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1 1 Universidade Federal do Rio Grande Instituto de Ciências Humanas e da Informação Arqueologia Bacharelado TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) As artes de fazer: estudo etnográfico sobre práticas de trabalho, cultura material e sociabilidade na Ilha dos Marinheiros, Rio Grande/RS. Zadir Viviam Lopes Trabalho de Conclusão de Curso como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em arqueologia sob orientação do Prof. Dr. Gianpaolo Knoller Adomilli Rio Grande/RS 2013

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Universidade Federal do Rio Grande

Instituto de Ciências Humanas e da Informação Arqueologia Bacharelado

TCC (Trabalho de Conclusão de Curso)

As artes de fazer: estudo etnográfico sobre práticas de trabalho, cultura material

e sociabilidade na Ilha dos Marinheiros, Rio Grande/RS.

Zadir Viviam Lopes

Trabalho de Conclusão de Curso como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em arqueologia sob orientação do Prof. Dr. Gianpaolo Knoller Adomilli

Rio Grande/RS

2013

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SUMÁRIO

Introdução

CAPITULO 1. A Ilha dos Marinheiros e o acontecimento etnográfico

1.1. A inserção em campo, o método etnográfico.

1.2. A ilha, sua história e seus moradores.

1.3. Notas sobre sociabilidade

1.4. Agricultura e pesca

CAPÍTULO 2. De sujeitos a objetos: as artes de fazer barcos, casas, redes e canos.

2.1 A arte da construção naval

2.2. As casas de lata

2.3. Agricultura e pesca: articulações e recriações locais da técnica e da

tecnologia.

Considerações Finais

Referências bibliográficas

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Palavras-chave: etnografia, cultura material, saberes tradicionais, sociabilidade, re-significação. Resumo Este estudo consiste em uma pesquisa etnográfica em torno do tema da cultura material e do modo de vida dos pescadores artesanais da Ilha dos Marinheiro, para tal foi realizada observação participante, entrevistas abertas (gravadas), fotografias e diário de campo. O foco da pesquisa é o saber local, em especial a arte do saber-fazer, os saberes tradicionais e a re-significação de artefatos transmitidos e geracionalmente. Por ser um povoado caracterizado pela pesca artesanal e agriculta familiar, constata-se que vários objetos utilizados nessas atividades são re-semantizados. Destacamos que a cultura material possui multifuncionalidade, sendo constantemente re-significada em processos de reciclagem criativa. Este é o caso de redes de pesca desgastadas que se transformam em cercas para as plantações e da construção de casas forradas de latas. Além disso, buscamos fazer uma leitura da vida social dos ilhéus e da sua arte na construção naval (barcos de pesca de madeira).

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Glossário

Andana – Postes onde são fixadas as redes

Baliza – Estaca de madeira fincada no fundo da lagoa no qual se amarra a embarcação

Batedor – Objeto utilizado para retirar água da embarcação

Beque – Madeira na qual é amarrada à corda para prender a embarcação à baliza

Cana de leme – Madeira que possui um buraco retangular no qual é encaixado o leme

Cavername – Estrutura de madeira onde são pregados os costados

Costados – Laterais das embarcações

Garatéia – Âncora com quatro pontas

Leme – Madeira fixada externamente na embarcação, que serve para dar direção

Panero – Forro removível colocado no fundo das embarcações

Roupa de olhado – Roupa de material plástico

Tafulho – Divisórias que permitem espaços separados dentro da embarcação

Traquete – Buraco no primeiro banco da embarcação onde se fixa o mastro da vela

Quilha – Madeira longitudinal na qual é pregado o cavername transversalmente

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Introdução

O presente trabalho de conclusão de curso consiste num estudo etnográfico sobre

a cultura material vinculada aos aspectos sociais e simbólicos presentes na dimensão da

vida social, envolvendo principalmente questões relativas às praticas de trabalho na Ilha

dos Marinheiros, localizada no município de Rio Grande. sendo a maior parte dos

interlocutores, habitantes das localidades da Marambaia e do Porto do Rey.

O ponto de partida desta pesquisa foi conhecer o cotidiano dos velhos

pescadores-construtores de embarcações, agricultores e pescadores da Ilha dos

Marinheiros. Sobretudo pensar a relação que eles estabelecem com a construção das

embarcações.

Contudo, no desenvolvimento da pesquisa etnográfica, novas questões foram

surgindo, principalmente a partir das informações obtidas no trabalho de campo. Desta

forma, na caminhada etnográfica busquei um olhar sobre o cotidiano dos Ilhéus, sua

relação com o local propriamente dito através de uma aproximação maior com os

moradores locais (agricultores e pescadores), bem como com suas práticas de trabalho e

vida em sociedade. A partir e através dessas bases no trabalhar e no viver, busquei

identificar a cultura material e a sua resignificação na pesca e na agricultura.

Para o desenvolvimento da etnografia, foram realizadas diversas incursões à

campo, pois a convivência e a observação participante são aspectos inerentes à pesquisa

etnográfica. Nesse sentido, a inserção na vida social e nas práticas de trabalho

pesqueira e agrícola, sobretudo na construção naval, permitiu a coleta de dados e a

veracidade das informações. Português ruim, frase mal formulada, reescrever – deixar

claro.

Os primeiros contatos com os habitantes da Ilha dos Marinheiros iniciou em

2009, a partir da realização de um trabalho elaborado, em parceria com o colega de

graduação Caio Cezar Pereira D’Emilio, para a disciplina de “Introdução à Cultura

Material” do curso de bacharelado em Arqueologia, quando foi solicitado que

abordássemos sobre algum artefato e a relação que as pessoas poderiam desenvolver

com este. Naquela ocasião nos chamou a atenção a questão da construção de pequenas

embarcações por dois velhos pescadores, considerados pelos locais como os artesões

navais da Ilha, sendo que decidimos abordar esse tema para o trabalho da referida

disciplina. Nesse mesmo ano, Caio e eu cursamos outra disciplina “Fundamentos de

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Antropologia”, também do bacharelado em Arqueologia, ministrada pelo prof.

Gianpaolo Adomilli, que despertou nosso interesse pelas questões antropológicas e pelo

trabalho de campo nos estudos etnográficos. As questões antropológicas sobre povos

pesqueiros e ribeirinhos, seu modo de vida e saberes, nos motivaram a procurar o

referido professor, com a intenção de realizar uma apresentação oral na Semana

Acadêmica de Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Nessa

apresentação nós retomamos a experiência inicial dos nossos estudos na Ilha sobre a

arte naval, procurando aprofundamento teórico e metodológico a partir da etnografia.

Estabeleceu-se, nesta ocasião, uma primeira relação de orientação, que teve

continuidade na apresentação de outros trabalhos em eventos acadêmicos/científicos1.

Em 2010, no congresso da SABSul (Sociedade de Arqueologia Brasileira da

Região Sul) em Jaguarão (RS), Caio e eu apresentamos um painel denominado “Notas

etnográficas sobre a cultura material da Ilha dos Marinheiros”, sob orientação do

professor Adomilli, cujo resumo do trabalho foi publicado nos anais do evento.

Ainda em 2010 passei a realizar o trabalho etnográfico na Ilha dos Marinheiros

de forma individual, tendo em vista que a esta altura já estávamos definindo qual seria o

projeto de pesquisa para o TTC em Arqueologia e o colega Caio demonstrou interesse

por outra área de investigação. Com a continuidade da pesquisa, agora de forma

individual, novas ideias e informações foram sendo agregadas ao meu trabalho. A partir

das incursões posteriores que fiz à Ilha e das discussões de orientação, sobretudo

durante o período de estagio de pesquisa de campo e depois com os desafios de

ordenamento dos dados e reflexão teórica no processo de tessitura da escrita, percebi

que o foco da pesquisa havia sido ampliado. Novas questões surgiram com a ampliação

da noção de cultura material dos moradores da Ilha dos Marinheiros para além da arte

1 Em maio de 2010, a FURG sediou o primeiro Ciscap (I Ciclo Sul-americano de Conferências de Arqueologia Pré-histórica) durante a II Semana Acadêmica de Arqueologia, quando apresentamos o trabalho intitulado “A Identidade e a Cultura Material dos Pescadores Artesanais da Ilha dos Marinheiros”. Em dezembro de 2011, apresentei o trabalho intitulado “A arte da pesca: estudo etnográfico sobre a vida, trabalho e materialidade dos pescadores da ilha dos marinheiros, rio grande/rs.” na MPU (mostra de produção universitária). Em novembro de 2012, a FURG (Universidade Federal do Rio Grande) sediou o primeiro I Encontro de Antropologia das Populações Costeiras e Saberes Tradicionais. Na ocasião apresentei o trabalho intitulado “A arte da pesca: estudo etnográfico sobre a vida, trabalho e materialidade dos pescadores da Ilha dos Marinheiros, Rio Grande/RS”. O trabalho apresentado consiste em uma pesquisa sobre a cultura material da pesca ressemantizada em processos de reciclagem criativa na agricultura, que assim como, a arte do saber-fazer e os saberes tradicionais também são transmitidos geracionalmente. Nesse sentido, o interesse desse trabalho foi mostrar a multifuncionalidade desses objetos.

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de construção naval (embora esta tenha continuado como questão central). Desta forma,

foi possível perceber a existência de processos de resignificação dos objetos envolvendo

a singularidade das práticas de agricultura e pesca dos ilhéus.

Nesse sentido, “trabalhar” e “habitar” foram noções centrais para possibilitar

uma leitura da cultura material em seus aspectos sociais e simbólicos, tendo como pano

de fundo o modo de vida local. Esta dimensão diz respeito a singularidades das artes de

construção de embarcações e habitações, bem como as técnicas e artefatos utilizados

nas práticas de trabalho na agricultura e pesca.

Também devo mencionar a minha participação no Núcleo de Estudos sobre

Populações Costeiras e Saberes Tradicionais - NECO2, a partir de 2010, onde tive

grande aprendizado e travei interlocução com outros pesquisadores em torno do tema

“populações costeiras e saberes tradicionais”. As reuniões semanais deste núcleo de

pesquisa da FURG, chamadas de “encontros do NECO”, possibilitaram grande

aprendizado e referenciais de apoio para execução deste trabalho.

No primeiro capítulo apresento uma abordagem mais etnográfica, abordando

sobre como foi a minha inserção em campo, como é a sociabilidade dos ilhéus, como

eles se divertem e de que maneira os laços de amizade e camaradagem são reafirmados

constantemente. Já no segundo capítulo, faço uma abordagem mais voltada para a

arqueologia, ou seja, apresentando a materialidade utilizada pelos insulares, suas casas,

seus barcos, e a cultura material que é re-significada, principalmente, os artefatos

concebidos para a pesca que é re-semantizado na agricultura.

E por fim, uma pesquisa bibliográfica foi realizada no intuito de obter

informações da localidade, tais como mapas, dados estatísticos de órgão públicos, bem

como publicações sobre o tema, que pudessem contribuir com a presente pesquisa

enquanto um trabalho acadêmico.

Descrever em poucas linhas o que irá abordar em cada capítulo e então fechar a

introdução...

2 NECO, Núcleo de Estudos sobre Populações Costeiras e Saberes Tradicionais – FURG.

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CAPITULO 1: A ILHA DOS MARINHEIROS E O ACONTECIMENTO

ETNOGRÁFICO

Arqueologia é antropologia ou não é nada.

Lewis Binford

1.1. A inserção em campo e o método etnográfico

Com o propósito de descrever os habitantes da Ilha dos Marinheiros e suas

práticas de trabalho no âmbito da cultura material, tratei de me inserir e observar in locu

as atividades cotidianas da população, realizando entrevistas abertas e obtendo

fotografias sempre que possível. Sempre foi solicitada a autorização para fotografar ou

gravar e, mesmo com a reciprocidade consentida na maioria dos casos.

As incursões a campo ocorreram num total de 12 visitas, sendo a maior parte

com interlocutores que habitam as localidades da Marambaia e do Porto do Rey ( cf.

mapa pagina...).

A primeira ida a campo ocorreu no dia 29-04-2009, não diretamente a Ilha, mas

ao hortifrutigranjeiro na cidade do Rio Grande, onde parte dos produtores da Ilha

comercializa seus produtos. Depois desta, ocorreram duas incursões em 2009, (03-04 e

19-06), duas em 2010 (03-04 e 10-07) e três em 2011 (29-06, 24-07 e 14-11). Em 2012

foram intensificadas as incursões (10-01, 30-05, 23-06, 13-12 e 19-12).

Como foi dito anteriormente, a inserção junto aos habitantes da Ilha dos

Marinheiros se deu através de um trabalho elaborado no ano 2009 em parceria com o

colega Caio Cezar Pereira D’Emilio. Na época ficamos sabendo, por meio de um amigo

em comum da existência de dois senhores, Luiz e Laudelino (seu Dino ou seu Bolinha,

como é carinhosamente conhecido), que viviam do oficio da construção naval em sua

forma artesanal. A informação que tínhamos era de que esses senhores construíam de

embarcações de pequeno porte, destinadas à pesca e ao transporte de legumes e frutas

produzidos na Ilha. Como chegar a Ilha e realizar uma primeira incursão? De que forma

nós estabeleceríamos, se possível, contato com Luiz e Bolinha, os referidos construtores

de embarcações?

O primeiro passo foi Caio e eu colhermos informações sobre como chegar a Ilha.

Com este objetivo, nós nos deslocamos até a central de hortifrutigranjeiros – lugar onde

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se comercializa a quase totalidade da produção de verduras e legumes produzidos na

Ilha – localizada no Mercado Público, centro da cidade do Rio Grande. Chegamos lá por

volta das sete horas da manhã, horário em que os produtos oriundos da Ilha (batata,

tomate, couve, alface, etc) são desembarcados e colocados a venda para os atacadistas.

Lá fomos orientados por seu Renato (agricultor e comerciante, morador da Ilha

dos Marinheiros) como chegar até a Ilha. Segundo ele, é possível pegar carona nas

embarcações que retornam por volta do meio-dia ou no final da tarde. O único problema

depois é voltar para a cidade, pois só no dia seguinte são trazidos mais produtos. Uma

outra opção de acesso seria utilizando a ponte Prefeito Wilson Matos Branco, que liga a

Ilha dos Marinheiros ao continente, pela BR 392 entrando na Vila da Quinta.

