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GENÉTICA ESPORTE OLIMPÍADAS 51 2014 / AGOSTO O ESPORTE ESTÁ NO DNA ? ESTUDOS MOSTRAM QUE ATLETAS DE ALTO DESEMPENHO TENDEM A TER CARGA GENÉTICA PRIVILEGIADA E CAUSAM POLÊMICA QUANTO AO PAPEL DO TREINAMENTO TEXTO JONES ROSSI ILUSTRAÇÃO OTÁVIO SILVEIRA

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  • GENTICA

    ESPORTEOLIMPADAS

    5 12 0 1 4 / A G O S T O

    O ESPORTE EST NO

    DNA?ESTUDOS MOSTRAM QUE ATLETAS DE ALTO DESEMPENHO TENDEM A TER CARGA GENTICA PRIVILEGIADA E CAUSAM POLMICA QUANTO AO PAPEL DO TREINAMENTOTE X TO JONES ROSSIILUSTR A O OTVIO SILVEIR A

  • FOTO: Divulgao

    DE RUIM DE BURACO A GOLFISTA PROFISSIONAL? FOTGRAFO LARGOU TUDO EM 2010 PARA SE DEDICAR A 10 MIL HORAS DE PRTICA

    Aps ler dois livros a respeito das supostas 10 mil horas de prtica que levariam uma pessoa excelncia em qualquer rea, o fo-tgrafo Dan McLaughlin resolveu largar tudo em 2010 para colocar a tese prova. Sem nunca ter completado uma partida de golfe antes, ele passou a treinar com o objetivo de entrar, ao final das 10 mil horas, no PGA Tour, a liga profissional do esporte nos EUA.

    Passou a ser acompanhado pelo psiclo-go Anders Ericsson, o autor da teoria das 10 mil horas, e ganhou apoio da Nike, que

    fornece o material esportivo. Dan mantm registros detalhados de seus treinos no site thedanplan.com. Aps 4 anos, ele acaba de passar as 5 mil primeiras horas e estima que, no ritmo atual, deva terminar a sequncia de treino em 2019, quando tiver 39 anos.

    Do comeo at agora, ele melhorou seu handicap (indicador do golfe que mede o nvel do jogador: quanto menor, melhor). O ndice foi 12 para 2,8 o necessrio para disputar uma vaga no PGA Tour ter menos de 2, mas a evoluo final a mais difcil (veja abaixo).

    Usain Bolt vencer os 100 e os 200 me-

    tros rasos nas Olimpadas do Rio de Ja-

    neiro em dois anos. Se no for ele, ser

    outro jamaicano. uma aposta fcil:

    nos ltimos dois Jogos Olmpicos, os

    velocistas da Jamaica ficaram com 7 das

    12 medalhas disputadas nas modalida-

    des e sempre conseguiram o ouro. Na

    categoria feminina, 8 das 12 medalhas

    foram para as jamaicanas. Marcas as-

    sim num pas to pequeno (a populao

    equivalente da cidade de Salvador)

    estimulam a uma discusso entre os

    cientistas: as pessoas nascem talhadas

    para serem campes ou treinando duro

    qualquer um pode chegar l?

    A ideia de que treinar suficiente ga-

    nhou fora em 2008 com o lanamen-

    to do livro Fora de Srie Outliers, do jornalista britnico Malcom Gladwell.

    A obra defende o nmero mgico de

    10 mil horas: o que as pessoas pensam

    se tratar de talento inato no passa da

    manifestao dessas horas de treina-

    mento. Em seu livro, Gladwell cita uma

    pesquisa de 1993 do psiclogo Anders

    Ericsson, na Academia de Msica de

    Berlim. Com ajuda dos professores, ele

    dividiu alunos violinistas em trs gru-

    pos: os que tinham potencial para se tor-

    narem solistas de nvel internacional, os

    considerados bons e os que dificilmente

    chegariam a tocar como profissionais.

    Aos 20 anos, os do primeiro grupo ha-

    viam praticado 10 mil horas; os bons, 8

    mil horas; e os classificados com menor

    habilidade, 4 mil horas.

