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- Revista dos Alunos do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião - UFJF O Desafio da Recepção Bíblica na Modernidade Tardia The Challenge of Biblical Reception in Late Modernity Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek 1 [email protected] Resumo: O objetivo deste texto é compreender, a partir de Auerbach, o realismo da literatura bíblica e sua relação com a recepção bíblica no contexto da modernidade tardia. Buscar- se-á compreender a partir do pensamento de Erich Auerbach o lugar da recepção bíblica em ambiente avesso a um texto carregado de uma pretensão de autoridade. Trata-se de um trabalho fronteiriço, pois além por tratar da hermenêutica bíblica num conceitual filosófico, a problemática da recepção bíblica hodierna aponta para um desafio religioso para o cristianismo, uma vez que ele não prescinde do seu livro sagrado. Nele, a comunicação sempre foi indireta, pela Palavra. Palavras-Chave: Hermenêutica; Auerbach; Recepção; Figura; Mimesis Abstract: The purpose of this text is to comprehend, from Auerbach, the reality of Biblical literature and its relationship with biblical reception, in the context of late modernity. We will search to understand from Erick Auerbach’s reasoning the place of biblical reception on an environment that is not prone to a text loaded with an authority pretension. This is a borderline work, because besides dealing with the biblical hermeneutic on a philosophical concept, the problem of the hodiern biblical reception points to a religious challenge for Christianity, as it does not prescind its Holy Book. In it, the communication has always been indirect, by the Word. Keywords: Hermeneutics; Auerbach; Reception; Figure; Mimesis Introdução Que tipo de abertura pode existir para o sagrado num contexto cultural que procurou eliminar no final do século XIX tudo aquilo que não cabia dentro de um positivismo científico? Como falar do sagrado a uma sociedade que ora não o reconhece ou desconhece, ora o despreza? Ao abordar a questão da recepção bíblica na modernidade tardia, entra-se na invasão do sagrado na vida humana. O que era antes uma dimensão pelo advento da modernidade se tornou invasivo. De fato houve uma tentativa de expurgo da religiosidade. Charles Eliot (Eliot, 1909, p. 391) apregoava no início do século passado que os aspectos não explicáveis do 1 Aluno do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF.

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  • - Revista dos Alunos do Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio - UFJF

    O Desafio da Recepo Bblica na Modernidade Tardia

    The Challenge of Biblical Reception in Late Modernity

    Srgio Ricardo Gonalves Dusilek1 [email protected]

    Resumo:

    O objetivo deste texto compreender, a partir de Auerbach, o realismo da literatura bblica e sua relao com a recepo bblica no contexto da modernidade tardia. Buscar-se- compreender a partir do pensamento de Erich Auerbach o lugar da recepo bblica em ambiente avesso a um texto carregado de uma pretenso de autoridade. Trata-se de um trabalho fronteirio, pois alm por tratar da hermenutica bblica num conceitual filosfico, a problemtica da recepo bblica hodierna aponta para um desafio religioso para o cristianismo, uma vez que ele no prescinde do seu livro sagrado. Nele, a comunicao sempre foi indireta, pela Palavra. Palavras-Chave: Hermenutica; Auerbach; Recepo; Figura; Mimesis

    Abstract: The purpose of this text is to comprehend, from Auerbach, the reality of Biblical literature and its relationship with biblical reception, in the context of late modernity. We will search to understand from Erick Auerbachs reasoning the place of biblical reception on an environment that is not prone to a text loaded with an authority pretension. This is a borderline work, because besides dealing with the biblical hermeneutic on a philosophical concept, the problem of the hodiern biblical reception points to a religious challenge for Christianity, as it does not prescind its Holy Book. In it, the communication has always been indirect, by the Word. Keywords: Hermeneutics; Auerbach; Reception; Figure; Mimesis

    Introduo

    Que tipo de abertura pode existir para o sagrado num contexto cultural que

    procurou eliminar no final do sculo XIX tudo aquilo que no cabia dentro de um

    positivismo cientfico? Como falar do sagrado a uma sociedade que ora no o reconhece

    ou desconhece, ora o despreza? Ao abordar a questo da recepo bblica na

    modernidade tardia, entra-se na invaso do sagrado na vida humana. O que era antes

    uma dimenso pelo advento da modernidade se tornou invasivo.

