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VEREDAS FAVIP - Revista Eletrônica de Ciências - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010 Fellipe de Andrade Abreu e Lima Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). É mestre em Teoria e História da Arquite- tura e do Urbanismo / Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (2007). É doutorando em His- tória e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Conselheiro Científico da Revista Eletrônica de Ciências - Veredas FAVIP. É professor, tradutor e profis- sional liberal. Autor do Livro "A Obra e o Tratado de Arquitetura de Giacomo Barozzi da Vignola", “A Tratadística do Renascimento – 1452”, dedica-se em especial à Teoria , História, Crítica e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. E-mail: [email protected] A GÊNESE DA IDÉIA DE URBANÍSTICA NO QUATTROCENTO R ESUMO A BSTRACT Este ensaio tem como objetivo conceber uma noção de unidade sistemática na gênese da idéia de urbanís- tica na teoria da arquitetura do Renascimento. Este fenômeno surge com o tratado de Leon Battista Alberti e se for- talece com a tratadística do Antonio do Pietro Averlino e Francesco di Giorgio Martini. Vislumbrando as particu- laridades de cada um destes autores em seus contextos gerais, pretendemos, antes de anunciar que houve mudan- ças conceituais na idéia de urbanística, anunciar os fatos históricos que corroboram para a confirmação de sua gêne- se e, posteriormente, a transformação de sua idéia ao longo do século XV. Neste estudo não cabe verificarmos se estas transformações conceituais são fruto ou semente do dueto indivíduo-sociedade, tendo em vista que todo o indivíduo cria uma ação social e sofre uma ação da sociedade na qual se insere, mesmo que esta seja uma nec-ação. Esta depende apenas de como colocamos a questão; o significado que precisa imbuir é o mais importante. Palavras-chave: Teoria da Arquitetura e do Urbanismo. Tratadística. This assay has as objective to conceive a notion of systematic unit of genesis of the idea of urbanism in the theory of the architecture of the Renaissance. This phenomenon appears with the treatise of Leon Battista Alberti and is fortified with the treatises of Antonio di Pietro Averlino and Francesco di Giorgio Martini. Glimpsing the particularities of each one of these authors in its general contexts, we intend, before announcing that it had conceptual changes in the urban ideas, to announce the historical facts that corroborate for the confirmation of its th genesis, and later, the transformation of its idea throughout the 15 century. In this study it does not fit to verify if these aconceptual transformations are fruit or seed of the dueto individual-society, in view of that all the individual creates a social action and suffers an action from the society in which if it inserts, exactly that this are an nec-action. This depends only on as we place the question; the meaning that it needs is the most important. Keywords: Architectural and Urban Theory. Treatise.

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  • VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    Fellipe de Andrade Abreu e LimaArquiteto e Urbanista formado pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). mestre em Teoria e Histria da Arquite-tura e do Urbanismo / Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (2007). doutorando em His-tria e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo (FAU-USP). Conselheiro Cientfico da Revista Eletrnica de Cincias - Veredas FAVIP. professor, tradutor e profis-sional liberal. Autor do Livro "A Obra e o Tratado de Arquitetura de Giacomo Barozzi da Vignola", A Tratadstica do Renascimento 1452, dedica-se em especial Teoria , Histria, Crtica e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. E-mail: [email protected]

    A GNESE DA IDIA DE URBANSTICA NO QUATTROCENTOR E S U M O

    A B S T R A C T

    Este ensaio tem como objetivo conceber uma noo de unidade sistemtica na gnese da idia de urbans-tica na teoria da arquitetura do Renascimento. Este fenmeno surge com o tratado de Leon Battista Alberti e se for-talece com a tratadstica do Antonio do Pietro Averlino e Francesco di Giorgio Martini. Vislumbrando as particu-laridades de cada um destes autores em seus contextos gerais, pretendemos, antes de anunciar que houve mudan-as conceituais na idia de urbanstica, anunciar os fatos histricos que corroboram para a confirmao de sua gne-se e, posteriormente, a transformao de sua idia ao longo do sculo XV. Neste estudo no cabe verificarmos se estas transformaes conceituais so fruto ou semente do dueto indivduo-sociedade, tendo em vista que todo o indivduo cria uma ao social e sofre uma ao da sociedade na qual se insere, mesmo que esta seja uma nec-ao. Esta depende apenas de como colocamos a questo; o significado que precisa imbuir o mais importante.

    Palavras-chave: Teoria da Arquitetura e do Urbanismo. Tratadstica.

    This assay has as objective to conceive a notion of systematic unit of genesis of the idea of urbanism in the theory of the architecture of the Renaissance. This phenomenon appears with the treatise of Leon Battista Alberti and is fortified with the treatises of Antonio di Pietro Averlino and Francesco di Giorgio Martini. Glimpsing the particularities of each one of these authors in its general contexts, we intend, before announcing that it had conceptual changes in the urban ideas, to announce the historical facts that corroborate for the confirmation of its

    thgenesis, and later, the transformation of its idea throughout the 15 century. In this study it does not fit to verify if these aconceptual transformations are fruit or seed of the dueto individual-society, in view of that all the individual creates a social action and suffers an action from the society in which if it inserts, exactly that this are an nec-action. This depends only on as we place the question; the meaning that it needs is the most important.

    Keywords: Architectural and Urban Theory. Treatise.

  • 4A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    1 A GNESE DE UM FENMENO

    A arquitetura uma cincia adornada com numerosos ensinamentos tericos e com diversas instrues, que servem de ditame para julgar as obras que alcanam sua perfeio mediante as demais artes. Este conhecimento surge da prtica e do raciocnio.

    Vitrvio

    A transio do mundo feudal medieval para o incio da era moderna, em fins do sculo XIV e incio do XV, foi determinante para o surgimento de uma nova scientia teortica que tentava abordar a cidade, alm da arquitetura, claro, que esta continha. Neste contexto de transio cultural e de ascenso de novos valores histricos, polticos e sociais nasce um movimento intelectual de renovatio humanista no qual, baseando-se na revalorizao da antiguidade clssica, os intelectuais propem, pela primeira vez, o problema consciente da cidade enquanto sede poltica de uma sociedade organizada. Como enfatizou Argan, de fato, construiu-se no mbito da cultura humanista, pela primeira vez aps o fim do mundo clssico, uma teoria ou cincia da cidade, uma urbanstica. (ARGAN, 1999, p.56).

    A arquitetura uma cincia se que podemos dizer assim que surge a partir de uma atividade instintiva do Homem, e como sabemos, quaisquer atividades que a espcie humana desenvolve, mesmo as de origem instintiva, implicam categorias de conhecimento, relacionadas com um processo de aprendizado, de aperfeioamento e de transmisso. Evidentemente, isso acontece com todas as prticas sociais, inclusive com a arquitetura e o urbanismo. A practica a atividade humana consciente que gera uma transformao em certos aspectos da realidade individual ou social . O que caracteriza diferentemente as mltiplas atividades geradoras de conhecimento o grau e a forma de organizao deste conhecimento. No caso da arquitetura, o conhecimento dela derivado conhece, h pelo

    menos vinte sculos, uma forma de organizao, a qual se d, h menos tempo, o nome de Teoria da Arquitetura. Contudo, no que toca ao que conhecemos como Urbanismo, esta teorizao nasceu em 1452, com a publicao do tratado De Re Aedificatoria de Leon Battista Alberti (1404-1472). No que toca teoria da arquitetura, seu nascedouro est marcado no ano 27 a.C., poca do imperador Romano Augusto, com a concluso do seu tratado de arquitetura, o primeiro que foi escrito na histria da humanidade. Marcus Vitruvius Pollio, escreveu o Os Dez livros da Arquitetura, ou melhor, o De Architectura Libri Decem. O significado maior deste trabalho est em dois fatos: primeiro por ter sido o primeiro tratado de arquitetura que se conhece na histria, e segundo, por ter estabelecido os preceitos e princpios necessrios uma determinada codificao de uma cincia da arquitetura. certo que a arquitetura se tornou uma (tkhne) antes de se tornar uma (epistme), mas antes mesmo de ser tcnica ela precisou nascer. Sobre este nascimento, sob este mito da cabana primitiva, Vitrvio disse que:

    Como, diferentemente dos animais, os h o m e n s r e c e b e r a m d a n a t u r e z a primeiramente o privilgio de andar ereto e no inclinados em direo terra e o poder de contemplar a magnificncia do mundo e das estrelas; e secundariamente, a aptido de fazer com grande facilidade com suas mos e os rgos de seu corpo tudo quanto se proponham, comearam alguns a procurar telhados utilizando ramagens e outros a cavar grutas sob os montes, e alguns a fazer, imitando os ninhos das andorinhas com barro e ramagens, recintos onde proteger-se. (apud BLNQUEZ, 1955, p. 36)

    De acordo com Vitrvio a arquitetura era uma scientia nascitur ex fabrica et ratiocinatio, um conhecimento que se adquire com a prtica e com a teoria. No h, enfim, dvidas ao fato de ter sido Vitrvio o primiero terico da arquitetura. No que toca ao mrito do seu trabalho Benjamin Farrington, j nos esclareceu que

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  • 5Conhecemos os nomes e os epitfios encomisticos de arquitetos egpcios, mas no temos notcia nem de mesopotmios, nem de hebreus, nem de cretenses. Divulgaram-se muitos nomes de arquitetos gregos, mas as suas produes no deixaram vestgios. Para ns, a literatura arquitetnica inaugurada por Vitrvio, fato que no pode ser atribudo a acidente histrico, e sim ao mrito, clareza, ordem e utilidade prtica desse trabalho (FARRINGTON, 1961, p.224).