A primeira ida a Ilha dos Marinheiros teve como objetivo um reconhecimento

da área e do objeto de estudo. Chegando lá, resolvemos dar uma volta para conhecer a

localidade, foi quando passamos em frente a casa do seu Ricardo, pescador, trinta e

poucos anos de idade, natural da Ilha dos Marinheiros, que no momento remendava

algumas redes. Paramos e nos apresentamos, explicando qual o objetivo da nossa

presença no local. Seu Ricardo gentilmente nos convidou para adentrar em sua

propriedade e numa conversa informal, falamos de tudo um pouco, inclusive sobre

receitas culinárias de pescados.

Ainda nessa conversa, perguntamos ao seu Ricardo se ele conhecia Luiz e

Bolinha, os dois moradores, detentores da arte da construção naval, que nos haviam sido

indicados anteriormente. Ele respondeu positivamente e considerou que seriam as

pessoas adequadas para fornecer as informações necessárias para a realização da

pesquisa, inclusive nos orientou como chegar até a casa deles.

Saindo da casa do seu Ricardo, fomos direto para casa de seu Luiz, pois nosso

objetivo naquele momento era a questão da construção das embarcações. Ele nos

recebeu com certo receio por conta da sua timidez, mesmo assim, foi gentil e simpático,

exigindo apenas que não fosse fotografado. Explicou o seu trabalho e permitiu que

fotografássemos os dois barcos do tipo chalupa, um em fase inicial de construção e

outro sendo finalizado, bem como as ferramentas e as instalações (estaleiro).

Nessa ocasião (19/06/2009) seu Luiz relatou que trabalha só, pois não se adaptou

ao trabalho em conjunto, alegando prejuízo no andamento da obra. Segundo ele “a

conversa atrapalha o rendimento do trabalho”, desconcentrando e atrasando a

finalização do projeto, além disso, diz não saber dar ordens e nem ensinar, o que

também justifica a sua escolha em trabalhar sozinho.

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O mais interessante no trabalho do seu Luiz, é que devido à necessidade de ter

uma embarcação para pescar e não podendo pagar pela mão de obra, aprendeu a

construir os barcos sem ter alguém, que efetivamente o ensinasse. Ele foi até alguns

estaleiros onde eram construídos barcos para dar uma “olhada” e obter informações a

respeito de como construir o seu primeiro barco. Passados trinta anos de trabalho árduo,

ele já perdeu a conta de quantas embarcações construiu e que estão navegando pela

região estuarina da laguna dos Patos.

Logo a seguir, fomos à procura da residência do seu Bolinha, para estabelecer

contato. Nesse primeiro encontro, ele estava trabalhando em seu estaleiro e explicamos

o motivo de estarmos ali. Nos contou que já está acostumado a receber pesquisadores da

FURG e da UFPel, e que recebe a todos com a mesma simpatia, pois acredita que, se as

pessoas vão até a Ilha para fazer pesquisas, é porque estão realizando um trabalho sério

e por isso merecem ser bem recebidos.

Relatou que suas primeiras construções se deram no período entre safras, assim

ele poderia continuar trabalhando e as pessoas que encomendavam as embarcações

poderiam comprar as madeiras e efetuar o pagamento utilizando o seguro defeso3. Seus

primeiros trabalhos não apresentavam a sutileza e os traços que atualmente contém,

sendo fruto do aprimoramento prático de seu conhecimento ao longo do tempo.

Os dois construtores forneceram as informações e colaboraram com esta

pesquisa oferecendo elementos e tirando as dúvidas que iam surgindo ao longo da

investigação.

Nessa ocasião, estabelecemos os primeiros contatos e fotografamos a Ilha, os

estaleiros e as embarcações, resultando no trabalho da disciplina de “Introdução à

Cultura Material”. Com o tempo foi aumentando o interesse pelo trabalho artesanal da

construção naval, e pelos ilhéus (agricultores e pescadores), que posteriormente, se

tornariam personagens principais desse estudo etnográfico.

Para cada incursão realizada à Ilha dos Marinheiros foi utilizado o diário de

campo como recurso. Nos referidos diários são relatadas todas as entrevistas e

conversas com os moradores locais, além das impressões pessoais do pesquisador. Esses

diários foram redigidos em gabinete, com auxílio das gravações de áudio, fotografias e

das anotações obtidas em campo.

3 Defeso, benefício oferecido pelo governo na época que coincide a reprodução das espécies comumente capturadas.

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A elaboração do diário de campo é uma técnica que tem como finalidade o

exercício da observação e da escrita, devendo seguir dois métodos distintos, descritivo

ou reflexivo, ficando a critério do observador. O diário de campo permite registrar a

realidade a partir do ponto de vista do observador e dos relatos dos observados, servindo

como suporte para o desenvolvimento e otimização da pesquisa científica. Embora não

exista uma regra rígida para a elaboração de um diário de campo, cada pesquisador deve

escrever seu diário seguindo suas próprias especificidades e de acordo com o interesse

de sua pesquisa.

Entendo que, a redação completa do diário de campo, em campo, pode

comprometer quali(quanti)tativamente as informações fornecidas, visto que desviaria a

atenção do entrevistado, prejudicando o diálogo estabelecido. Nesse sentido, a técnica

que utilizo para redigir o meu diário de campo é a seguinte, escrevo apenas palavras-

chaves e fotografo os objetos, e assim, logo que chego à minha casa, olho as fotografias

e revejo as anotações e então é que escrevo o diário de campo.

Além das fotografias e das anotações, no inicio do ano de 2012 também passei a

utilizar um gravador para a realização de entrevistas abertas, as quais são transcritas

parcialmente ou integralmente, de acordo com os interesses da pesquisa. No entanto,

não interrompo o entrevistado para não comprometer a espontaneidade do interlocutor,

apenas dirijo as perguntas de acordo com os interesses da pesquisa. Dessa forma, todas

as gravações foram arquivadas para posteriores consultas.

As seis entrevistas gravadas em áudio foram realizadas informalmente, em

forma de diálogo, com questões abertas de modo a dar liberdade de expressão ao

entrevistado, registrando apenas algumas palavras-chave e o seu significado, quando

necessário. Três foram transcritas integralmente e todas foram devidamente relatadas

nos diários de campo, os quais foram utilizados como base para este trabalho.

Percebendo que o uso do gravador em dialogo com determinadas pessoas pode

comprometer a espontaneidade da conversa, o que justifica em alguns casos a não

utilização desse recurso, foi empregado apenas a caderneta de anotações.

As incursões fizeram com que se estreitasse os laços de amizade entre eu e os

ilhéus, de modo que, sempre quando chegava, já era acolhido cordialmente e com

demonstrações de interesse por minha pesquisa. As conversas informais eram muito

valorizadas, já que os habitantes locais vivem num ritmo mais asômetro, embora de

trabalho duro, sem a “correria nervosa” e a competição do dia-a-dia das cidades (da

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compressão espaço-temporal e do embrutecimento das pessoas), possibilitando maior

dedicação aos momentos de conversa.

Utilizei o método etnográfico com a finalidade de descrever os fenômenos

observados em campo, coletar dados por meio da observação direta e participante, bem

como colocar esses dados à luz dos referenciais teóricos em torno do tema da cultura

material e dos saberes e práticas de trabalho.

Segundo Rocha e Eckert (2008:9) “o método é composto de técnicas e de

procedimentos de coleta de dados associados a uma prática do trabalho de campo a

partir de uma convivência mais ou menos prolongada do(a) pesquisador(a) junto ao

grupo social a ser estudado”.

A observação direta e participante é mister para qualquer trabalho etnográfico,

sendo que o pesquisador deve sempre considerar que ao mesmo tempo em que ele

analisa uma determinada comunidade também está sendo analisado por ela, e por isso,

precisa ser digno de sua confiança. Segundo Silva (2009:185), andar, ver e escrever, são

três fluxos que se encontram dinamicamente inter-relacionados, a exercerem e sofrerem

influências recíprocas. Jà Malinowski refere-se ao método etnográfico quando diz que:

Na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, seu próprio cronista e historiador; suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante acessíveis, mas também extremamente enganosas e complexas; não estão incorporadas a documentos materiais fixos mas sim ao comportamento e memória de seres humanos (Malinowski, 1976:22).

Por meio da observação participante nas constantes inserções à Ilha dos

Marinheiros, tive a oportunidade de participar do cotidiano dos moradores locais, de

modo que, com o passar do tempo, as pessoas começaram a me tratar com menos

formalidade, deixando-me mais a vontade para realizar as entrevistas e tirar as duvidas

em conversas informais. Seguindo os ensinamentos de Malinowski (1976:28) “o

etnógrafo de campo deve analisar com seriedade e moderação todos os fenômenos que

caracterizam cada aspecto da cultura tribal sem privilegiar aqueles que lhe causam

admiração ou estranheza em detrimento dos fatos comuns e rotineiros”.

Conforme Adomilli (2002:19), “a observação participante ocorre a partir do

“estranhamento” necessário para tornar determinado grupo humano objeto de pesquisa,

possibilitando a aproximação e aceitação para que o pesquisador viva os ritmos locais”.

As inserções iniciais no universo da pesquisa incluem a observação detalhada e

o interesse por questões relacionadas ao objeto de estudo, que posteriormente darão

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origem aos questionamentos. Segundo Lévi-Strauss apud Rocha e Eckert (2008:10)

“esta demanda é habitada por aspectos comparativos que nascem da inserção densa do

pesquisador no compromisso de refletir sobre a vida social, estando antes de mais nada

disposto a vivenciar a experiência de inter-subjetividade, sabendo que ele próprio passa

a ser objeto de observação”.

Nas minhas incursões à campo, muitas vezes, o que para mim parecia uma

descoberta incrível, para o nativo não passava de meras situações do cotidiano. Nesse

sentido, a presença do pesquisador, de acordo com Silva (2009:178), pode ser uma

presença incômoda, a querer vasculhar com interesse o que parece óbvio e prosaico aos

nativos.

Sempre que estive na Ilha, tentei não interferir no cotidiano dos ilhéus, tomando

cuidado para não atrapalhar suas atividades, se estavam ocupados eu voltava em outra

ocasião. No dia 29 de junho de 2011, fui novamente à Ilha dos Marinheiros, desta vez

acompanhado por alguns colegas da graduação juntamente com o meu orientador, os

quais foram conhecer as pessoas com quem mantenho contato.

Estivemos no Santuário Nossa Senhora de Lourdes, na Lagoa da Noiva e, logo

após, no píer situado do outro lado da rua na localidade Porto do Rey. A referida

localidade recebe esse nome em homenagem ao desembarque de D. Pedro II, ocorrido

em 18/01/1845, conforme uma placa colocada pela prefeitura do Rio Grande, enquanto

que para Morisson (2003:43) a visita de D. Pedro II à Ilha ocorreu em 18/11/1845.

Figura 1 Fonte: autor

Saindo do píer na localidade do Porto do Rey nos dirigimos para casa do seu

Bolinha, na Marambaia, que naquele momento se encontrava em seu estaleiro,

trabalhando na reforma de um barco. Como sempre a recepção foi cordial, nos

convidando para entrar no estaleiro, onde nos contou histórias interessantes. Seu

Bolinha e o professor Adomilli descobriram um amigo comum (prof. Recuero, da

UFPel, que já vinha realizando pesquisas no local – nota trabalho do recureo ref.

Bibliografca) e a partir desse momento foi possível estabelecer um dialogo mais

amistoso.

Em outro dia (14 de novembro de 2011) levei o notebook para mostrar as fotos

obtidas das vezes anteriores que havia estado na Ilha, com a intenção de que Seu

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Bolinha visse as fotos enquanto eu observava sua reação. Àquelas que ele mais gostou,

as dei de presente, pois como afirma Recuero (2008:52-53) “o retorno das imagens à

comunidade é muito importante para a solidificação de confiança, estima e

reconhecimento da pesquisa”.

Quando falei que estava com as fotos ele demonstrou bastante interesse em vê-

las. Logo reconheceu o cais, o estaleiro e riu quando apareceu uma foto dele abraçado

às redes retornando da pescaria. Essa foto foi obtida no dia em que seu Bolinha havia

ido pescar tainhas para o consumo próprio, e na chegada de volta em casa eu o

aguardava.

No momento em que viu uma foto de seu Zé exclamou “oh, meu irmão!”, notei

que ele ficou bastante emocionado e até verteu lágrimas dos olhos ao ver a foto de seu

irmão José que havia falecido recentemente. A foto foi tirada em uma tarde na hora em

que seu Bolinha estava chegando de uma pescaria e segundo o seu José, ao

desembarcar, seu Bolinha não havia atracado o barco de forma correta e por isso ele iria

atracar corretamente. Enquanto isso, eu registrava com a câmera fotográfica um ex-

pescador de quase 88 anos, muitos dos quais passou embarcado, entrar num barco e

fazer força com o remo para aproximar o máximo possível da terra.

Figura 5

Fonte: autor

Alguns dias depois, (10-01-2012) como prometido, seu Bolinha se surpreendeu

ao receber as fotos escolhidas anteriormente, num total de 13 fotos de 15X20 e uma de

20X30 esta numa moldura. Ao ver as fotos impressas D. Olga comentava que haviam

ficado muito boas, porém, quando viu a foto que estava na moldura, em que seu Bolinha

aparece usando botas de borracha e abraçado às redes, pois estava voltando de uma

pescaria, ela exclamou “ah porque tirou o retrato com essa roupa? Invés de tirar um

retrato arrumado!”. Então expliquei que eu havia gostado muito daquela fotografia,

porque qualquer pessoa que olhar percebe imediatamente que se trata de um pescador e

na verdade é isso o que realmente ele é.

Os trajes que os pescadores utilizam para trabalhar, incluem necessariamente

botas de borracha para proteger os pés da água que infiltra nas embarcações, bonés, os

quais servem para proteger a cabeça do sol e também para que o pescador enxergue

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melhor, além de calças de oleado (tecido plástico) e blusas de manga comprida.

Acredito que de todas as fotos que eu tenha feito do seu Bolinha, essa seja a que melhor

o represente. Antes que eu saísse da casa deles, D. Olga já arrumou um “lugarzinho”

para colocá-la, e até hoje a foto faz parte da decoração, estando exposta num local onde

a família circula o tempo todo.