    De fato houve uma tentativa de expurgo da religiosidade. Charles Eliot (Eliot,

    1909, p. 391) apregoava no incio do sculo passado que os aspectos no explicveis do

    1 Aluno do Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio da UFJF.

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    fenmeno religioso seriam plenamente compreendidos em algum momento futuro e

    que, portanto, a religio se traduziria no bem-estar humano. A privatizao da vida

    deveria ser traduzida em atitude solidria para com o outro, tanto que os mdicos

    seriam os ministros dessa nova religio (Eliot, 1909, p. 399). Mas, essa mesma postura

    de absolutizao da esfera individual promoveria uma crnica ausncia de dilogo e

    uma ruptura com todo tipo de heteronomia. Eliot falava de uma espcie de religio sem

    religiosos, ou ainda da manuteno viva dos melhores ideais e valores sem a

    permanncia da estrutura religiosa por detrs lhes conferindo ora vigor, ora fraqueza.

    Karen Armstrong por sua vez assinala que em meados do sculo XX, a maioria

    dos ocidentais achava que a religio nunca mais desempenharia um papel de destaque

    nos acontecimentos mundiais (Armstrong, 2001, p. 229). Mas, no final do sculo XX e

    incio do XXI, o mundo foi surpreendido com a fora atrativa da proposta religiosa

    presente nos movimentos fundamentalistas (Armstrong, 2001, p. 353). A religio

    continuava a ter papel preponderante na cultura, sendo agora alada para compreender o

    chamado choque de civilizaes.

    nesse contexto de fora, manifesta por um lado na procura pelo banimento da

    experincia religiosa e por outro na imposio de sua presena, que se busca

    compreender o lugar da recepo bblica na atualidade e como se d esse processo. Para

    tanto, essa comunicao almejar buscar em Erich Auerbach o constructo terico para

    compreender como se d esse acolhimento do texto bblico na modernidade tardia, bem

    como elencar os possveis fatores de atratividade que essa obra literria tem mesmo

    numa cultura to diversa da qual foi formada.

    1. O Legado da Modernidade e a Recepo Bblica

    A modernidade provocou a crise e a ruptura num modo de interpretar o texto

    bblico e tambm de receb-lo. O processo de dessacralizao do mundo que ela imps,

    aliado formao de uma conscincia crtica cada vez maior, acabou por depreciar e

    fazer com que houvesse um abandono da exegese bblica, atribuindo ao relato uma

    conotao lendria (Auerbach, 2011, p. 21). Para um texto que possui uma pretenso de

    autoridade incorporada nele mesma (Auerbach, 2011, p.45) um fator bem

    complicador. Na viso de Auerbach o humanismo fez com que a figura do homem

    fosse colocada a frente da figura de Deus (Auerbach, 2011, p.175). O

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    reposicionamento figural provocou uma autonomia que solapou qualquer pretenso de

    autoridade textual relativo no s Bblia, como tambm a qualquer outro texto

    considerado at ento sagrado.

    Essa conscincia crtica que emerge do humanismo se manifesta especialmente

    nas descobertas e no desalojamento do dogma. Interessante que agora o desvelamento

    passa a ser do mundo sensvel que precisava ser compreendido e dominado, no mais da

    divindade e de sua revelao.

    A primeira descoberta e, porque no dizer, legado da modernidade foi a

    fascinao com um mundo a ser explorado e conhecido. Auerbach destaca bem isso ao

    citar trechos da fico de Rabelais sobre Pantagruel (Auerbach, 2011, p.234). Os

    elementos do moderno esto ali: o otimismo que emerge num contexto de falta de

    esperana por conta da peste negra; a utopia que nasce de um contraste entre desafios e

    perspectivas da vida humana num tempo de descobrimentos; o smbolo do homem, do

    seu corpo como exemplo do muito que ainda se tem para conhecer. O novo mundo de

    Pantagruel passa-se somente na boca dele... No foi a toa que Rabelais escolheu esse

    formato para montar sua narrativa. Se o homem est agora centralizado, ele precisa

    passar por um exaustivo processo de autoconhecimento. Tudo isso representava uma

    ruptura com o mundo medieval, especialmente no tocante ao foco que era

    eminentemente voltado para o futuro, para as possibilidades, para frente.

