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Sobre a violência – Hannah Arendt Considerações preliminares: Infelizmente o melhor entendimento do texto da Hannah Arendt se faz com a leitura de outra obra sua: “A condição humana”. Neste livro, ela faz uma genealogia do conceito de poder ao recuperar no grego arcaico a noção de vita activa como fundamental para o entendimento da condição humana (resposta à interrogação filosófica: o que distingue homens de animais?). Vita activa denota um conjunto atividades bem distintas: labor, trabalho e ação. Atividades caracterizadas por serem “pró”, “contra” e “com”, respectivamente. Atividades que por isso caracterizam as condições do que vem a ser especificamente os elementos do natural, do artificial e do humano na vida vivida em atividade. O labor é um conjunto de atividades aos quais todos os seres vivos naturalmente necessitam empreender para simplesmente sobreviver. O trabalho é um conjunto de atividades aos quais os homens empreendem para criar seus implementos (meios, instrumentos) ou ambientes artificiais para multiplicar ou facilitar a realização dos esforços de labor para a sobrevivência. A especificidade da condição humana reside em sua distinção às condições natural e artificial. O especificamente humano transcende a sobrevivência e objetiva a convivência, algo que os antigos identificavam fundamentalmente com as atividades da ação, com as atividades políticas da vida. Em Sobre a violência, Hannah Arendt reafirma que a ação é a atividade fundamental da política. A ação, ao contrário da atividade do trabalho e seus implementos, não se presta para ser avaliada segundo categorias utilitárias. As relações de poder também não se prestam para ser avaliadas como derivadas de uma condição natural (da força das circunstâncias ou do vigor individual). A política diz respeito à relação estabelecida entre as vontades de liderança e de liderados, ao “com” + vivência, à convivência como condição efetivada. Portanto, a política está remetida às crenças que surgem da condição de convivência, ao exercício do discurso e da persuasão. Interessa à Hannah Arendt explorar o tema do uso da violência em política: Ao contrário da ação, tudo que diz respeito ao “contra” se presta à dominação, tal como a violência, e opera no plano instrumental das atividades do trabalho e dos seus implementos. Do ponto de vista helênico, a própria administração pública (todas as suas instituições) não é propriamente a política. É tão somente meio (recurso, instrumento) da política. Daí, a política não está especificamente remetida à disponibilidade e uso dos implementos administrativos, ao exercício da coerção na relação instrumental entre dominantes e dominados.

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Sobre a violência – Hannah Arendt

Considerações preliminares:

Infelizmente o melhor entendimento do texto da Hannah Arendt se faz com a leitura de outra obra

sua: “A condição humana”. Neste livro, ela faz uma genealogia do conceito de poder ao recuperar no

grego arcaico a noção de vita activa como fundamental para o entendimento da condição humana

(resposta à interrogação filosófica: o que distingue homens de animais?).

Vita activa denota um conjunto atividades bem distintas: labor, trabalho e ação. Atividades

caracterizadas por serem “pró”, “contra” e “com”, respectivamente. Atividades que por isso

caracterizam as condições do que vem a ser especificamente os elementos do natural, do

artificial e do humano na vida vivida em atividade.

O labor é um conjunto de atividades aos quais todos os seres vivos naturalmente necessitam

empreender para simplesmente sobreviver.

O trabalho é um conjunto de atividades aos quais os homens empreendem para criar seus

implementos (meios, instrumentos) ou ambientes artificiais para multiplicar ou facilitar a

realização dos esforços de labor para a sobrevivência.

A especificidade da condição humana reside em sua distinção às condições natural e

artificial. O especificamente humano transcende a sobrevivência e objetiva a convivência,

algo que os antigos identificavam fundamentalmente com as atividades da ação, com as

atividades políticas da vida.

Em Sobre a violência, Hannah Arendt reafirma que a ação é a atividade fundamental da política.

A ação, ao contrário da atividade do trabalho e seus implementos, não se presta para ser

avaliada segundo categorias utilitárias.

As relações de poder também não se prestam para ser avaliadas como derivadas de uma

condição natural (da força das circunstâncias ou do vigor individual).

A política diz respeito à relação estabelecida entre as vontades de liderança e de liderados,

ao “com” + vivência, à convivência como condição efetivada.