Figura 6 Fonte: autor

1.2. A ilha, sua história e seus moradores

A Ilha dos Marinheiros ‘ faz parte do município do Rio Grande e esta

localizada na margem oeste da Laguna dos Patos, possuindo uma área total de 39,28

km2 (Morisson 2003:26). Constitui-se numa grande comunidade que possuí sua

economia baseada na agricultura familiar e na pesca artesanal, cujo produto é vendido

nas docas do mercado público, ou diretamente para pequenos comerciantes que vão

comprar o pescado na Ilha a fim de beneficiar e posteriormente revendê-lo.

Figura 2

Figura 2 – Localização e setorização da Ilha dos Marinheiros (Fonte: Soares, 2005).

De acordo com Pimantel apud Recuero (2004:62) “o nome da Ilha dos

Marinheiros originou-se pelas constantes idas dos marinheiros da armada de Silva Paes

ao local para buscar água potável e lenha”. Historicamente a Ilha dos Marinheiros serviu

como local de punição para onde os marinheiros da esquadra de Silva Paes, eram

enviados quando tinham algum problema disciplinar. Posteriormente, a possibilidade de

produzir alimentos nas terras férteis da Ilha, resultou na ocupação por parte dos

portugueses que fixaram residência, e apesar de ter sido colonizada basicamente por

africanos (os quais fundaram o Quilombo do Negro Lucas) e portugueses, atualmente a

presença negra na Ilha é minoria, restringindo-se ao número de 16 pessoas que se

declaram negros e 24 que se declaram pardos (IBGE, Censo, 2010).

Segundo dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), do censo demográfico de 2010, a Ilha dos Marinheiros possui uma população

de 1.109 habitantes, sendo 618 homens e 491 mulheres. O mesmo senso identificou

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ainda que o número de domicílios que compõem a Ilha dos Marinheiros é de 376, sendo

que o número de moradores com 60 anos ou mais é de 189 pessoas, o que equivale a

17,05% da população. Esses dados são referentes à população de toda a Ilha e nota-se

que há uma pequena diminuição do número de habitantes se compararmos com os

dados do censo demográfico do ano de 2000, no qual foram computadas 1.120 pessoas,

sendo 628 homens e 492 mulheres, ou seja, onze habitantes a menos.

A Ilha divide-se em cinco localidades: Bandeirinhas, Porto do Rey, Marambáia,

Coréia, e Fundos da Ilha. Apesar de toda economia da Ilha estar baseada nas atividades

da agricultura familiar e da pesca artesanal, cada uma delas apresenta sua especificidade

econômica. Bandeirinhas é o local onde se situa a ponte de acesso à Ilha, é a segunda

localidade mais densamente povoada caracterizado para pesca artesanal, mas com

significativa presença de agricultura familiar (Soares, 2005:37).

A localidade do Porto do Rey a mais habitada e desenvolvida economicamente,

o que se justifica pela sua proximidade com a Central de Distribuição de

Hortifrutigranjeiros, situada no continente e onde são comercializados diariamente, os

produtos agrícolas cultivados na Ilha. Encontra-se nessa localidade o ponto mais

próximo do continente, que tem como referência a Rua do Rei, na Ilha e a Rua 15 de

Novembro, no centro da cidade do Rio Grande (Morisson, 2003:26).

A localidade da Marambaia caracteriza-se pela pesca artesanal e, de forma

secundária, à atividade agrícola. Esta parte da Ilha diferencia-se por apresentar

majoritariamente uma agricultura de subsistência, que é complementar a pesca. È na

Marambaia que encontramos a maior concentração de pescadores, visto que, um lote de

terra é dividido por vários membros da família onde constroem suas residências. Sendo

assim, a falta de espaço físico explica a agricultura de subsistência e não a agricultura

voltada ao comércio.

A Coréia recebeu esse nome devido às freqüentes brigas que aconteciam no

futebol (Morisson, 2005:35). Nesta localidade os moradores possuem condições

precárias de vida. As piores, se compararmos com as demais localidades da ilha. De

acordo com Soares (2005:39) “a maioria das casas não tem revestimento no piso e não

possui banheiros. A comunidade possui uma renda inferior a um salário mínimo, o que

se reflete diretamente nas condições de vida precárias”.

A localidade dos Fundos da Ilha, a exemplo da Coréia, são menos habitadas e

menos desenvolvidas economicamente, o que se percebe pelas habitações mais simples

e o maior espaçamento entre elas. Segundo Soares (2005:38) a pesca nessa localidade

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era a principal atividade econômica, mas vem sendo gradativamente sendo substituída

pela agricultura.

Durante os períodos entre safra, na Ilha dos Marinheiros, quando os pescadores

aguardam que os peixes se reproduzam, não lhes resta outra alternativa se não fazer

pequenos reparos nas embarcações e nas redes. Nesse sentido, também se aplica a Ilha

dos Marinheiros a reflexão de Thompsom sobre o tempo da natureza e o tempo do

relógio, e a pesar de ter se passado quase 50 anos dessa reflexão, parece ser uma citação

bem atual: “Sem dúvida, esse descaso pelo tempo do relógio só é

possível em uma numa comunidade de pequenos agricultores e pescadores, cuja estrutura de mercado e de administração é mínima, e na qual as tarefas diárias [...] parecem se desenrolar, pela lógica da necessidade... (Thompsom, 1967:271)”.

Figura 4 Fonte: autor

O modo de vida dos ilhéus despertou minha curiosidade, fazendo com que me

deslocasse para ilha e pensasse em como é a vida de quem mora e trabalha lá. Percebi

que, apesar de todas as adversidades pelas quais os ilhéus passam, eles nunca reclamam

do lugar, principalmente os mais idosos, pelo contrário, elogiam sempre. Nesse sentido,

os laços afetivos com o local são cultivados pela memória oral que é transmitida aos

mais jovens.

Durante essa pesquisa, ouvi vários relatos de moradores locais, os quais dizem

que criam os netos para que seus filhos (as) possam trabalhar na cidade, por isso,

encontramos na Ilha muitas crianças e adolescentes em idade escolar, além de muitos

idosos. Já adultos jovens são mais raros, confirmando o que diz Morisson (2003:29),

“podemos constatar que a população da ilha dos Marinheiros emigrou para a cidade e a

que ainda na terra permanece, tende ao envelhecimento. A falta de condições de

trabalho gerou esse êxodo. As pessoas saíram e continuam saindo em busca de melhores

condições de vida, inclusive estudos para seus filhos”.

No quadro abaixo são apresentados os principais interlocutores que de alguma

maneira forneceram informações contribuindo para que esta pesquisa fosse realizada.

Interlocutor Idade Profissão Naturalidade

Seu Bolinha 74 anos Pescador aposentado e construtor de embarcações Povo Novo

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Seu José 88 anos (in memóriam) Pescador aposentado Povo novo

Seu Joaquim +/- 70 anos Pescador aposentado e atualmente trabalha com redes Povo Novo

Seu Mário 76 anos Ex-pescador aposentado e atualmente agricultor Vila da Quinta

D. Olga +/- 75 anos Do lar, aposentada. Ex empregada doméstica e ex-pescadora

Ilha dos Marinheiros

Seu Miranda 80 anos Ex-pescador, atualmente agricultor de subsistência Vila da Quinta

Seu Germano Dias (Polaco) 75 anos Pescador aposentado, atualmente

agricultor Ilha dos Marinheiros

Seu Luiz +/- 55 anos Ex-pescador, atualmente construtor de embarcações

Ilha dos Marinheiros

Na localidade da Marambaia encontramos a presença de algumas salgas, que

consistem em pequenas construções, tipo palafitas, localizadas no interior da lagoa onde

antigamente os peixes eram armazenados no gelo para manter o peixe fresco até que

fosse comercializado, sendo que o atravessador chegava de barco, adquiria o pescado e

ia embora sem necessitar pisar em terra. Atualmente o produto da pesca sai de

caminhão da Ilha dos Marinheiros, e as salgas estão se tornando obsoletas, apenas sendo

usadas para guardar redes e demais equipamentos de pesca, com raras exceções, as

salgas ainda são utilizadas durante a safra da corvina e de camarão.

Figura3 Fonte: autor

A identificação dos moradores locais com a cultura da pesca é tanta que eles

utilizam a linguagem da pesca no seu cotidiano. Um exemplo disso é quando o seu Bira

vem de carro com a família para o centro da cidade, na hora de estacionar ele diz para

seu filho “me avisa quando tu ver um espaço pra atracar o carro” fazendo uma

comparação com o barco.

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Outra pessoa que se identifica muito com a Ilha é seu Bolinha, ele nasceu na

década de 1940, pouco antes da “grande enchente”. Tal enchente ocorreu entre os dias

10 de abril e 02 de maio de 1941, período em que choveu aproximadamente 800mm

somente na cidade de Porto Alegre, e mesmo após o fim das chuvas, o vento sul

continuava a acumular as águas do Lago Guaíba, chegando a atingir a marca de 4,76m

no dia 08 de maio. Enquanto isso, a cidade do Rio Grande também sofria com as chuvas

torrenciais e encontrava-se inundada pela água da Lagoa dos Patos e seus afluentes

(BARCELOS, 2010:17). Até os dias de hoje, a enchente de 1941, foi a maior a assolar

nossa cidade. Entretanto, no recenseamento dos atingidos pela enchente, o nome do seu

Bolinha (Laudelino) nem constou, rindo ele disse “eu era tão novinho que acharam que

nem valia à pena botar meu nome na lista”.

Durante essa grande enchente, de acordo com Morisson (2003:221) “somente

um morador ficou na Ilha tomando conta das casas e vivendo dentro de um barco. Os

demais habitantes tiveram que se abrigar nos locais mais altos em outras ilhas.

1.3 Notas sobre sociabilidade

Minha impressão sobre os moradores da Ilha dos Marinheiros é de que eles estão

sempre bem-humorados. Atribuo talvez pela vida relativamente “pacata e asômetro”

que levam em comparação com a “esquizofrenia” das cidades ou porque estão sempre

procurando um motivo para rir, sempre tem alguém sendo provocado e se este ficar

irritado, ai sim é que pegam pesado nas provocações.

Este aspecto brincalhão é percebido tanto nas crianças quanto nos mais velhos,

constatado pelas narrativas dos ilhéus, como, por exemplo, uma que me foi narrada logo

após o falecimento do seu José, que aos 88 anos de idade ainda mantinha esse “jeitão

engraçado”. Seu Bolinha, que a poucos minutos quase havia chorado relembrando o

falecimento de seu irmão, agora recordava dele com muita saudade e ria das coisas que

seu Zé falava.

Sempre que um barco vinha carregado as pessoas diziam para seu Zé: “esse vem

pesado”, e a resposta era sempre a mesma, “é o peso das guampas4”. Certa ocasião era o

filho de seu José que estava vindo e disseram-lhe: “aquele barco vem pesado” e a

4 Sinônimo de chifres.

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resposta foi a de sempre, no entanto quando o barco se aproximou, viram que era seu

próprio filho do seu Zé e então ele riu e disse “essa foi forte”.

A exemplo do que Adomilli (2002:63) observou entre os pescadores de São José

do Norte, os quais desfrutam de momentos de socialização, em que predomina a

jocosidade, nestes momentos, os pescadores conversam, riem e contam piadas, além de

beber café, chimarrão e cachaça. Os pescadores da Ilha dos Marinheiros também se

confraternizam dessa maneira, o que de certa forma, estreita os laços de camaradagem e

cooperação.

Outra pessoa que serve como exemplo de descontração é seu Joaquim (outro

irmão do seu Bolinha) quando chega próximo a um grupo de pessoas em que seu

Bolinha esteja conversando, este sempre pergunta pra alguém “como a a tua sorte

hoje” o seu Joaquim sabendo do que vem a seguir diz “Já vai começar? Pode asô!”

Seu bolinha me contou que sempre pergunta um número para as pessoas, e qualquer

que seja ele responde, “acertou, pode levar o Joaquim pra ti”. Seu Joaquim responde

“ele faz isso porque gosta de mim, tu imagina se não gostasse, o que faria”.

Figura7

Fonte: autor

Um dos motivos que encontraram para deixar seu Joaquim irritado é dizer que,

quando o inverno chegar, vão queimar um caiquinho velho que está a muito tempo

parado ao lado do galpão. Este barco que pertence ao seu Joaquim, ainda está inteiro

porque ninguém tentou removê-lo, pois já está muito danificado pela ação do tempo.

Na verdade foi colocado ali para se terminar, pois não tem mais condição de ser

restaurado, sequer uma tábua pode ser reaproveitada. No entanto, cada vez que tocam

no assunto seu Joaquim diz que, quando tiver condições financeiras irá fazer obra no

barco, e que vão ver como é que vai ficar.

No entanto, a parte do terreno em que estava o barco e o galpão foi vendida para

uma pessoa que pretende construir uma casa de veraneio, o qual limpou o terreno para a

construção. Na figura abaixo (esquerda) mostra como era e (direita) como ficou após a

limpeza.

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Figura 8 Fonte: autor

Claramente, pude associar a história do barco do seu Joaquim ao que disse

Funari (2003:36), “o artefato, ao deixar de ser apenas um objeto, parece adquirir vida

biológica, dotada de nascimento, crescimento, maturidade, envelhecimento e morte, o

que é uma ilusão apenas, pois coisas de fato não ‘vivem’”. Seu Joaquim sabe que nunca

reformará aquele velho caíco de que tanto gosta e até já possui outro barco novo que é

utilizado nos seus passeios, já que, diariamente vinha até a cidade do Rio Grande,

chegava na prefeitura e cumprimentava o prefeito Fábio Branco, de quem é muito

amigo e logo ia embora. Entretanto, agora com um novo prefeito na cidade, seu

Joaquim pretende, quando necessário, passar de costas em frente ao prédio da

prefeitura.

As vezes seu Joaquim fica irritado por que sempre tem alguém “pegando no pé”,

como ele mesmo diz, porém, quando isso acontece, xinga e esbraveja, mas em seguida

já está rindo novamente. Outro motivo das provocações é que seu Joaquim nunca se

casou, isso causa um certo estranhamento naquela comunidade em que todos constituem

famílias bem cedo. Entretanto, o que me parece, é que a comunidade busca nessas

provocações um modo de re-afirmar e fortalecer as relações de amizade e parentesco.