    A segunda principal descoberta foi a do distanciamento. Ao homem moderno

    pareceu claro a distncia que havia do texto no s pelo tempo, mas sobretudo pela

    mentalidade. Ficou evidente que havia uma distncia histrica e cultural entre o mundo

    do texto e o mundo do leitor (Ricoeur, 2006, p.32). Isso exigia um processo de

    interpretao porque houve a perda da familiaridade com o texto bblico.

    J o distanciamento pela mudana da mentalidade se deu por uma mudana de

    postura diante do relato bblico. Da valorizao do simblico passou-se a busca pelos

    processos de racionalizao, aquilo que Heidegger chamou de pensamento calculante.

    No pensamento calculante, no linguajar da cincia moderna no havia espao para a

    especificidade da linguagem religiosa (Ricoeur, 2006, p.56), uma vez que ela perdera

    sua aderncia na modernidade (Ricoeur, 2008, p.12) o que acabou ocasionando um

    empobrecimento lingstico (Ricoeur, 2008, p.16). A proposta de domnio da

    modernidade inclusive sobre a religio, numa tentativa de explic-la exaustivamente

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    (Ricoeur, 1978, p.53), esquecendo-se para isso da existncia de uma dinamicidade

    prpria outorgada pela f. Interessante que o linguajar cientfico impinge sobre o rico

    simbolismo religioso a conotao de reducionista, quando ele mesmo que afunila o

    universo significante que h no fenmeno religioso.

    Nesse sentido vale lembrar que a religio no est sob o domnio das cincias

    naturais ou mesmo humanas, uma vez que ela as ultrapassa por conter em si um

    componente igualmente transcendente. A melhor forma de compreenso no ento a

    reduo da linguagem religiosa e seu enquadramento no dizer cientfico, mas sim sua

    compreenso a partir de sua afinidade com o leitor e pela renovao da linguagem

    oriunda de outro contexto cultural (Ricoeur, 1978, p.41, 116).

    Outro reflexo da conscincia crtica herdada do humanismo foi o desalojamento

    do dogma. Uma vez que o eixo foi descolado e deslocado de Deus para o ser humano,

    tudo passou a ser objeto de aferio. Os dogmas que at ento funcionavam como

    absolutos, foram expulsos do paraso. No dizer de Karen: numa sociedade que

    valorizava apenas a verdade racional ou cientificamente demonstrvel, o dogma se

    constitura num problema (Armstrong, 2001, p. 199). Exemplo clssico desse conceito

    foi o discurso do telogo batista Harry Emerson Fosdick no qual, ao passo que

    assinalava a similaridade do aspecto religioso na defesa do nascimento virginal de

    fundadores de grandes religies (Jesus, Buda, Zoroastro, Lao-Tzu), considerava

    inaceitvel os fundamentalistas sublinharem o que chamou de tradio em termos de um

    milagre biolgico (Fosdick, 1978, p. 3). Falar a um povo que nada entendia de dogma e

    que passou a possuir uma plida idia dos mistrios da f se tornou um problema

    (Auerbach, 2011, p. 91).

    Essa dificuldade com o dogma nunca foi resolvida, seja pela sua negao

    completa, seja pela adoo de uma via subjetiva para o mesmo. Emil Brunner assim

    destaca como marca da teologia e religio contemporneas: O slogan moderno,

    nenhuma doutrina mas vida; nenhum dogma mas prtica, em si mesmo uma

    doutrina, at mesmo um dogma, mas no uma doutrina crist nem um dogma cristo.

    o ditado de um pragmatismo tico ou de um misticismo. (Brunner, 2000, p.28).