    Apesar do exposto, sabemos que a classificao da arquitetura como cincia ou como conhecimento data do sculo XVII. Ou seja, a teoria da arquitetura como disciplina acadmica parte juntamente com a fundao, em Paris, da Academie Royale d'Architecture, em 1671. Deste mesmo modo, a teorizao de um urbanismo ou cinca urbanstica como mencionou Argan tem nascimento marcado no incio no sculo XV, com o De Re Aedificatoria. Acerca da importncia do tratado de Alberti, Franoise Choay afirmou que:

    Ao mesmo tempo que um gnero discursivo original, o tratado de arquitetura que, da Itlia, se espalhar por toda a Europa para encontrar na Frana, nos sculos XVII e XVIII, sua era de eleio e perdio, o De re aedificatoria cria seu prprio campo terico e prtico. Impe ao arquiteto uma tarefa que vai mudar seu estatuto social: implica a formao de uma nova categoria profissional, irredutvel dos antigos construtores. (CHOAY, 1985, p.3)

    Enfaticamente sabemos que Alberti, seguindo a matriz vitruviana, deu o passo para tornar a arquitetura uma cincia ensinada e transmitida de acordo com os princpios cientficos. Contudo, questiona-se neste perodo, e at mesmo nos dias de hoje, o que se caracteriza como conhecimento dentro do mbito da arquitetura e do urbanismo. A primeira dimenso do conhecimento, tanto no mbito da arquitetura como no de qualquer outra prtica social, se realiza a partir da apreenso da

    realidade. Mas este conhecimento se presta, igualmente, para a realizao daquele processo a que se fez referncia anteriormente; o conhecimento se manifesta tanto na representao da realidade quanto na sua modificao. Poderamos dizer que, na arquitetura como em qualquer outra prtica social, o c o n h e c i m e n t o c o m p o r t a u m d o m n i o representativo da realidade e um domnio operativo. O conhecimento, de acordo com Abbagnano :

    'O conhecimento ' em geral, uma tcnica para verificao de um objeto qualquer, ou disponibilidade ou a posse de uma tcnica semelhante. Por tcnica de verificao deve entender-se qualquer procedimento que torne possvel a descrio, o clculo ou a previso controlvel de um objeto; e por objeto deve entender-se qualquer entidade, fato, coisa, realidade ou propriedade, que possa ser submetido a um tal tratamento. (ABBAGNANO, 1970, p.160)

    No plano epistemolgico, as opinies padecem sempre de uma precariedade congnita, se cotejadas com os fatos; mas, para efeito do estudo das modalidades discursivas na arquitetura, as opinies constituem um elemento importantssimo, pois representam um papel preponderante nas doutrinas que presidem a produo da chamada arquitetura erudita. Mesmo aquelas doutrinas supostamente derivadas da razo geralmente, todas o pretendem ser tm, no fundo, sua origem na opinio. Sempre que o projetista, em vez de arrolar argumentos para explicar suas prprias decises, invocar o sentimento ou preferncias subjetivas, estaremos diante da opinio convertida em diretriz da ao. Uma determinada opinio, quando unnime ou majoritria, adquire um peso doutrinrio considervel, e tende ser aceita pacificamente como critrio de avaliao. Da mesma forma e conforme as circunstncias, a opinio, quando emitida por alguma personalidade respeitada no campo de conhecimento considerado, se transforma naquilo que, no mbito da lgica, se chama de argumento da autoridade.

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  • 6A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    Neste contexto de crtica acerca do que o conhecimento, as cidades de Veneza e Florena tiveram grande importncia no desenvolvimento cultural do Renascimento. A prpria noo de historiografia renasce neste perodo em Florena, que se torna o centro de surgimento e desenvolvimento de artistas nos sculos XIV e XV. Sobre este perodo de reflorescncia cultural, Jacob Burckhardt afirma que:

    A mais elevada conscincia poltica, a maior r i q u e z a e m m o b i l i d a d e s d e desenvolvimento humano encontram-se reunidas na histria de Florena, que, nesse sentido, por certo merece o ttulo de primeiro Estado Moderno do Mundo.

    1(BURCKHARDT, 2003, p.71)

    Ressalta-se que o conhecimento anterior, principalmente no que se refere ao saber construtivo da arquitetura, era executado pelos mestres de ofcio. No campo da arquitetura, pode-se mencionar o esforo de Brunelleschi na emancipao do magister operis medieval, em verdadeiro architector renascentista. A cpula projetada, com o dimetro de quarenta e trs metros, tinha sua base acerca de quarenta metros acima do piso, situao para a qual os construtores da poca no tinham soluo. A partir de ento, foi concebido um processo construtivo revolucionrio, que dispensava o cimbramento, o que possibilitou a concluso da obra

    2em 1464 . Neste momento, inicia-se a grande revoluo da arquitetura do Renascimento.

    A mudana cultural deste procedimento foi sentida em pouco tempo. A tcnica, produto de um procedimento intelectual, fortaleceu a imagem do arquiteto como o profissional capaz de resolver problemas construtivos nunca antes imaginados. A cultura de se construir a partir de uma tradio oral foi interpretada por Krautheimer (1942, p. 1-33)

    como um reflexo da cultura crist medieval. O fato que quando se redescobriu uma cpia do tratado de Vitrvio:

    ... os homens interessados pela arquitetura no estavam preparados para enfrentar nem a difcil tarefa de traduzir para termos modernos uma linguagem e uma profisso esquecidas, nem uma esttica arquitetnica baseada, em grande parte, em um modelo, uma tcnica e um sistema de desenho ornamental que lhes eram desconhecidos. (WIEBENSON, 1988. p.11)

    Com a posterior difuso do De Re Aedificatoria de Alberti, a tradio medieval de construo baseada no conhecimento oral se transformou. A difuso dos livros possibilitou uma at ento desconhecida forma de transmisso do conhecimento. Contudo, estes fatos por si ss, no justificam um grupo to vasto de gnios como houve na Itlia do Renascimento. Leonardo Bruni, humanista do perodo, achava que a resposta estava na atuao poltica do Estado Florentino. Outros especialistas acham que o comrcio e o desenvolvimento atuam na produo cultural. De uma forma ou de outra, o importante foi o esprito crtico que surgiu nos primeiros humanistas, a inquietao frente aos escolsticos e o amor ao conhecimento.

    Podemos identificar no pensamento huma-nista dos sculos XIV e XV o embrio daquilo que hoje denominamos pensamento moderno, por oposio ao pensamento medieval e arcaico. E, no que concerne ao tema destas notas, sugestivo informar que igualmente encontramos no sculo XV, nos termos enunciados por Leon Battista Alberti, o conceito ideal-tpico do arquiteto criador por excelncia. Efetivamente, Alberti, no prlogo de seu De Re Aedifcatoria, texto instaurador da literatura

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    1 BURCKHARDT, Jacob Christoph. Fundador da Histria Cultural, este autor escreveu A Cultura do Renascimento na Itlia e A Arquitetura do Renascimento, dentre outros livros, no sculo XIX.

    2Delumeau registra que os florentinos viram com espanto e no sem inquietao () a grandiosa cpula erguer-se sem um andaime exterior, sem contrafortes e sem arcobotantes (1984, v. 2, p. 162).

  • 7temtica da arquitetura, estabeleceu um sinttico 'perfil' do profissional arquiteto:

    Mas antes de prosseguir, entretanto, devo explicar exatamente a quem me refiro como arquiteto: pois no ser um carpinteiro que eu equipararei aos mais capacitados mestres em outras cincias; o carpinteiro nada mais que um instrumento nas mos do arquiteto. Chamarei de arquiteto aquele que, atravs de acurados e maravilhosos razo e mtodo, capaz, com o pensamento e a inveno, de conceber e, com execuo, de realizar todas estas obras as quais, por intermdio do movimento de grandes massas, e da conjuno e reunio dos corpos, podem, com a maior beleza, se adaptar ao uso do gnero humano; e, para estar apto a faz-lo, ele dever ter um pleno conhecimento das mais nobres e mais curiosas cincias. Assim deve ser o arquiteto. (ALBERTI, 1485, p.3)

    A mudana cultural deste procedimento foi sentida em pouco tempo. A tcnica, produto de um procedimento intelectual, fortaleceu a imagem do arquiteto como o profissional capaz de resolver problemas construtivos nunca antes imaginados. Juntamente com Brunelleschi, Leon Battista Alberti contribuiu decisivamente para estas transformaes. O tratado de arquitetura de Alberti, o De Re Aedificatoria, foi o primeiro marco da tratadstica do Renascimento. Esta obra tornou-se o mais importante manual tcnico e filosfico da arquitetura do sculo XV. Tanto Alberti quanto Brunelleschi contriburam para a conceituao da arquitetura como cincia. Mas h diferenas entre estes dois gnios. Alberti estabeleceu uma diferena em relao quele papel exercido por Filippo Brunelleschi, pioneiro inconteste da arquitetura renascentista, que comandava in loco as operaes de construo da cpula da catedral de Florena. A sociedade renascentista viveu uma transformao intensa em apenas um sculo, se compararmos aos

    dez sculos passados desde a Idade Mdia, transformando sua apreenso de si mesma. O arquiteto surgiu como uma nova profisso em alta qualificao social. A educao, em conseqncia, transformou-se rapidamente.

