou ao 7 Presumo aqui, como diversos filósofos o fazem, que todo pensamento consciente tem caráter

fenomenológico.

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.resultado do debate externismo/internismo. Para ilustrar esse último ponto, considere, por exemplo, a teoria disjuntiva da percepção. Os disjuntivistas sustentam que não há um único tipo de estado mental em que um sujeito esteja quando está tendo uma percepção verídica ou uma alucinação perfeita correspondente.8 Os disjuntivistas são externistas, pois o que faz a diferença entre os dois estados mentais em tipo é algo externo ao sujeito. Mas a fim de formular a teoria deveríamos ter uma compreensão do que é uma alucinação perfeita, e isso é dado precisamente em termos de indistinguibilidade subjetiva. Um cenário Gêmeo sugerido pelo disjuntivista poderia ser assim: você agora está vendo um copo d’água; mas você poderia estar alucinando, isto é, estar numa situação que é subjetivamente indistinguível desta, e contudo o copo não estar ali. Assim, os disjuntivistas aceitariam a caracterização da relação como indistinguibilidade subjetiva; no entanto, eles negariam que isso implique a identidade dos estados mentais. Penso que é nisso que os internistas e externistas se separam: um internista encontraria dificuldades em aceitar que algo que não faz diferença em como uma situação parece ao sujeito (a presença do copo no cada da percepção verídica, e sua falta no caso da alucinação perfeita correspondente) poderia fazer diferença aos seus estados mentais.9A minha sugestão é esta então: a relação entre os Gêmeos é de indistinguibilidade subjetiva em suas situações. Repetindo, isso significa que se eles fossem trocados (efetiva ou contrafactualmente), as coisas pareceriam as mesmas. Essa é também a mesma relação existente entre uma percepção verídica e a alucinação correspondente. E a lição do argumento da Terra Gêmea a favor do externismo é que dois sujeitos que estão

8 Para uma concepção disjuntiva veja, por exemplo, McDowell (1982) ou McDowell (1986).

9 Novamente, uma vez que há muitas variedades de internismo, nem todos os internistas concordariam em apresentar a doutrina desse modo. Para um exemplo de um debate conduzido em termos similares, veja os comentários de John McDowell sobre Simon Blackburn no contexto de uma disputa sobre pensamentos dependentes de objetos. Blackburn descreve uma série de cenários do estilo da Terra Gêmea onde “tudo é o mesmo do ponto de vista do sujeito” e alega que “há uma categoria legítima de coisas que são as mesmas nesses casos” (Blackburn, 1984, p. 324). McDowell concorda quanto “a categoria incontroversamente legítima de coisas que são as mesmas através dos casos em que as coisas parecem ao sujeito”, mas nega que haja “algo” – um estado mental, por exemplo – que seja o mesmo através dessas situações (McDowell, 1986, p. 157).

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.em situações subjetivamente indistinguíveis poderiam estar em estados mentais diferentes. A rejeição do externismo da Terra Gêmea, por outro lado, é a negação de tais possibilidades.10A noção que estou sugerindo está claramente relacionada à compreensão comum. As coisas no mundo normalmente nos afetam através da afetação da superfície do nosso corpo. Uma maneira óbvia de criar duas situações subjetivamente indistinguíveis para um sujeito é manter constante o estímulo próximo na superfície corporal, embora variando a origem causal do estímulo, e nesses casos, os fatos externos estão realmente fora do corpo. Assim, os casos da Terra Gêmea habitualmente discutidos tornar-se-ão casos da Terra Gêmea de acordo com a nova interpretação – como deveriam. Além do mais, a minha proposta cobre os casos discutidos nas seções 2 e 3. No caso da meningite e em ambas as versões do caso da água, o ponto principal do argumento não é que os Gêmeos são idênticos molécula a molécula (não são); a estipulação crucial no cenário é que os Gêmeos estão em situações subjetivamente indistinguíveis. Os críticos externistas da teoria cartesiana da mente geralmente identificam a descrição cartesiana das hipóteses do gênio maligno (ou dos cérebros numa cuba) como uma característica central da teoria. A ideia é que ainda que você fosse enganado pelo gênio maligno, ou fosse um cérebro numa cuba, seus pensamentos, não obstante, seriam os mesmos – apenas muitos deles seriam falsos. A viabilidade de toda hipótese depende do que identifiquei como a relação central na construção dos cenários da Terra Gêmea: a relação de indistinguibilidade subjetiva; pois se você fosse um cérebro numa cuba, tudo

