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    A Nomadologia de Deleuze-Guattari83

    Paulo Domenech Oneto

    O captulo ou plat 12 do livro Mil Plats, de Gilles Deleuze e FlixGuattari publicado em 1980 como segunda parte de Capitalismo e Esquizofre-nia(dando seqncia a O Anti-dipo, de nove anos antes) intitulado Trata-do de Nomadologia: a mquina de guerra. A exemplo dos demais plats quecompem a obra, esse ttulo precedido por um nmero, que nada tem a ver com

    a numerao por captulos. Trata-se de um ano ou perodo histrico, ao qual cadaum dos temas abordados no livro est direta ou indiretamente relacionado. Nocaso desse tratado, cujo ttulo , a um s tempo, uma referncia aos nmades eum jogo de palavras com a monadologia leibniziana, o nmero 1227. Mas queestranha data essa? E de que trata exatamente o captulo em questo?

    O ano a data da morte de Gengis Khan, cujo nome real era Temujin e quese tornou chefe (khan) dos guerreiros mongis naquele distante sculo XIII. Temu-jin teve infncia difcil, mas foi hbil o bastante para se tornar chefe universal de

    tribos nmades de toda a sia, formadas por povos de etnias diferentes, levando-osa ocupar uma rea que se estendia de Pequim (China) at a regio do Volga (Rs-sia). Apesar dos relatos de crueldade que ilustram a ao de Gengis Khan, foi essadominao que garantiu um perodo de paz para os povos turcos e mongis (entreoutros), ao abrir espao para que eles pudessem circular sem a ameaa de seremdizimados ou simplesmente incorporados aos reinados vizinhos.

    A questo mais importante do captulo gira precisamente em torno dessetipo de ao nmade que, como o segundo axioma do tratado proposto ir deixarclaro, distinta da ao de uma instituio militar. Gengis Khan torna-se, assim,um nome emblemtico em meio argumentao geral de Deleuze-Guattari (ouDeleuze e Guattari para os amantes da individuao), e isto na medida em que,nesse personagem histrico, aparecem associados os problemas do nomadismo edo esprito guerreiro. O tema do captulo aparece, ento, bem delineado. O queest em jogo a elaborao de uma espcie de paradigma que , a um s tempo,

    83Este texto foi escrito originalmente em 1990. Procurei fazer algumas alteraes, mas creioque, apesar de tudo, ele continua refletindo as minhas preocupaes de ento, que eram asseguintes: oferecer uma resenha explicativa do captulo Tratado de Nomadologia de Deleuze-Guattari e tentar situ-lo no mbito da discusso ontolgica acerca da imanncia, tema de mi-nha dissertao de mestrado naquela poca..

    LUGAR COMUM N23-24, pp.147-161

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    148 A NOMADOLOGIA DE DELEUZE-GUATTARI

    poltico, scio-cultural e epistemolgico: o paradigma da mquina de guerra.Mas a mquina de guerra deleuzo-guattariana tem pouco ou nada a ver com o

    sentido comum dado ao termo. No se trata de falar do aparato militar que um Es-tado, reino ou imprio capaz de construir para fazer guerra contra seus inimigosinternos ou externos, mas de mostrar que uma mquina de guerra sempre (pordefinio) exterior s diversas formas de Estado surgidas ao longo da histria.Estas seriam, a rigor, manifestaes de um outro paradigma, correlato ao primeiroe com o qual a mquina de guerra manteria uma relao de oposio, permanentetenso, concorrncia, com atrao mtua, mas sem complementaridade: o para-digma do aparelho de Estado. Mas, ento, a qu esta ao guerreira estaria real e

    diretamente associada? Surge a o detalhe crucial que explica o ttulo do captulo.Para compreender a mquina de guerra preciso falar de nomadismo, pois, comoo axioma II j mencionado afirma: a mquina de guerra inveno dos nma-des (Mil Plats deste ponto em diante referido como MP p. 471).

