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[email protected] 1 PANORAMA DE IMAGENS URBANAS. AS CIDADES UTÓPICAS CRIADAS PELO CINEMA. Adriana Mattos de Caúla Universidade Federal da Bahia A imagem cinematográfica, inventada no séc XIX, acompanhou o surgimento das cidades modernas e desde então, vem apresentando novos registros de sensibilidade e novas representações frente ao espaço urbano, alvo de constantes transformações. Este trabalho propõe um mapeamento de filmes representativos no último século que apresentem como principal personagem a cidade utópica, filmes em que a cidade seja protagonista. Esse exercício será conduzido por uma reflexão crítica do nosso modo de produzir e pensar o espaço urbano. Propõe-se a construção de um panorama de imagens urbanas, imagens de cidades utópicas criadas pelo cinema. Busca-se mostrar através da construção deste quadro, a convivência de um século entre a produção de cidades utópicas e a vivência das transformações da cidade real, a influência, circulação e permeabilidade das idéias, teorias e práticas urbanas ao longo do último século. O cinema mantém seus olhos abertos à utopia, olhar este que vai abrindo outro caminho, outra leitura, explicitando a criação de espaços que levam o espectador a identificar e a interpretar a realidade vivida e a expectativa do futuro. A cidade cinematográfica é fonte de melancolias e utopias que acompanham as transformações incessantes do espaço urbano. Objetiva-se compreender mais completamente o processo de constante mutação no pensamento sobre a cidade e como este pensamento é influenciado não só pelos acontecimentos, mas também, pelo meio de comunicação no qual se expressa – o cinema. Desta forma, a interconexão e interdependência entre a produção cinematográfica, o urbanismo e seus acontecimentos apresentam- se como direções para o pensamento que envolve a necessidade de articulação de lógicas diferentes, o que constitui o próprio campo da problemática do urbano contemporâneo.

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PANORAMA DE IMAGENS URBANAS. AS CIDADES UTÓPICAS CRIADAS PELO CINEMA. Adriana Mattos de Caúla Universidade Federal da Bahia A imagem cinematográfica, inventada no séc XIX, acompanhou o surgimento das cidades modernas e desde então, vem apresentando novos registros de sensibilidade e novas representações frente ao espaço urbano, alvo de constantes transformações. Este trabalho propõe um mapeamento de filmes representativos no último século que apresentem como principal personagem a cidade utópica, filmes em que a cidade seja protagonista. Esse exercício será conduzido por uma reflexão crítica do nosso modo de produzir e pensar o espaço urbano. Propõe-se a construção de um panorama de imagens urbanas, imagens de cidades utópicas criadas pelo cinema. Busca-se mostrar através da construção deste quadro, a convivência de um século entre a produção de cidades utópicas e a vivência das transformações da cidade real, a influência, circulação e permeabilidade das idéias, teorias e práticas urbanas ao longo do último século. O cinema mantém seus olhos abertos à utopia, olhar este que vai abrindo outro caminho, outra leitura, explicitando a criação de espaços que levam o espectador a identificar e a interpretar a realidade vivida e a expectativa do futuro. A cidade cinematográfica é fonte de melancolias e utopias que acompanham as transformações incessantes do espaço urbano. Objetiva-se compreender mais completamente o processo de constante mutação no pensamento sobre a cidade e como este pensamento é influenciado não só pelos acontecimentos, mas também, pelo meio de comunicação no qual se expressa – o cinema. Desta forma, a interconexão e interdependência entre a produção cinematográfica, o urbanismo e seus acontecimentos apresentam-se como direções para o pensamento que envolve a necessidade de articulação de lógicas diferentes, o que constitui o próprio campo da problemática do urbano contemporâneo.

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PANORAMA DE IMAGENS URBANAS. AS CIDADES UTÓPICAS CRIADAS PELO CINEMA. Adriana Mattos de Caúla Universidade Federal da Bahia APRESENTAÇÃO Este trabalho é parte de uma pesquisa para realização de tese de doutorado e, tem como objetivo central, o mapeamento de filmes representativos produzidos no último século que apresentam como principal personagem a cidade utópica, filmes nos quais a cidade figura como principal protagonista. O mapeamento dos filmes foi acompanhado por uma reflexão crítica do nosso modo de produzir e pensar a cidade, sendo ainda observada a relação entre a produção cinematográfica e o pensamento urbano. Na tentativa de uma maior compreensão e visualização desta relação, constrói-se uma cronologia ilustrada deste último século onde se apresentam os filmes selecionados, fatos importantes do urbanismo e acontecimentos gerais que influenciam o desenvolvimento destes dois campos. Os filmes são divididos em três blocos, agrupados de acordo com três categorias de análise relacionadas com a construção do espaço urbano nos filmes: cidades projeção, cidades simuladas e cidades de lugares outros. Ressalta-se que aplicação e a apropriação destes conceitos – projeção, simulação e lugares outros (heterotopias) - ainda terá um maior aprofundamento com o desenvolvimento da tese de doutorado e, sem maiores pretensões, este artigo está testando a potencialidade e a aplicação destes. Este trabalho tem também como objetivo, abrir o pensamento, tentando encontrar novas possibilidades, novas articulações que mostrem novos horizontes e novos caminhos para a compreensão da problemática urbana contemporânea. INTRODUÇÃO – A CIDADE UTÓPICA O que é uma cidade utópica? Considera-se como utópica, a cidade que não existe, a cidade do não lugar. A cidade utópica é aquela que não existe em nenhuma parte, é um espaço imaginado e nunca materializado, que apresenta uma ruptura revoltosa com o mundo circundante. (Paquot, 1998, p.91) A utopia transcende a realidade, surge como uma ruptura da ordem existente. Utiliza-se aqui este termo no sentido relativo, mais pelo sentido de crítica ao existente que pelo sentido de irrealizável. A cidade utópica é aquela que não tem pretensão de realização, é aquela que possui, com toda sua carga crítica, um efeito de transformação sobre a ordem histórico-social-econômica-espacial existente. O termo utopia, instaurado pela obra fundadora de Thomas Morus, A Utopia de 1516, apresenta uma multiplicidade de significados devido principalmente à sua etimologia. O substantivo utopia é derivado do grego topos, que significa lugar - como indicam com unanimidade os dicionários - precedido de dois prefixos eu e ou, que respectivamente significam bom e não (ou outro sentido de negação) que alguns dicionários consideram como cumulativos. Tendo assim, a palavra utopia, um sentido duplicado de lugar que é bom, lugar da felicidade, e lugar que não existe, não lugar, lugar nenhum. A cidade utópica não tem como vocação ou objetivo maior a materialização, a cidade utópica é construída através de uma reflexão crítica sobre a sociedade (Choay, 1980, p.6-7), as utopias são reflexões, críticas sociais, políticas e espaciais que resultam em um instrumento crítico e feroz,