    Dessa feita nota-se que h uma inter-relao entre a nova formulao dogmtica

    e o legado da modernidade. Tal conexo se d pela via da subjetividade. a valorizao

    do mstico na modernidade tardia como reflexo direto do recalque imposto pelo

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    Iluminismo. O mstico aqui, mais do que abertura para o divino, deve ser visto pelo

    prisma da expresso da individualidade, visto ter se tornado espao para manipulao

    do sobrenatural. H um visvel xamanismo nas prticas religiosas da modernidade

    tardia, o que remonta a poca do incio do cristianismo, especialmente na sua

    penetrao por aquilo que ficou conhecido como sia Menor. Assim, reside aqui o

    renascimento de um contexto da recepo do kerygma cristo, a saber: voltar a falar de

    Deus a uma sociedade pag e mstica (Auerbach, 2011, p. 72).

    A interpretao bblica afetada no somente pela via da subjetividade que

    procura legitimar uma hermenutica espiritualista-alegrica prejudicando a

    compreenso do significado do texto (Auerbach, 2011, p. 170), como se manifesta

    tambm nos fundamentalismos. As formas objetivadas de contato com o texto, que na

    sua paradoxalidade de enfatizar os dogmas e emprestar-lhes ao mesmo tempo um

    pretenso mtodo e linguajar cientfico, esto em voga. O resultado dessa perspectiva

    que a literalidade com que encarado o texto sagrado torna sem efeito o labor

    interpretativo e adiciona ao resultado uma incompreenso sistmica do texto.

    Outro legado da modernidade aquilo que Auerbach denominou quebra da

    moldura (Auerbach, 2011, p. 139). Para ele na narrativa bblica h uma interligao no

    plano maior entre os acontecimentos figurais (Auerbach, 2011, p. 139). Exemplo disso

    o relato de Farinata e Cavalcante de Dante Alighieri, no qual os personagens apresentam

    num plano espiritual a consumao do comportamento que mantinham antes de

    morrerem. No contexto da modernidade quebra-se essa moldura abrindo a porta para a

    secularizao que, para Auerbach, nada mais era que uma outra tentativa de explicar as

    aes humanas (Auerbach, 2011, p.139), pluralizando o espectro de representaes

    possveis reduzindo2 a verso bblica a uma possibilidade.

    Por fim cabe falar num especial caso de desalojamento. Trata-se aqui do prprio

    ser humano. As revolues industrial e tecnolgica tornaram o homem numa mquina.

    A velocidade das mudanas e o alargamento do horizonte humano geraram crises de

    adaptao (Auerbach, 2011, p. 495). Auerbach assim se expressa:

    Em todos os cantos do mundo surgiram crises de adaptao que se amontoaram e aglutinaram; levaram para as perturbaes que ainda no acabamos de sobreviver. Atravs dessa violenta movimentao, causada pelo embate das mais heterogneas formas de vida e de ideais

    2 A noo de reduo aqui est calcada na perda da posio. Antes a Bblia era a nica representao possvel; agora se tornara uma das representaes admitidas.

    Jakeline Nunes

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    na Europa, tornaram-se vacilantes no somente as vises religiosas, filosficas, morais e econmicas que pertenciam antiga herana e que, apesar de algumas agitaes anteriores, ainda conservaram, graas a uma lenta acomodao e transformao, considervel autoridade; tambm, no somente os pensamentos do Iluminismo, revolucionrios no sculo XVIII e ainda na primeira metade do sculo XIX, a democracia e o liberalismo, mas tambm as novas foras revolucionrias do socialismo, surgidas elas prprias j em meio ao auge do capitalismo ameaavam fender-se e desfibrar-se; perdiam a sua unidade e a sua clara delimitabilidade devido aos numerosos grupos que se combatiam mutuamente, devido s singulares ligaes que determinados grupos fizeram com pensamentos no socialistas, devido capitulao interna da maioria deles durante a Primeira Guerra Mundial e, finalmente, devido tendncia de alguns dos seus seguidores mais radicais de se passar ao campo dos seus contrrios mais opostos (Auerbach, 2011, p. 495).