    O termo arkhitekhton, em Plato e Aristteles, designa, por oposio ao operrio ou ao arteso que executa o trabalho, o profissional que dirige os trabalhos do alto: sua atividade intelectual, essencialmente matemtica. Para Aristteles, o arquiteto mais sbio que o trabalhador manual. Na sua Metafsica, Aristteles diz que o homem de experincia parece ser superior ao possuidor de conhecimentos sensveis, o artista ao homem de experincia, o arquiteto ao artfice, e as cincias

    3tericas s cincias prticas . A cultura grega e romana antiga no via na arquitetura uma cincia

    4especulativa. A arkhitektonike techne , isto , o ofcio arquitetnico ou ofcio do arquiteto, era reconhecido como uma cincia que podia, inclusive, ser transmissvel. Sobre o conceito de arkhitekhton referido por Aristteles e Plato, Vernant diz que:

    Possuindo os elementos de um saber terico, ele pode transmiti-lo por um ensinamento de carter racional, muito diferente da aprendizagem prtica. Tal como em medicina, o verdadeiro iatros distingue-se do prtico comum por seu conhecimento da natureza e das causas gerais das doenas, o arkhitekhton, no mbito da sua atividade [...], apia-se em uma techne que se apresenta sob a forma de uma teoria mais ou menos sistemtica. (VERNANT, 1990, p.288)

    Um importante fator de fortalecimento da teoria da arquitetura e do urbanismo do perodo, alm, claro, dos financiamentos para tradues dos textos antigos e criao de novos livros, foi a conceituao da profisso feita por Alberti. Para este

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    3 ARISTTELES. Metafsica. Madrid: Gredos, 1987. p.7. 4O termo arkhitektonike techne (a)rxitextonixv/ te/xnv)) traduzvel como arte do mestre-carpinteiro ou tcnica do mestre-carpinteiro. Traduo Nossa.

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    erudito, o desenho era a ferramenta fundamental que est em seu domnio, considerando omnia materia exclusa, ou seja, abstraindo toda a matria. A arte e, conseqentemente, a arquitetura tornaram-se cincias durante o Renascimento, incorporando a viso humanista do mundo, tomando o ser humano como referncia para a cincia e afastando-se da cultura medieval. O magister operis medieval estava definitivamente separado do artista intelectual da Renascena. O ponto fundamental reconhecer que Alberti converteu a ars aedificandi em uma cincia pragmtica, coordenada pela razo e pela lgica cientfica, do mesmo modo como se tentava fazer com temas filosficos, jurdicos ou teolgicos. Uma ao que resultou na transposio qualitativa perceptvel na anlise histrica.

    A observao dos tratados da arquitetura do Renascimento faz perceber que havia princpios para nor tear o processo pro je tua l , po i s, o antropocentrismo do Renascimento emergiu, tornando o homem a referncia para si mesmo. A sociedade perfeita, formada por homens perfeitos, deveria expressar uma arquitetura que espelhasse esta harmonia. Com a redescoberta do texto vitruviano que exaltava a natureza e o ser humano, os tratadistas do Renascimento tiveram nas runas romanas o contedo material para testar as propores e as medidas descritas por Vitrvio. Para esclarecer os princpios da arquitetura do Renascimento, deve-se ento, tomar por base as tratadsticas de Vitrvio e Alberti. Vitrvio foi a base epistemolgica para a teoria da arquitetura no Renascimento e Alberti foi o precursor desta teoria no sculo XIV. Ao longo do De Architectura Libri

    Decem, Vitrvio menciona que:

    A arquitetura depende da ordem (ordinatione), da simetria (eurythmia et symmetria et decore et distributione), da propriedade (dispositione), da economia e do

    5ritmo. (VITRVIO, Livro I, Parte II, 1998)

    A parte II do Livro I do tratado de Vitrvio influenciou enormemente os tratadistas do Renascimento inclusive Alberti pois defendeu que existe uma diferena entre arquitetura e construo. Esta distino se apia, alm da emoo, na categoria da beleza, manifestada atravs de uma harmonia universal que manifestada na natureza e no homem. O redescobrimento dos textos

    6antigos , anteriores mesmo ao prprio Vitrvio, que mencionam a harmonia existente no ser humano, foi esclarecedor para os tratadistas formularem novos princpios, ou melhor, criarem uma linguagem arquitetnica nova baseada em princpios eternos.

    Vitrvio via na natureza a fonte de inspirao para a arquitetura. Esta viso, baseada nas regras e propores da matemtica e da geometria euclidiana, foi adotada por Alberti e manifestou-se no seu tratado de arquitetura. Esta nova forma de difuso do conhecimento, diferente do conhecimento oral medieval, favoreceu a percepo da arquitetura como cincia. O tratado de arquitetura podia transmitir mais que regras de construo. Alis, o tratado deveria ser algo muito mais complexo que apenas materiais e tcnicas construtivas, abordando desde a casa at a cidade.

    Neste ponto, podemos

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    5Texto Original: Architectura autem constat ex ordinatione, quae graece ? dicitur, et ex dispositione, hanc autem Graeci ? vocitant, et eurythmia et symmetria et decore et distributione, quae graece ?? dicitur (Vitrvio. Livro I, Parte II). Traduo Nossa. Os textos em Grego so includos no texto em latim, por Vitrvio.

    6 Os textos antigos que influenciaram os tratadistas do Renascimento foram, basicamente: Teeteto, Crtias e Fdon, de Plato (traduzidos por volta de 1415). De Divina Proportione e Summa Arithmetica de Pacioli (1494). De Revolutionibus de Coprnico (1543). Todos estes textos mencionam a existncia do nmero de ouro grego , como sendo um nmero que manifesta toda a harmonia universal. Leonardo da Vinci, entre 1452 e 1519, desenha o Homem Vitruviano, provando que a relao entre as diversas partes do corpo humano so relacionadas proporcionalmente ao nmero de ouro , que equivale a

    aproximadamente a 0.618.

  • 9perceber que a viso vitruviana de que h princpios racionais que devem basear o pensamento arquitetnico, levou Alberti a considerar a matemtica e a geometria como a base dos princpios do desenho na arquitetura. Surge, exatamente neste perodo, a diferenciao entre construo e arquitetura. A idia de que h algo alm da matria e que pousa no campo esttico. Esta uma nova maneira de se perceber o mundo, que em verdade, produto das foras sociais. A separao entre construo e arquitetura surgia de maneira conceitual a partir de ento, colaborando para concretizao e conceituao de uma complexa teorizao da arquitetura. Roger Scruton, por exemplo, escreve sobre este tema que:

    A idia de uma separao fundamental entre a construo como arte e a construo como ofcio era - para os primeiros tericos do Renascimento - completamente inconcebvel. E no teria sentido, pois, aos pensadores daquela poca (sculo XIV), a natureza esttica da manifestao arquitetnica no exclua sua configurao material. (SCRUTON, 1983, p.31)

    Ao longo do Renascimento, esta idia se transformou e a arquitetura se tornou, cada vez mais, uma arte fundamentada em princpios, graas s contribuies de tratadistas como Alberti. A diferenciao conceitual entre arquitetura e construo contribuiu, por sua vez, para que estes princpios arquitetnicos se aliceram em conceitos esttico-matemticos, baseados em propores ureas, mdulos e relaes entre as partes do edifcio. Sobre este assunto, Wittkower menciona que:

    Alberti se mostra explcito em relao ao carter da igreja ideal. Esta deve ser o ornamento mais nobre de uma cidade e sua beleza deve superar toda imaginao. esta beleza dominadora que desperta sensaes sublimes e inspira piedade s pessoas. (1971, p.15)

    O cenrio urbano passou a ser inserido neste

    contexto que passava a valorizar a esttica dos edifcios e a procurar atingir a perfeio. Alberti foi o pioneiro neste rol de autores, preconizando um tratamento diferenciado arquitetura no contexto urbano. Com o advento desta nova teoria da arquitetura ensinada e divulgada por Alberti, os princpios arquitetnicos se tornaram cada vez mais especializados, ou melhor, mais conceituais e matemticos.

    Ao longo do tratado De Re Aedificatoria Alberti tenta explicar o fenmeno de uma cidade que est em harmonia com a natureza e com o homem, vivendo ao mesmo tempo uma constante transformao ao lado da sociedade. A natureza exaustivamente mencionada como a maior fonte de inspirao da arquitetura. Por este motivo, as regras de proporo, encontradas na natureza e no homem, devem segundo Alberti, estar expressas na arquitetura e na cidade, sendo a nica maneira de alcanar a perfeio e harmonia entre arquitetura, cidade e homem.

    Alberti mencionou que, morfologicamente, a cidade circular seria a mais perfeita, apesar de considerar que devem se adequar s condies do terreno. Tambm defendeu a idia de Aristteles para as defesas militares, segundo a qual, necessrio que as cidades se adaptem ao stio, na maioria das vezes, com formas irregulares. Este grande nmero de variveis estabelecidas por Alberti a prpria resposta pergunta do por que no haver ilustraes no seu tratado, vista a dificuldade de se criar uma cidade ideal. Irregulares ou de diversos tamanhos, o fundamental seria que todas as partes da cidade manifestassem a unidade entre arquitetura, espao urbano e natureza.

    Segundo Alberti, os ornamentos (elementos decorativos de uma cidade como fontes, obeliscos ou esculturas) e a convenincia (posies estratgicas de defesa, principais ruas em linhas retas e aproveitamento do declive do terreno) so os

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    A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    elementos da beleza a serem considerados para a cidade. Apesar de ser idealizador de uma cidade ideal, Alberti sabia que seria muito difcil atingir os nveis de perfeio idealizados. O problema no estava, segundo ele, na matria que compe uma cidade, mas na natureza humana.