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resultado de uma observação, de uma convivência, de um empilhamento de práticas, teorias e intervenções no espaço urbano associado à crises sociais, políticas e econômicas. A eficácia da utopia está em sua força crítica, na exploração do impossível, seus questionamentos, que muitas vezes vem acompanhada de ironia e humor. CIDADE UTÓPICA NO CINEMA A cidade do cinema é chamada por diversos teóricos de cidade cinemática1. A cidade cinemática, pode ser definida, de maneira bem superficial, como qualquer cidade filmada pela câmera cinematográfica (Costa, 2002, p.70). Não será adotada aqui esta terminologia, evitando um maior desenvolvimento sobre esta conceituação tão extensamente discutida, adota-se para este trabalho, reafirmando o título deste tópico, a denominação cidade utópica. Há claramente uma associação com a cidade real, mas a cidade utópica do cinema não é uma completa ou direta reprodução da realidade ou uma simples representação2. A reprodução é a repetição do mesmo, como o reflexo de um espelho. A tela do cinema é espaço de criação, nela acontece uma repetição diferente (Deleuze, 1983, 1985). As cidades utópicas do cinema acompanham o desenvolvimento das cidades, acompanham a vivência e a experimentação da cidade real e as sensações resultantes. É através da construção de cidades utópicas que cineastas expressam toda tensão, temor, crítica, humor, desejo e sonho sobre as transformações urbanas. A cidade utópica do cinema, não é um espelho, não é uma representação, mas uma tela. A cidade utópica do cinema é ressonância e não reflexo, é encontro, confluência e não captura, é invenção e não representação (Deleuze, 1983, 1985). Toda problemática social, econômica e política de uma época podem ser reconhecidas e relacionadas às construções utópicas do cinema. Esta transborda em reflexões e questionamentos sobre a cidade real, este espaço urbano é construído não só de elementos físicos visíveis, como também de fenômenos e relações que provocam a transparência de aspectos sociais, políticos e econômicos. As imagens urbanas do cinema formam um conjunto riquíssimo para análise, do qual pode-se decorrer interpretações, observações e análises bem significativas. Estas imagens urbanas são saturadas de informações, elas explicitam relações, valores, configurações únicas, figurando não como reflexo, mas como uma dimensão. As cidades utópicas do cinema pertencem à terceira dimensão identificada por Lefebvre em La production de l’espace, a dimensão imaginada (as outras dimensões são a vivida e a percebida). Lefebvre diz que a dimensão imaginada é formada pelos espaços de representação.

Os espaços de representação são invenções mentais (códigos, signos, discursos espaciais, planos utópicos, paisagens imaginárias, construções materiais como espaços simbólicos, ambientes particulares construídos, pinturas...) que imaginam novos sentidos ou possibilidades para práticas espaciais. (Lefebvre, 1974). Estes espaços têm o potencial não somente de afetar a imaginação sobre o espaço, como também, de agir como força produtiva material, com respeito às práticas espaciais (Harvey, 1989, pg203).

O cinema tem a capacidade de criar e associar vários espaços e vários tempos. Não importa o espaço ou o tempo filmado, importa o espaço e o tempo construído pelo filme. A cidade do cinema revela muito mais que uma disposição e articulação de espaços, ela explicita um empilhamento de tempo. E todo este tempo não é sempre visível a todo o instante. Os espaços e os tempos criados pelo cinema, de uma certa maneira, só existem no filme. Cada cineasta concebe diferentemente suas imagens urbanas, criam estas imagens, estas cidades utópicas de modo que exprimam as relações do homem com o mundo, do homem com a cidade.

