10 Melhores Poemas de Carlos Drummond de Andrade

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A Máquina do Mundo Voto: Carlos Willian Leite E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia. Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos. Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos, convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas, assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco o simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha, a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: “O que procuraste em ti ou fora de teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,

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10 melhores poemas de Drummond segundo votação.

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A Máquina do MundoVoto: Carlos Willian LeiteE como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa,e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatosque era pausado e seco; e aves pairassemno céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeçãocontínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcendea própria imagem sua debuxadano rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidandoquantos sentidos e intuições restavama quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,se em vão e para sempre repetimosos mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,a se aplicarem sobre o pasto inéditoda natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz algumaou sopro ou eco o simples percussãoatestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,em colóquio se estava dirigindo:“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,mesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riquezasobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivo

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se revelou ante a pesquisa ardenteem que te consumiste... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo.”iAs mais soberbas pontes e edifícios,o que nas oficinas se elabora,o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,os recursos da terra dominados,e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestreou se prolonga até nos animaise chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,dá volta ao mundo e torna a se engolfarna estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,suas verdades altas mais que tantosmonumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solenesentimento de morte, que floresceno caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relancee me chamou para seu reino augusto,afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadaspresto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontadeque, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.

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A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mão pensas.

Congresso Internacional do MedoVoto: Edival LourençoProvisoriamente não cantaremos o amor,que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,não cantaremos o ódio, porque este não existe,existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.Depois morreremos de medoe sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas

Poema da purificaçãoVoto: Alfredo BertunesDepois de tantos combateso anjo bom matou o anjo maue jogou seu corpo no rio.As água ficaram tintasde um sangue que não descoravae os peixes todos morreram.Mas uma luz que ninguém soubedizer de onde tinha vindoapareceu para clarear o mundo,e outro anjo pensou a feridado anjo batalhador.

Poema de Sete FacesVoto: Euler de França BelémQuando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.

O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.

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Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deusse sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,se eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

Tarde de MaioVoto: Carlos Augusto SilvaComo esses primitivos que carregam por toda parte omaxilar inferior de seus mortos,assim te levo comigo, tarde de maio,quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,surdamente lavrava sob meus traços cômicos,e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantese condenadas, no solo ardente, porções de minh’almanunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobrezasem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.Eu nada te peço a ti, tarde de maio,senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,sinal de derrota que se vai consumindo a ponto deconverter-se em sinal de beleza no rosto de alguémque, precisamente, volve o rosto e passa...Outono é a estação em que ocorrem tais crises,e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,já então espectrais sob o aveludado da casca,trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebrescom que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carrofúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstitolutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.Nem houve testemunha.

Nunca há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?Se morro de amor, todos o ignorame negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;não está certo de ser amor, há tanto lavou a memóriadas impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,perdida no ar, por que melhor se conserve,uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

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AusênciaVoto: Rejane BorgesPor muito tempo achei que a ausência é falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje não a lastimo.Não há falta na ausência.A ausência é um estar em mim.E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,que rio e danço e invento exclamações alegres,porque a ausência, essa ausência assimilada,ninguém a rouba mais de mim.

Canção FinalVoto: Liana MachadoOh! se te amei, e quanto!Mas não foi tanto assim.Até os deuses claudicamem nugas de aritmética.Meço o passado com réguade exagerar as distâncias.Tudo tão triste, e o mais tristeé não ter tristeza alguma.É não venerar os códigosde acasalar e sofrer.É viver tempo de sobrasem que me sobre miragem.Agora vou-me. Ou me vão?Ou é vão ir ou não ir?Oh! se te amei, e quanto,quer dizer, nem tanto assim.

Para SempreVoto: Eberth VêncioPor que Deus permiteque as mães vão-se embora?Mãe não tem limite,é tempo sem hora,luz que não apagaquando sopra o ventoe chuva desaba,veludo escondidona pele enrugada,água pura, ar puro,puro pensamento.Morrer acontececom o que é breve e passasem deixar vestígio.Mãe, na sua graça,é eternidade.Por que Deus se lembra– mistério profundo –de tirá-la um dia?Fosse eu Rei do Mundo,baixava uma lei:Mãe não morre nunca,mãe ficará semprejunto de seu filhoe ele, velho embora,será pequeninofeito grão de milho.

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QuadrilhaVoto: Ademir LuizJoão amava Teresa que amava Raimundoque amava Maria que amava Joaquim que amava Lilique não amava ninguém.João foi para o Estados Unidos, Teresa para oconvento,Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. PintoFernandesque não tinha entrado na história.

No meio do caminhoVoto: Marcelo MenezesNo meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra.Nunca me esquecerei desse acontecimentona vida de minhas retinas tão fatigadas.Nunca me esquecerei que no meio do caminhotinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhono meio do caminho tinha uma pedra.