    A cidade , para Alberti, um ser vivo. Como tal, este corpo est em constante transformao e amadurecimento. Nestes termos, pode-se entender que Alberti via a cidade como mutvel; que acompanhava a evoluo da sociedade e que haveria reformas necessrias com o tempo. A comodidade, como uma faculdade inerente do homem, transforma seu meio adequando-o sua convenincia, ou seja, uma constante que tenta sempre criar novos meios para realizar seus desejos. Ao longo do Livro 4, por exemplo, que trata da cidade e dos edifcios nela inseridos, Alberti menciona que:

    7No diferentemente dele (Plato) ns descreveremos, como modelo exemplar, uma cidade feita para ser julgada convenientemente em todas as suas partes, pelos homens mais sbios; deste modo, dedicar-nos-emos necessidade concreta. Teremos sempre presente o dizer de Scrates: aquela soluo na qual seja evidente que nada se possa mudar que no para pior, de julgarmos como a melhor. (ALBERTI, 1989, p.147)

    No complexo ente vivo que a cidade, Alberti colocou a existncia de duas foras que esto em constante processo dialtico: a voluptas (desejo

    8pelo prazer e pela comodidade) e a cupiditas (fora intrnseca do homem que o leva a realizar seus desejos). Estas foras dialticas atuam na cidade de forma contnua, inclusive nos edifcios que a compem. Deste modo, podemos entender estas

    foras como as variveis da relao entre arquitetura e cidade, dentro da tratadstica de Alberti. Desde o incio do desenvolvimento do seu tratado, Alberti constatou que a partir do momento no qual a necessidade humana de abrigar-se satisfeita, surge uma nova demanda, tendendo a transformar o ambiente construdo de acordo com a imaginao do homem. Esta a chave da constante dialtica entre o homem e a cidade, tornando a cidade uma constante mutao, como o prprio ser humano. Alberti refora o carter mutante do ser humano e da cidade quando afirma que:

    A abundncia e a variedade dos edifcios no se deve ao tipo de uso que feito dele ou ao simples prazer (voluptas) do ser humano em fazer edifcios diferentes, mas diversidade do prprio ser humano. (ALBERTI, 1989, p.265)

    A importncia dada varivel ser humano, ao longo do De Re Aedificatoria, demonstra a complexidade que este tratado atingiu no sculo XV. Neste sentido, Alberti estabeleceu um critrio de anlise urbana tomando como ponto de partida a impossibilidade de encontrar na histria uma resposta definitiva para as variveis voluptas e cupiditas, tendo em vista a constante transformao do homem em relao aos ideais arquitetnicos e urbanos. Deste modo, Alberti colocou um princpio (principio veniet in mentem) de investigao urbana que lhe permitisse criar categorias aplicveis no tratado, entendendo ser possvel estudar o homem como

    9membro da sociedade e como indivduo . Alberti aplica esta idia criando regras gerais e particulares, encarando a complexidade do objeto e do espectador, a do pblico e do privado, a do universal e do particular.

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    7Neste trecho, Alberti se refere a: PLATO. As Leis. Livro V, 746b. 8As Cupiditas e Voluptas conduzem o homem ao trabalhar para diminuir o prprio esforo, criando, cada vez mais, as condies necessrias para seu cio. Traduo Nossa.

    9ALBERTI. De Re Aedificatoria. Livro IV, Captulo I. p.269. Una loci alicujus ncolas universos consideres e Partibus separatos distinctosque recenseas. Texto Original. Traduo Nossa.

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    2 A GNESE DA URBANSTICA EM LEON BATTISTA ALBERTI

    Alberti, precursor de Leonardo, o primeiro terico do classicismo. Marca na histria da esttica uma encruzilhada de suma importncia: uma verdadeira revoluo e oposio contra a esttica medieval. Sua esttica uma esttica da perfeio. O humanismo tem nele o primeiro intrprete de um racionalismo cujo temperamento identifica o belo e o perfeito.

    Raymond Bayer

    Leon Battista Alberti fez a publicao in folio do De Re Aedificatoria em 1452. Este volume, escrito em latim clssico e dedicado ao seu amigo pessoal desde a universidade, o Papa Nicolau V (Tommaso Parentucelli de Sarzana), consagrou-se como o primeiro tratado de arquitetura da Renascena. De forma geral, os livros do De Re Aedificatoria tratam sobre: Livro 1 - O desenho, Livro 2 Os materiais, Livro 3 Execuo da obra, Livro 4 Obras de carter universal, Livro 5 Obras particulares, Livro 6 Os ornamentos, Livro 7 Ornamentos de edifcios religiosos, Livro 8 Ornamentos de edifcio pblicos profanos, Livro 9 Ornamento de

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    Imagem 1. Leon Battista Alberti. Capa do De Re Aedificatoria. Edio em Lngua Florentina, 1550.Imagem 2. Alberti. Prefcio da primeira edio tipogrfica do De Re Aedificatoria. Edio em Latim, 1485.

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    A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    Neste volume escrito por Alberti, a 10metodologia de projeto que abrange o estudo da

    cidade, faz dele, o primeiro terico da arquitetura a ressaltar a importncia da relao entre a obra construda e o espao que a encerra. Alberti, que manteve na sua teoria a concepo da trade vitruviana utilitas, firmitas e venestas, no via distino entre arquitetura, engenharia ou urbanismo. Todas estas cincias estavam contidas dentro de uma nica: a arquitetura. Ao longo dos dez livros que compem seu tratado, Alberti menciona idias sobre uma cidade ideal, principalmente no Livro 4, em que esto contidas as maneiras pelas quais devem ser projetadas as cidades: iniciando com a escolha das regies propcias, a descrio das mais adequadas maneiras de constru-las, a forma das suas muralhas, a escolha dos materiais e a disposio dos edifcios, pontes e praas. Contudo, as descries mtricas no foram o alvo das atenes de Alberti, salvo em alguns casos que menciona medidas aproximadas a serem respeitadas. Baseando-se em duas premissas, primeiro que a sociedade produto das condies naturais, e segundo que forma urbana produto da sociedade, ele conclui que as condies geogrficas influenciam na morfologia da cidade.

    Um dos objetos de estudo do tratado de Alberti um grupo de conceitos intitulado lineamenti. Os lineamenti e a trade numerus, finitio e collocatio so as partes que compem o objeto arquitetnico e os princpios de projeto, respectivamente, que devem reger o pensamento de um arquiteto quando na elaborao de um projeto. O

    que ele chamou de lineamenti est descrito no Livro 1 como as partes componentes da arquitetura material: regio (local), area (terreno), partitio (diviso), parties (partes), tectum (coberturas) e apertio ( a b e r t u r a s ) . E s t e s s e i s co n ce i t o s s o complementares dentro da viso abstrata de Alberti, na medida em que qualquer projeto pode ser construdo a partir da derivao de seus arranjos.

    Apesar de classificar as ruas e ter sido influenciado pelo livro de Vitrvio, Alberti no concorda, enfaticamente, com os cardus e decumanus anunciados pelo tratadista Romano. Segundo Alberti, deveria haver mais de duas grandes vias principais cortando a cidade. O ornamento (elementos decorativos como fontes, obeliscos ou esculturas) e a convenincia (posies estratgicas de defesa, principais ruas em linhas retas e aproveitamento do declive do terreno) so considerados importantes para a sua cidade ideal, e at nas grandes vias que ligam cidades, fazem-se necessrios monumentos que as embelezem. A forma circular seria a mais perfeita, apesar dele considerar que as cidades devem se adequar s condies do terreno e tambm idia de Aristteles para as defesas militares, segundo a qual, necessrio que as cidades se unam ao stio, na maioria das vezes, com formas irregulares. Talvez o grande nmero de variveis estabelecido por Alberti seja a prpria resposta pergunta do por que no haver ilustraes no seu tratado, fato que nos faz imaginar que Alberti j previa a impossibilidade de se criar uma Cidade

    11Ideal . A base epistemolgica para a compreenso

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    10Apesar deste termo ser contemporneo, Alberti inaugurou os conceitos de lineamenti (lineamenta - em Latim), numerus, finitio, collocatio e concinnitas, reforando a idia do estabelecimento de um mtodo prprio de pensar a Arquitetura, ou seja, o primeiro momento em que se aborda a cidade de modo abstrato. Usaremos neste estudo o termo em italiano: Lineamenti.

    11No primeiro momento no qual Alberti explicita a idia de antropometria no seu tratado ele afirma que: Antes de tudo, consideramos que o edifcio um corpo, e, como todos os outros corpos, consiste em desenho e matria: o primeiro elemento neste caso obra do engenho mental , o outro produto da natureza; o primeiro precisa de uma mente racional, para o outro, coloca-se o problema da procura e da escolha justa. ALBERTI. L'Architettura. Prlogo. Volume 1. p.14. Traduo Nossa. Texto original: Nam aedificium quidem corpus quoddam esse anima dvertimus, quodlineamentis veluti alia corpora constaret et materia, quorum alterum istic ab ingenio produceretur, alterum a natura susciperetur: huic mentem cogotationemque, huic alteri parationem selectionemque adhibendam; sed ultrorumque per se neutrum satis ad rem valere intelleximus, ni et periti artificis manus, quae lineamentis materiam conformaret, acesserit. ALBERTI. De Re Aedificatori. Prlogo. Volume 1. p.15.

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    deste novo ideal esttico surge com muita nfase aps a edio do tratado de Alberti, que se inspirando no texto de Vitrvio e sendo um indivduo a pensar isoladamente dentro do seu contexto, defende que mente et animo aliquas

    12aedificationes, corpus quaddam veluti alia corpora , ou seja, mente e corpo formam junto a beleza das edificaes, e o corpo da cidade o reflexo desta perfeio. Neste contexto, necessrio mencionarmos que a concepo de Alberti acerca da cidade, apesar das ressonncias da teoria vitruviana, possui uma especificidade que a torna peculiar, sendo o De Re Aedificatoria o primeiro tratado

    moderno a compreender a cidade e a arquitetura 13como entes inseparveis . Deste modo, a idia de

    antropometria na tratadstica do Renascimento possui uma herana em Vitrvio, que se refere analogia com o corpo humano no segundo captulo do primeiro livro, quando afirma que: Simetria a concordncia correta entre as partes da obra e a relao entre partes diferentes com o esquema todo da obra. Assim, existe um tipo de simetria no corpo humano entre o brao, o p, o dedo, a mo e outras partes pequenas. Isso deve ser a mesma coisa com

    14um edifcio perfeito .