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Estas cidades são uma forma de produção de diferenças através de repetições. As cidades utópicas do cinema não são reproduções ou representações, mas repetições diferentes. De acordo com Deleuze, cada arte tem suas técnicas através das quais o poder crítico e revolucionário pode atingir seu valor máximo, promovendo uma abertura para a invenção. Colocamos aqui três grupos de cidades utópicas: cidades projeção, cidades simuladas e cidades de lugares outros. As cidades utópicas do cinema podem ser distribuídas por estes três grupos que diferenciam a abordagem de cada cineasta sobre o espaço urbano. Seguem as definições de cada grupo com seus respectivos exemplos. CIDADES PROJEÇÃO As cidades projeção são as cidades que conhecemos hoje, retratadas num futuro próximo. As cidades atuais servem de suporte para a criação das cidades projeção. Considerando as cidades existentes como espaços estriados, as cidades projeção são uma criação de uma cidade futura partindo de um espaço estriado. Muitas obras do cinema podem ser citadas aqui como criadoras de cidades projeção. Como o objetivo maior do trabalho é traçar um panorama desta produção de cidades utópicas no cinema, escolhemos alguns filmes representativos, que de certa forma marcaram época. Just Imagine de David Butler (1930); The Time Machine de George Pal (1960); Soylent Green de Richard Fleischer (1973); Blade Runner de Ridley Scott (1982); 1984 de Michael Radford (1984); Gattaca de Andrew Niccol (1997); The fifth element de Luc Besson (1997); Minority Report de Steven Spilberg (2002). CIDADES SIMULADAS O cinema é um instrumento ágil e capaz de discutir e problematizar a questão do tempo e do espaço, principalmente utilizando-se da ferramenta simulação – que já explora a instabilidade do tempo e do espaço. O cinema é simulação de tempo e é simulação de espaço3. Se realmente vivemos numa época de domínio absoluto dos simulacros, como insiste Baudrillard em seu livro Simulacros e Simulações4, o cinema pode e deve ser encarado como um campo privilegiado de interrogação da hiperrealidade5 que nos convida ao conformismo e à alienação. De acordo ainda com Baudrillard,

é a simulação que é eficaz, nunca o real. (Baudrillard, 1991, p.75) Entende-se simulação,

como um meio de representar, de forma parecida com a vida, processos objetivos e experiências subjetivas que podem ou não ter existido antes (Weberman, 2003, p.252). Simular é fingir ter o que não se tem. A simulação põe em causa a diferença do “verdadeiro” e do “falso”, do “real” e do “imaginário”, da aparência e da realidade (Baudrillard, 1991, p.9).

Considera-se aqui como cidades simuladas, os espaços urbanos que trazem a linha entre realidade e simulação esmaecidas, que embaçam a diferença entre o que é “real” e o que é “irreal”. As cidades simuladas coexistem com algo mais, ou seja o irreal, a simulação, coexiste com o real. Estas cidades são produzidas de maneira que atendam ao desejo do criador, a simulação é fundamentalmente uma manipulação, uma metamorfose da realidade e muitas vezes apresenta-se como a nostalgia de um referencial perdido.

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Algumas cidades simuladas do cinema: Seaheaven, a cidade do filme Show de Truman de Peter Weir (1998), Los Angeles do filme The 13th Floor (1999) e Matrix (1999). Estas cidades aproximam-se do real tanto na sua banalidade como em seu aborrecimento, demonstradas com o cotidiano de Truman e de Anderson/Neo antes de descobrir o que é a Matrix, na sua presunção e pretensão de ser real, mostradas na Los Angeles de 1998 de Fuller e Hall, como também na hiperrealidade da Matrix vivenciada quando se está conectado a ela. Outros filmes que exploram as cidades simuladas são Tron de Steven Lisberger (1982); Dark City de Alex Proyas (1998). CIDADES DE LUGARES OUTROS (HETEROTOPIAS) As cidades de lugares outros, as heterotopias, não se afirmam objetivas, existentes, dizem apenas que não se encontram no espaço. De outro modo, podemos dizer que suas espacialidades são múltiplas, e é por isso que não admitem sua sobreposição a qualquer suporte espacial restrito e pré-existente. As heterotopias não têm lugar real, elas são concebidas em um espaço liso, são mundos fragmentários, espaços incomensuráveis (Foucault, 2002, XIII). Foucault ainda descreve heterotopias como a constituição de espaços diferentes, de outros lugares que são uma contestação ao mesmo tempo mítica e real dos espaços onde vivemos e que mereceriam uma leitura especial, já que as heterotopias assumem formas variáveis pela multiplicidade da cultura humana. A primeira grande cidade utópica do cinema desta categoria é Metropolis de Fritz Lang (1927). Outros filmes que mostram estas cidades de lugares outros: Things to Come de W.C. Menzies (1936); Lost Horizon de Frank Capra (1937); Alphaville de Jean Luc Godard (1965); Playtime de Jacques Tati (1967) Brazil de Terry Gilliam (1985) e Star Wars de George Lucas (2a trilogia – 200...) CINEMA E CIDADE Tem-se muito a ganhar analisando com atenção o que dizem os filmes, que cidades os filmes tem mostrado, tem construído, como são as cidades do cinema em relação à produção e à configuração do espaço urbano, as suas práticas e as suas críticas. Segundo Lefebvre,

nada existe sem troca, sem aproximação, sem proximidade, isto é, sem relações. (...) O urbano é cumulativo de todos os conteúdos (...) Pode-se dizer que o urbano é forma e receptáculo, vazio e plenitude, superobjeto e não-objeto, supraconsciência e totalidade das convivências.6