    As questes da exterioridade da mquina de guerra com relao a formaspolticas, scio-culturais ou epistemolgicas de tipo-Estado (aparelhos de Estado)(I), sua articulao imediata com o nomadismo (II) e com seu concorrente maisprximo (a metalurgia) (III) constituem os trs axiomas do tratado nomadol-gico proposto. Uma nota importante: a um leitor mais desavisado ou apressado

    poder parecer que a argumentao montada a partir de relatos histricos, eque os termos utilizados pelos autores designam entidades empricas situadas aolongo dessa histria o Estado, a guerra, o nmade, a metalurgia etc. O objetivodeste meu comentrio , nesse sentido, triplo: a) mostrar que este no absoluta-mente o caso ao contrrio, os exemplos que so modos de atestar a validadedos axiomas, os quais tratam de paradigmas para a compreenso de fenmenosos mais diversos; b) avaliar os exemplos dados, acrescentando en passantalgunsnovos exemplos que venham corroborar os axiomas; c) indicar a importncia dos

    dois paradigmas para pensar a poltica.

    Dois Paradigmas

    Na realidade, o estranho tratado proposto por Deleuze e Guattari se ar-ticula, aparentemente ao menos, de um modo bastante tradicional, isto a partirde axiomas e proposies, como no caso de uma obra bastante cara para Deleuze:a tica de Spinoza. Encontramos no texto uma anlise minuciosa povoada deexemplos que se erguem e se desenvolvem a partir de trs axiomas. Como dito

    acima, o Axioma II complementa a referncia a Gengis Kahn, enfatizando doispontos essenciais da proposta dos filsofos: 1) a relao entre nomadismo e m-

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    quina de guerra, e 2) a diferena radical entre a dinmica que anima este paradig-ma guerreiro e a ao centralizada de um Estado com seu poder militar. Contudo,

    antes de chegar at ele, preciso abordar o axioma de nmero I que orienta toda aproposta micropoltica deleuzo-guattariana, indo at mesmo alm de Mil Plats.

    O axioma em questo afirma que a mquina de guerra exterior aoaparelho de Estado (MP, p. 434). Como todo e qualquer axioma, a assero aquicarece de demonstrao, neste caso por se tratar de um raciocnio por definio.O curioso e complexo aqui que as definies dos dois conceitos, que designamparadigmas de ao poltica, scio-cultural ou de pensamento, no so dadas emseparado da anlise geral e nem tampouco dos exemplos. Estes, alis, segundo

    Deleuze e Guattari, so empregados para atestar (no para demonstrar ou mesmocomprovar) a validade do axioma. a partir de uma srie de proposies, interca-ladas por problemas, que se encontra a chave para a compreenso do que cada umdos dois paradigmas recobre. A primeira proposio particularmente importantepara situar o leitor. Ela diz que a exterioridade da mquina de guerra atestadapela mitologia, pela epopia, pelo drama e pelos jogos. desse modo, gradativa-mente, que vo se delineando os principais aspectos de cada um dos paradigmas.

    A mitologia indo-europia, tal como foi esmiuada por Georges Dumzil,serve para fornecer as linhas gerais que integram a compreenso dos conceitos-

    paradigmas discutidos. Nessa mitologia, os fenmenos da dominao e da sobera-nia se caracterizam por tomarem como modelo duas divindades. De um lado esta figura do rei-mgico, dspota, inspirada por Varuna. Do outro lado, encontra-sea figura do sacerdote-jurista e legislador, que encontra correspondncia em Mitra.A noo de soberania e sua prtica necessitam desses dois elementos que se al-ternam, rivalizam e se complementam. Juntos, eles traduzem o duplo movimentoque faz emergir e mantm o aparelho de Estado. Este paradigma , portanto, oresultado de uma dupla articulao que o constitui como um estrato, uma forma