Os vizinhos juntamente com seu Bolinha, estão fazendo planos para levar seu

Joaquim a um prostíbulo, pois dizem que ele anda muito estressado e está precisando

relaxar um pouco. Até já escolheram a profissional que o atenderá, ela é super-

experiente dado ao tempo de carreira, já que ambos tem a mesma idade (mais ou menos

70 anos). Outro motivo da irritação de seu Joaquim é porque durante a campanha

eleitoral de 2012 ele colocou uma placa de seus candidatos em frente a sua casa

(prefeito e vereador), ambos seus amigos pessoais, e os parentes e vizinhos passavam na

frente de sua casa e viram a placa para a parede.

Embora essas provocações à primeira vista pareça pejorativo, na verdade todos

são muito unidos, isso ficou bem claro quando seu Joaquim ficou doente e precisou ser

operado às pressas, a família esteve unida o tempo todo, prestando assistência e

solidariedade, porém, seu Joaquim destaca o papel relevante de uma de suas sobrinhas,

a qual esteve a seu lado como ele mesmo define “sem arredá pé”.

A confiança que seu Joaquim deposita nessa sobrinha é tanta que ele fez uma

promessa que se ficasse bem de saúde ele se converteria à igreja dela. E nesse sentido,

deixou de ser católico como sempre foi e se converteu a Igreja Adventista do Sétimo

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Dia, na opinião dele, essa sobrinha sabe o que é melhor para ele e também é uma forma

de demonstrar gratidão.

Além do ambiente familiar, outros aspectos de sociabilidade que reúne os

moradores na Ilha dos Marinheiros são os eventos realizados pela igreja (católica), vale

lembrar que cada uma das cinco comunidades locais organizam comemorações em

datas diferentes, as quais são prestigiadas pelos demais moradores. Além disso, o

futebol também exerce um papel fundamental na agregação dos ilhéus.

Outro fato que achei interessante foi assistir a uma partida de futebol entre dois

times (times não oficiais, alguns vizinhos que se reuniram para jogar futebol no final da

tarde). Além de rezingar dos jogadores adversários, reclamam entre os do seu próprio

time, ou porque demorou a passar a bola ou porque não passou, eles xingam e

esbravejam o tempo inteiro, tive a nítida impressão de que iam se agredir fisicamente a

qualquer momento, pois os ânimos estavam por demais exaltados. Ao término da

partida todos saíram do campo felizes e riam muito relembrando algumas jogadas.

Segundo um morador local, na final do campeonato todos os jogadores levam

dinheiro para pagar a cerveja, no caso de perder, mas acaba que todos pagam e todos

bebem juntos, os vencedores comemoram a própria vitória e os perdedores comemoram

a vitória dos amigos. Dessa forma, não existe perdedor, já que, mesmo não ganhando o

campeonato, o futebol serviu como motivo de confraternização e reforço dos laços de

amizade entre os ilhéus.

De acordo com o Jornal agora (22/02/2013), na Ilha dos Marinheiros nasceram

cinco times oficiais de futebol, o Ideal e o Estrela já foram extintos, o Barulho e o

Libertador nos Fundos da Ilha, também o Cruzeiro do Sul da localidade do Porto do

Rey. Tais times serviam e servem para reunir as famílias, pois enquanto os homens

disputam campeonatos as mulheres e crianças também se reúnem em torno do campo

para torcer e sociabilizar. Nesse sentido, contar com esses times ainda é motivo de

grande orgulho para os ilhéus, pois através do futebol também são re-afirmadas as

relações de camaradagem.

Já os eventos organizados pela igreja servem para que os moradores locais

recebam a visita de parentes e amigos que deixaram de viver na Ilha. Nessas datas

festivas moradores e visitantes tem a oportunidade de juntos confraternizarem e

exercitarem sua fé. A Ilha possui atualmente três comunidades católicas; A Comunidade

de Nossa Senhora da Saúde situada nos Fundos da Ilha; A Comunidade São João

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Batista, localizado no Porto do Rey e a Comunidade de Santa Cruz, na Marambaia.

Abaixo, uma imagem do dia da festa de Santa Cruz realizada no dia 03/05/2009.

Figura 9 Fonte: autor

Exatamente como descreveu Recuero (2004:183), “a banda da Ilha segue atrás

dos festeiros e do estandarte da comunidade em festa, executando marchinhas

tradicionais. Muitas vezes sem cunho religioso, mas reconhecíveis por serem de

domínio popular”. Na figura abaixo, capturamos o momento em que a banda e a

população se preparavam para sair em romaria da frente da igreja e ir até o cruzeiro.

Figura 10 Fonte: autor

Durante o tempo que pesquisei na Ilha, também constatei a importância que é

dada pelos ilhéus ao fato de pertencerem aquela localidade e seguirem os preceitos

cristãos cultivando os costumes dos ante-passados portugueses. Para Recuero (2004:...),

existe “uma afirmação de pertencimento muito grande à descendência portuguesa, e que

estes elementos conjugados davam suporte e baseavam toda a estrutura social daquela

comunidade”. Na localidade do Porto do Rey, bem na frente Recanto Nossa Senhora de

Lourdes (o santuário) existe um café colonial, no qual as atendentes trabalham trajando

roupas típicas portuguesas.

Figura 11 Fonte: autor

1.4 O trabalho da pesca e na agricultura

A pesca e a agricultura constituem as principais atividades econômicas da Ilha

dos Marinheiros, fundamentadas em pequenas propriedades de economia familiar. No

entanto, são vários os relatos dos insulares que dizem que o declínio da pesca está

associado ao fato de que os jovens estão deixando a Ilha à procura de melhores

condições de trabalho, permanecendo na localidade somente a população de mais idade

que durante a sua juventude viveu uma realidade econômica diferente da atual.

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Por meio de entrevistas realizadas em 10 propriedades rurais da localidade,

Marangoni e Costa (2010:132) constataram que a Ilha dos Marinheiros possui

propriedades de pequeno porte (área média de 11 hectares), sendo que a área cultivada é

de apenas 4,9 hectares, produzindo principalmente cebola e hortifrutigranjeiros.

Nas incursões à Ilha, ouvi relatos dos moradores locais, alguns serão citados

neste trabalho. Um desses relatos foi feito pelo seu Bolinha, ele conta que quando seu

irmão era responsável por um barco de pesca, e convidava os outros pescadores para ir

pescar em um determinado local, distante, onde a pesca era abundante. O irmão de seu

Bolinha usava a expressão “é calça de veludo ou cú de fora”, para dizer que com o

dinheiro de venda do pescado seria possível comprar uma calça de veludo, na época

custava muito caro, ou não pescariam nada.

No dia 29 de junho de 2011, dia de São Pedro (padroeiro da cidade do Rio

Grande), coincidentemente fomos a Ilha dos Marinheiros (eu, professor Adomilli e

alguns colegas de graduação) e quando nos encontrávamos no lado de fora do estaleiro

do seu Bolinha, acompanhado de seus dois irmãos José e Joaquim e de um sobrinho,

chegou na beira do píer um grupo de pessoas carregando a imagem de São Pedro. Eles

cantavam e rezavam um terço, o qual retrata os dilemas do pescador, principalmente nos

dias de hoje, em que a pescaria está tão escassa.

A oração chama-se “Oração de São Pedro Pescador” e tem trechos que

despertaram nossa atenção, pois diz “não nos deixeis cair em tentação de pescar peixe

pequeno”. Esta frase denota claramente uma preocupação com a manutenção do peixe

na lagoa, bem como também uma preocupação com a pesca, além de uma relação bem

intima com o peixe.

Embora os moradores da Ilha formem uma comunidade bastante coesa e em

relativo isolamento causado pelas águas, estes, ao mesmo tempo em que mantém

determinadas práticas de trabalho tradicionais (a pesca artesanal, a agricultura, a

produção de vinho – Jurupiga), mostram interesse e dinamicidade para incorporar o

novo. Um exemplo disso é a preocupação que o senhor Ricardo tem com a educação de

sua filha, fazendo questão de manter em casa um computador conectado a internet, pois

nas palavras dele, “não é nem um luxo ter internet, é uma necessidade, para que minha

filha possa ter um futuro melhor”. Dessa forma, Gordon Childe, que brilhantemente

versou sobre a evolução cultural do homem, em sua obra de mesmo nome, diz: “Pelo menos, teoricamente o conjunto de regras tradicionais não é fixo e imutável. Experiências recentes podem sugerir acréscimos e modificações individuais. Estas se úteis, serão comunicadas,

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discutidas e comprovadas pela comunidade como um todo, e finalmente incorporada à tradição coletiva”. (Childe 1966:45)

Ainda na década de 90 do séc. XX, Ruivo alertava sobre a importância da Ilha

dos Marinheiros na produção de hortifrutigranjeiros para abastecer a cidade do Rio

Grande, e também manifestava preocupação com os impactos que a urbanização traria à

comunidade, tanto econômico quanto pessoal. “... Ilha dos Marinheiros é um dos mais destacados locais de

produção hortícola do Rio Grande, fato que, diante de uma penetração cada vez mais significativa da vida urbana na Ilha, pode gerar perturbações, seja nas comunidades internas da dita Ilha, seja nas relações econômicas que sustentam as populações que lá vivem e que por sua vez dão suporte aos produtos consumidos pela cidade do Rio Grande” Ruivo (1994:148).

Atualmente, com o desenvolvimento econômico e a constante valorização dos

imóveis pelo qual passa nosso município, constatamos que o mesmo está ocorrendo na

Ilha dos Marinheiros, onde a especulação imobiliária já chegou. Pessoas abastadas da

cidade do Rio Grande estão investindo em terrenos na localidade, compram e depois de

algum tempo vendem por um preço maior. Também tem aquelas pessoas que compram

terrenos para edificar suas casas de campo para descansar nos finais de semanas.

De acordo com alguns habitantes locais a venda dos terrenos se dá por conta do

desinteresse de alguns moradores, principalmente os jovens, em permanecer

trabalhando na agricultura e na pesca, pois, segundo eles, é uma vida muito sofrida e

que depende muito da sorte, no caso dos agricultores se houver uma estiagem

prolongada ou se houver uma enchente o trabalho de meses se perde.

Já na pesca, existem fatores que determinam como será a safra, as condições

climáticas, a salinidade da água da lagoa, ou da direção dos ventos. Outro fator que

influencia na escolha da profissão (pescador ou agricultor), são as tempestades

enfrentadas no mar. Ouvi o relato do seu Alberto Miranda, que desistiu da atividade,

após uma forte tempestade que enfrentou durante uma pescaria, motivo pelo qual

passou a dedicar-se a agricultura até se aposentar.

Atualmente, aos 80 anos de idade, e vivendo na Ilha a mais de 40 anos, seu

Miranda não depende da agricultura para sobreviver, porém, continua plantando para o

consumo, e apesar de não poder mais realizar trabalhos pesados, por problemas

cardíacos, ele mantém uma pequena plantação onde trabalha sem pressa, e de acordo

com ele, um dos motivos pelo qual mantém a horta é saber que está consumindo

produtos saudáveis, pois utiliza somente esterco na adubação do solo, visto que,

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discorda da utilização de defensivos químicos na agricultura. Pude constatar que embora

não utilize defensivos agrícolas, a horta do seu Miranda onde ele cultiva feijão, cebola,

couve alface e demais hortaliças, é bastante produtiva, o que se justifica pelas fotos

abaixo.

Figura 30 Fonte: autor

Na opinião de seu Miranda, os agrotóxicos são os responsáveis pela escassez de

peixe, na época em que seu Miranda era pescador, ao descer da embarcação, sempre

lavava as mãos nas valas e seguidamente encontrava pequenos peixes. Hoje em dia, isso

não acontece, pois, a primeira chuva que vem após a aplicação do produto o solo é

lavado e o produto é carregado para a Lagoa, deixando-a contaminada. Além disso, o

agrotóxico ingerido junto com os alimentos faz com que as pessoas tenham piores

qualidade de vida. Segundo ele “as pessoas hoje andam mais doentes por causa do

veneno que comem junto com a comida, no meu tempo de moço, a gente nem conhecia

médico”.

Essa excessiva preocupação que os ilhéus demonstram com a manutenção do

meio ambiente, foram comprovadas em várias conversas que tive com os moradores

locais, seu Elmo é outro asôm preocupado com as questões ambientais, apesar de ter

permanecido apenas um ano e meio na escola, diz que desde criança se incomodava ao

ver colocarem óleo na água ou jogarem sacolas plástica na Lagoa. Embora com o pouco

estudo que tem é membro fundador da Pastoral do Pescador, e criador do Foro da

Lagoa. Se diz apoiado por alguns vizinhos e criticado por outros por recriminar a pesca

de prancha na Lagoa dos Patos, considerando que é crime a pesca de arrasto. Segundo

ele “toda a pesca é predatória, até a de linha, mas a prancha é um massacre o que ela

faz”.

Conversando com seu Elmo, pude notar que ele realmente tem conhecimento

daquilo que diz, e uma das citações dele que achei interessante é quando ele diz que

“para existir o pescador artesanal é preciso que haja o peixe e a arte da pesca, ...mas os

próprios pescadores estão acabando com a Lagoa”.

Também observei preocupação no relato de seu Ricardo, sempre viveu na Ilha e

se questiona sobre o que fazer com as redes que não tem mais condições de ser

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remendadas e precisam ser descartadas, reclama que um projeto da fábrica de redes o

qual previa o recolhimento das redes danificadas nunca saiu do papel e as vezes o fogo é

o único meio encontrado para se desfazer dessas redes.

Outra pessoa que se preocupa com esse assunto é o seu Bira, filho primogênito

do seu Bolinha, diz que percebendo que a Ilha dos Marinheiros está sofrendo com a

erosão, tenta evitá-la plantando junco (espécie de vegetação) nas margens da ilha.

Segundo ele, o processo erosivo é inevitável, porém, tenta mitigar os efeitos, ou pelo

menos retardá-los..

Uma das experiências que mais me chamou a atenção foi conversar com um

rapaz na ponte que dá acesso a Ilha dos Marinheiros e ele relatava que já tinha um peixe

em casa e precisava pescar pelo menos mais um para fazer o almoço de domingo. No

entanto percebi que vários peixes que capturava ele devolvia à água porque eram muito

pequenos, segundo ele não valia a pena levar aqueles peixes para casa, era melhor

deixar crescer mais um pouco e voltar para buscá-los no próximo ano.