Durante o século XIX, na Europa principalmente, as cidades se transformaram rapidamente, adaptando-se ao intenso fluxo de pessoas vindas dos campos. Todas as grandes capitais tiveram sua imagem transformada, preparando-se para as transformações da vida moderna. É o período em que a cidade é problematizada e começa a ser alvo constante de críticas. À medida que a civilização se alarga e a tecnologia aperfeiçoa-se, as cidades crescem rapidamente transformando-se em megalópoles e o avanço da ciência parece ameaçador com suas descobertas. Aumentam as críticas à civilização e multiplicam-se os sonhos e os temores com relação ao futuro. A influência do ambiente técnico do fim do século XIX e início do século XX é refletida em diversas concepções de cidades utópicas do urbanismo e do cinema. Cidades automatizadas, repletas de inovações tecnológicas vinham em resposta à aproximação de um novo século, antecipando-se como tecnológico pelas inovações e invenções que se multiplicavam no fim do século XIX. A própria invenção do cinema – o cinematógrafo dos irmãos Lumière de1895 - foi ápice do um percurso de invenções visando a experimentação de representações espaciais (lanterna mágica, cronofotografia, panorama, fotografia, estereoscopia, quinetoscópio). O surgimento da imagem cinematográfica acompanhou a transformação das cidades, a metamorfose das cidades em megalópoles modernas.

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O cinema e a modernidade são pontos de relexão e convergência. O cinema, tal como se desenvolveu no fim do século XIX, tornou-se a expressão e a combinação mais completa dos atributos da modernidade. (...) A cultura da modernidade tornou inevitável algo como o cinema, uma vez que as suas características desenvolveram-se a partir dos traços que definiram a vida moderna em geral. (Charney e Schwartz, 2001, p.19-20)

Com a sucessão de inventos que culminaram no surgimento do cinema, é revelada a questão sobre a indistinção cada vez maior entre realidade e imagem. O cinema visa parecer realidade e como forma cultural de massa, como amostra da modernidade, este novo meio dava aos espectadores a possibilidade de entender as condições nas quais estavam vivendo e, portanto, adquirir a capacidade de auto-reflexão ou de emancipação esclarecida (Krakauer, apud Hansen, 2001, p.517). A imagem a partir da Revolução Industrial, sobretudo a partir das primeiras décadas do século XX, tornou-se um elemento subversivo para os padrões culturais que alimentam a sociedade.

Segundo Muniz Sodré, não há nada mais subversivo que a imagem, pois ela é o verdadeiro elemento perturbador da racionalidade histórica dos sentidos. (Muniz Sodré, 1968)

Arquitetos, urbanistas e cineastas são os que apresentam “reações espaciais” às diversas transformações pelas quais a cidade passa. Respondem criando novas cidades, novas espacialidades como contraponto e como crítica a toda problemática da época. No século XX ocorre uma explosão de imagens urbanas no cinema. Num primeiro momento o cinema mostra a apreensão da cidade moderna e suas transformações, tendo como pano de fundo o desaparecimento da antiga cidade. Num segundo momento, a cidade do cinema é fonte de melancolias e utopias que acompanham as incessantes transformações do meio. A invenção do automóvel e a sua produção em escala industrial transformaram o pensamento urbano no século XX, transformando as cidades e interferindo diretamente em seu planejamento e concepção, principalmente por permitir uma descentralização acessível e uma maior extensão de ocupação do território.

A modernidade7 implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana. (...) As cidades (...) sempre foram movimentadas, mas nunca haviam sido tão movimentadas quanto se tornaram logo antes da virada do século. O súbito aumento da população urbana,(...)a proliferação dos sinais e a nova densidade e complexidade do trânsito das ruas... tornaram a cidade um ambiente muito mais abarrotado, caótico e estimulante do que jamais havia sido no passado.(Singer, Ben, 2001, p.116-117)

Em resposta a esta metrópole do tráfego, barulho, painéis, sinais de trânsito e multidões, o arquiteto francês Eugène Henàrd publica sua teoria sobre a “rua em níveis múltiplos” no ano de 1910. Esta teoria vai muito mais longe do que o simples nivelamento do sistema de circulação. É proposta como solução ao problema de circulação a construção de toda a cidade sobre um plano artificial, inaugurando a idéia de uma urbanização sobre uma laje, distribuindo em cada nível sobreposto o fluxo de trens, de metrô, de pedestres e bicicletas, etc. Este multinivelamento pode ser visto em inúmeras outras cidades utópicas do cinema, como também retorna em outras teorias e proposições urbanísticas. Podemos citar a Cidade Contemporânea de Le Corbusier, que mostra em um de seus desenhos a área central da cidade, onde é projetada uma extensa pista de pouso e decolagem. Le Corbusier ainda descreve que os níveis desenvolvem-se no sentido do subterrâneo, estando ali locadas as linhas de metrô, as autopistas, as passagens subterrâneas. O italiano Sant´Elia, em sua Cittá Nuova, também trabalha com o multinivelamento, abrigando todo o fluxo de veículos da cidade. No cinema, The 5th Element de Luc Besson, Things to Come de Menzies, Blade Runner de Ridley Scott, Minority Report de Steven Spilberg, Metropolis de