    mais ou menos fechada, com uma zona de interioridade que permite distinguir umcentro. Por isso mesmo, o aparelho que se forma a partir desses dois movimentos cuja finalidade assegurar as condies para dominar, seja por meio de leis oude ameaas no deve ser confundido com um aparelho que inclui necessaria-mente uma ao de guerra. Ao contrrio, o lugar da guerra sempre derivado noaparelho de Estado. Para dominar, basta dispor de mecanismos de ameaa ou derepresso direta, cuja violncia no jamais disseminada (como no caso de umaguerra), ou ento manter um exrcito, cuja funo manter a guerra em suspenso,como uma possibilidade em situaes-limite.

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    A mquina de guerra aparece, por outro lado, em Indra, divindade quese ope tanto Varuna quanto Mitra por ser algo da ordem do efmero, sempre

    pronta para uma ao sem preparao prvia. Sua diferena reside no fato de apa-recer como velocidade pura, como pura exterioridade, sem medida comum comas duas outras instncias, irredutvel a elas, mas sem se traduzir sob a forma deuma terceira instncia ou de uma via alternativa. Assim, Indra a potncia de me-tamorfose que no cessa de assombrar as instncias-entidades formadas. Enquan-to estas ltimas so unidades, Indra corresponde pura multiplicidadeque circulanos interstcios dessas unidades dominantes (Mitra e Varuna). Eis porque no fa-ria sentido esperar a substituio do aparelho de Estado pela mquina de guerra

    numa dada conjuntura: a mquina de guerra de uma outra espcie, de uma outranatureza, de uma outra origem que o aparelho de Estado (MP, p. 436).No campo da epopia, do drama ou dos jogos, Deleuze e Guattari vo

    buscar novos subsdios para melhor definir os dois paradigmas e, com isso, tornarmais evidente o axioma I. Surgem ento Aquiles e Ulisses, os reis shakespearea-nos, o xadrez e o go. Nos dois primeiros exemplos, o esforo maior dos autoresreside em fornecer elementos que permitam desembaraar uma confuso freqen-te, feita entre a potncia extrnseca que caracterstica da mquina de guerra eo uso da violncia ou a militarizao, tpicas do aparelho de Estado. Contudo,

    a potncia no jamais uma relao dinmica entre plos de poder. A potnciano algo que se possua, mas sim algo que exercemos sempre, de um modo oude outro. O processo de acelerao contnua e os segredos da ao guerreira nopodem, portanto, ser da mesma ordem da alta velocidade de uma ao policial oumilitar, cujos segredos so de interesse pblico. Uma gangue digna do nome semantm, por definio, como uma gangue de rua, vagabunda; assim como umatropa policial deve aspirar a ser uma tropa de elite.

    O guerreiro aristocrtico Aquiles separado de sua potncia de agir no

    momento em que encurralado entre os dois plos do poder grego, primeiro acei-tando ser soldado de Agamenon e, depois, deixando as suas armas para o homemde Estado Ulisses. No teatro de Shakespeare, a violncia, os crimes e as perver-ses da realeza so apenas meios para a conquista de um lugar. O personagem deKleist, Michael Kohlhaas, tenta conter sua fria aps a interveno de Lutero eacaba se transformando num simples insurreto condenado a morrer na luta contraos ncleos de poder germnico. Entre o xadrez e o go chins encontramos umanova diferena: no primeiro jogo, as peas tm qualidades e valores determinadosa priori (funes militares) ao passo que no go as propriedades dos pees soextrnsecas, dependendo da situao em que se encontram.