Em outra ocasião, no dia 1°/09/2012 eu estava indo em direção a Marambaia,

pouco antes da localidade do Porto do Rei, vi um casal que se deslocava em um tobata5,

o homem pilotando e a mulher vinha na carroceria. Resolvi abordá-los e expliquei sobre

a pesquisa que eu estava realizando na Ilha, então me convidaram para acompanhá-los

até a roça onde estavam indo colher os legumes que seriam comercializados na feira do

dia seguinte.

Figura 24 Fonte: autor

Logo no inicio da conversa seu Alcir permitiu fotografar tudo, desde que não o

fotografasse de perto. Segundo ele “tem muita gente pesquisando aqui na Ilha e as veiz

a gente nem sabe pra que, faiz asô tempo teve um pessoal da faculdade de Pelotas

pesquisando aqui, eles queriam foia de couve-flor com uns bichinho vieram aqui e

acharam umas três o quatro foia com os bicho e levaram. Nem, sei o que foi feito, não

vieram mais”.

5 Espécie de trator no qual tanto pode ser acoplada a carroceria quanto o arado.

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Seu Alcir questionou se a minha pesquisa serviria para levar algum benefício para

os moradores da Ilha. Expliquei utilizando uma linguagem bem acessível que eu

precisava fazer essa pesquisa para poder concluir a graduação. Então ele disse “Duns

anos pra cá eu até inventei de não falá mais nada, não digo nada, as veiz tu diz alguma

coisa depois vira contra o cara. Eu prefiro não responder essas pesquisa, é tanta lei,

moço, dum lado asô e do outro broqueia. As veiz tu diz uma coisa, daqui a pouco o

troço se inverte contra o cara, as veiz tu vai em casa aí que o cara nem qué te recebê!”.

Enquanto seu Alcir falava fiquei lembrando da dissertação de mestrado do Gustavo

Moura que encontrou enorme dificuldade em localizar pessoas dispostas a colaborar

com a pesquisa que realizou na comunidade da Coréia do outro lado da Ilha dos

Marinheiros.

Enquanto colhiam os produtos para vender na feira conversavam comigo e logo

percebi a desilusão dele em relação à agricultura. Nesse sentido, seu Alcir pretende

trabalhar no máximo por dois anos nessa atividade enquanto troca de categoria sua

carteira de habilitação, pois pretende trabalhar como motorista e sair de vez da Ilha dos

Marinheiros, para tentar a sorte na cidade do Rio Grande. A expectativa dele é obter um

salário de R$ 1.500,00, durante o ano receberia um total de R$ 18.000,00 com direito a

férias e décimo terceiro salário no final do ano. Exercendo sua atividade na agricultura

ele diz que até ganha $18.000,00 no ano, mas para isso acaba gastando em torno de

$15.000,00 para poder produzir.

Um exemplo da causa da decepção de seu Alcir, é o caso de ter faltado chuva na

época correta e as couve-flores não se desenvolveram como o esperado, razão pela qual

o preço está muito baixo. Já o caso das beterrabas é o inverso, na Ilha a produção foi

muito boa e por isso, todos os agricultores têm o produto em abundância, o que faz com

que o legume seja desvalorizado. Ele plantou em torno de 10 mil mudas e hoje não tem

para quem vender mesmo vendendo “três cabeças” por um real.

Para outro agricultor, seu Mario, que tem sua propriedade situada na localidade

do Porto do Rei, é notável sua satisfação ao falar sobre o trabalho na agricultura, pois

não se arrepende de a muito tempo ter trocado a pesca pela produção agrícola. Aos 75

anos de idade, ele é a memória viva da Ilha dos Marinheiros, pois tem uma lucidez e

uma disposição, de causar espanto em muitos jovens. Isto, sem falar na sabedoria

baseada em experiências de vida. Toda essa jovialidade, seu Mario atribuí ao fato de

nunca ter fumado e de consumir em torno de um litro de vinho diariamente durante o

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almoço, vinho este que ele mesmo produz. Alias, até as galinhas que consume são

criadas na propriedade.

Seu Mario ri do fato de que hoje em dia muitos pescadores sequer sabem

remendar as próprias redes e diz que muitos dos pescadores mais jovens nem sabem o

que é um asômetro6, algo que na década de 50 do século passado era amplamente

utilizado na pesca, por isso recentemente, ao entardecer, ele colocou um equipamento

desses em frente ao bar que possui na propriedade, muitos passavam e ficavam

intrigados com aquela luz e então seu Mario explicava o que era.

Uma das principais críticas que seu Mario faz a alguns agricultores é que eles

utilizam o agrotóxico sem procedência e também por não respeitar o período de

carência entre a aplicação química e a comercialização dos produtos agrícolas. Para ele,

é uma falta de respeito com o consumidor, visto que estes agricultores plantam o

produto para o próprio consumo separadamente dos que serão comercializados. Outra

crítica ele dirige aos órgão fiscalizadores, que fiscalizam a utilização do birimbau e da

coca7 enquanto que as lojas do ramo vendem livremente. Na opinião dele, se é proibido

utilizar deve ser proibido vender.

Portanto, a agricultura na Ilha dos marinheiros, deve ser preservada, pois é

oriundo de lá maioria das frutas e legumes que vão para a mesa dos moradores da

cidade do Rio Grande, garantindo assim, emprego e renda para os ilhéus e preços mais

acessíveis para os consumidores aqui na cidade do Rio grande. Já a pesca, que teve seus

dias de maior abundância num passado nem tão distante, deve ser preservada por meio

de políticas públicas, que olhe com mais atenção para os pescadores. Pois como afirma

Renner (2011:137) “o pescador artesanal no seu trabalho com o pescado, além da

utilização do mesmo para alimentação, é também fornecedor de matéria prima para

indústria”. Nesse sentido, com o dinheiro da venda do pescado é que o pescador

mantém suas despesas, tais como vestuário, energia elétrica entre outras.

Embora os agricultores ganhem peixes dos pescadores e o pescadores ganhem os

legumes dos agricultores, não se configura uma troca propriamente dita, pois se uma

das partes não tiver o produto para dar, não significa que irá ficar na falta de produtos

que a outra parte dispõem. Dessa forma é que também as relações de camaradagem e de

amizade entre os ilhéus são fortalecidas, uns amparando os outros e também sendo

apoiados quando necessário.

6 Depósito no qual é colocada uma pedra de carboreto. 7 Redes de pesca proibidas por serem predatórias.

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CAPITULO 2: DE SUJEITOS A OBJETOS: AS ARTES DE FAZER

BARCOS, CASAS, REDES E CANAIS

A arqueologia, é a arqueologia, é a arqueologia, é a arqueologia

David Clarke

Passo agora a abordar sobre a relação entre saberes e fazeres, o universo

simbólico que nos descortina as questões relativas à cultura material, através do

acompanhamento realizado junto aos pescadores e agricultores sobre a fabricação das

embarcações, re-significação de objetos, casas de latas e construção de canais para

atracar as embarcações próximo às residências como medida de segurança.

2.1. A arte da construção naval

Para esta comunidade as embarcações representam bem mais do que meros

objetos ou instrumentos de trabalho. Nelas estão imbuídos sentimentos e emoções

transferidos durante o processo de construção, o que em muitas vezes nos remete a

personificação do objeto como se ele ganhasse vida. Exatamente como Malinowski

descreveu na obra “Argonautas do Pacifico Ocidental”, sobre as embarcações ele diz, “seja ele feito de casca de árvore ou de madeira, de ferro ou de aço, vive a vida dos seus navegantes e, para o marinheiro, representa mais do que um simples pedaço de matéria moldada [...] o barco está envolto numa atmosfera de romance, construída de tradições e experiências pessoais. É um objeto de culto e admiração, uma coisa viva que possui personalidade” (Malinowski, 1975:91)

O termo cultura material é auto explicativo, pois não existe um objeto que não

possua um construtor por trás dele, expressando de alguma maneira o seu cotidiano.

Portanto, as embarcações não são trabalhadas simplesmente pela sua funcionalidade,

coexistindo por trás do processo certo sentimento afetivo, o que se constata pelos nomes

que estas recebem. As embarcações são objetos da cultura material de determinadas

populações e por isso entende-se cultura material, como sendo todo e qualquer artefato,

pois sempre está intrinsecamente relacionada ao ser humano por meio de criação ou

difusão.

De acordo com Baudrillard (1968:94) “os objetos nesse sentido são, fora da

prática que deles temos, num dado momento, algo diverso, profundamente relacionado

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com o indivíduo, não unicamente um corpo material que resiste, mas uma cerca mental

onde reino, algo que sou o sentido, uma propriedade, uma paixão.”

Em certa ocasião cheguei à casa de seu Bolinha para coletar mais informações

para este trabalho e o encontrei no estaleiro trabalhando na construção de um novo

barco, largou o trabalho e veio conversar comigo, contando que na semana anterior

havia estado em uma confraternização no Centro de Convívio Meninos do Mar

(CCMAR-FURG), juntamente com outros carpinteiros, como ele se autodenomina,

sendo que havia três dos Irmãos Santos, um de São Jose do Norte e outro de Pelotas

(localidade de Arroio Sujo). O almoço foi realizado no estaleiro do CCMar onde foi

colocado um fogão e uma mesa.

O CCMAR desenvolve projetos profissionalizantes em diversas áreas, voltados a

adolescentes em situação de vulnerabilidade social, e basta preencher os requisitos

necessários para aprender uma profissão. Uma dessas áreas é a marcenaria, onde os

meninos aprendem a construir embarcação semelhantes as que navegam na Lagoa dos

Patos e região. Para os marceneiros que não possuem nenhuma ligação com a pesca,

construir um barco e construir um banco de madeira, é a mesma coisa, é apenas

trabalho, uma fonte de renda. Já para um pescador construir uma embarcação para

pescar é bem mais que isso, é transferir valores simbólicos e sentimento que já

começam a ser passados durante a construção, visto que para o pescador, uma

embarcação é mais do que uma ferramenta de trabalho ou um meio de transporte, é o

patrimônio, é onde ele passa boa parte da vida.

De acordo com Mura (2011:96), “A produção de um objeto, enquanto “cultura

material”, representa, assim, a passagem do “natural” para o “artificial” – ou o cultural,

se se prefere”. Por esse motivo acredito que o saber-fazer8 tradicional de construção

artesanal de embarcações deva ser preservado, uma vez que se manifesta na cultura

viva, nas práticas sociais e simbólicas de um povo ou grupo social através da

dinamicidade do seu modo de vida. Exemplos da criatividade nas praticas adaptativas

entre os ilhéus, como nas ferramentas utilizadas na construção das embarcações que são

re-significados (como o caso da serra de açougue adaptada, que veremos mais adiante),

mostram a singularidade das práticas criativas dos ilhéus a partir de suas práticas de

trabalho. Trata-se de uma relação diferente daquela desenvolvida pela proposta do

projeto estaleiro do CCMAR, onde o maquinário utilizado pelos aprendizes para

8 Saber-fazer consiste em conhecer o trabalho na prática e não apenas no saber-fazer por meio da teoria.

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trabalhar a madeira é moderno, cada maquina possuí uma função específica, e até o

instrutor é marceneiro, e não pescador.

Para minha busca em torno do tema da cultura material articulado aos saberes

tradicionais, apóio-me no antropólogo americano Clifford Geertz (2007). Para Geertz,

apreender o significado atribuído pelos nativos em relação ao saber local é considerado

da seguinte maneira: Colocando a questão nestes termos, ou seja, indagando-se qual a melhor maneira de conduzir uma análise antropológica e de estruturar seus resultados, em vez de inquirir que tipos de constituição psíquica é essencial para os antropólogos, torna-se o significado de “ver as coisas do ponto de vista dos nativos” menos misterioso. Isso não significa que a questão fique mais fácil de responder, nem que a necessidade de perspicácia por parte do pesquisador de campo diminua. Geertz (2007:88)

Além do saber local, tenho especial interesse pela arte do saber-fazer que

consiste em um conhecimento transmitido de pai para filho e está carregado de

simbolismo. Segundo Adomilli (2002:64) “há um conjunto de saberes, que não estão

separados, pelo contrário, se inserem em uma rede de relações e significados”.

O saber local inclui o conhecimento que os insulares têm sobre o tempo, tal

conhecimento é adquirido através de muita observação e também é transmitido

geracionalmente. Dessa forma, fazer uma previsão do tempo é muito importante para

que o pescador não pegue temporal no mar. Atualmente existem equipamentos

sofisticados e os tele-jornais apresentam diariamente a previsão do tempo, mesmo

assim, os pescadores fazem a sua própria previsão do tempo, só pelo formato das

nuvens e a direção delas os ilhéus sabem se vai chover. Em certa ocasião um pescador

me disse que ia chover, eu não acreditei porque estava um dia ensolarado, mas em

menos de duas horas choveu torrencialmente.

Estudos socioantropológicos sobre pescadores artesanais demonstram que o

saber-fazer diz respeito ao um conhecimento local que é reatualizado através da

experiência empírica (Adomilli, 2001, 2007). Ainda, para Cunha (2009:301) ”o

conhecimento tradicional consiste tanto ou mais em seus processos de investigação

quanto nos acervos já prontos transmitidos pelas gerações anteriores”. Já segundo

Diegues (2001:1), “conhecimento tradicional na pesca é entendido como um conjunto

de práticas cognitivas e culturais, habilidades práticas e saber-fazer transmitidos

oralmente nas comunidades de pescadores artesanais com a função de assegurar a

reprodução de seu modo de vida”.

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No caso dos construtores de embarcações da Ilha dos Marinheiros, o saber-fazer

difere um pouco do saber-fazer que foi apresentado por Adomilli (2002), visto que, não

aprenderam a técnica da construção com outros construtores, e sim as desenvolveram

por si próprios. Talvez por esse motivo sejam tão respeitados dentro da comunidade.

Os velhos pescadores-construtores de embarcação que me refiro são dois

senhores que, individualmente, através de encomenda constroem embarcações para os

pescadores e agricultores locais e de localidades adjacentes. O seu Luiz que constrói as

embarcações maiores (chalupas) e o seu Bolinha, que no inicio desta pesquisa ainda

pescava e trabalhava na construção das embarcações durante a entre safra, atualmente

não pesca mais e se dedica à construção de embarcações em tempo integral.