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Fritz Lang, exploram a cidade em múltiplos níveis, apresentando inúmeros viadutos, passarelas, tráfego aéreo, trens suspensos e etc. Metropolis de Fritz Lang (1927) é um filme que marca a apresentação da cidade utópica como protagonista. Todo receio relacionado às rápidas transformações que estavam acontecendo nas cidades é mostrado principalmente através da oposição de “mundos” – o subterrâneo dos trabalhadores e a superfície dos ricos. Metrópolis é uma grandiosa cidade utópica com seus arranha-céus, suas passarelas, seu trânsito ordenado em múltiplos níveis, seus planos de pouso, viadutos e torres escalonadas. É uma crítica clara e direta à utopia modernista, é um olhar ao mesmo tempo fascinante e aterrador sobre o futuro das cidades. Vista cinqüenta anos à frente, Nova Iorque é mostrada totalmente transformada por Just Imagine, filme de David Butler (1930). A circulação é feita através de múltiplos níveis (mais precisamente nove), e todos possuem suas aeronaves particulares, como acontece em Broadacre City de Frank Lloyd Wright. A organização urbana é extrema, as pessoas são identificadas por números, como volta a acontecer no filme 1984 e, alguns avanços tecnológicos são antecipados, como a televisão, viagens a Marte e alimentação através de pílulas. Os altos edifícios desta Nova Iorque são claramente inspirados nos arranha-céus que estavam sendo levantados na época do filme - o Empire State, o mais alto edifício do mundo construído até então, está sendo finalizado no período das filmagens. O skyline desta projeção de Nova Iorque parece uma materialização dos desenhos de Hugh Ferris. Toda a cidade parece ser constituída de ferro, vidro e luz. O cinema e o urbanismo mostram a percepção da cidade que desaparecia, com a cidade que surgia e com a cidade que ainda estava por vir. As imagens urbanas produzidas mostram toda a inquietude com o novo, com o moderno, com a chegada do progresso, mostrando muitas vezes reações ligadas à perda, à nostalgia. Um filme que podemos chamar de nostálgico é Gattaca de Andrew Niccol. Neste filme, a cidade mostrada é uma clara nostalgia modernista. De traçados simples, cores claras, a cidade dos indivíduos perfeitos (geneticamente concebidos) aproxima-se do minimalismo, com espaços amplos, iluminação zenital, mobiliário de linhas retas e clássicas. Frank Capra apresenta em 1937 sua versão de cidade utópica com Lost Horizon. Uma clara expressão de descontentamento com a situação inquietante pela qual o mundo estava passando (Segunda Guerra Mundial, Guerra Civil Espanhola, a grande Depressão americana), Capra opõe sua tranqüila Shangri-La aos conflitos da guerra civil na China. Em meio às montanhas quase inacessíveis do Tibet, Capra constrói sua heterotopia. Uma comunidade pacífica protegida num vale onde as montanhas constituem uma armadura protetora e promotora de condição climática única. A pequena cidade é composta por uma arquitetura de linhas simples e cores claras se assemelhando muito aos projetos do arquiteto americano Frank Lloyd Wright. Um grande espelho d´água em linha reta reflete as luzes das edificações do entorno. Toda a cidade é marcada pela abundante vegetação que cresce neste vale protegido da neve e do frio. O “hiperestímulo”8 da modernidade incita a criação de novas cidades utópicas, sendo algumas com abordagens exageradas e pessimistas do caos urbanos, e outras com abordagens inversas, onde a “limpeza de traçado” e o racionalismo do desenho é a tônica. A sedução pela velocidade e pela tecnologia toma conta do desenho e provoca a concepção de estruturas inimagináveis, tão minuciosamente integradas que parecem formar uma espécie complexa de caleidoscópio constituído por veículos, pessoas e estruturas que se entrelaçam e se cruzam numa ordenação fantástica, contrapondo-se à fragmentação da percepção da cidade da modernidade. Things to Come de William Cameron Menzies (1936) é um filme que retrata uma cidade projeção com bastante ironia. Mostra um mundo salvo pela ciência e pelos cientistas após décadas e décadas de guerra. A cidade é pacífica e dissonante das visões pessimistas, tão comuns às produções da época. No filme anunciam-se inovações tecnológicas como a televisão e os aviões à jato, muito inspirados