    UUA favor da teoria de Gladwell, Erics-

    son no encontrou no grupo algum

    que atingiu a excelncia sem praticar

    muito, tampouco um aluno que mes-

    mo tendo praticado o suficiente no

    ficou entre os melhores. A ideia logo foi

    extrapolada ao terreno esportivo pelo

    neurologista Daniel Levitin, da Uni-

    versidade McGill, no Canad. Em um

    estudo aps o outro, de compositores,

    jogadores de basquete, esquiadores,

    pianistas, jogadores de xadrez, esse

    nmero sempre ressurge. Parece que

    o crebro precisa desse tempo para as-

    similar tudo que necessrio, escreve

    em Msica no Seu Crebro, a Cincia de Uma Obsesso Humana.

    A tese ganhou tanta influncia que

    apareceu gente disposta a largar tudo

    para testar o nmero mgico. Foi o

    que fez o ex-fotgrafo americano Dan

    McLaughlin em abril de 2010, quando

    decidiu tornar-se golfista profissional.

    Aos 30 anos, nunca tinha completado

    uma partida do esporte. Mas, em sua ca-

    bea, o que o separava dos profissionais

    do PGA Tour (o circuito profissional do

    golfe americano) eram 10 mil horas de

    prtica. At o fechamento deste texto,

    ele havia praticado 5 mil horas (veja acima). McLaughlin est sendo acom-panhado por Ericsson, o autor da teoria

    das 10 mil horas, que espera colher uma

    prova definitiva para a sua tese.

    FADA DO BASQUETETalvez ningum contrarie mais a re-

    gra das 10 mil horas que o mais novo

    aliado do ditador coreano King Jong-

    -un, o ex-jogador de basquete Dennis

    Rodman. Na infncia, ele era menor que

    as irms mais novas, estrelas do time

    de basquete da escola. E no dava para

    a coisa: era desajeitado, no conseguia

    fazer uma cesta sequer. Rodman tinha

    desistido do esporte e arrumado su-

    bempregos at que, de uma hora para

    outra, passou de 1,75 m para 2,03 m.

    No livro The Sports Gene (O Gene do Esporte, ainda sem edio em por-

    tugus), de David Epstein, a transfor-

    mao de Rodman descrita como se

    a fada do basquete deixasse a habi-

    lidade de fazer cestas debaixo de seu

    travesseiro noite. O prprio Rodman

    mal podia acreditar na transformao

    pela qual havia passado apenas por ter

    aumentado de tamanho e musculatura.

    como se eu tivesse um novo corpo

    que soubesse fazer tudo que o antigo

    no conseguia. Rodman se tornaria,

    ao lado de Scottie Pippen e Michael

    Jordan, multicampeo da NBA com o

    Chicago Bulls, e seria imortalizado no

    Hall da Fama do Basquete.

    Rodman uma mostra de que, pelo

    menos na NBA, a altura faz toda a di-

    ferena, apesar da presena ocasional

    de baixinhos. De acordo com os clcu-

    los de Epstein, a chance de um homem

    entre 1,82 m e 1,88 m entrar na NBA

    de 5 em um milho. Se ele tiver at

    1,93 m, a probabilidade quatro vezes

    maior. Agora, se sua altura estiver entre

    2,08 m e 2,13 m de altura, so 6.400

    vezes mais chance de participar da liga.

    Na verdade, de cada seis homens com

    2,13 m de altura, bem provvel que um

    j esteja na NBA. Mas quais so os genes

    que regulam a altura? O melhor estu-

    do sobre o assunto, publicado em 2010

    na respeitada revista cientfica Nature Genetics, conseguiu determinar apenas 45% da variao em adultos achar to-

    dos os genes vai levar muito mais tempo

    do que os cientistas esperavam.