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    12 ALBERTI. De Re Aedificatoria. p.15. Texto Original. Traduo Nossa.13 Alberti entende a relao ntima entre as escalas do ambiente construdo, ou a idia de que cidade, corpo e edifcio so um

    mesmo ente em escalas diferentes; resumida quando ele afirma que Se a cidade, como disseram os filsofos, uma grande casa e a casa no nada mais que uma pequena cidade, por que no dizer que tambm as pequenas partes de uma casa so as mesmas coisas que as pequenas partes de uma cidade? Deste modo, tambm o trio, o jardim ou a sala de jantar ou a entrada so tambm partes menores de uma cidade?. ALBERTI. L'Architettura. Livro 1, Captulo 9, p.22. Traduo Nossa.

    14 VITRVIO. Texto original: Item symmetria est ex ipsius operis membris conveniens consensus ex partibusque separatis ad universae figurae speciem ratae partis responsus. Uti in hominis corpore e cubito, pede, palmo, digito

    Imagem 3. Alberti. Leon Battista Alberti. Edio Francesa do De Re Aedificatoria. Por Jean Martin, 1553. Livro 4. p. 149 . Desenho do sistema construtivo de contrafortes em guas.Imagem 4. Idem. Livro 4. p. 155 . Desenho do sistema construtivo de pontes sobre rios.

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    A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    Analisando o contedo do tratado de Alberti, o Livro 1 trata das regras da concepo arquitetnica, a partir da apresentao de conceitos esttico-filosficos que formulam seus princpios arquitetnicos. O Livro 2 descreve os materiais a serem utilizados para concretizao material do ideal de concinnitas e o Livro 3 reflete sobre as regras da construo, ou seja, sobre a aplicao justa dos conceitos apresentados na material idade arquitetnica. O caminho percorrido por Alberti saiu, a partir de ento, da matria intelectual e chegou aos aspectos concretos da edificao: a relao entre os materiais e a obra arquitetnica. Mas no momento em que os aspectos da utilitas foram chamados tona, surgiu outra varivel na teoria albertiana, ou seja, o carter abstrato das obras destacou-se quando teve incio uma ponderao sobre o uso dos edifcios. Deste modo, o Livro 3 tambm abordou os conceitos de regio (local) e area (terreno), principalmente ao longo dos trs primeiros captulos.

    O Livro 4 dedicado, em sua totalidade, aos edifcios de carter pblico, juntamente com o Livro 5, no qual Alberti incorpora o conceito de comodidade (utilitas), relacionando-os com o espao urbano da cidade atravs das relaes mtricas dos edifcios isolados e entre si. As regras de construo destes edifcios se consolidam a partir da relao dialtica existente no pensamento arquitetnico e no emprego dos materiais de construo descritos no Livro 2. Neste momento do tratado, Alberti faz uso de todos os conceitos mencionados at ento, aplicando-os de forma racional. Os lineamenti e as trs categorias inerentes ao pensar do arquiteto - os conceitos de numerus, finitio e collocatio, formando a concinnitas deveriam dar origem a um projeto de forma que nada deva ser acrescentado (nihil

    15addi) . Toda esta operao intelectual deveria ainda contemplar o que Wittkower conceituou de

    16harmonia , ou seja, o que o prprio Alberti 17menciona como sendo a concinnitas . Ao longo do

    Livro 4, o pensamento objetivo do autor muda quando incluiu uma outra varivel dentro do proceso de projeto: o homem. A incluso do ser humano dentro do projeto intelectual da arquitetura conduz o tratado de Alberti aos limites da complexidade. Sobre este ponto, Choay afirma que:

    A complexidade do tratado de Alberti e sua importncia para a teoria da arquitetura so enormes. O De Re Aedificatoria , para o seu autor, uma atividade filosfica, na qual imperam as reflexes sobre os princpios arquitetnicos, denominados lineamenti e

    outros conceitos de abstrao intelectual.(CHOAY, 1985, p.89).

    O outro livro do tratado que Alberti se dedica mais enfaticamente concepo de cidade o Livro 5, no qual reflete sobre a relao entre os edifcios e a cidade, incluindo o conceito de comodidade (utilitas), de modo que desenvolve a faculdade que possuem os homens de sempre formular novas demandas; propor fins sempre novos a seu desejo. As regras universais de construo de casas, incluindo seus prticos, passagens, vestbulos e aberturas so mencionadas, neste livro, mesmo que de modo pontual. Este fato se explica na medida em que Alberti considera mais importante tratar das variveis contidas nos lineamenti e sua relao com os outros conceitos anunciados. Deve-se salientar que, apesar de tratar-se de regras universais e de mencion-las ao longo do Livro 5, Alberti sempre traz luz a complexidade do ato de projetar: quando devemos sempre considerar o lugar, o clima, o solo, a luz, dentre outras variveis

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    ceterisque particulis symmetros est eurythmiae qualitas, sic est in operum perfectionibus. Livro 1, Captulo 2. Traduo Nossa.15ALBERTI. Ibidem. p.71. Traduo Nossa.16WITTKOWER, 1971, p.8. Traduo Nossa.17Alberti chama este conceito de harmonia, do grego - ai+sqvsij. O mesmo conceito de ai+sqvsij est presente em: Vitrvio. Livro 1. Captulo 2.

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    que incluam os conceitos de numerus, finitio, collocatio e concinnitas. Por fim, necessrio anotar que o Livro 5 faz referncia idia da cidade como um corpo, respeitando a lgica e a articulao entre todos os conceitos descritos at ento.

    Alberti tratou a cidade como uma grande casa, reforando a opo conceitual de estabelecer uma relao entre os edifcios e a cidade. Os demais captulos do Livro 5 se referem, exclusivamente, s regras dos edifcios particulares. A ordem, que seguiu para descrio das regras da edificao foi mencionada no incio do Livro 4. Alberti diferenciou os edifcios de acordo com a posio social dos ocupantes, dos usos e a da forma dos edifcios. Especificamente no Livro 4, Alberti classificou os homens dentro da sociedade, estabelecendo trs classes sociais distintas, relacionadas com os dons do ser humano, que em ordem decrescente so: o dom da razo, o da habilidade manual e artstica e o de

    18acumular riquezas .Alberti trata ainda dos programas de cidades

    do bom prncipe e do tirano. Segundo ele, a cidade tambm depende do modo como gerida, ou seja, em termos atuais, da gesto urbana dos seus dirigentes. Alberti preferiu o bom prncipe ao tirano, mas colocou que o arquiteto deve saber escolher seus clientes e no deve submeter-se s tarefas que iro prejudicar a sociedade. O ideal tico uma fora que deve ser usada a favor da cidade ideal. Compreende-se ento que a viso de cidade ideal de Alberti est mais direcionada satisfao do interesse social do que s formas ou aos espaos

    19construdos .Tambm relevante relembrar que os

    conceitos de lineamenti e a trade que compe a concinnitas (numerus, finitio e collocatio) so partes que, alm de compor o objeto arquitetnico, servem como princpios de projeto das cidades. A

    importncia dada beleza (concinnitas) e relao harmnica das partes de um edifcio nico, estende-se, obrigatoriamente cidade como um todo e relao entre os edifcios e o espao urbano. Para entender a relao de escala, dentro da teoria de Alberti, basta verificar que ele usa o mesmo termo (concinnitas) para descrever a casa nos Livros 1, 2 e 3 ou a cidade nos Livros 4, 5 e 9. Alm disso, os conceitos de regio (local) e area (terreno), que esto implcita ou explicitamente mencionados nos dez livros do tratado, relacionam-se com os conceitos de compartitio (diviso), parties (partes), e com a trade numerus, finitio e collocatio; todos estes ideais devendo, por fim, atingir a concinnitas, ou seja, a perfeita beleza. A relao ntima entre as escalas do ambiente construdo, ou a idia que Alberti tinha de que cidade e edifcio so um mesmo ente em escalas diferentes, resumida quando ele afirma que:

    Se a cidade, como disseram os filsofos, uma grande casa e a casa no nada mais que uma pequena cidade, por que no dizer que tambm as pequenas partes de uma casa so as mesmas coisas que as pequenas partes de uma cidade? Deste modo, tambm o trio, o jardim ou a sala de jantar ou a entrada so tambm partes menores de uma cidade? (ALBERTI, 1989, p.22)

    O plano urbanstico da cidade ideal de Alberti contempla tanto as perspectivas dos espaos urbanos quanto a funcionalidade das principais ruas em linha reta. A modulao que coordena a construo dos edifcios e suas compartitio (diviso), parties (partes) e apertio (aberturas), tambm devem estar regulando os espaos abertos, ou seja, as ruas e praas. Aquedutos, mquinas, veculos, vias de transporte; o processo construtivo, os materiais, o sistema agrcola e o sistema poltico; enfim, tudo que est relacionado com a cidade estava no campo de estudos do arquiteto Alberti. Enfim, Alberti

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    18 ALBERTI. Ibidem. Livro IV, Captulo I. p.271. Paucioribus primariis civibus e Minorum multitudini. Texto Original. Traduo Nossa.19 ambgua esta afirmao de Alberti, tendo em vista que alguns pargrafos antes, ele mesmo havia definido regras construtivas e suas variveis. Autores como Garin (1965) j haviam notado esta contradio terica contida nas palavras de Alberti.