pareceria o mesmo. Os externistas se dividem sobre a questão do que dizer sobre 10 Poder-se-ia objetar que a tese da indistinguibilidade enquanto critério para a identidade dos estados mentais

torna o internismo um fracasso por causa da intransitividade da indiscriminabilidade fenomênica. Não penso que esse ponto seja estabelecido: para um argumento a favor da transitividade dessa relação, veja Jackson e Pinkerton (1973) e Graff (2001). O principal problema que vejo com a negação da transitividade é, muito brevemente, este: a relação “mesma aparência” tem de ser transitiva (uma vez que se baseia na identidade da aparência). Negar a transitividade da indiscriminabilidade, portanto, compromete alguém com a negação da de que situações indiscrimináveis têm a mesma aparência. Isso é possível, mas penso que seja indesejável.

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.cérebros em cubas. Putnam concede a inteligibilidade da hipótese; o seu externismo é manifesto na afirmação de que contrário à suposição cartesiana, os pensamentos dos cérebros encubados seriam diferentes dos nossos pensamentos. Outros externistas questionam a inteligibilidade de todo o cenário. Em qualquer caso, o desacordo sobre as hipóteses do gênio maligno ou dos cérebros numa cuba entre internistas e externistas é um desacordo sobre o que implica a indistinguibilidade subjetiva, e isso torna imediatamente claro por que a teoria cartesiana é uma teoria internista. Entender a relação entre os Gêmeos em termos de indistinguibilidade subjetiva é aplicável a outros tipos de argumentos externistas. O argumento de Putnam da divisão do trabalho lingüístico e o argumento de Burge a favor do externismo social envolvem imaginar duas comunidades lingüísticas onde o uso de certas expressões difere. Colocamos então um Gêmeo em cada uma dessas comunidades, e de acordo com o argumento, eles terão conceitos diferentes. Esses argumentos não seriam obviamente argumentos a favor do externismo se os Gêmeos de algum modo registrassem as diferenças relevantes no uso. A suposição crucial do cenário é novamente que se os Gêmeos fossem trocados contrafactualmente, a situação seria indistinguível para o

sujeito.

5- Incompatibilidade e a compreensão comum A significância dessa proposta está no fato de que ela sozinha ajuda a entender por que se deveria pensar que ao contrário do internismo, o externismo é incompatível com o auto-conhecimento ou o acesso privilegiado. Primeiro, vou argumentar que de acordo com a compreensão comum do externismo, podemos esperar nenhuma diferença entre o externismo e o internismo em relação ao autoconhecimento. Suponha que aceitemos a compreensão comum do externismo que traça a linha divisória entre o interno e o externo na pele (ou no cérebro). A principal diferença então 14

Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.entre o internista e o externista é sobre onde localizar os fatos aos quais o conteúdo de nossos estados mentais dependem:Externismo:Estar num estado mental com o conteúdo C depende de/acarreta que

E (algum fato que está fora do corpo ou do cérebro do sujeito)Internismo:Estar num estado mental com conteúdo C depende de/acarreta queB (algum fato sobre o corpo ou sobre o cérebro)A ideia de que o externismo é incompatível com o acesso privilegiado é geralmente articulada com a ajuda do contraste do nosso estatuto epistêmico no que diz respeito ao primeiro e segundo itens na tese externista. Assim, sabemos de algum modo especial (diretamente, ou a priori, ou com a autoridade da primeira pessoa, ou de algo parecido) que estamos num estado mental com conteúdo C, mas não sabemos dessa maneira especial que E é obtido. E como poderia algo que sabemos desse modo especial depender de ou acarretar algo que não sabemos desse modo especial? Os detalhes do argumento são preenchidos de acordo com aquilo que tomamos como “modo especial”, e de acordo com aquilo que tomamos com a natureza da “dependência” ou do “acarretamento” entre o primeiro e o segundo item. Atesta a formulação de Burge do problema em seu influente artigo defendendo a tese da compatibilidade:O nosso problema é entender como podemos saber algum de nossos eventos mentais de maneira direta, não empírica, quando as identidades desses eventos dependem de sua relação com o ambiente. Uma pessoa não precisa investigar o ambiente para saber quais são seus pensamentos. Uma pessoa tem que investigar o ambiente para saber como é o seu ambiente. Isso não indica que os eventos mentais são aquilo que são independentemente do ambiente? (Burge, 1988, p. 650)