    Aps 2 mil horas de treinos, McLaughlin tinha um handicap de 12

    Agora, com 5 mil horas, marcou 2,8

    12

    10

    8

    6

    08/2011 08/2014

    4

    2

    0

    532 0 1 4 / A G O S T OA G O S T O / 2 0 1 45 2

  • RESULTADO:No atleta, o

    sangue conse-guia carregar at 50% mais

    oxignio, o que leva a menos

    cansao

    HOMEM COMUM:

    140 a 186g/L

    Glbulos vermelhos

    EERO MNTYRANTA:

    > de 200g/L

    FOTO: United Archives

    NATURALMENTE DOPADO MEDALHISTA OLMPICO TEVE AJUDA DA GENTICA

    Nas Olimpadas de Inverno de 1964, na ustria, o finlands Eero Mn-tyranta venceu a corrida de esqui cross-country de 15 quilmetros 40 segundos frente do segundo colo-cado, uma margem nunca igualada. O esquiador, considerado uma lenda do esporte, ganharia sete medalhas na carreira, trs delas de ouro.

    Muito tempo depois, em 1993, cientistas encontraram quantida-de anormal de hemoglobina no seu sangue (veja ao lado). Como ele pos-sua muito mais glbulos vermelhos, seu sangue era capaz de carregar 50% mais oxignio, uma vantagem e tanto para reduzir o cansao em esportes de longa durao. O res-ponsvel por isso uma mutao gentica no gene EPOR. O efeito dela semelhante ao do hormnio eritropoetina, aquele injetado pelo ciclista Lance Armstrong quando ele foi pego no antidoping e banido do esporte. O caso acendeu um debate sobre o quanto o esporte, mesmo sem dopping, realmente justo.

    Mas se difcil identificar as mar-

    cas genticas da altura, os genes que

    podem predizer se uma pessoa vai se dar

    bem nos exerccios foram investigados

    por um dos maiores estudos do gnero

    j realizados. Batizado de Heritage, a

    pesquisa submeteu 481 participantes a

    cinco meses de exerccios em bicicletas

    estacionrias, trs vezes por semana,

    em intensidades crescentes, tudo con-

    trolado em laboratrio. Tambm coletou

    o DNA de todos os participantes.

    Um dos objetivos era descobrir quais

    genes determinavam a capacidade ae-

    rbica da pessoa a quantidade de

    oxignio que algum usa durante a pe-

    dalada ou a corrida. Quanto maior o uso

    de oxignio, mais resistncia a pessoa

    tem. Depois de quatro anos reunindo

    e analisando os dados, notou-se que

    pessoas da mesma famlia tendiam a

    apresentar melhorias semelhantes. Em

    2011, o grupo divulgou ter identificado

    21 variantes genticas que predizem a

    capacidade. Quem tinha ao menos 19

    variantes melhorou sua capacidade ae-

    rbica trs vezes mais do que os que

    tinham menos que 10 variantes.

    GENE DA VELOCIDADEH um gene, porm, totalmente identifi-

    cado com a velocidade. Ele responde pe-

    la produo da protena alfa-actinina 3

    (ACTN3). A partir de 1999, a geneticis-

    ta Kathryn North, da Universidade de

    Sydney, comeou a investigar uma mu-

    tao nesse gene que inibia a produo

    da protena. Kathryn colheu DNA de

    quem mais tem msculos de contrao

    rpida: corredores de elite. Os resulta-

    dos foram reveladores: quase nenhum

    dos corredores apresentava a mutao

    (ou seja, todos tinham produo da

    ACTN3, o que ajuda na exploso mus-

    cular). Aps publicar seu estudo, ou-

    tros cientistas ao redor do mundo re-

    produziram o trabalho em seus pases

    e encontraram os mesmos resultados:

    corredores no possuem essa mutao.

    Um dos locais onde isso aconteceu

    foi na Unesp, em Bauru, onde pesqui-

    sadores esto verificando a presena

    dessa protena em atletas da categoria

    de base do So Paulo Futebol Clube.

    Atletas que no possuem a mutao

    saltam mais e so mais velozes do que

    os que a possuem, afirma o pesqui-

    sador Thiago Dionsio. Os resultados

    ainda devem ser divulgados, mas outro

    trabalho brasileiro, do fisiologista da

    equipe de futebol do Cruzeiro, Eduardo

    Pimenta, tambm encontrou relaes

    referentes a esse gene. Segundo ele,

    os jogadores da equipe que tm mais

    ACTN3 so mais velozes. J os que no

    fabricam a protena costumam ser mais

    lentos, mas suportam exerccios por

    perodos mais longos.