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    A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    enxergou a cidade como um todo: um sistema que para ser perfeito deveria ser pensado como um ente

    20nico .Alm disso, segundo ele, as condies

    econmicas esto relacionadas com a situao poltica e vice-versa. Era muito complexo, para um arquiteto do sculo XV ou XVI, pensar todas estas variveis dentro de um projeto de arquitetura. No era possvel para um nico profissional, como o caso do arquiteto, ampliar ainda mais seu campo de atuao. Se a economia permitia e exigia novas representaes espaciais e construtivas, como fortalezas e cidades fortificadas, novas pesquisas seriam desenvolvidas para responder aos anseios da prpria sociedade. O surgimento dos engenheiros militares, mecnicos, astrnomos, economistas, dentre outros, foi graas s sementes plantadas pelos livros e tratados surgidos no sculo XV, dentre estas, os de Leon Battista Alberti. Para este uomo universale, o maior triunfo dos arquitetos era a criao das mquinas de guerra e as fortalezas, sem deixar de lado a idia de uma cidade perfeita.

    3 A 'PERMANETIA' DA URBANSTICA NO QUATTROCENTO

    A liberdade que o artista requer no a liberdade da voluntariedade individualista, mas a liberdade de desafiar a dificuldade. A liberdade absoluta de que falam os idealistas no pode existir para nenhum membro da sociedade, seja ou no artista. Sua liberdade se v limitada pelos circundantes tempo ou lugar.

    Honor Arundel

    Juntamente com Alberti, considerado o inaugurador da concepo da arquitetura como a cincia que engloba a cidade, podemos mencionar que houve contribuies de dois outros arquitetos

    tratadistas que consagraram o sculo XV como o marco de gnese da urbanstica. O primeiro deles foi, Antonio di Pietro Averlino (1400-1465), cognome Filarete, e o segundo foi Francesco di Giorgio Martini (1439-1501). Filarete publicou o Trattato di Architettura entre 1461 e 1464 e Giorgio Martini os

    21 22Trattati di Architettura , Ingegneria e Arte Militare em meados de 1470. Estes dois tratadistas abordaram tanto a construo de edifcios, templos e catedrais quanto os locais nos quais devem ser construdas as cidades, onde devem se localizar as ruas e avenidas, suas dimenses e formas, alm do estudo dos materiais para a construo e dos servios necessrios para o funcionamento de uma cidade ideal.

    Estes tratados de arquitetura descrevem desde as medidas e propores das colunas dos edifcios at a forma e condies geogrficas da cidade. H trs fatos que levam a classificar Alberti, Filarete e Martini como tratadistas de um nico grupo. Primeiro, o fato de todas estas especificaes estarem descritas nos tratados, seguindo sempre a idia de construir todos os edifcios e espaos urbanos a partir de um mdulo baseado no corpo humano. Segundo, e ainda mais importante, o fato de suas concepes de unidade entre arquitetura e cidade. Por fim, o fato de Filarete e Martini terem escrito seus tratados ainda no sculo XV aplicando os conceitos albertianos de numerus, finitio e collocatio como as bases epistemolgicas do projeto arquitetnico, ou seja, os princpios de projeto. Contudo, h diferenas entre estes trs tratadistas que tornam cada um dos seus tratados peculiar. Uma das principais diferenas est no fato de Filarete e Martini terem optado por ilustrar seus tratados.

    O Tratato di Architettura de Filarete foi escrito em um latim vulgar e fez uso de desenhos

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    20Como afirma Eden (1943, p.14), Alberti prev o engenheiro, quando pensa que passar por montanhas e vales, criao de lagos artificiais, represas, e at barcos. Traduo Nossa.

    21FILARETE (1972; 1965). 22MARTINI (1967).

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    iconogrficos para enriquec-lo. Entre as concepes tericas de Alberti e Filarete h uma questo didtica que se apresenta de modo

    23antittico . Aqum da complexidade do De Re A e d i f i c a t o r i a , t a n t o f i l o s f i c a q u a n t o conceitualmente, o Tratato di Architettura cristalizou-se como o primeiro tratado propositalmente ilustrado e difundido do Renascimento. Com muitas referncias a Alberti, Filarete usou o desenho como um instrumento essencial funo prtica e profissional da arquitetura. Filarete evocou a importncia da ilustrao afirmando, por exemplo, que se no h o desenho para mostrar, o arquiteto no poder fazer nada com a devida forma, nem nada digno, por que a arte de ornamentar as coisas

    24dignas deve ser baseada nos desenhos .

    O tratado de Filarete possui vinte e cinco livros; dos quais apenas os quatro ltimos no tratam de arquitetura. Os vinte e um livros que dissertam sobre arquitetura podem ser agrupados em trs partes de acordo com cada temtica. Os Livros 1 e 2 tratam sobre a teoria da arquitetura em si. Os Livros 3 a 11 dissertam sobre a construo da cidade ideal, chamada Sforzinda, dedicada ao Duque Sforza de Milo, financiador de suas obras. Finalmente, do Livro 12 ao 21 so descritos os edifcios que devem fazer parte da cidade ideal, bem como uma justa relao entre a cidade e os edifcios, manifestada atravs do uso de um mesmo mdulo para elaborao das colunas, edifcios, praas e demais espaos urbanos.

    O plano das quadras centrais da cidade segue uma malha ortogonal, porm, as ruas principais que se projetam at a muralha estrelada, seguem um formato heliocntrico que corta a cidade no ponto central da circunferncia e tangencia as pontas da muralha. A forma da cidade definida a partir da superposio de dois quadrados sob o mesmo

    centro, criando um polgono estrelado de dezesseis lados. Dezesseis tambm so as vias que se cruzam no centro da cidade, ou melhor, no centro da praa principal, onde tambm est o monumento principal.

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    23 John Onians (1971, p. 96-114) menciona que o romantismo de Alberti oposto ao pensamento grego de Filarete. Traduo Nossa.

    24 FILARETE. Ibidem. p.428. Codice Magliabechiano, II, I, 140. Livro 15, f.113v. Traduo Nossa.

    Imagem 5. Filarete. Trattato di Architettura. Tavola 93. Permetro esquemtico da cidade de Sforzinda.

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    A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    A inteno de usar um mesmo mdulo para as praas, ruas, palcios e outros edifcios que compem a cidade de Sforzinda foi, de acordo com Filarete, uma das maneiras de se relacionar arquitetura, corpo e cidade. Esta prtica j tinha sido anunciada por Alberti como uma das condies para se atingir a qualidade espacial de uma cidade. Segundo Filarete, os edifcios mais importantes da cidade deveriam estar localizados ao redor das praas e as residncias populares na periferia ou junto muralha. Formando uma circunferncia interna muralha e, tambm seccionada pelas ruas principais, esto dezesseis outros edifcios que incluem templos, mercados e parquias. As plantas e

    fachadas devem, segundo Filarete, seguir o mesmo mdulo do plano urbano, procurando intensificar a relao corporal entre a cidade e a arquitetura.

    O tratado de Filarete fez uso de uma ferramenta cada vez mais valorizada para a poca: desenhos numerados e coloridos. Contudo, no foi

    25contemplado com edies posteriores . Se por um lado, Alberti construiu um discurso normativo e escolstico, Filarete assemelhou sua obra a um cdigo, direcionando-o a um pblico diferente. Filarete foi, de fato, o primeiro terico a ilustrar graficamente a concepo de arquitetura e urbanismo juntos. Seu tratado serviu de base epistemolgica para poucos tratadistas posteriores, como Giorgio Martini e Pietro Cataneo, um dos principais intrpretes vitruvianos do sculo XVI. Caso a imprensa no tivesse atingido tamanho desenvolvimento naquele perodo, as ordens clssicas da arquitetura, alm de sua difuso e proliferao, estariam provavelmente baseadas nas ordens canonizadas por Alberti e Filarete. Apesar disso, a imprensa j estava conseguindo difundir os manuscritos em srie. O uso das imagens comeava a ser a realidade numa sociedade que pretendia difundir o conhecimento. Afinal de contas, foi assim que a Itlia tornou-se o centro ocidental durante o sculo XV. Sobre a revoluo da imprensa e o uso das imagens nos novos tratados de arquitetura, Carpo menciona que:

    Da mesma forma que Alberti, Filarete no podia ignorar os sinais premonitrios de uma revoluo que j havia comeado a transformar a vida social dos homens. Filarete no ignorava a proximidade potencial de um universo de formas a rq u i t e t n i c a s e s t e r e o t i p a d a s e reproduzveis. (CARPO, 2004. p.146)

    A revoluo mecnica do Renascimento fomentou a estandardizao dos tratados de arquitetura ilustrados. Contudo, este fato trouxe

    VEREDAS FAVIP - Revista Eletrnica de Cincias - v. 3, n. 1 - janeiro a junho de 2010

    Imagem 6. Idem. Tavola 23. Esquema planimtrico da cidade de Sforzinda. Aqueduto na parte inferior esquerda e estradas radiais e praa central colocada a 1500 braas das portas.

    25 H conhecimento de transcries do tratado de Filarete. Uma foi feita para o rei da Hungria entre 1484-1489 e outra para Loreno, o magnfico, entre 1482 e 1490; este ltimo est na Universidade de Valncia Espanha.