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.Mas se essa é de fato a fonte da preocupação com a compatibilidade, então o internista tem tanta razão para se preocupar quanto o externista. Considere a formulação do internismo acima: o mesmo contraste pode ser traçado entre o nosso estatuto epistêmico no que diz respeito ao primeiro e ao segundo item na tese. Certamente que não sabemos diretamente e não empiricamente os nossos estados cerebrais e, nem, sob uma descrição similar, os estados corporais pretendidos para individuar os nossos estados mentais. Descobrimos muitas coisas sobre o nosso corpo do mesmo modo que descobrimos coisas sobre o nosso ambiente: empiricamente e do ponto de vista da terceira pessoa – com a ajuda de raios-x, cirurgias, e amostra de tecidos. Se a única e decisiva diferença entre o internismo e o externismo é se eles alocam os fatos que individuam o conteúdo mental dentro ou fora dos confins do corpo, não há razão para pensar que isso resultará em alguma diferença epistemológica entre as duas teses. Burge faz uso desse insight em sua crítica à ideia de que o externismo é incompatível com o auto-conhecimento. De acordo com essa concepção, o argumento a favor da incompatibilidade tem o mesmo erro fundamental que o argumento de Descartes a favor a distinção real ente mente e corpo. Conceder que sabemos nossos estados mentais de um modo especial não implica que sabemos tudo sobre ele do mesmo modo especial – há ainda espaço para a ideia de que esses estados dependem de fatos sobre o corpo ou fatos sobre o ambiente. Alguém pode saber quais são os seus eventos mentais e não saber, contudo, os fatos gerais relevantes sobre as condições para se individuar esses eventos. Simplesmente, não é verdade que o cogito nos dá o conhecimento das condições de individuação dos nossos pensamentos que nos permitem “destacar” as suas condições de individuação do ambiente físico. (Burge, 1988, p. 651)

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.Penso que Burge está essencialmente correto acerca disso.11 É de algum modo intrigante, ainda mais porque muito tempo foi despendido na argumentação a favor e contra a incompatibilidade do auto-conhecimento e do externismo, se a solução do problema é tão simples. Sugiro a seguinte explicação: a solução é simples somente se nos apoiarmos na compreensão comum do externismo – nesse caso, os externistas e os internistas (materialistas) têm de fato tanta ou pouca razão para se preocupar com a compatibilidade e com o auto-conhecimento. Mas essa não é a última palavra no debate: pois de acordo com a minha nova compreensão, há uma diferença entre o internismo e o externismo em sua relação com o auto-conhecimento. Penso que uma confiança tácita em algo como a concepção que sugiro poderia explicar o sentimento persistente de que há um problema aqui. Antes de mostrá-la, deixe-me discutir brevemente outra versão popular do argumento da incompatibilidade. 6- O argumento de McKinseyUma forma frequentemente discutida do argumento da incompatibilidade segue um padrão primeiramente sugerido por Michael McKinsey. Eis o ponto principal do argumento:

[...] se você pudesse saber a priori que está num dado estado mental, e estar nesse estado acarretasse conceitual ou logicamente a existência de objetos externos, então você poderia saber a priori que o mundo externo existe. Uma vez que você obviamente não 11 Burge também apresenta uma teoria positiva do autoconhecimento que ele alega ser compatível com o

externismo (para um desenvolvimento da teoria, veja também Burge, 1996). A essência da teoria é que pensamentos de segunda ordem como “Estou pensando agora que a água é úmida” são contextualmente auto-verificantes: uma vez que o conteúdo do pensamento de segunda ordem herda o conteúdo de primeira ordem “a água é úmida”, não há possibilidade de desacordo entre os dois conteúdos. Não penso que essa solução seja satisfatória. Não posso entrar em detalhes aqui, mas o principal problema parece ser que de acordo com a teoria de Burge, a correção dos pensamentos de segunda ordem é um resultado de seu caráter contextual; essencialmente do mesmo modo que não posso estar errado ao pensar que estou aqui. Esse último, porém, é compatível com eu não saber qualquer coisa sobre onde estou. É argumentável que no caso do autoconhecimento temos esse segundo tipo de conhecimento mais substancial – e, portanto, a teoria de Burge não dá conta de todo o escopo do autoconhecimento.