    Reside aqui o aspecto bem destacado por Hannah Arendt da techn , que

    coisificou o homem (Arendt, 2000). Brakemeier afirma que o ser humano no se

    satisfaz em desempenhar o papel de uma mquina (Brakemeier, 2005, p. 17), buscando

    algo que lhe d dignidade. Apesar da uniformidade que a produo cria, h mais pessoas

    que no sabem seu lugar (Auerbach, 2011, p. 409). Heidegger leu esse fenmeno como

    uma crise da habitao (Heidegger, 2012, p. 136), na qual o homem moderno perdeu a

    sua capacidade de conexo que possibilitava diante da quadratura, receber os acenos do

    Ser.

    para um homem sem cho e com um texto sem lastro que a comunicao

    bblica deve ser feita. A questo que reside como comunicar a um homem desconexo,

    que no sabe mais seu lugar no mundo (Auerbach, 2011, p. 411). Destaca-se que

    justamente por conta de sua extensa rede de referncias o ser humano perdeu seu lugar.

    Essa desconexo primria resulta num paradoxal movimento de conexes menores, que

    implica numa extensa rede de significaes (Auerbach, 2011, p. 53) e que acabam

    sufocando o que intudo nos relatos bblicos. A recepo experimenta seu

    asfixiamento. Contudo, a simples indiferena j constitui por si uma deciso, um sinal

    de recepo.

    2. A Atratividade do Texto Bblico

    Diante do legado da modernidade tardia cabe indagar o lugar que pode ter o

    texto sagrado e, no caso bblico, nesse contexto cultural. Auerbach defende a idia de

    uma atratividade da narrativa escriturstica baseada no realismo criatural (Auerbach,

    Jakeline Nunes

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    2011, p. 225) que figura, representa a realidade. Pela interpretao figural cria-se uma

    relao entre dois acontecimentos ou duas pessoas, na qual um deles no s se

    significa a si mesmo, mas tambm ao outro e este ltimo compreende ou completa o

    outro (Auerbach, 2011, p. 62). Ele destaca que apesar dos plos da figura estar

    separados temporalmente eles se conectam dentro do tempo como acontecimentos ou

    figuras reais (Auerbach, 2011, p. 62). Registra-se tambm uma conexo com o

    contexto histrico-universal que representa a prpria moldura da interpretao

    figurativa (Auerbach, 2011, p. 136).

    A figurao, que se torna possvel pelo realismo judaico-cristo presente na

    Bblia, promove o intercmbio de vivncias narrativas entre o mundo do texto e o

    mundo do leitor. Essa troca empresta uma vivacidade a narrativa, na qual o intrprete se

    percebe nas situaes vividas pelos tipos, pelos personagens contidos no texto.

    Vivacidade e intercmbio esses que resultam da capacidade de insero do leitor, que

    inerente ao realismo contido no texto bblico.

    Auerbach destaca tambm que essa atratividade reside no processo figural,

    especialmente nas figuras do Velho Testamento. Elas estavam em modelagem

    constante, sendo testadas em provas ao contrrio do realismo caricaturesco dos gregos,

    onde os personagens se tornavam caricaturas da realidade (Auerbach, 2011, p. 23; 37).

    Isso fez com que os personagens bblicos tivessem maior proximidade com o mundo

    real do que as figuras homricas (Auerbach, 2011, p. 26). O processo de modelagem

    remete ao aspecto pedaggico do mal, do sofrimento, usados para aprimorar a f dos

    personagens. Esse processo de aprimoramento envolto em provas, testes, cria uma

    atmosfera de identificao com o leitor e propicia sua insero numa meta-narrativa,

    numa histria maior. Ele percebe que h um todo e compreende sua participao e

    contribuio nesse todo.

    Outro fator de atrao a presena de diferentes tipos de estilo (Auerbach, 2011,

    p. 41). Na narrativa do Antigo Testamento h a presena mesclada do sublime com o

    trgico, com o problemtico, com o quotidiano, o que exerce poder de atrao no texto

    (Auerbach, 2011, p. 29). Soma-se a isso a explorao de uma profundidade imediata da

    emoo, apresentada de maneira mais ordenada, humana e esperanosa (Auerbach,

    2011, p. 59).

    Jakeline Nunes

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    O texto bblico possui tambm um grau de compreensibilidade universal

    (Auerbach, 2011, p. 134). Isso est presente tanto na exposio de dramas universais

    tais como traio, vingana, perdas (Auerbach, 2011, p. 37), como na sua pluralidade de

    sentidos que demanda o labor interpretativo (Auerbach, 2011, p. 20). H que se ressaltar

    tambm a configurao social do Antigo Testamento, onde no se percebe claramente a

    diviso de classes (Auerbach, 2011, p. 18).