Quando se tornaram construtores de embarcações, eram pescadores que não

podiam pagar pela construção de suas embarcações e por isso começaram a desenvolver

uma técnica inspirada em outros construtores. Na verdade receberam algumas

orientações, mas, não aprenderam tudo o que hoje sabem e nem seguem todos os

métodos e orientações recebidas.

As embarcações construídas e utilizadas na Ilha dos Marinheiros fazem parte da

cultura material da localidade e para pensar essa questão, me apoio na reflexão do

antropólogo e arqueólogo inglês Daniel Miller (2004):

A humanidade e as relações sociais só podem se desenvolver por intermédio da

objetificação. Sujeitos são igualmente o produto de objetos e vice-versa (como exemplificado em BOURDIEU,1977). É possível que estes objetos se tornem opressivos quando são separados de nós, como sugere Marx, sob o capitalismo, ou, como sugere Simmel, quando, com o desenvolvimento do subjetivo, não podemos mais assimilá-los. Como toda cultura, a cultura material é contraditória em suas conseqüências para a humanidade, mas isso não deveria diminuir sua centralidade para a própria possibilidade de nossa humanidade. (MILLER, 2004:25).

Cultura material é um conjunto de normas e fatores que definem um

determinado grupo de pessoas que vivem em um local especifico e que de certa maneira

levam um tipo de vida mais ou menos semelhante. De forma alguma, não podemos ver

a cultura como algo estático, parado, estagnado, é algo com movimento, dinâmico que

está sempre em transformação, de modo a suprir as necessidades impostas a cada

momento. Nesse sentido a cultura material está carregada de subjetividade, pois reflete

as crenças, costumes, rituais e mitos de qualquer sociedade. Mesmo que esse reflexo se

dê em uma forma quase que imperceptível e inconsciente, estará presente nos artefatos

produzidos e reproduzidos pela sociedade, podendo ser constatado com um olhar mais

acurado.

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Numa perspectiva alóctone, inerente à subjetividade de um pesquisador

proveniente de outra contextualidade, a vida desta população parece um tanto árdua. No

entanto, através da pesquisa etnográfica, constatei uma perspectiva diferente dos ilhéus

com relação ao seu cotidiano, visto que, as atividades realizadas provêm de uma

herança cultural, na qual se orgulham muito em mantê-la. Faço tal afirmação apoiado

nas palavras de Fabio Mura, quando ele diz: “Especialmente numa perspectiva das ciências humanas, busca-se

compreender a relação entre princípios sociais e culturais e os fenômenos técnicos. Esse tipo de relação, em sendo definida a partir da atividade humana, entendida como ato de produção, leva, em muitos casos, a entender a materialização das técnicas como sendo “cultura material”, isto é, como um conjunto de objetos, que nos informariam e seriam informados por características que são, em certa medida, externas a substancia que os compõem.” Mura (2011:96).

Segundo Sahlins (2004), “o conceito de cultura é um instrumento de

discriminação – uma idéia funcional que, aliás, também pressupõe tal “cultura” como

um sistema onipotente de coerção”. É praticamente senso comum, que atualmente a

cultura de um determinado povo ou sociedade esteja dividida em cultura material e

imaterial. Neste sentido, a cultura material reflete e traduz em materialidade palpável o

conhecimento adquirido pelas gerações que o precederam. Tal sociedade produz, utiliza

e descarta essa cultura material, de modo que o objeto por si só possa contar a sua

própria história. Nesse sentido, me apoio nas palavras do arqueólogo Funari quando ele

afirma que:

“A arqueologia nada mais é que uma leitura, ainda que um tipo particular de leitura, na medida em que “o texto” sobre o qual se debruça não é composto de palavras, mas de objetos concretos, em geral mutilados e deslocados do seu local de utilização original. É impossível ignorar a subjetividade do trabalho arqueológico” Funari(2003:32)

Quanto mais recuarmos no estudo da historia da hominização, menos poderemos

contar com as fontes escritas e por esse motivo temos que nos apoiar totalmente nas

informações obtidas por meio da cultura material. Desse modo, a pré-história só é

compreendida e conhecida através dos artefatos que a arqueologia encontra e analisa,

evidenciando assim, o registro cultural deixado por civilizações extintas.

Já a cultura imaterial é tudo aquilo que não é palpável, sem materialidade. Uma

definição de cultura imaterial, e o que se constata no texto de Marshall Sahlins

(2004:28), quando ele diz, “dentro dos limites da viabilidade, tudo o que é

culturalmente necessário é que as coisas sejam suficientemente lógicas, inteligíveis, e

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comunicáveis, e que façam sentido num certo universo de significado”. Dessa forma, o

patrimônio imaterial inclui práticas, representações, brincadeiras, expressões, crenças,

causos, mitos, técnicas e conhecimentos entre outras. Acredito que a cultura imaterial é

o que realmente dá uma identidade específica para cada comunidade, de modo que suas

especificidades as distingam umas das outras tornando-as singulares, únicas.

Para abordar sobre a construção das embarcações artesanais, que são a cultura

material dos pescadores da Ilha dos Marinheiros faço aqui um paralelo entre o trabalho

dos dois construtores artesanais, seu Luiz e seu Bolinha. Com as explicações fornecidas

por ambos construtores, tive uma noção de como um painel formando pelas placas de

Grapia se comportam ao se curvar sobre o cavername (armação de madeira sobre a qual

são pregadas as taboas do fundo e das laterais), adquirindo resistência pelo ângulo

aplicado. Também pude notar que as tabuas do costado ao inclinar lateralmente forçam

o corpo a formar uma curva em seu perfil mesmo que ele tenha um corte reto, a

inclinação lateral dos costados foi projetada para que esta curva seja possível, que além

de aumentar a resistência do corpo, proporciona uma facilidade maior ao navegar.

Figura 12 Fonte: autor

Figura 13 Fonte: autor

Durante a construção das embarcações, seu Luiz utiliza cordas, arames, pilares

de tijolos ou de madeiras entre outras adaptações, dando assim a curvatura necessária

para moldar os painéis laterais, visto que, ele não domina a técnica do fogo para moldar

a madeira. Essa técnica é utilizada por carpinteiros da região de São Lourenço do Sul,

os quais na opinião de seu Luiz “são gênios” nessa arte.

Figura 14 Fonte: autor

O modelo de embarcações construídas por seu Luiz, nesse caso, são as Chalupas,

medindo 11m de comprimento por 3,9m de largura, sendo que são utilizados 2m3 de

madeira, somente para o casco. As embarcações são construídas em madeira de Grapia,

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segundo seu Luiz “é uma espécie de madeira muito resistente”. O custo para construção

de uma Chalupa gira em torno de sete mil reais e mais a mão de obra (dobrando o

valor). Também é importante levar em consideração o tempo estimado para que o

trabalho se conclua, que é de aproximadamente dois meses.

Apesar do estaleiro ser artesanal, no processo de construção das embarcações,

são utilizadas algumas ferramentas simples tais como: prensa, chave de fenda e serrote.

Com exceção de uma cerra circular portátil, as demais ferramentas são utilizadas desde

que ele entrou para o ramo de construção naval.

Já seu Bolinha, que, a exemplo do seu Luiz, também improvisa suas ferramentas

tais como cordas e arames, porém, possui uma serra convencional para cortar as

madeiras. A serra do seu Bolinha (direita), já foi comprada usada de um carpinteiro que

devido a idade deixara de construir as embarcações na Ilha dos Marinheiros, enquanto

que a serra de seu Luiz (esquerda) é uma serra de açougue adaptada para cortar madeira.

Figura 15 Fonte: autor

Com habilidade e criatividade seu Bolinha constrói embarcações, destinadas a

pescadores e agricultores da Ilha da Torotama, da Ilha do Leonídio, de São Jose do

Norte, e de toda região, além de atender a demanda local. As embarcações que seu

Bolinha constrói levam em torno de três meses para ficar pronta, pois assim como seu

Luiz, também trabalha sozinho, visto que, ninguém na localidade se interessa em

aprender o ofício. De acordo com ele, apenas um de seus filhos se arrisca a fazer

pequenos reparos nas embarcações, mas construir propriamente dito, não.

A figura abaixo mostra o quão simples são as ferramentas que ambos

construtores utilizam, e até mesmo os estaleiros são semelhantes em sua aparência e

simplicidade. Estaleiro do seu Luiz (à esquerda), e do seu Bolinha (à direita).

Figura 16 Fonte: autor

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O mais impressionante nisso tudo, é que a exemplo de seu Luiz, o seu Bolinha

também não aprendeu a construir com outros carpinteiros, foi necessário receber

algumas orientações de um antigo construtor, pois o fundo das suas embarcações era

mais trabalhoso e não ficava tão perfeito para a navegação, pois, a aero dinâmica da

embarcação dificultava a locomoção. Nesse sentido, foi preciso aprimorar seus

conhecimentos o que aperfeiçoou o resultado de suas obras.

No processo de construção das embarcações, primeiramente é montado o

cavername9, sendo que o comprimento das peças fixadas ao fundo possuem tamanhos

diferentes, bem como as laterais. No centro da embarcação as peças do fundo são

maiores, o que torna mais larga a embarcação nessa parte, e as peças das laterais são

menores. Já na popa (parte traseira) o fundo diminui levemente e as laterais aumentam,

e na Proa (parte da frente) as laterais aumentam e o fundo diminui acentuadamente de

modo que as laterais se encontrem, e para obter maior altura na proa é colocado uma

nesga de madeira na parte inferior do barco.

Fonte: autor

Seu Bolinha constrói três diferentes tipos de barcos, que são: botes, bateiras e

caícos. Os botes apresentam uma estrutura de madeira denominada carvername, sobre o

qual são fixadas externamente as tábuas que se moldam a referida estrutura. O fundo

dos botes são bolhados (expressão local), isto é, possuem forma de “V” porém com

ângulos bem abertos. Nesse sentido, as embarcações são maiores (entre 6 e 8 metros de

comprimento) e, portanto mais pesadas. Externamente, essas embarcações possuem a

quilha, que consistem em uma madeira longitudinal que se estende da proa popa na qual

são fixados o cavername (transversalmente), esse dispositivo serve para evitar que a

embarcação se enterre no fundo da lagoa e para dar mais estabilidade durante a

navegação.

As bateiras são pequenas embarcações (entre 3 a 5,5m), as quais são desprovidas

de cavername, o fundo é totalmente plano (fundo chato como os pescadores dizem) e

nas laterais não existem qualquer tipo de armação. As laterais são pregadas ao fundo

sendo curvadas até que se encontrem na proa, já na popa, as laterais ficam distantes

cerca de 50cm. sendo que é nesse espaço que é colocado o motor.

9 Armação de madeira na qual são pregadas as laterais.

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Já o caíco, é um mesclado de bote e de bateira, pois possuí cavername assim

como o bote, no entanto o fundo não é tão chato tal qual o da bateira. No caíco existe

um desnível de cerca de três centímetros do centro para as laterais. Visualmente o caíco

se parece mais com bote, porém, tem o comprimento da bateira.

Em alguns casos os botes e caícos podem ser empaneradas, isto é, receber um

assoalho removível encaixado sobre o cavername no fundo da embarcação, o que

permite que o pescador consiga melhor se locomover dentro do barco. A bateira é o

único tipo de embarcação que não necessita ser empanerada pois possuí o fundo

totalmente reto onde a armação é inexistente, o que não atrapalha a locomoção dentro

do barco.

Após fixar as laterais do costado no cavername, a embarcação é emborcada e é

totalmente repregada. Nesse momento é colocado o fecho, isto é, uma tábua

longitudinal (central) que vai da proa a popa unindo os dois lados do fundo. Depois de

concluir essa etapa do trabalho, o barco está praticamente pronto, falta apenas pregar o

bordugue também chamado de vordugue (sarrafo arredondado nos dois cantos nos quais

tem contato com a tábua lateral). O bordugue tem como finalidade principal dar o

acabamento nas bordas das embarcações.

Os caícos construídos pelo seu Bolinha custam em torno de dois mil e trezentos

reais e são destinados à pesca, mas também são utilizados no transporte de legumes

cultivados na Ilha e comercializados na central de hortifrutigranjeiros localizado no

centro da cidade do Rio Grande. Em lugares em que o turismo é desenvolvido, tais

embarcações podem ser utilizadas para passeio, visto que apresentam grande

diversidade quanto a seu emprego.

Apesar de serem construções artesanais, atualmente todas as embarcações já

saem motorizadas do estaleiro, porém mantém o dispositivo que permite a embarcação

navegar utilizando a vela. Tais embarcações se deslocam com suavidade, pois possuem

cascos levemente achatados, fazendo com que os caícos sejam considerados excelentes

meios de transporte em águas rasas.

Cada peça de madeira que compõe a embarcação possuí um nome especifico e é

de domínio de todos os pescadores. Por exemplo, o traquete é um buraco circular

localizado no primeiro banco (proa) e também em uma madeira fixada ao fundo, no

caso dos caícos e bateiras. As vezes o traquete se localiza no segundo banco no caso dos

botes maiores, caso contrário, também localiza-se no primeiro banco. A finalidade do

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traquete é fixar o mastro, que consiste em uma haste de madeira vertical à embarcação,

no qual é hasteada a vela, popularmente chamada de pano.

Fonte: autor

Na figura acima além do traquete também vemos o beque, que consiste em um

sarrafo vertical situado na proa, através do qual a embarcação é amarrada à baliza, nesse

caso está amarrada ao cais.

Outra peça importante das embarcações é o tafulho, que é uma divisória vertical

localizada em baixo do banco (figura acima), e que tem como função criar espaços

separados dentro das embarcações. Por exemplo, em uma parte da embarcação pode ser

colocado redes enquanto que na outra pode ser colocado o produto da pesca, seja tainha,

camarão, siri ou qualquer outra espécie que esteja sendo capturada.

Embora o tafulho esteja também presente nos botes, é nos caícos e bateira que se

percebe sua verdadeira utilidade, visto que estes últimos servem para armazenar e

transportar o pescado e as redes, enquanto que o primeiro, normalmente, é utilizado

como um espaço onde somente os pescadores freqüentam. No bote é que o pescador faz

suas refeições e dorme enquanto espera que os peixes se malhem nas redes.