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.sabe a priori que o mundo externo existe, você também não pode saber a priori que está no estado mental em questão. É simples. (McKinsey, 1991, p. 16)O argumento é uma reductio: a alegação de que o auto-conhecimento é a priori, combinada com a tese externista, conduz à conclusão inaceitável de que sabemos a

priori certos fatos sobre o mundo externo. O que é essencial a esse argumento – mas, como veremos, também altamente controverso – é que a tese externista e sua aplicação específica no argumento deveria ser conhecida a priori num sentido suficientemente forte; de outro modo as pressuposições empíricas da tese podem explicar a natureza empírica da conclusão. Mas se isso pode ser mostrado ou não, o principal problema novamente é que se aceitarmos a compreensão comum, os internistas parecem ter tanta razão para se preocupar com o argumento de McKinsey quanto os externistas. Para ver isso, apliquemos a reductio ao internismo como formulado acima (de acordo com a compreensão comum). De acordo com uma versão, temos a conclusão de que sabemos a priori que os nossos cérebros existem, o que é claramente falso. Dir-se-á que isso é porque o internismo no cérebro não é completamente a priori, sendo baseado na suposição empírica de que temos um cérebro. É bem verdade; o externismo fora do cérebro obviamente então também não é completamente a priori. Essa última teoria diz que os fatos fora de nosso cérebro individuam os conteúdos mentais – e, portanto, a teoria assenta na suposição empírica de que temos um cérebro. De acordo com a outra versão, temos a conclusão de que sabemos a priori que certo estado corporal existe. Isso levanta uma questão que não posso discutir aqui nos devido detalhes: sabemos a priori que o nosso corpo existe? Se a resposta for não, então a conclusão desse argumento é novamente tão inaceitável quanto a conclusão tirada da tese externista, e novamente temos uma reductio contra a compatibilidade do internismo materialista e o acesso privilegiado. Agora, assim como antes, o conteúdo empírico da conclusão pode ser a conseqüência de alguma suposição empírica na tese internista. No entanto, a mesma suposição – nomeadamente a de que temos um corpo e isso marca 18

Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.uma linha divisória relevante nos fatos localizados – também arruinará o caráter a priori da tese externista. Mas talvez seja sugerido que a tese internista não incorrerá nas mesmas dificuldades que a posição externista, pois sabemos a priori que o nosso corpo existe. O que isso significa não é inteiramente claro: soa estranho dizer que sabemos que o nosso corpo existe independentemente de ou fora da nossa experiência. Portanto, precisaríamos de algum outro sentido de “a priori”, e é aqui que se poderia começar a duvidar de que nesse contexto seria útil apelar a essa noção. Em todo caso, parece provável que em qualquer interpretação do “a priori” que torne plausível que saibamos a

priori que o nosso corpo existe, será defensável que sabemos a priori que objetos fora do nosso corpo existem. Por exemplo, pode-se sustentar que o fato da nossa existência incorporada é parte do nosso esquema conceitual e, por conseguinte, uma condição para qualquer experiência, mas não há algo de bizarro ou absurdo com a alegação de que o mesmo vale para a existência dos objetos materiais fora de nós. Há muitas versões do argumento de McKinsey, e algumas delas podem evitar os problemas mencionados aqui, mas não posso fornecer uma discussão detalhada aqui. Deixem-me apenas dizer que não estou convencida de que o foco no suposto caráter a

priori do autoconhecimento seja útil nesse contexto. Uma razão para isso é que a noção de a priori não desfruta de uma aceitação universal, uma vez que há diversos filósofos que foram convencidos por Quine de que não há conhecimento puramente a priori. No entanto, estivesse Quine correto sobre isso, parece-me que se poderia ainda argumentar a favor da natureza especial do autoconhecimento.12 Segundo, ainda que resistamos à conclusão de Quine, não é sequer óbvio que o autoconhecimento seja a priori em qualquer compreensão plausível da noção. Tanto quanto posso ver, a melhor explicação do a priori já fornecida é em termos de analiticidade,13 mas não é aplicável ao auto-conhecimento. Ao invés, somos deixados com termos de algum modo indefinidos como 12 Davidson parece ser um caso em questão: veja Davidson (1987).