    O realismo contido na Bblia no s possibilita essa insero do leitor na

    narrativa escriturstica como tambm cria sua identificao com o texto. Insero pela

    identificao caminho sinalizador da recepo do texto.

    Alm disso, a linguagem bblica traz uma articulao de realidades vitais para o

    ser humano as quais Ricoeur chamou de mal radical, herdando uma perspectiva

    kantiana, e esperana da graa potencializada (Ricoeur, 2008, p. 16). Essa articulao

    que exerce enorme poder atrativo visto tratar dos dois parmetros principais da vida, a

    explicao da causa da ocorrncia de situaes ruins na vida e o nimo para continuar

    insistindo no projeto que viver. A esperana, como filha da f, necessita desta para

    interpretar o texto bblico. No dizer de Ricoeur a f certamente um ato que no se

    deixa reduzir a nenhuma fala, a nenhuma escrita. Este ato representa o limite de toda

    hermenutica, porque ele a origem de toda interpretao (Ricoeur, 1996, p. 182).

    3. Os Desafios da Hermenutica Bblica

    Aps reconhecer os principais elementos que explicam a tardia atratividade

    bblica, resta destacar os desafios que a modernidade tardia trouxe para a hermenutica

    das Escrituras. Nesse sentido, a primeira questo que se apresenta como o homem

    moderno pode ser inserido numa narrativa que possui no seu bojo uma pretenso de

    consumao atemporal, isto , de um texto que possui a pretenso de, embora inserido

    num contexto, no se deixar condicionar por ele?

    Auerbach sinaliza para a ao de uma interpretao reinterpretativa

    (Auerbach, 2011, p. 41), j presente no Novo Testamento. O Velho Testamento foi

    transformado em figuras as quais apontam para a premncia de Jesus. na figurao

    que se encontra parte da justificao para essa atemporalidade do texto. Isso pode bem

    ser notado na Epstola aos Hebreus contida na parte crist da Bblia, onde as principais

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    figuras do judasmo so colocadas em contraposio com a supremacia de Jesus Cristo.

    H um estabelecimento de correlaes mediante a exegese (Auerbach, 2011, p. 41).

    Naquilo que Auerbach denominou interpretao reinterpretativa h um

    processo de adaptao da mensagem s condies de um circuito mais amplo de

    destinatrios, o que pode ser notado pela variao de estilos que procura acompanhar os

    diferentes pontos de vistas dos receptores do texto. Dessa feita, ela no s se faz

    presente na Escritura como tambm na realidade da modernidade tardia. possvel

    interpretar reinterpretando a narrativa hodierna com sua diversificao das condies de

    vida (Auerbach, 2011, pp. 285-6). Mesmo porque nesse molde h um forte link com a

    existencialidade. H uma compreenso existencial do texto. Urbano Zilles afirma que a

    modernidade insistiu na experincia pessoal pela qual cada pessoa percebe a realidade

    de Deus e isso de forma sensorial (Zilles, 1993, pp. 25; 31). nesse momento que o

    texto uma vez apropriado ento vivenciado.

    Essa vivncia o alvo maior da comunicao e, por conseguinte, da recepo

    bblica. Trata-se da prpria Mimesis, a imitao na vida do tipo bblico. Lembrando que

    a principal atividade mimtica refere-se a Jesus, o que Auerbach destaca em seu texto

    na referncia a So Francisco (Auerbach, 2011, p. 141).

    Outro desafio traduzir essa atratividade presente no texto bblico em interesse

    no leitor (Auerbach, 2011, p. 48). No modelo cristo, o autor elevado funo divina,

    uma vez que ele se insere na narrativa. Ricoeur se limita a uma teologia uniforme da

    dupla autoria, divina e humana, onde Deus colocado como a causa formal e o escritor

    como a causa instrumental (Ricoeur, 2008, p. 87). Esse interesse no somente no

    carter literrio do texto, mas sobretudo seu aspecto fidesta, visto que a Escritura

    objetiva despertar f e gerar um novo corao, uma experincia de encontro com Deus,

    de converso. Tal despertamento ocorre mediante um ato espiritual onde a Providncia

    Divina viabiliza a interpretao figural conectando numa espcie de intellectus

    spiritualis dois acontecimentos que no esto ligados nem pelo tempo, nem pela

    causalidade (Auerbach, 2011, pp.76; 169).