Portanto, a política está remetida às crenças que surgem da condição de convivência, ao

exercício do discurso e da persuasão.

Interessa à Hannah Arendt explorar o tema do uso da violência em política:

Ao contrário da ação, tudo que diz respeito ao “contra” se presta à dominação, tal como a

violência, e opera no plano instrumental das atividades do trabalho e dos seus implementos.

Do ponto de vista helênico, a própria administração pública (todas as suas instituições) não é

propriamente a política. É tão somente meio (recurso, instrumento) da política. Daí, a

política não está especificamente remetida à disponibilidade e uso dos implementos

administrativos, ao exercício da coerção na relação instrumental entre dominantes e

dominados.

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Poder é completamente diferente de violência, porém eles são amalgamados em casos

especiais de poder: o poder de governo.

A burocracia é uma importante forma de poder de governo. Em sendo poder de governo ela

é constantemente desafiada a combinar os implementos (os recursos coercitivos da

administração pública) e as crenças.

Para Hannah Arendt, boa parte do uso crescente da violência na política no século XX está

estabelecida nas questões do poder de governo configurado na burocracia. O governo da

burocracia é causa da rebelde inquietude espraiada pelo mundo hoje [1968], sua natureza

caótica, bem como sua perigosa tendência de escapar ao controle e agir desesperadamente.

O primeiro porque, do ponto de vista da dominação, a burocracia se torna o mais tirânico

dos governos dada uma característica que lhe é intrínseca: a falta a clareza sobre quem

responsabilizar no governo pelo o que está sendo feito.

Depois porque, a violência política surge quando as crenças que lastreiam o poder estão

sendo perdidas. Quando a tirania da burocracia é questionada, na ausência de legitimidade

(ausência de poder) surgem situações de flagrante uso de violência na política (de uso de

implementos), geralmente de natureza caótica como a perigosa tendência de escapar ao

controle e agir desesperadamente. É quando se instala um fato especial, uma situação

política toda particular no comportamento entre governo, minorias de ativistas e maioria.

Pelo lado do governo, a perda de poder leva à incapacidade política para conter os recursos

da violência disponíveis à administração.

Pelo lado das minorias políticas, o apelo a recursos da violência política são intensificados

porque nestas situações as minorias podem ter um potencial muito maior do que se

esperaria contando votos em pesquisa de opinião.

Pelo lado da maioria, estas se tornam um aliado latente da minoria quando se coloca como

observadora, entretida com o espetáculo da minoria e se recusam claramente a usar o poder

para subjugar os desordeiros e ninguém está disposto a levantar mais do que um dedo e

votar pelo status quo.

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Questões centrais no texto de Hannah Arendt em Sobre a Violência:

1. Ela critica a tradição moderna da ciência política, que dá pouca importância à distinção das

noções-chave para a compreensão dos fenômenos de poder.

a. Nesta há a convicção que o tema político mais central é, e sempre foi, a questão

sobre “quem domina quem”;

b. Que poder é comando e sua forma básica de manifestação é a violência.

c. Para ela, poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para

indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem.

d. Essas noções são tomadas por sinônimos porque, nesta tradição elas têm a mesma

função.

2. Para Arendt, as bases fundamentais do poder, ao contrário do que afirma a tradição

moderna, residem no consenso da maioria.

a. Que poder por ser um absoluto, “um fim em si mesmo”;

b. Não se justifica em termos das categorias de meios e fins já que ele não é

instrumental (tal como a violência é).

c. Que independentemente dos meios, poder corresponde à habilidade humana não

apenas para agir, mas para agir em concerto.

d. O poder, portanto não é definido como um meio, mas sim como uma condição, uma

propriedade coletiva de um grupo e nunca de um indivíduo, existindo apenas

enquanto o grupo conserva-se unido.

e. Daí, poder não precisa de justificação e orientação (para ser usado referido a um

fim); ele tão somente se legitima caso exista (caso tenha se efetivado).

3. Distintamente de poder:

a. Vigor designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente a

um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter. O vigor tem uma independência

peculiar.

b. Força deveria indicar a energia liberada por movimentos físicos ou sociais, deveria

ser reservada às forças da natureza ou às forças das circunstâncias.

c. Autoridade pode ser investida em pessoas ou em postos hierárquicos. Sua insígnia é

o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem

a coerção nem a persuasão são necessárias.

d. Violência distingue-se por seu caráter instrumental. Os implementos da violência,

como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de

multiplicar o vigor natural.