Dependendo das condições financeiras do pescador, às vezes ele sai para pescar abordo

de um bote e leva no rabicho (à reboque), até duas embarcações menores (caícos e

bateiras), outras vezes apenas um caíco ou uma bateira é o suficiente.

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Fonte: autor

Os bancos são fundamentais para a firmeza das embarcações, visto que eles, não

permitem as laterais do costado ceder separadamente, e por esse motivo, alguns

pescadores optam por barcos em que apenas o banco central é removível e os outros

fixos à embarcação.

Os pescadores da Ilha dos Marinheiros não utilizam a expressão âncora, e sim,

ferro ou garatéia, na verdade, tem a mesma função da âncora, mas tem um formato

diferente. A garatéia e composta por “quatro unhas” (expressão nativa), e de qualquer

lado que caia no fundo da lagoa, sempre duas delas se enterrarão, cumprindo a função

de fundear a embarcação em determinado local.

Fonte: autor

Após a embarcação estar totalmente construída é feito o leme que encaixado

externamente no barco, essa peça é extremamente importante pois é ela dá a direção ao

barco. Encaixado ao leme vai a cana de leme que é uma madeira a qual possui um corte

retangular central em uma das pontas, e na outra ponta a madeira é arredondada de

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modo a facilitar o seu manuseio, de modo que, a embarcação anda para o lado oposto ao

que a cana de leme aponta. Para navegar utilizando esse tipo de sistema não é necessário

que a embarcação seja motorizada, pode ser à pano.

Fonte: autor

Finalizado o trabalho do construtor, a embarcação é entregue ao proprietário,

que é responsável por pintar, dar um nome, e registrá-la, junto a Capitânia dos Portos. O

nome dado a embarcação está relacionado a homenagens que os pescadores prestam ao

seu time de futebol favorito, ao santo de devoção ou ainda a uma pessoa querida. A

figura abaixo mostra uma homenagem que o neto de seu Bolinha quis prestar aos avós.

Figura 17 Fonte: autor

Anteriormente, uma bateira havia recebido o nome de Vó Olga, depois de algum

tempo, seu Bolinha construiu um bote para o seu uso pessoal e novamente o neto disse

que já tem a Vó Olga, agora tem que dar o nome de Vô Bolinha. Quem recebe uma

homenagem dessas fica extremamente satisfeita, visto que é uma afirmação de carinho e

respeito perante toda comunidade.

Os jovens da Ilha dos Marinheiros, atualmente estão sendo mais estimulados a

estudar do que a seguir o ofício de seus pais, seja na agricultura ou até mesmo na pesca,

e é talvez por isso que não existam interessados em aprender a arte da construção naval

artesanal. Nesse sentido, a construção naval artesanal corre o risco de se tornar mais

uma profissão extinta.

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Para proteger quimicamente a embarcação e deixar com uma aparência bonita, é

necessário a utilização de tintas, sendo que a técnica utilizada para pintar as faixas ou

escrever o nome das embarcações consiste em fazer a demarcação do espaço a ser

preenchido com determinada cor utilizando preguinhos e pedaços de linhas de pesca.

Tais contornos servem para que o pincel não ultrapasse o espaço demarcado e para que

a tinta não escorra, pois é escrito verticalmente.

Diferentemente do que observou Colaço (2012:34), em seu estudo etnográfico

realizado no assentamento de pescadores denominado Ponta Grossa dos Fidalgos, onde

os barcos em sua maioria são pintados de verde-escuro, já que, esta cor serve como

camuflagem para que as embarcações sejam confundidas com a vasta vegetação

lacustre, na Ilha dos Marinheiros, os barcos são pintados externamente de variadas

cores, porém, todas as embarcações possuem a parte interna pintadas com uma solução

constituída basicamente de óleo, o que possibilita proteger e impermeabilizar por um

preço mais acessível, essa solução possui uma coloração avermelhada. Já o fundo

(externo) e uma estreita barra próxima também possuem uma cor avermelhada, visto

que, nesses locais é utilizado um produto, conhecido localmente como “veneno”, o qual

impede o acumulo de sujeira e craca. O referido produto custa em torno de $100,00 a

lata e são necessário duas para cada embarcação.

De acordo com Morisson (2003:128) “Tecer redes de pesca, um trabalho

realizado por homens e mulheres. Os ilhéus aproveitam a época entressafra para fazer as

redes. È uma maneira de aumentar a renda familiar”.Assim como as embarcações, as

redes também são confeccionadas por encomendas ou restauradas na própria localidade,

normalmente este trabalho é realizado por um pescador aposentado. De acordo com

Colaço (2012:38), além da pequena remuneração, o trabalho com as redes permite a

permanência no universo da pescaria e reafirma constantemente a identidade de

pescador perante o grupo. Isto ocorre tanto na Ilha dos Marinheiros quanto no

assentamento de Ponta Grossa dos Fidalgos.

Portanto, eu me questiono se o Pólo Naval realmente começou aqui na região em

2005 com a chegada dos primeiros grandes investimentos na construção marítima ou se

já existia. Visto que a cidade do Rio Grande, bem como suas ilhas e arredores estão

povoadas de embarcações construídas por diferentes pessoas, muitas delas descendentes

de portugueses, os quais foram os primeiros colonizadores da região, que como se sabe,

desde tempos remotos dominam a arte da navegação. Digo isso, com base em Morisson

(2003:35)

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“Desde 1501 os navegadores portugueses já passavam nestas costas, mas somente em 1532 é que Pero Lopes de Souza, à procura de uma nau desgarrada da frota de seu irmão Martin Afonso de Souza, descobriu a barra do Rio Grande. Velejou próximo à costa e encontrou aquilo que parecia um rio caudaloso e que deu o nome de Rio de São Pedro e que Gaspar de Veigas colocou no mapa um ano depois”.

Bem no final dessa pesquisa descobri seu Francisco, este na verdade constrói as

habitações de madeira que são forradas de latas, sendo pescador e também carpinteiro,

possuí uma relação muito íntima com as embarcações. Por esse motivo, tendo a

necessidade de uma embarcação e com tantos modelos à volta ele mesmo construiu seu

caíco. Apesar de gostar de construir casas de madeira, até hoje ele construiu dois barcos,

um para seu próprio uso e outro para um amigo, e mesmo não sendo um construtor de

embarcações, é um pescador construindo seu barco, transferindo toda a carga simbólica,

subjetividade e percepção para o artefato.

2.2. As casas de lata

Que a população da Ilha dos Marinheiros é extremamente criativa, disso

ninguém duvida, com os materiais mais simples eles tem ao alcance das mãos, eles

conseguem resolver problemas que lhes causam transtornos. Um exemplo disso são as

ressemantizaçoes das latas utilizada na cobertura das paredes das edificações.

De acordo com Andrés Zarankin, autor de um estudo sobre a arquitetura dos

bancos na Argentina, a firma que

“los edifícios son objetos sociales. Como tales, están cargados de valores y sentidos particulares. Las construcciones no son um reflejo pasivo de la sociedad. Por el contrario, participan activamente en la formación de personas. Esta construcción de subjetividades se encuentra estrechamente asociada al hecho de que la arquitetura denota uma ideologia, y pose ela particularidad de volverla “real” al transformarla en una estructura material (Zarankin 2008:326).”

Podemos notar que essa participação ativa exercida na formação das pessoas,

pelos objetos sociais, que são os edifícios, os quais estão carregados de valores e

sentidos particulares de que fala Zarankin. Esse mesmo fenômeno ocorre também na

Ilha dos Marinheiros, com as suas construções forradas de lata. Não importa se são

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verdadeiras fortalezas como é o caso dos bancos na Argentina ou se humildes casas de

pescadores desprovidos financeiramente.

Todas essas edificações estão carregadas de sentimentos e valores simbólicos.

Os quais aparecem claramente no momento em que os ilhéus explicam como resolvem

determinados problemas. Segundo informações recebidas em campo, antes do uso da

técnica de forrar as habitações com latas as casas eram construídas em madeira e as

entre as taboas sempre ficava uma fresta, pela qual entravam partículas de areia e vento,

já que o local é constantemente assolado pelo vento, a solução encontrada foi a

utilização de um sarrafo mata-junta, colocado sobre as duas taboas, de modo que este

tapasse as frestas.

Ainda assim, o problema das intempéries e dos cupins persistia, e então, os

sarrafos mata-juntas passaram a ser retirados e passou-se a utilizar latas de óleo que

eram abertas e fixadas na parede. As latas são fixadas de baixo para cima de modo que

fiquem sobrepostas as superiores sobre as inferiores.

Outra vantagem da utilização das latas, é o gasto com tinta, mesmo que as latas

devam ser pintadas anualmente ou pelo menos receber uma camada de óleo, o gasto é

menor do que se fosse pintar a madeira, visto que a madeira absorve uma certa

quantidade de tinta. No entanto, ainda que a casa receba o revestimento de lata, a

madeira deve receber antes, interna e externamente, um tratamento a base de óleo diesel

para evitar que os cupins se alojem nas taboas e posteriormente prega-se as latas.

entretanto, com o passar do tempo os cupins acabam achando um jeito de se fixar na

madeira.

Segundo Melo, que desenvolveu um estudo na Ilha dos Marinheiros, no qual

identificou 121 exemplares e mapeou 105 residências forradas de lata ao redor da Ilha: “... a utilização de materiais leves para construção, na Ilha dos Marinheiros, deve-se ao seu isolamento geográfico, uma vez que a ponte que a liga ao continente só foi concluída em 2004. Até este momento as embarcações eram o único meio de transporte disponível e todo o material de construção tinha que enfrentar estas limitações. Os interlocutores assinalam este como um condicionante importante para a proliferação de edificações de madeira, uma vez que a população, eminentemente vinculada à produção agrícola e pesqueira, além de possuir posses restritas, não dispunha de tempo para investir em edificações de alvenaria. Uma vez consagrada a utilização da madeira, a descoberta das qualidades de forrá-la com lata foi uma descoberta conveniente, já que este material é ainda mais leve que o até então utilizado. Provavelmente estes fatores, associados ao baixo custo das latas, já que algumas eram reaproveitadas, contribuíram para que a técnica fosse amplamente disseminada pela Ilha”. Melo (2011:10)

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A utilização das chapas metálicas dá uma durabilidade maior às habitações, de

acordo com seu Alberto Miranda, que mora em uma casa revestida com lata na

localidade da Marambaia na Ilha dos Marinheiros, esse tipo de forração permite que a

casa dure em torno de três vezes mais do que duraria se não fosse forrada. Entretanto,

seu Miranda ratifica que é imprescindível que se faça a manutenção com óleo diesel ou

tinta anualmente e se por acaso as latas estragarem é só revestir novamente e a casa

ficará nova outra vez.

Figura 18 Fonte: autor

Já o seu Bolinha, o construtor de embarcações, também mora numa casa forrada

de cunhete (chapas de latas), ele atribui a durabilidade de sua casa ao fato de te-la

construída em madeira de pinho de meia polegada, espessura que segundo ele não se

encontra mais no mercado e também porque logo após a construção ela recebeu um

tratamento a base de óleo diesel e água o qual foi aplicado com uma maquina de

pulverizar veneno nas plantações, desse modo, a casa foi inteira banhada com essa

solução, com a finalidade de evitar a infestação de cupins nas madeiras e para que

absorvesse menos tinta.

Segundo seu Bolinha, a casa dele tem em torno de 30 ou 40 anos, no entanto, o

revestimento em chapas metálicas é recente, pois quando construiu a casa, as frestas

entre as taboas eram vedadas por meio de sarrafos mata-juntas, e só bem depois é que

recebeu o revestimento atual.

Figura 19 Fonte: autor

A utilização de madeiras forradas com latas em edificações na Ilha dos

Marinheiros se difundiu por vários motivos, mas predominantemente pelo isolamento

térmico e pela viabilidade do transporte do material que era realizado por meio de

embarcações pequenas devido ao calado da lagoa. Nesse sentido, era mais fácil

transportar madeira do que tijolos para construção em alvenaria.

O outro fator que influenciou para que as construções das casas de madeira se

difundissem, foi o econômico, visto que construir uma casa em madeira era mais barato

do que construir em alvenaria. Com a construção da ponte de acesso à Ilha dos

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Marinheiros em 2004, ponte essa que estava sendo cogitada desde 1849 e aprovada pela

primeira vez em 30 de setembro de 1853 Morisson (2003:44), o transporte de materiais

de construção ficou facilitado e atualmente, algumas casas estão sendo construídas em

alvenaria visto que, a manutenção também é mais fácil. No entanto, a construção de

casas de madeiras forradas de latas ainda é uma tendência na arquitetura da Ilha dos

Marinheiros.

A criatividade dos ilhéus não se restringe apenas às casas, chega também ao

quintal. Pessoas que não tem gramado ao redor de suas residências fazem uma espécie

de tapete vegetal, utilizando macega (o mesmo capim que é utilizado na cobertura de

residências em outras localidades) para cobrir o terreno arenoso, visto que a areia solta é

facilmente transportada para dentro das residências, tanto pelo vento quanto pelos

calçados. Na figura abaixo vemos como a macega é transportada para Ilha (esquerda) e

como fica ao ser espalhada no quintal (direita).

Figura 20 Fonte: autor

2.3. Agricultura e pesca: articulações e recriações locais da técnica e da

tecnologia

Por ser uma comunidade predominantemente de pescadores e agricultores,

constatamos que vários objetos que são ligados à pesca são utilizados também na

agricultura, por exemplo, uma rede de pesca, quando não existe mais a possibilidade de

ser remendada torna-se uma cerca, de modo que esta proteja as plantações da ação

destrutiva dos animais.

De acordo com Magni (2006:74-75), “o objeto é frequentemente

ressemantizado, ganhando novos significados, na tentativa de executar as atividades

domésticas com os recursos encontrados na rua”. É importante salientar que Magni

pesquisou a cultura material dos moradores de rua em Porto Alegre, segundo esse

estudo uma lata pode servir para levar água para o acampamento, em outro momento

serve para transportar outros objetos dentro, cozinhar e até mesmo fazer fogo dentro

dessa lata.