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    consigo uma importante reao por parte de Filarete, de certa forma, semelhante reao de Alberti quando decidiu no ilustrar seu tratado. Proposital e conscientemente, Filarete reagiu estandardizao vulgar do desenho. A criao, segundo ele, refletia o criador, da mesma forma que os retratos de uma mesma pessoa, pintados por artistas diferentes, so diversos, por que cada desenho feito de uma maneira, com um estilo e a

    26mo do artista . relevante notarmos que a idia de cidade

    ideal iniciada por Alberti, relacionando proporcionalmente toda a cidade com as partes do edifcio, pensados a partir de um mdulo baseado no corpo humano, foi seguida por Filarete quando pensou e desenhou Sforzinda. Contudo, o axioma arquitetura, corpo e cidade no deveria perder fora. O desenho, importante para que se demonstrem precisamente as idias de unidade espacial e articulao entre os edifcios e os espaos urbanos, deve ser uma ferramenta visual, aqum da verdadeira arquitetura. A difuso de tratados ilustrados poderia, segundo Filarete, contribuir para a perda do valor tico e esttico da arquitetura como meio de transformao social.

    O terceiro tratadista que seguiu as idias iniciadas por Alberti foi Francesco di Giorgio Martini (1439-1501), autor do famoso Trattati di Architetura, Ingegneria e Arte Militare. Este tratado surgiu quase meio sculo depois dos dois antecessores. Martini foi um arquiteto-engenheiro, especializou-se na construo de fortalezas para os duques de Urbino, Montefeltro e trabalhou na canalizao e construo de pontes em vrias cidades italianas. Este tratado, com particularidades que o diferem dos antecessores, era um grande manual, de carter enciclopdico, sobre arquitetura militar, engenharia naval, mecnica e hidrulica.

    Alm de grande estudioso das obras de Alberti e 27Vitrvio , Giorgio Martini fez um dos mais

    ilustrados tratados de toda a histria. Os sete livros que compem este volume, alm de inaugurarem a concepo da engenharia e arte militar, so ilustrados exaustivamente. O paradigma vitruviano do corpo humano, tambm usado por Alberti, Filarete e os intrpretes de Vitrvio do sculo XVI, foi adotado por Giorgio Martini, que mostrou nos prprios desenhos a insero da figura humana nas ordens arquitetnicas e nos edifcios.

    Quando os tratados de Alberti e Vitrvio foram impressos pela primeira vez com a nova tecnologia dos caracteres mveis, entre 1485 e 1486 em Florena e Roma, respectivamente, Giorgio

    28Martini estava concluindo o seu tratado . A edio grfica destes tratados deve ter motivado Giorgio Martini a publicar seu volume, que apareceu pela primeira vez entre 1487 e 1491. Ao longo dos sete livros que compem seu tratado, Martini aprofundou os estudos da arquitetura nos aspectos construtivos, estticos e ideolgicos. No Livro 1 tratou dos materiais de construo. No Livro 2 as casas, os palcios e o sistema de abastecimento de gua. No Livro 3 foram descritas as formas das cidades e o urbanismo como uma cincia que coordena a relao dos edifcios com o espao urbano. No Livro 4 os templos, no Livro 5 as fortalezas, no Livro 6 os portos em rios e em mar e no Livro 7 as mquinas de construo, transporte e guerra. Imagens de mquinas, desenhos de cidades ideais, navios, sistemas hidrulicos, fortalezas e at carros ilustram as descries do texto deste volume enciclopdico. Um total de 127 desenhos tenta tornar a arquitetura uma cincia mais ampla, na qual as engenharias iniciam um processo de autonomia cientfica.

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    26 FILARETE. Ibidem. p.28-29. Codice Magliabechiano. Livro 1, f.5v-6r. Traduo Nossa.27 A traduo do De Architectura de Giorgio Martini no foi concluda. Est conservada em Florena. 28 A primeira edio ilustrada do De Re Aedificatoria de 1550. L'Architettura. Tradotta in Lingua Fiorentina da Cosimo Bartoli. Com la Aggiunta de Disegni. Firenze: Lorenzo Torrentino, 1550.

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    A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    A partir do Sculo XVII, o tratado de Martini foi esquecido, tendo em vista que seus estudos abordam tcnicas construtivas da engenharia civil e militar pertencentes ao sculo anterior, tornando-se obsoletas. Seu tratado impe arquitetura o domnio de muitas cincias, da mesma forma como os de Alberti e Filarete, mantendo a ideologia de pensar a arquitetura a partir do corpo humano e os espaos urbanos como partes de um organismo vivo.

    Mas, alm da unidade que os encerra num grupo de tratadistas que pensaram arquitetura e cidade juntos, h particularidades entre dois deles. Da mesma forma que Filarete, Giorgio Martini imaginou o desenho como uma ferramenta prioritria do projeto arquitetnico. Martini e Filarete entendiam que o desenho era um instrumento essencial ao arquiteto, diferentemente da opinio de Alberti, que via a arquitetura como algo alm de qualquer desenho ou matria construda. Mas Martini tambm refletiu alm da funo prtica do projeto de arquitetura. Ele via a funo didtica da imagem, adaptada a uma nova realidade social. Segundo suas prprias palavras, o desenho indispensvel a qualquer discurso de arquitetura; uma teoria arquitetnica no pode

    29deixar de ser ilustrada . O humanismo da poca chegou a ser sofismado por Giorgio Martini, que evocou a figura de Aristteles para reforar a idia de que a viso o primeiro e mais perfeito dos sentidos.

    Contrrio a Alberti e semelhante a Filarete, Martini fez uso intenso de ilustraes ao longo destes sete livros. Estreitamente relacionados entre si, textos e imagens apresentam a cidade como um grande corpo humano que deve funcionar

    harmonicamente: o uso de um mdulo baseado nas propores humanas e derivado do nmero de ouro; as mquinas usadas para mover gua e objetos pesados; solues de plantas de casas adaptadas sua contemporaneidade e at as fortalezas com suas variaes morfolgicas. Demonstrando a importncia e influncia do texto de Vitrvio, Martini afirma que a justa forma da cidade, do forte e do castelo imita a

    30forma do corpo humano . J nos Livros 5 e 6, Martini explica a importncia do disegno para o bom entendimento da arquitetura, afirmando que sem o desenho, o arquiteto no pode exprimir suficientemente seus conceitos. No h, contudo, em seu tratado, uma nica cidade ideal como a Sforzinda de Filarete. O importante para Martini o estabelecimento e o uso de propores harmnicas provenientes das relaes antropomtricas. Esta seria a maior relao possvel que, segundo ele, poderia haver entre a arquitetura, o homem e a cidade. Neste sentido, no Livro 3 dedicado s cidades ele relaciona as partes de uma cidade s partes do corpo humano e seus rgos, afirmando que esta a ltima condio para que todas as partes estejam correspondentes em proporcionalidade toda a cidade, como um membro est com todo o

    31corpo humano .Para ilustrar sua concepo de arquitetura e

    como conseqncia da valorizao dos aspectos visuais, Martini afirma que, em matria de arquitetura, exemplos com desenhos so sempre mais fceis e eficazes para compreenso das regras

    32gerais e especficas . E diz ainda que: Para cada cognio e notcia do nosso intelecto h uma origem nos nossos sentidos, como nos testificou Aristteles, e entre todos os nossos sentidos exteriores, a viso o mais espiritual, puro e perfeito, e as coisas e diferenas se mostram, e nossa mente no pode entender muito sem que a viso nos mostre, nem que

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    29 MARTINI, Francesco di Giorgio. Trattati di Architetura, Ingegneria e Arte Militare. f.5v. p.15. Apud: CARPO, Mario. Ibidem. p.134. Traduo Nossa. 30 Idem. f.5v. p.15. p.134. Traduo Nossa. 31 Idem. f.3r. p.12-13. Texto Original: Parmi di formare la citt, rocca e castello a guisa di corpo. 32 Idem. Livro 3. p.365. Traduo Nossa.

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    seja uma coisa similar quela, pela qual o intelecto se 33eleva e reconhece a primeira .

    A ausncia de ilustraes no De Architectura de Vitrvio j estava gerando as interpretaes

    34individuais desde o quattrocento at o cinquecento . Contudo, esta no era a inteno inicial dos tratadistas, ao menos os do sculo XV, que fizeram uso das imagens para compor seus tratados. Giorgio Martini entendia que o autor que quisesse falar sobre arquitetura e no fizesse uso das imagens, estaria dando aos leitores a liberdade de interpretao, tornando-os co-autores de seus escritos. Obviamente h ainda o valor que Martini atribua aos novos meios tcnicos que estavam sua disposio para transmitir as informaes.

    relevante mencionarmos que, para Martini, a ausncia de ilustraes nos escritos sobre arquitetura era sinal de preguia e incompetncia. No se pode afirmar que estas insinuaes se referiam a Alberti, mas caso o tenha sido, so injustificadas. Como sabemos, Alberti fez questo de no ilustrar seu tratado, entendendo que a verdadeira arquitetura est, para ele, no momento anterior sua determinao formal, ou seja, no momento de sua

    35instituio fenomenolgica . Contudo, Giorgio Martini possua uma outra opinio sobre a ausncia de desenhos nos tratados de arquitetura, afirmando que:

    Mas so muitos especulativos engenhos que pela sua solrcia tm muitas coisas inventadas das coisas antigas, e por no terem desenho so muito difceis de entender, pois da mesma forma que ns vemos que muitos possuem a doutrina e no o engenho, e muitos que tm o engenho e no tm a doutrina, e muitos tem a doutrina

    e o engenho e no tem o desenho. Onde convm, se estes querem demonstrar outras coisas pelo desenho, necessrio que o esperto pintor lhes d auxlio.(MARTINI,

    36p.489)

    Como foi visto, o discurso albertiano no exigiu o uso de imagens, ao contrrio. Se Alberti foi um criador do discurso das ordens arquitetnicas e do paradigma vitruviano do corpo humano, seus sucessores devem a ele muito mais que isso. Alberti dedicou teoria do desenho um outro tratado famoso, o Della Pittura. Dentro da teoria albertiana, o desenho para o modelo o que a palavra para a regra. Esta idia, defendida parcialmente e de modo peculiar por Martini, separa a possvel dualidade contida na sua obra. neste ponto que reside a particularidade de Martini. Longe de conceber elementos atemporais, como o fez Alberti, os exemplos grficos de Martini so destinados, efetivamente, reproduo mecnica e difuso. O mesmo motivo que condicionou Alberti a no ilustrar seu tratado, serviu para Martini faz-lo com ilustraes. Martini, muito preocupado com a ilustrao de suas mquinas, usa exemplos da Antiguidade como um simples pretexto para invenes novas e originais, longe de tentar criar modelos estandardizados. As diferenas e particularidades entre os tratados de Alberti e Martini so expostas por Carpo quando afirma que:

    Francesco di Giorgio, seja terico ou arquiteto, no precisava do tratado albertiano, e em efeito, parece que no fez uso deste para compor seu tratado. O tratado alber t iano conseguiu ser, s ingular mente, ao mesmo tempo

    37antecipado e retrgrado ao seu tempo.