13 Como por exemplo em Boghossian (1996).

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.“sem investigação empírica do mundo” ou “pelo pensamento apenas”. Na verdade, essas expressões dificilmente dizem mais do que há alguma diferença entre o modo que conhecemos o mundo e o modo que conhecemos nossos pensamentos.14

7- Externismo e Acesso Privilegiado Se aceitarmos a minha compreensão do externismo, teremos um argumento que torna o acesso privilegiado incompatível com o externismo, mas não com o internismo. Primeiro, deveríamos obter clareza sobre as características do acesso privilegiado que gera a incompatibilidade. Já nos deparamos com a sugestão de que aquilo que torna o autoconhecimento privilegiado é o seu caráter a priori; mas pelas razões dadas acima, penso que não é útil. Há outras características do acesso privilegiado habitualmente defendidas, e a que recomendo nos focarmos é na autoridade da primeira pessoa. Ter autoridade de primeira pessoa sobre meus pensamentos não significa necessariamente infalibilidade sobre eles; significa apenas que estou numa melhor posição para saber meus próprios pensamentos do que outros. O acesso privilegiado, quando caracterizado desse modo, é plausível primariamente para os pensamentos e as experiências ocorrentes. Explicar o conhecimento de nossas crenças, desejos ou intenções requer um relato mais complicado: fenômenos como o autoengano, a dificuldade de compreender ideias complexas ou os efeitos de envolvimento emocional forte sugerem que tais estados geralmente não são conhecidos com a autoridade de primeira pessoa. Por razões como essas, dificilmente alguém quereria sustentar que temos acesso privilegiado irrestrito a todos os nossos estados mentais. A característica marcante do externismo é a de que ele força uma limitação ao acesso privilegiado que é fundamentalmente diferente em caráter: surge no que diz respeito aos pensamentos e experiências ocorrentes mais simples, e 14 Outra fonte de problemas é o suposto caráter a priori da tese externista. Para dúvidas similares e um

argumento convincente de que nenhuma noção do a priori servirá aos propósitos do argumento da incompatibilidade, veja Nuccetelli (1999).

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.não é explicável por esses fatos familiares da psicologia humana. Esse é um ponto importante que é geralmente negligenciado pelos externistas: eles simplesmente listam exemplos (como os acima) em que temos autoconhecimento limitado, e depois estendem facilmente essa limitação aos casos que são claramente bastante diferentes. A incompatibilidade da autoridade de primeira pessoa e do externismo (na minha compreensão) é bastante clara. Os externistas sustentam que um sujeito em situações subjetivamente indistinguíveis poderia ter estados mentais diferentes. Mas a autoridade de primeira pessoa se estende apenas na medida em que as coisas são subjetivamente distinguíveis, isto é, distinguíveis do ponto de vista do sujeito. Se eu nunca tivesse notado a diferença entre essa situação e uma situação Gêmea, então certamente outras pessoas poderiam estar numa posição melhor para detectar a diferença. O internismo, por outro lado, não impõe restrições ao escopo da autoridade de primeira pessoa: pois de acordo com essa perspectiva, tudo que pudesse fazer diferença aos estados mentais de um sujeito deveria ser discriminável pelo próprio sujeito. O internista não tem de insistir que todo fato do qual os nossos pensamentos dependem – a existência do nosso cérebro, por exemplo – pode ser registrado pela autoridade de primeira pessoa. Não obstante, ele insiste que é legítimo afirmar que os fatos individuam os conteúdos mentais apenas na medida em que fazem diferença ao modo como as coisas nos aparecem. Isso significa que qualquer diferença no conteúdo dos pensamentos deveria ser distinguível do ponto de vista do sujeito e, por conseguinte, permanecer no alcance do acesso privilegiado. 8- A Metafísica da MenteAntecipo certa objeção. Alguns poderiam dizer que se defino externismo e acesso privilegiado desse modo, a incompatibilidade decorre; mas então o meu argumento é simplesmente uma petição de princípio. Penso que num sentido isso está correto: um modo de sumarizar a minha proposta é dizer que o externismo é uma tese sobre a natureza dos nossos acessos ou dos nossos pensamentos. Contudo, é importante ver que