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pelo período cheio de invenções eletro-eletrônicas. A cidade é Everytown, mais uma brincadeira de significados como no título da obra de William Morris, News from Nowhere (1884). O ano é 2036, a cidade foi construída sobre as ruínas do que um dia fora Londres, o desenho urbano é guiado pelo funcionalismo, a arquitetura tem estilo próximo ao do construtivismo soviético. A harmonia do desenho da cidade é refletida na integração social, na paz, na abundancia material, na perfeita simbiose entre homem e ambiente técnico, tudo o que almejava Le Corbusier em sua Cidade Contemporânea. Fato interessante de ser ressaltado aqui é que Le Corbusier chegou a ser chamado para projetar a cidade de Everytown, mas não aceitou o convite e Vincent Korda, responsável pelos cenários, baseou-se na sua obra Towards e New Architecture (1927). Muitos dos detalhes da arquitetura e da cidade do filme são facilmente associados aos desenhos e projetos de Le Corbusier. Os interiores dos prédios são diáfanos, os pisos são brilhantes, os móveis em tubo cromado lembram o desenho da Bauhaus, tudo é de uma brancura imaculada, asséptica. O centro de Everytown é uma reinterpretação de uma ágora, rodeada por altíssimas galerias, atravessadas por elevadores panorâmicos e passarelas aéreas onde a população dialoga com o holograma do seu governante. É uma grande tecnocracia paternalista. No período do pós-guerra, a necessidade latente de reconstrução e reorganização das cidades fez com que estes arquitetos se empenhassem em por em prática suas quimeras urbanas, tendo então a chance de trazer para o presente suas cidades funcionais do futuro. O paradigma de um mundo racionalizado como máquina do movimento moderno teve suas primeiras críticas na década de 50, através da produção de utopias e/ou manifestos de arquitetos “de dentro” do movimento, como os arquitetos do Team X. Marcados pela critica radical dos meios, da moda, das instituições, os anos 60 são permeados, dentro de um contexto da cultura de consumo iconoclasta, por movimentos Pop que surgem cada vez com mais freqüência e mais força. Surgem grupos de vanguarda e projetos críticos de projeções irrealizáveis e táticas subversivas: a tecnolatria de Archigram, as propostas revolucionárias dos Situacionistas, as megaestruturas dos metabolistas japoneses, o humor e linguagem pop de Archizoom, as impactantes intervenções do Superstudio e etc. Encontramos concepções de cidades utópicas através da modificação do espaço, da velocidade e da mobilidade. Surge uma infinidade de cidades cibernéticas, cinéticas, flutuantes, subterrâneas, lineares, flexíveis, que se sucedem durante os anos 60 numa resposta direta ao formalismo racional das cidades apresentadas pelo Movimento Moderno. A poética das grandes dimensões ressurgida nos anos 50 e 60 apresenta projetos de macroestruturas que coincide exatamente com a reconstrução pós-guerra na Europa, o início da grande produção em massa e vinculada com o desenvolvimento da atividade terciária que fez crescer rapidamente as metrópoles modernas, como fruto da cultura de massas. Questionando a ideologia do movimento moderno e as ideologias políticas da época, surgem projetos arquitetônicos e urbanísticos e cidades utópicas no cinema que vem criticar ferozmente este quadro. As cidades de Alphaville de Jean Luc Godard e a Paris de Tati em Playtime são exemplos desta crítica. Alphaville é uma cidade de vidro e ferro comandada pelo computador Alpha60, criação do professor Von Braum, que está exterminando o livre arbítrio dos seres humanos. O personagem central, o agente secreto Lemmy Caution, luta com sua humanidade contra a “reeducação científica” aplicada nos comandados habitantes da metrópole. “Ciência, Lógica, Segurança e Prudência” é o que está escrito na placa de entrada da cidade governada pela tecnocracia facista, com habitantes identificados por números que vivem de acordo com a lógica do raciocínio e da eficiência. Através da filmagem e montagem das tomadas minuciosamente estudadas, Godard consegue transformar a Paris dos anos 60 em uma cidade futurística.

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Assim como em Alphaville, Jacques Tati em Playtime, constrói uma heterotopia em reação aos modernos edifícios de escritórios erguidos na época em Paris. Tati constrói, de verdade para este filme, a Tativille9, uma cidade cenográfica de dimensões incríveis. Através de uma crítica extremamente bem humorada Tati retrata uma Paris moderna, com seu aeroporto, seus escritórios, seus moderníssimos edifícios, seu transito caótico, como outra cidade moderna qualquer. Através de cartazes fixados pelo cenário, vê-se a mesma imagem de edifícios modernos, onde a cada momento, só os nomes das capitais são diferentes. É como uma cidade genérica, ou como as cidades da Ilha Utopia de Thomas More, quem já viu uma cidade, já viu todas. No período pós-moderno10, considera-se que a percepção de tempo e o espaço tornam-se instáveis, sendo sua principal causa o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa (como o cinema), chegando a tornar a relação de tempo e espaço confusa, incompreensível, incoerente e comprimida. O conceito de Harvey de compressão de tempo-espaço refere-se à sensação de que as dimensões de espaço e tempo têm sido modificadas e reduzidas, dando uma impressão de que a vida, de um modo geral, acontece de uma maneira mais rápida, um pouco mais acelerada.

A vida continua, mas a uma velocidade diferente, e isso deve ser representado de uma maneira diversa, por uma estrutura narrativa condizente (...) o cinema é um meio cultural que tem a capacidade de “fragmentar” o espaço e o tempo de acordo com as demandas da narrativa. O espaço e o tempo podem ser considerados como um sistema de significação que regula a representação cinematográfica. Tempo e espaço podem servir como instrumentos analíticos e teóricos que trabalham para validar o significado. A análise de um filme não se interessa apenas pela imagem visual, mas também tem que ser consciente das qualidades históricas e temporais do filme. Isso quer dizer que ela se refere sempre a espaço e tempo. Por ser um meio de comunicação e representação “temporal”, o cinema pode trabalhar o espaço de uma maneira a que outros sistemas de representação podem apenas aludir (Lury e Massey apud Costa, 1999,p.68).

As experiências de espaço e tempo em nosso cotidiano nos colocam diante de novos desafios à compreensão do significado de expressões como “realidade”, “simulação”, “vivência”, “experimentação”. As cidades contemporâneas são registros de novas significações e exigem novas conceituações a respeito do espaço geográfico das sociedades. Pensar o espaço na atualidade é pensar as projeções figurativas que outorgam sentido à sua imanência e à relação representante/representado que o problematiza. Tal enunciado assinala novos rumos para os estudos do espaço urbano, quando o interpretamos como locus da produção material e sígnica da civilização moderna, sobretudo quando esta se inscreve no período onde o espetáculo é o próprio capital que, ao atingir um elevado grau de acumulação, se torna imagem11. As transformações do espaço começam a demonstrar mudanças relativas aos paradigmas vigentes. Todo caos do espaço urbano é visto como consequência de uma visão e abordagem homogeneizadora da cidade. Em consequência a isto e a uma chamada “crise” da cidade, surgem diversas práticas urbanísticas acompanhadas de modificados discursos e novos pensamentos. A produção do espaço urbano sofre transformações, em resposta à esta nova abordagem e as novas práticas urbanísticas, novas cidades utópicas do cinema surgem com críticas ácidas a esta nova cidade fragmentada e espetacularizada. Atesta-se a rápida expansão das grandes cidades, as megalópoles ampliam seus territórios, formam grandes conurbações. As últimas décadas do século XX observam o crescimento descontrolado e acelerado do espaço urbano, aprofundando uma crise sócio-espacial. Reagindo a esta urbanização exponencial, o primeiro filme da segunda trilogia de Star Wars de George Lucas, mostra um planeta que possui apenas uma cidade. Esta cidade cobre toda a superfície deste planeta, novamente com seus arranha-céus, seu tráfego aéreo ordenado, suas perspectivas vertiginosas vistas das pistas de