4. A questão dos meios, entre eles os instrumentos de violência tão caros à tradição do

pensamento moderno sobre governo, podem ser utilizados com o propósito de multiplicar o

vigor individual já que não dependem de números ou opiniões (do coletivo), mas de

implementos.

a. Portanto, do ponto de vista psicológico, para pessoas que possuam vigor natural, a

impotência pode gerar violência.

b. E, do ponto de vista político, quando a violência não é mais escorada e restringida

pelo poder, ela sempre pode destruir o poder. A perda do poder torna-se uma

tentação substituí-lo pela violência; já que do cano de uma arma emerge o comando

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mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência, mas nunca

emergirá poder; pois a violência é absolutamente incapaz de criá-lo.

c. O domínio pela pura violência advém de onde o poder está sendo perdido.

d. A forma extrema de violência é um contra todos.

5. Que a forma extrema de poder é todos contra um, pois é da natureza de um grupo e de seu

poder voltar-se contra a independência, a propriedade do vigor individual.

a. Portanto, não é a violência, mas o poder a essência de todo governo.

b. Ainda que apareçam combinados, o poder é o fator primário e preponderante.

c. Para Arendt é errada a perspectiva de que a violência é um pré-requisito do poder, e

o poder, nada mais do que uma fachada, a luva de pelica que ou esconde a mão de

ferro, ou mostrará ser um tigre de papel.

d. Mesmo na dominação mais despótica, o poder tem uma ascendência fundamental

sobre a violência, pois homens sozinhos, sem outros para apoiá-los, nunca tiveram

poder suficiente para usar da violência com sucesso.

e. Ao contrário, é só na dominação totalitária que o poder deixa de ser fator primário. É

quando se usa o terror para manter a dominação que, diferente da violência; ele é,

antes, o governo que advém quando a violência destruiu todo o poder e, ao invés de

abdicar, permanece com o controle total como estado policial plenamente

desenvolvido.

f. Portanto, diferente da concepção dialética hegelo-marxista de que os opostos não se

destroem, mas se superam, a oposição entre violência e poder não tende a uma

superação, à revelação de um bem oculto, mas à degeneração, pois, a favor da

violência, ela pode resultar na destruição do poder e na revelação de um mal ainda

maior que a violência: a instalação o terror.

6. Que a burocracia é:

a. A última e mais formidável forma de dominação.

b. Que a noção moderna de lei representa uma leitura judaico-cristã e sua concepção

imperativa de lei, a qual as convicções científicas e filosóficas mais modernas

fortaleceram. Algo bem diferente da tradição antiga onde “obediência” às leis

significava apoio às leis para as quais os cidadãos haviam dado seu consentimento,

algo nunca inquestionável e algo nunca traduzido em obediência inquestionável tal

como um ato de violência pode impor.

c. É o domínio de Ninguém; nem um único (monarquia) nem os melhores

(aristocracia), nem a minoria (oligarquia) nem a maioria (democracia).

d. É o mais tirânico dos governos, pois não presta contas a respeito de si mesmo já que

nela não há ninguém a quem se possa questionar para que responda pelo que está

sendo feito.

e. A burocracia é poder de governo, portanto, é convocada a equacionar a combinação

poder (condição efetivada, existente ou não) e violência (meios disponíveis à

administração).

f. Quando essa tirania é questionada, a ausência de quem responsabilizar é a causa da

rebelde inquietude espraiada pelo mundo hoje [1968], da sua natureza caótica, bem

como da sua perigosa tendência de escapar ao controle e agir desesperadamente.

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g. Se tal questionamento ocorre em situações de ausência de legitimidade (ausência de

poder), a maioria claramente se recusa a usar o poder para subjugar os desordeiros

e ninguém está disposto a levantar mais do que um dedo e votar pelo status quo.

h. Nestes contextos, uma minoria pode ter um potencial muito maior do que se

esperaria contando votos em pesquisa de opinião. A maioria meramente

observadora, entretida com o espetáculo da minoria, já é de fato um aliado latente

da minoria.