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Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.nada do que eu disse põe fim ao debate internismo/externismo. Os argumentos apresentados neste artigo deixam diversas opções em aberto. Você pode escolher ignorar os pontos sobre o dualismo e do caso da meningite e sustentar a compreensão comum do externismo e internismo; mas nesse caso, você não deveria esperar estar numa posição especial sobre o autoconhecimento entre o externismo e o internismo. Alternativamente, você pode aceitar a minha concepção, insistir na verdade do externismo, e concluir que não temos autoridade de primeira pessoa sobre nossos pensamentos. Isso não significa necessariamente abandonar por completo a tese do acesso privilegiado; poder-se-ia ainda tentar-se dar conta da natureza privilegiada do autoconhecimento em termos de alguma outra característica. Finalmente, você poderia uma vez mais aceitar a minha concepção e argumentar que uma vez que a autoridade de primeira pessoa é uma característica essencial do conhecimento de nossos pensamentos, e que o externismo é incompatível com ela, o internismo vence.Isso pode não satisfazer aqueles que vêem meu argumento como uma petição de princípio, de modo que vou concluir levando em conta uma objeção desse tipo que de fato vai ao cerne da questão. A objeção poderia correr do seguinte modo: “Um modo de explicar por que a questão do autoconhecimento e do externismo tem se mostrado tão difícil é apontar a natureza diversa das duas doutrinas. O externismo e o internsimo, sendo teses sobre a individuação de conteúdo, são doutrinas metafísicas e, por conseguinte, deveriam ser postas em termos metafísicos, ao passo que a tese do acesso privilegiado é uma doutrina epistemológica, e deveria ser posta em termos epistêmicos. O que torna a demonstração da incompatibilidade difícil – ou mesmo impossível – é a dificuldade de extrair conseqüências epistêmicas de uma distinção metafísica. De fato, isso foi ilustrado muito bem pelo que foi dito sobre a dificuldade do argumento da incompatibilidade aceitar a compreensão comum. Não é surpreendente que essa sua demonstração da incompatibilidade seja tão fácil: pois você ilicitamente definiu o externismo e o internismo em termos de indistinguibilidade subjetiva, isto é, em termos

epistêmicos. Mas assim você não traçou a distinção metafísica relevante”. 22

Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.Manter separadas questões metafísicas e epistêmicas é geralmente um bom negócio, mas não penso que uma separação estrita seja praticável quando o nosso interesse é a metafísica da mente. O que é ter uma mente é inseparável do que é ter, por exemplo, experiências, e essa última é uma noção inteiramente epistêmica. O modo como a metafísica e a epistemologia se entrelaçam na prática filosófica sobre a mente pode ser ilustrado por inúmeros exemplos, de Descartes a Sellars. Isso é especialmente verdadeiro quando a questão é sobre conhecer a nossa própria mente; como disse Colin McGinn, “[...] não podemos primeiro formar uma concepção de mente e depois prosseguir na especificação dos modos pelos quais a mente é conhecida. Em suma, não há concepção epistemologicamente neutra da mente [...]” (McGinn, 1982, p. 7).Em algumas discussões do externismo, é de fato claro que optar pelo externismo ou pelo internismo acaba na rejeição ou aceitação de alguma suposição epistêmica. Um bom exemplo é a discussão de John McDowell dos pensamentos dependentes de objetos (McDowell, 1986). Um pensamento é depende de objeto se não pode existir sem que seu objeto exista. Na concepção original de Russell, a classe de tais pensamentos se limita aos pensamentos sobre os dados dos sentidos e aos pensamentos sobre nós próprios. McDowell sugere a expansão dessa classe a fim de incluir certos pensamentos sobre os objetos físicos externos e, por conseguinte, atingir uma concepção externista da mente. Ele deixa claro que Com efeito, os resultados restritos de Russell decorrentes da recusa de se aceitar que possa haver uma ilusão na compreensão de uma frase aparentemente singular [...] (138)Se suspendermos a restrição de Russell, abrimos a possibilidade de que um sujeito possa estar em erro sobre o conteúdo de sua própria mente [...] (145)O que motiva o externismo de McDowell é a convicção de que ele fornece o único modo de dar conta da relação entre a mente e o mundo: que os nossos pensamentos são

acerca de objetos no mundo externo. Mas ele também percebe que adotar o externismo envolve imediatamente uma restrição ao acesso aos nossos pensamentos. E penso que 23

Investigação Filosófica: vol. 4, n. 1, artigo digital 1, 2013.essa oposição ao externismo pode muito bem emergir da rejeição do compromisso com essa questão.15

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15 O trabalho neste artigo foi apoiado pelo Philosophy of Language Research Group da Hungarian Academy of Sciences. Gostaria também de agradecer a Tim Crane e Barry C. Smith pelos comentários.

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