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pouso no alto dos edifícios, suas inúmeras luzes e movimentada vida urbana, elementos muito parecidos com os utilizados por Ridley Scott em sua projeção de Los Angeles em 2019. Blade Runner de Ridley Scott (1982) apresenta uma cidade praticamente desfigurada. Los Angeles está impregnada de torres, luzes, propagandas, pessoas, tráfego caótico. Tudo é confuso, fragmentado para criticar a crise social e política nas metrópoles contemporâneas. Assim como em Blade Runner, esta fragmentação, esta disjunção e a mistura de estilos tão comum ao pós-modernismo é mostrada em Brazil, de Terry Gilliam. O edifício central da cidade do filme é uma perfeita obra de estilo pós-moderno. A presença cada vez mais forte da informática, a influência fortíssima dos meios de comunicação, principalmente da televisão, as cada vez mais frequentes discussões sobre cibernética, realidade virtual, internet, redes informacionais, colocam em voga questionamentos pertinentes ligados ao futuro das cidades, ao surgimento de novas espacialidades, as novas relações entre homem e espaço, entre homem e tempo. Tron, filme de Steven Lisberger, é um dos primeiros filmes que colocam a questão da simulação espacial em discussão. No caso, um programador de computadores é transferido para o interior de um grande computador e se vê dentro de uma estrutura virtual muito semelhante a situação real vivida por ele.

O homem quer ser o senhor de todas as novas tecnologias mas acaba por servir a elas. O controlador descobre-se controlado. A multiplicação de câmeras, atualmente, para controlar, nos ambientes de trabalho, os perigos vindos de fora, termina por controlar todas as práticas internas. O criador descobre-se limitado pela criatura. (...) Toda tecnologia interpela o universo existente e, escapando ao controle de cada individuo, transforma o sujeito em objeto da técnica. Porém, ao mesmo tempo, cada um se posiciona como objeto e como sujeito. A técnica é um artefato do homem que faz do homem um instrumento. (Heiddeger, 1990, p. 29)

O filme de Weir, The Truman Show (1998) é uma parábola sobre a invasão de privacidade de uma mídia em um grau máximo de voyeurismo. Nos mostra também a atual obsessão pela vida privada e consumismo exacerbado que assombra esse final de século. O filme é sobre uma sociedade supervigiada, assim como 1984 de Michael Radford (1984). "O Show de Truman" é uma paródia sobre todos nós, espectadores, que vivemos anestesiados pelos valores transmitidos pela mídia eletrônica. Existem duas versões cinematográficas da obra de George Orwell, 1984; a primeira produzida em 1956 e a segunda de 1984. Essa segunda versão de Michael Radford, filmada no mesmo ano e iniciada no mesmo dia em que o livro começa a estória, é sem dúvida a mais fiel ao clima opressivo e depressivo do livro. Em termos visuais, a fotografia sombria e escura retrata com fidelidade o espírito depressivo e claustrofóbico do filme. É inegável a personificacão do "Grande Irmão", do Big Brother em cada cena. O filme mostra um Estado autoritário com repressão intelectual ao extremo através da vida do atormentado Winston Smith e sua tentativa de sair do sistema. Nas cidades simuladas a noção de tempo dilui-se. Quando se tem a consciência da simulação, o tempo torna-se relativo, imprevisível e irreal. Kristof, criador de Seaheaven, controla o nascer e o pôr do sol, o dia e a noite duram o tempo que o criador da simulação deseja. Nas simulações deThe 13th Floor, de Josef Rusnak (1999), experimentam-se tempos, épocas diferentes, por períodos pré-determinados, por tempos finitos e controlados. A cidade de Los Angeles de Anderson situa-se no passado, anos atrás da realidade por trás de Matrix dos irmãos Wachowski (1999). A realidade virtual dos filmes The 13th Floor e Matrix são tão metafisicamente reais quanto à realidade não simulada, se não mais que ela. Todo o filme The 13th Floor é pontuado por colocações das personagens insistindo na realidade das simulações. No fim do filme já não sabemos mais se o