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Já Henry Glassie, remonta toda a história de um tapete utilizado pelos

muçulmanos durante suas orações. O tapete foi confeccionado por uma menina

marroquina chamada Aysel, e após, vendido para um lojista, o mesmo, enquanto não o

revendia, utilizou-o com o propósito para o qual foi concebido. Depois de algum tempo

esse tapete foi vendido à uma turista alemã que utilizou para ornar sua residência, era

uma lembrança de viagem, que fez parte da infância de seu filho, este quando herdou o

tapete, decorou a parede do seu consultório, pois lembrava sua mãe, e o acompanhou até

à velhice. Já o neto da turista, encontrou o tapete roto e utilizou-o para forrar a cama do

cão, passado alguns anos, o bisneto descarta o tapete que fica à espera dos arqueólogos.

Nessa pequena síntese da “vida do tapete” vemos diversas re-signicações para um

mesmo objeto, que com o passar do tempo e mudar de dono, foi assumindo várias

funções.

A cultura material possui multifuncionalidade, e nesse sentido, através desses

dois textos acima observei que o mesmo ocorre na Ilha dos Marinheiros, se um

determinado objeto for re-significado, em um momento, um frasco que originalmente

era de um outro produto liquido serve para levar combustível para o motor do barco, em

outro momento o frasco é cortado tornando-se um batedor que é utilizado para retirar o

excesso d’água que se acumula no fundo das embarcações.

Figura 21 Fonte: autor

Originalmente os batedores eram construídos em madeira e possuíam uma

aparência semelhante a uma pá de lixo doméstica. Segundo o seu Joaquim, esses

batedores antigos não são mais utilizados devido à praticidade de fazer batedores

plásticos, que são mais leve e não encharcam como ocorria com os batedores de

madeira. Além disso, os batedores feitos de galão se moldam ao fundo da embarcação

otimizando o trabalho de retirada da água.

Os batedores desempenham multifuncionalidades dentro da embarcação,

retirando-se a tampa, o batedor torna-se um funil por meio do qual é colocado

combustível no tanque do motor. Outra utilidade dos batedores é juntar camarões e siris

depositados soltos no fundo das embarcações, já que é difícil juntar com as mão

principalmente os siris, pois eles atacam utilizando as garras. Os batedores também são

utilizados para atacar o vento para o pescador acender o cigarro.

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Um outro exemplo de re-significação é o que observamos no relato do seu Elmo,

ele conta que quando era adolescente foi com seu pai e seu irmão pescar e que veio um

temporal e o pai dele disse “vamos virar o caíco pequeno porque vem muita e muita

água e é o caíco pequeno que vai nos salvar”. E assim, ficaram embaixo do caíco

emborcado. Ao emborcar o caíco, esse foi utilizado de outra maneira que não é a forma

utilizada normalmente.

Na figura abaixo pode-se constatar que a mesma corda que é utilizada para

sustentar as bóias e os pesos nas redes de pesca, em outro momento pode ser re-

significada e tornar-se, por exemplo, uma porteira. Nesse sentido, para e Laraia

(2009:49), fundamentado nas idéias de Kroeber (1949), toda experiência histórica das

gerações anteriores resulta na cultura como um processo acumulativo de conhecimento.

E por isso, que na Ilha dos Marinheiros, encontramos tantos objetos de pesca sendo re-

significados na agricultura e na criação de animais.

Figura21 Fonte: autor

Também é possível constatar que as cordas de redes de traineiras (barco de pesca

que exerce sua atividade em alto mar) viram peças de decoração para jardins (esquerda)

e até mesmo para as lavouras (direita).

Figura 22 Fonte: autor

Os moradores da Ilha dos Marinheiros utilizam as redes que não tem mais

utilidade na pesca de várias outras maneiras, como por exemplo, na construção de

galinheiros (esquerda), ou para cercar quadras de futebol, lembro-me de ter visto uma

quadra de futebol cercada com redes na localidade de Fundos da Ilha, no entanto essa

fotografia foi capturada na localidade do Porto do Rei (direita).

Figura 23 Fonte: autor

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Por ser uma comunidade mista de pescadores artesanais e agricultores, os

artefatos que foram concebidos para pesca são amplamente utilizados na agricultura.

Nesse sentido, os agricultores fazem isto muitas vezes até sem perceber que o objeto

não foi concebido com essa finalidade. Um bom exemplo dessa re-significação está em

um viveiro de mudas, construído utilizando uma rede de pescar camarão, essa proteção

serve para evitar que os pássaros consumam as sementes em fase inicial de germinação,

fase esta muito apreciadas pelas aves.

Figura25 Fonte: autor

Já as redes de pescar tainhas ou corvinas são utilizadas como proteção das

árvores frutíferas, de modo que, os pássaros não consumam os frutos. No entanto,

também podem serem utilizadas redes de pescar camarão. Nas árvores de grande porte é

apenas jogado a rede para cobrir as árvores, já nas árvores de pequeno porte é fincado

algumas estacas ao redor de modo que a rede fique apoiada nas taquaras e não faça peso

para árvore.

Figura 26 Fonte: autor

Rede de tainhas ou corvinas também servem para que os pés de ervilhas e do

feijão da trepa se entrelacem na rede para subir, isto é muito importante para que as

plantas recebam ventilação por baixo, promovendo um melhor desenvolvimento das

vagens.

De acordo com seu João, (filho de seu Mário) a pesca depende muito mais da

sorte do que a agricultura, visto que, a agricultura possibilita uma programação, isto é,

se a estiagem está se prolongando tem como providenciar que as plantas recebam

irrigação, se há eminência de enchente é possível construir diques de modo que os

efeitos sejam mitigados. Já na pesca, o pescador vai para o mar, se não tem sorte de

pescar tem que voltar para casa “de mãos abanando” pois não tem como prever como

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será a pescaria, isso sem falar em casos de acidentes fatais que ocorrem na pesca e que

na agricultura os riscos são infinitamente menores.

Na localidade da Marambaia, encontrei um caíco que se encontrava atracado em

um valo (também conhecido localmente como valeta ou sanga), bem no centro de uma

horta, parei e me apresentei ao proprietário que naquele momento estava trabalhando a

terra. Seu Germano Dias (Polaco), aos 75 anos de idade, pescador aposentado, além de

plantar hortaliças para o próprio consumo e arvores frutíferas as quais ele mesmo faz os

enxertos, ainda cultiva chás que são comercializados em uma banca na Praça

Tamandaré, em Rio Grande. Segundo seu Polaco é muito divertido trazer os chás para

vender, pois após os entregar na banca ele passa o resto da tarde jogando damas com os

“véios” na Praça.

Os referidos valos consistem em um canal principal ligado a Lagoa dos Patos e

vários outros paralelos ou perpendiculares. Todos os canais são interligados entre si por

meio de tubos de PVC de 100 mm. tampados com uma espécie de rolha de madeira com

a finalidade controlar o nível da água dentro das propriedades.

Se existe a possibilidade da Lagoa encher muito o agricultor pode tampar o tubo

no canal principal e não permitir que a água encha os canais secundários, com isso o

agricultor tem o controle total do nível da água na lavoura. Se há previsão de uma

estiagem o agricultor deixa que os canais se encham na primeira oportunidade e coloca

os tampões. Esses canais servem também como reservatório d’água para colocar

diretamente no pé das plantas, isso no caso de uma estiagem muito prolongada.

Na figura abaixo (esquerda) seu Polaco está mostrando como funciona a rolha, e

(direita), é possível visualizar que existe um tubo situado bem embaixo do tronco da

árvore, e no canal do outro lado, apesar do canal estar vegetado ainda se consegue ver

que o nível da água está mais alto.

Figura 27 Fonte: autor

Os valos possuem multifuncionalidade, como já foi dito, controlar o nível da

água, a terra que é retirada para abrir o canal serve para levantar o nível dos canteiros,

visto que nessa parte da Ilha o nível da terra é muito baixo. Mas sobretudo, os valos

servem para que as embarcações fiquem próximas às residências dos pescadores, visto

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que, os caícos tem sido alvos de constantes furtos, pois possuem um substancial valor

econômico (em torno de $ 2.500,00). De acordo com seu Polaco, só é preciso que o

caíco seja novamente pintado para que jamais seja reconhecido e além disso, receber um

novo registro na capitânia.

O furto de embarcações atracadas nos valos torna-se mais difícil, pois elas

geralmente encontram-se no seco, já que as rolhas que vedam os tubos geralmente estão

escondidas na vegetação e só quem sabe onde elas se localizam conseguem remover os

caícos do local. A figura abaixo, (esquerda) mostra a embarcação praticamente no seco,

já a (direita) mostra que a embarcação começa a flutuar depois de alguns segundos sem

a rolha no tubo.

Figura 28 Fonte: autor

Apesar de todo esse conhecimento que os ilhéus possuem sobre a agricultura e a

pesca a maioria dos jovens preferem deixar a Ilha em busca de melhores oportunidades

de emprego e renda, devido ao baixo preço que recebem por seus produtos e também

pelas condições de trabalho. O que se percebe na ilha é que atualmente os jovens tem se

dedicado mais aos estudos e vários deles estão fazendo graduação com objetivo de não

seguir a profissão dos pais. Nesse sentido, as terras que antes produziam alimentos,

começam a passar para as mãos de pessoas que não tem o menor interesse em cultivá-

las.

Entretanto, existem pessoas que sequer cogitam a possibilidade de sair da Ilha ou

de trabalhar em outro ramo, que não seja agricultura ou pesca. Porém, algumas

mulheres da Ilha já foram obrigadas à trabalhar como empregada doméstica, tanto no

centro da cidade do Rio Grande quanto no Cassino, isso, em uma época que os

pescadores não recebiam o seguro defeso durante a entre-safra.

Mesmo nas propriedades onde são cultivadas as hortaliças destinadas ao

comércio apresentam características inerentes a toda Ilha, que é a ausência de muros,

arames ou cercas de delimitação das propriedades, até mesmo as que dão acesso à

estrada. Esse predicado é típico de locais que ainda preservam um modo de vida

diferente daqueles encontrados nos grandes centros urbanos e em regiões periféricas,

que são constantemente assolados pelos altos índices de criminalidade.

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Figura 29 Fonte: autor

Prova disso, é que na Ilha dos Marinheiros não existe sequer um posto policial.

porém, devido a disseminação das drogas, principalmente, com a chegada do Crack a

nossa cidade já há registro de ilhéus que se tornaram usuários e por isso há a ocorrência

de pequenos furtos realizados pelos “vagabundinhos” como os próprios moradores se

referem à determinadas pessoas. Haja vista, que toda comunidade sabe quem são os

meliantes, e mesmo com a desagradável presença de pessoas que causam transtorno aos

demais ilhéus, a comunidade segue seu ritmo tranqüilo.

De acordo com Mura (2011:105), “uma tecnologia não é, portanto uma

concatenação de técnicas: ela é um design na mente de um indivíduo, algo considerado

externo à causalidade material”. Por esse motivo as formas de apropriação dos objetos e

sua re-significação por parte dos insulares residentes na Ilha dos Marinheiros deve ser

mantida, pois essa materialidade é a tradução da mente dessa população.

Considerações Finais

Esta etnografia teve como objetivo entender a vida dos moradores da Ilha dos

Marinheiros, incluindo seus costumes, sua religião, as práticas de trabalho tanto na

pesca quanto na agricultura, além da relação intima que os insulares mantêm com as

embarcações, as quais, para eles, representam bem mais que simples meio de transporte

ou fonte de renda.

Faz parte desse entendimento saber como procede a re-significação dos objetos

utilizados na confecção das embarcações, tais como a serra de açougue adaptada para

cortar madeiras, as cordas, os arames e demais objetos re-semantizados na fase de

construção dos barcos, bem como compreender como se dá o reaproveitamento da

cultura material da pesca de forma consciente ou inconsciente pela agricultura, visto que

muitas vezes os agricultores se utilizam de determinados objetos sem perceber que tais

objetos foram concebidos, originalmente, para a pesca.

Chamou-me a atenção a forma como os insulares resolvem os problemas que se

apresentam no dia-a-dia, como por exemplo, forrando as habitações com latas ou o chão

com macegas, para dificultar a infestação de cupins nas casas de madeiras ou que os

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pisos fiquem sujos de areia. Nesse sentido, as latas e as macegas possuem um caráter

multifuncional.

Assim como o saber-fazer, o saber re-significar faz parte da cultura local, pois o

“isolamento geográfico” e a dificuldade de obter determinados materiais, até mesmo por

questões financeiras, fez com que os ilhéus desenvolvessem a habilidade criativa para

suprir necessidades com outros objetos que eles têm ao alcance da mão.

Percebi que as relações de amizade e de camaradagem são reafirmadas

constantemente, com ações simples, como por exemplo, pelo peixe que o pescador dá

ao agricultor e pelos legumes que ganha. Isso não se configura uma troca propriamente

dita, pois se o produto de uma das partes estiver escasso, não significa que ficará sem o

produto que a outra parte tem em abundância, e tampouco, ficará devendo. Outra

maneira de fortalecer as relações sociais, é prestar solidariedade aos parentes e amigos

na hora em que alguém está doente, e/ou precisando de qualquer tipo de ajuda.

Objetivei deixar um relato escrito sobre as histórias dos insulares, desde a forma

como os construtores de embarcações executam seu trabalho, até a forma como os

ilhéus estabelecem e cultivam suas relações sociais, e dessa forma, preservar historias

que estão se perdendo pois até então só eram transmitidas através da oralidade, isto é,

não existia nada escrito que pudesse servir de base para outros pesquisadores.

Admito que exista uma grande quantidade de materiais escritos sobre a Ilha dos

Marinheiros, até porque suas características naturais e culturais atraem diversos

pesquisadores, principalmente da FURG e da UFPel. O diferencial deste ensaio

etnográfico apresentado em forma de monografia está em abordar as temáticas

relacionadas à cultura material, ao saber-fazer local e a re-significação de objetos.

Este trabalho não tem a pretensão de dar por esgotada a discussão sobre as

temáticas aqui apontadas, mas sim estimular novos trabalhos, pois muito temos a

apreender com as populações tradicionais, que ao longo de anos de existência

acumulam o conhecimento por meio de atividades empíricas. É com base nesse

princípio que pretendo dar continuidade futuramente, por ocasião do mestrado, na

pesquisa etnográfica.

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