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    33 Idem. f.57. p.445. Traduo Nossa.34 A primeira edio ilustrada de Vitrvio a de Fra Giocondo da Verona, datada de 1511.35 Sua afirmao de que mente et animo aliquas aedificationes, corpus quaddam...veluti alia corpora, ou seja, edifcios na mente e na alma, um corpo com outros corpos, marca uma transformao no pensar arquitetnico. Citado no catulo 2.3.36 MARTINI, 1967, f.88v. p.489. Traduo Nossa.37CARPO, Mario. Ibidem. p.146. Traduo Nossa.

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    A Gnese da Idia de Urbanstica no Quattrocento

    Com o passar do tempo, o desinteresse no De Re Adificatoria cresceu, devido complexidade do texto, ausncia de desenhos e das tcnicas construtivas ultrapassadas. O tratado de Filarete no alcanou as geraes seguintes por no ter sido impresso mecanicamente, salvo as cpias manuscritas de alguns colecionadores que possuam interesse pessoal no tratado, como foi o caso de Fra Giocondo. Martini obteve grande renome at o incio do sculo XVI, perdendo espao para os intrpretes de Vitrvio que chegaram ao mercado. De certa forma, a grande contribuio de Filarete e de Martini para a teoria da arquitetura do sculo XVI foi a canonizao da figura humana e do axioma arquitetura, corpo e cidade. A idia de corpo humano foi, em suas obras, submetida inferncia das propores e relaes mtricas anunciadas anteriormente por Alberti.

    H ainda outra diferena fundamental que distingue as teorias deste grupo de tratados do primeiro Renascimento: suas teorias acerca da

    38beleza. Os conceitos filosficos que Alberti incluiu no seu tratado no so mais vistos nos escritos de Filarete e Martini. A complexidade da teoria da beleza foi vista, por Filarete e Martini, como conseqncia do uso do mdulo, que por sua vez, era baseado nas propores humanas. Os seis lineamenti descritos por Alberti, longe de serem alvo das especulaes de Filarete, tambm esto fragmentados na teoria de Martini, que coloca as portas, janelas, chamins e escadas como partes (parties) do objeto arquitetnico. Se para Alberti a beleza estaria dentro do pensamento do arquiteto, segundo conceitos especficos, para Filarete e Martini, a beleza na arquitetura e na cidade est na gnese do sentimento esttico baseado nas

    propores do corpo humano e num mdulo.O desenho, portanto, desnecessrio dentro

    da teoria de Alberti, afirmou-se como uma fundamenal pea da criao do arquiteto nas teorias de Filarete e Martini. Neste sentido, Choay defende que a figurao grfica de Filarete se relaciona, ao mesmo tempo, com o corpo de operaes e de princpios gerais que escora todo ato construtor em geral. No tocante ao tratado de engenharia e arte militar de Giorgio Martini, seu contedo traz novas preocupaes nunca antes postas prova. A diferena conceitual que o distigue do De Re Aedificatoria e do Trattato di Architettura de Filarete reside na sua aproximao aos aspectos prticos da construo, longe de consideraes filosficas ou ideais. Neste sentido, o tratado de Martini pode ser considerado como uma semente para uma certa regresso, antecipando o que aconteceria no sculo XVI, e para pesquisa sobre os tipos arquitetnicos.

    4 CONSIDERAES FINALSTICAS

    A viso esttica albertiana baseada nos princpios da beleza (concinnitas), que por sua vez est baseada nos lineamenti e na trade numerus, finitio e collocatio, apresentam-se como uma ordem superior

    39(summus consensus partium) at hoje. De forma quase fenomenolgica, Alberti e Filarete perceberam a capacidade inevitvel que h no processo dialtico de regredir a partir de sua evoluo. necessrio concluirmos com a analogia entre a fragmentao do saber arquitetnico do Renascimento Italiano e a parbola do Senhor e Escravo, descrita por Hegel, onde descrita a relao entre causa e conseqncia do saber. Segundo Hegel, as teorias da histria e do conhecimento, sempre que tenderam a se tornar mais amplas e unitrias, geraram sua runa e

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    38 O conceito de concinnitas, j mencionado por Battista Alberti no De Pictura e no Della Famiglia, atinge a amplitude esttica e a unidade conceitual pretendida apenas no De Re Aedificatoria. Em realidade, o termo concinnitas j havia sido mencionado enteriormente por Alberti na obra Della Famiglia, como percebemos no texto seguinte: Non s soave, n s consonante coniunzione di voci e canti che possa aguagliarsi alla concinnit ed eleganza d'un verso d'Omero, di Virgilio o di qualunque degli altri ottimi poeti. No tratado sobre a pintura, o conceito de concinnitas ainda no tinha um sentido exato. Alberti escreveu: Ex superficierum compositione illa elegans in corporibus concinitas et gratia extat quam pulchritudinem dicunt. Grifo Nosso.39 ALBERTI. De Re Aedificatoria. Livro 9, Captulo 5, Pargrafo 4. p.451. Texto Original

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    40fragmentao . Sobre este aspecto regressivo ou desafortunado de especficas evolues percebidas por Alberti e Filarete, Tognon afirma:

    O humanista Alberti, ainda sem expectativa do livro impresso e portanto, da fidelidade da reproduo da informao, previa com muito bom senso a desfortuna dos manuscritos ilustrados, afinal, nem sempre os encarregados da transcrio ou mesmo da especfica ilustrao, no circuito de cpias aps cpias, conseguiam reproduzir ou mesmo compreender o legado das informaes no textuais. (TOGNON, 2005, p.45)

    A normalizao visual dos elementos arquitetnicos j estaria concretizada uma gerao aps Filarete. Os signos tipogrficos no seriam mais nicos, como imaginaram estes dois cones da teoria da arquitetura no sculo XV. O tratado de Martini e os que se sucederam ao seu fortaleceram a difuso dos tipos e a canonizao das ordens clssicas. Apesar disso, mister mencionar que o argumento filosfico estabelecido por Alberti no havia sido superado.

    A gnese da urbanstica estava marcada, desde as bases epistemolgicas lanadas por Alberti, passando pelo plano radiocntrico perfeito vindo do pensamento de Filarete como veio ao pensamento do califa Almansur. Logo teve considervel sucesso: ... e Francesco di Giorgio Martini percebeu sua utilidade militar, que seria a partir de ento um de seus grandes trunfos (KLEIN, 1998, p.314). As idias semeadas por Alberti deram os frutos imaginados.

    Seja por motivos polticos como os pedidos dos prncipes, cardeais ou reis; seja por motivos

    sociais, tendo em vista que as transformaes histricas levaram a novos anseios da sociedade italiana de ento ou, seja por motivos cientficos, nos quais percebemos uma crtica ao modelo teocrtico anti-humanista; o fato que tinha nascido a nova cincia: a urbanstica. Confirmando esta observao, Blunt nos diz a respeito deste juzo no pensamento de Filarete que:

    Suas idias a respeito de planejamento urbano, que evocam as de Alberti (em quem elas podem ter sido em parte inspiradas), so entusiasticamente antimedievais, e o autor d muita nfase na regularidade da disposio e na importncia de se ter grandes praas. (BLUNT, 2001, p.65)

    O advento da tratadstica da arquitetura no mais estava restrito apenas aos edifcios. Houve definitivamente uma transformao na sua base epistemolgica e na sua produo, o que inclua, a partir de ento o pensamento urbanstico. Conseqentemente, a cultura profissional dos arquitetos era tambm a cultura de urbanistas, j que esta cultura plasmada, como convm enfatizar, pelas condies de ao. Alberti inaugurou esta praxis, e sua elaborao discursiva terica passou a ser o reflexo legtimo de uma produo cientfica.

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    40 Henrique C. de Lima Vaz diz, sobre esta parbola de Hegel, que: No caso de Hegel, a dialtica do Senhor e Escravo , a um tempo, implcito no escrito que transmite um experincia fundadora de cultura, e momento articulado explicitamente de um discurso que pretende recuperar essa e outras experincias como elos de uma cadeia de significaes ou como passos de um caminho que designam a nica grande experincia de uma histria da Razo ou da Razo no trabalho da sua histria (VAZ, 1981, p.8). Segundo Hegel, a chave da liberdade da conscincia humana gera sua prpria priso e, conseqentemente, a dependncia humana gera a chave da sua prpria conscincia e liberdade.

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