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mundo apresentado como real é uma simulação ou se corresponde mesmo à realidade. Como se reconheceria a diferença entre o mundo virtual, entre o mundo simulado e o mundo real? Com elementos que misturam simulação, controle, realidade e sonho, Dark City de Alex Proyas (1998) explora um estado de conspiração através do personagem John Murdoch. Murdoch descobre que criaturas, os Estranhos, são mestres de um estranho jogo de simulação onde habitantes são suas marionetes e a cidade seu playground. A cidade mistura referências dos anos 40 e de cidades visionárias com um ambiente escuro e soturno. Dark City aborda questões como perda de identidade, destruição do individualismo, criação de sociedade ideal, controle e simulação. A busca do cinema por uma expressão diferenciada, indo contra uma unidade formal, enriquece cada vez mais a visão das cidades que ganham interpretações particulares merecedoras de atenção. Assim como o arquiteto, os cineastas desenvolvem uma capacidade de apreensão e criação do espaço que só vem beneficiar e enriquecer as propostas de novos espaços, sejam eles reais ou utópicos. As cidades mostradas no cinema criticam abertamente a sociedade e as cidades de hoje, apresentando espaços onde são exacerbados e agravados os problemas sociais, políticos, econômicos e espaciais ou então contrapondo o caos das cidades a lugares calmos e plácidos, quase etéreos com cidades perfeitas e sociedades perfeitas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A relevância deste projeto se encontra na construção de uma relação (já percebida, mas pouco estudada) entre disciplinas que têm como instrumento a construção de imagens, a criação de novas espacialidades (urbanismo, cinema, quadrinhos e literatura) que figuram como importantes meios, importantes formas de recepção, crítica e disseminação de idéias urbanas e arquitetônicas. Um dos objetivos desta pesquisa é refletir sobre as características da cultura arquitetônico-urbanística que se modifica e se transforma a partir do cotidiano. O axioma fundamental é a idéia de que a produção e o pensamento sobre a cidade não podem ser compreendidos independente dos acontecimentos políticos, sociais, econômicos e culturais, em tampouco através do olhar de uma só disciplina. Relações com a história, com as práticas sociais, com as situações políticas, as crises econômicas, são facilmente identificadas nas cidades utópicas do cinema. As imagens urbanas do cinema conseguem nos trazer uma visão clara da reação do homem aos processos de produção do espaço urbano e das relações do homem com este espaço. Neste trabalho foram escolhidas algumas das cidades utópicas produzidas pelo cinema. Cidades projeção, cidades simuladas e cidades de lugares outros acumulam em suas configurações, em suas construções, temporalidades, críticas, desejos, visões, pesadelos sobre o processo de constante modificação das cidades. É preciso entender o urbanismo como um processo que recebe idéias e influências e resulta em novas idéias e influências que se rebatem na prática de intervenção e de concepção de novos espaços, de novas cidades. A cidade do cinema é fonte de melancolias e utopias que acompanham as transformações incessantes do espaço urbano. 1 Para saber mais, consultar CLARKE, David B (ed.). The Cinematic City. London: Routledge, 1997. 2 O termo representação foi delimitado na Idade Média com o significado de imagem, idéia, por fim, de imagem e idéia ao mesmo tempo: “representar é conter a semelhança da coisa” (Dicionário de Filosofia Abbagnano, São Paulo, Mestre Jou, 1982, p.820-821). 3 DELEUZE, Gilles. L´Image Mouvement. Paris: Minuit, 1983. 4 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d´água, 1991. 5 Segundo Baudrillard, hiperrealidade é a tentativa de coincidência absoluta com o real, na sua banalidade, na sua veracidade, na sua evidência nua, no seu aborrecimento e, ao mesmo tempo, na sua presunção, na sua pretensão de ser o real, o imediato, o insignificado, nenhuma cultura - referindo-se aqui à cultura pós-moderna - jamais teve sobre os signos esta visão ingênua e paranóica, puritana e

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terrorista. (...) O cinema aproxima-se também de uma coincidência absoluta consigo próprio – e isto não é contraditório: é mesmo a definição de hiper-real. (Baudrillard, 1991, p.64) 6 LEFEBVRE, 1991; p. 111-112. 7 A modernidade, o modernismo e o moderno são tratados a partir da discussão do campo da arquitetura e urbanismo, onde as datas se diferenciam das colocadas por outras disciplinas. Na arquitetura e urbanismo, estes termos supracitados, surgem a partir do século XIX. 8 Termo criado em 1910 por Michael Davis para descrever o novo ambiente metropolitano. 9 Mais informações em http://tativille.com. 10 Considerado o conceito de pós-modernidade de David Harvey. Ver: HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1994. 11 Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BIBLIOGRAFIA BAUDRILLARD, Jean. A Ilusão Vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. __________________. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’água, 1991. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de usa reprodutibilidade técnica” in: Obras escolhidas.

Magia e técnica, arte e política. São Paulo : Brasiliense, 1987, p. 165-196. CLARKE, David B. “Introduction: previewing the cinematic city” in: CLARKE, David B. (ed.). The

cinematic city. London : Routledge, 1997, p. 1-18. COSTA, Maria Helena Braga e Vaz. “Espaço, tempo e cidade cinemática” in: Espaço e cultura, nº

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43, 1997. ________________________. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 5. São Paulo: Editora 43, 1997. DUNCAN, James. “Sites of representation: place, time, and the discourse of the other” in: DUNCAN,

James: LEY, David (orgs.). Place, culture and representation. London: Routledge, 1994. GOLD, John R. “From ‘Metropolis’ to ‘The City’: film visions of future city” in: BURGESS, Jacquelin;

GOLD, John R. Geography, the Media & popular culture. New York : St. Martin Press, 1985, p. 123-143.

HARVEY, David. “O tempo e o espaço no cinema pós-moderno” in: A condição pós-moderna. São Paulo : Loyola, 1994, p. 277-289 (capítulo 18).

KOOLHAAS, Rem. “Generical City” in: S, M, L, XL. New York: Monecelli Press, 1995. MCLUHAN, Marshall. Understanding Media: the extentions of man. London: Routledge, 1994 (7th

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Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968. NAME, Leonardo. “O cinema e a cidade: simulação, vivência e influência”. Arquitextos (revista

eletrônica: http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arquitextos.asp).