    Interligada com a providncia divina est a compreenso de Cristo como chave

    hermenutica que possibilita a compreenso e recepo do texto. Ocorre que Auerbach

    reconhece a existncia de passagens bblicas, no poucas, que possuem um carter to

    hermtico que dificulta a aplicao desse princpio interpretativo. Para interpret-las,

    Jakeline Nunes

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    Sacrilegens, Juiz de Fora,v.10,n.2, p.109-120, jul-dez/2013 - S. Dusilek - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2014/07/10-2-9.pdf 118

    segundo ele, continua sendo necessrio humildade e f (Auerbach, 2011, p. 134).

    Nesses filtros encontra-se a universalidade da Bblia, uma vez que todos os seres

    humanos podem ter e exercer humildade e f.

    A hermenutica bblica se depara tambm o dilema da contextualizao. Isso

    porque hermenutica a decifrao da vida no espelho do texto (Ricoeur, 2008, p.

    49). Como proceder uma exegese textual na qual a contextualizao se faa presente,

    sem cair nos extremismos dos fundamentalismos e subjetivismos. Auerbach destacou

    que os escritores cristos patrsticos, quanto mais aprofundados na cultura estavam,

    mais se preocupavam com o dilogo com a mesma, vertendo o contedo do

    Cristianismo em textos no como meras tradues, mas como adaptao s suas

    prprias tradies conceituais e expressivas (Auerbach, 2011, p. 63). Ricoeur

    corrobora com essa percepo ao dizer que interpretar a Escritura ao mesmo tempo

    ampliar seu significado como significado sagrado e incorporar os resqucios da cultura

    secular nessa compreenso (Ricoeur, 2008, p. 49). necessrio compreender o mundo

    em que vivemos (Auerbach, 2011, p. 494) e isso se faz mediante o dilogo com a

    cultura.

    Por fim cabe perguntar se a conscincia crtica, herana da modernidade, impede

    ou mesmo condiciona a recepo bblica. Para Auerbach ela apresentou uma nova

    maneira de ler o texto, agora como narrativa. Nessa narrativa esto contidos os cuidados

    e temas que passaro pela mmesis, isto , que sero vivenciados. Por isso que nele a

    moral figural e a realidade se torna dependente da figurao. A Escritura passa a ser

    acolhida no mais como dogma ou com uma prvia e externa autoridade. Exemplo disso

    o que Ricoeur fala de uma leitura confessante na qual a comunidade de leitores

    confere ao texto a autoridade (Ricoeur, 2006). No mais o texto em si, mas agora o que

    projeto sobre ele define a autoridade. A crise deixada pela modernidade ento no mais

    oriunda da relao tensa entre autonomia e heteronomia, porm da constatao de que

    falta uma narrativa ordenadora, que unifique as realidades estanques. Isso fruto de

    uma conscincia mais livre, mais abrangente (Auerbach, 2011, p. 286), contudo, mais

    perdida no sentido de ausncia de esteio.

    Concluso

    Jakeline Nunes

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  • - Revista dos Alunos do Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio - UFJF

    Sacrilegens, Juiz de Fora,v.10,n.2, p.109-120, jul-dez/2013 - S. Dusilek - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2014/07/10-2-9.pdf 119

    Engana-se quem pensa que o trabalho aqui apresentado atem-se no seu todo a

    questo bblica. Logicamente que muitas particularidades da narrativa bblica foram

    aqui expostas e, nessa dimenso, se atm ao texto citado. Contudo, a proposta aqui vai

    alm. Num contexto globalizante em que as fronteiras territoriais, conceituais e culturais

    so convidadas a uma dissolvio, pesquisar sobre o lugar da recepo de um texto

    sagrado torna-se desafiador e, por que no, balizador.