    Para alm de explicar a exploso mus-

    cular, a gentica comea a se intrometer

    no papel da dedicao ao treinamento.

    Sobre isso, no faltam frases como a de

    Wayne Gretzky, um dos maiores jogado-

    res de hquei de todos os tempos, que

    dizia que talvez no tenha sido talento

    que Deus tenha me dado, e sim a pai-

    xo, ou exemplos como o do campeo

    mundial de boxe Floyd Mayweather Jr.,

    conhecido por acordar no meio da noite

    e forar sua equipe a acompanh-lo a

    uma academia. Mas acontece que toda

    essa motivao pode ser mais que ape-

    nas fora de vontade. Um estudo feito

    em 2006 com 37.051 irmos gmeos de

    sete pases, publicado no respeitado pe-

    ridico cientfico PLOS ONE, concluiu que de metade a trs quartos da quanti-

    dade de exerccio que uma pessoa prati-

    ca pode ser atribuda herana gentica,

    enquanto outros fatores, como o acesso

    a uma academia, tm baixa influncia.

    E OS JAMAICANOS?No incio deste texto, damos como favas

    contadas a vitria de um jamaicano nas

    Olimpadas do Rio. Mas ainda resta sa-

    ber por que aquela pequena ilha no Ca-

    ribe produz tantos campees em srie.

    H duas histrias que podem explicar o

    fenmeno. A primeira diz respeito a seus

    ancestrais, escravos guerreiros de Gana

    e da Nigria, que se rebelaram assim que

    chegaram ilha. Em 1738, os escravos

    massacraram as tropas britnicas que

    tentaram invadir os domnios rebeldes.

    A teoria advinda dessa histria que a

    seleo j comeava na frica, quando

    eram vendidos os mais fortes. A hist-

    ria bonita, mas estudos genticos no

    confirmam a lenda.

    Uma explicao melhor est no fato

    de que praticamente toda a populao

    jamaicana tem o gene ACTN3 sem a mu-

    tao, o que os faz timos corredores.

    Mas outras ilhas caribenhas possuem a

    mesma composio gentica e nem por

    isso produzem tantos corredores. Quan-

    do Yannis Pitsiladis, bilogo da Uni-

    versidade de Brighton, comparou duas

    dzias de variantes genticas ligadas

    corrida entre corredores jamaicanos e

    um grupo controle, ele achou mais ge-

    nes certos nos jamaicanos, mas no

    dramaticamente. Um dos estudantes de

    graduao de Pitsiladis, usado no grupo

    controle, tinha mais variantes de corrida

    que Usain Bolt, por exemplo.

    Polmica semelhante envolve os cor-

    redores quenianos, que costumam do-

    minar maratonas em vrias cidades do

    mundo (incluindo a So Silvestre, em

    So Paulo). Uma srie de estudos veri-

    ficou aspectos da estrutura fsica deles

    que podem ajudar, mas no h consenso

    entre os pesquisadores e nem evidncias

    claras de um papel predominante da ge-

    ntica ali. Contribui para a indefinio

    o fato que a corrida de longa distncia

    extremamente popular por l.

    A posio de boa parte dos cientistas

    hoje fica, portanto, no meio do caminho:

    tanto os corredores da Jamaica quanto

    os quenianos podem se beneficiar de

    uma combinao entre gentica e popu-

    laridade do esporte. O estdio nacional

    de Kingston, por exemplo, costuma ficar

    lotado com 35 mil pessoas em compe-

    ties de jovens atletas, com campees

    olmpicos circulando entre o pblico.

    Em algum momento, toda criana ou

    adolescente disputa as corridas juvenis

    no pas. As faculdades locais do gordas

    bolsas de estudo para os melhores at

    maiores que algumas nos EUA. A corri-

    da o futebol da Jamaica, e do meio dos

    milhares de novos talentos, eles encon-

    tram seus novos Usain Bolts.

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