    A modernidade se tornou um fenmeno global. Talvez no com o mesmo

    processo e cristalizao com a qual foi sendo construda na Europa. Contudo, fato que

    a modernidade ganhou feies globais. Em diferentes reas do mundo e sobre diversas

    culturas, a modernizao pode ser sentida. Em pases mais pobres notou-se uma

    assimilao do conforto moderno, sem que com ele viesse um dilogo cultural,

    promovendo anacronismos patentes. Essa modernizao acentuou a insegurana do ser

    humano, abrindo espao para os fundamentalismos e para as vias privadas e subjetivas

    de expresso religiosa. E, nesse aspecto, o dilogo some do horizonte. Armstrong

    destaca que os movimentos messinicos de restaurao de uma religiosidade original

    foram os que mais contriburam para uma privatizao da religio que escasseia as

    interfaces com o espao pblico (Armstrong, 2001, p. 134).

    Realocada em novo patamar pela modernidade que no mais o de autoridade, a

    recepo do texto bblico passou da esfera de domnio, de poder, para o literrio. Sua

    recepo se d hoje pela necessidade do ser humano de possuir no s uma narrativa,

    como tambm uma meta-narrativa que empreste sentido, conexo para a vida. Ver o

    texto sagrado pelo prisma literrio possibilitou entre outros a valorizao da

    especificidade da linguagem religiosa e de seu rico contedo simblico. Buscar as bases

    de uma atualidade da Bblia e como se daria sua recepo na modernidade representa

    uma visualizao de um modo dialogal. Isto porque o desafio da modernidade plural

    est ligado ao lugar das religies nessa nova maneira de configurar a vida. Lugar da

    refigurao que Auerbach tanto destaca.

    Por fim, torna-se importante a comparao desses aspectos dialogais com outras

    narrativas religiosas, outras expresses religiosas que tenham por referncia um livro

    sagrado. Se em grande parte do mundo a humanidade afetada pela modernidade, pode

    ser que nessas demais localidades os princpios de recepo do texto vislumbrados por

    Erich Auerbach em sua Mimesis, consigam promover uma ponte para um dilogo entre

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    Sacrilegens, Juiz de Fora,v.10,n.2, p.109-120, jul-dez/2013 - S. Dusilek - http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2014/07/10-2-9.pdf 120

    a religio e a modernidade, entre a religio e a cincia. Mas isso fica como sugesto

    para um aprofundamento posterior.

    Referncias Bibliogrficas

    ARENDT, Hannah. A Condio Humana. Traduo: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000. ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judasmo, no cristianismo e no islamismo. Traduo: Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representao da realidade na literatura ocidental. So Paulo: Perspectiva, 2011. BRAKEMEIER, Gottfried. O Ser Humano em Busca de Identidade. Contribuies para uma antropologia teolgica. So Leopoldo: Sinodal; So Paulo: Paulus, 2002. BRUNNER, Emil. Teologia da Crise. Trad.: Paulo Arantes. So Paulo: Novo Sculo, 2000. ELIOT, Charles W. The Religion of the Future. In: The Harvard Theological Review, Vol.2, No.4 (Oct.,1909), p.389-407. Acesso 25/04/2013 s 17:01hs. FOSDICK, Harry Emerson. Shall The Fundamentalists Win? In: SHERRY, Paul H. (Ed.). The Riverside Preachers. New York: Pilgrim Press, 1978, p.27-38. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferncias. Traduo: Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel, Marcia S Cavalcante Shuback. Petrpolis: Vozes; Bragana Paulista: editora Universitria So Francisco, 2012. (Coleo Pensamento Humano). p.111-141. RICOEUR, Paul. El Lenguaje de La Fe. Buenos Aires: Associacin Editorial La Aurora, 1978. ______. Leituras 3: nas Fronteiras da Filosofia. Traduo: Nicols Nyimi Campanrio. So Paulo: Loyola, 1996. ______. A Hermenutica Bblica. Traduo: Paulo Meneses. So Paulo: Loyola, 2006. ______. Ensaios Sobre a Interpretao Bblica. Traduo: Jos Carlos Bento. So Paulo: Fonte Editorial, 2008. ZILLES, Urbano. A Modernidade e a Igreja. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.