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    Os exemplos possveis so muitos... O que importa, todavia, o surgi-mento de um problema que obriga Deleuze e Guattari a apresentarem duas novas

    proposies, que nada mais so do que dois novos campos de anlise com exem-plos. O problema I enunciado da seguinte maneira: h algum meio de conjurara formao de um aparelho de Estado ou de seus equivalentes? (ibidem, p. 441).Ele seguido das seguintes proposies (II e III): a exterioridade da mquinade guerra atestada tambm pela etnologia; essa mesma exterioridade aindaatestada pela epistemologia. Ocorre, porm, que a anlise epistemolgica acabapor conduzir a um outro tipo de problema (II) que envolve a prpria natureza dopensamento: h algum meio de se subtrair o pensamento do modelo de Estado?

    Esse problema permite que seja convocado um ltimo exemplo, especialmentecapaz de atestar a situao de exterioridade da mquina de guerra. Trata-se daproposio IV, que busca extrair de uma anlise das imagens que o pensamentoelabora acerca de si mesmo (imagens sobre o que pensar), uma nova ilustraopara o axioma apresentado. Afirma-se, desse modo, que a exterioridade da m-quina de guerra enfim atestada pela noologia (MP, p. 464).

    Etnologia, Epistemologia, Noologia

    Segundo Deleuze e Guattari, tanto a etnologia de Pierre Clastres quantouma anlise epistemolgica fina, como a empreendida por Michel Serres, podemfazer ver melhor a existncia do paradigma guerreiro que traduz mais do queum lado de fora do aparelho de Estado a pura forma da exterioridade84. Omelhor exemplo, contudo, vir de uma anlise do prprio ato de pensar (noologia)que pode ser encarado como um ato natural exerccio de uma faculdade apta aconquistar o verdadeiro como elemento essencial do pensamento ou, ao contr-rio, como colocao de problemas de maior ou menor relevncia, cujas soluesdependem do modo de problematizao.

    Nas reas da etnologia e da epistemologia, a tenso entre mquina deguerra e aparelho de Estado ressurge em termos da oposio entre bandos e formapoltica estatal ou entre cincias oficiais e menores. Tomando como ponto departida as anlises de Clastres em torno das sociedades ditas primitivas, Deleu-ze e Guattari procuram mostrar que a no-formao de um Estado por parte dealgumas sociedades est bem longe de indicar algum atraso em seu processo de

    84 No basta afirmar que a mquina exterior ao aparelho, preciso conseguir pensar namquina de guerra como sendo ela prpria uma pura forma de exterioridade, enquanto que oaparelho de Estado constitui a forma de interioridade que tomamos habitualmente por modelo,ou pela qual temos o hbito de pensar (MP, p. 438).

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    evoluo natural. Alm de combater esse tipo de evolucionismo, que v na forma-Estado um desdobramento natural, dando-se em funo do nvel elevado de de-

    senvolvimento econmico das sociedades (primeira tese), Clastres indaga se nohaveria justamente um esforo (bem sucedido) de conjurao do Estado nessassociedades (segunda tese).

    Um ponto importante surge na passagem entre as duas teses. Ele consis-te na afirmao de que um Estado no se define pela existncia de um ou maischefes. O que o define o movimento de perpetuao ou conservao de rgosde poder (MP, p. 441). A preocupao do aparelho de Estado precisamente esta:conservar. A guerra das sociedades primitivas feita, de acordo com a segunda

    tese de Clastres, para impedir a formao de um Estado. Ela serve para manteros vrios segmentos envolvidos na luta dispersos, sem princpio de unificao.Assim, no apenas o Estado que se ergue contra a guerra, como no contratu-alismo hobbesiano. A guerra, em sentido forte, feita contra a emergncia daforma-Estado.

    As teses de Clastres so importantes para mostrar esse aspecto da exte-rioridade da mquina de guerra, a saber, estes dois aspectos: o fato de que ela norepresenta um estgio mais atrasado (provisrio) ou mais avanado com relaoao aparelho de Estado, mas tambm o fato de se utilizar justamente a guerra para

    conjurar a formao desse aparelho. Por outro lado, o etnlogo parece se con-tentar com uma diviso quase purista entre sociedades de Estado e sociedadessem-e-at-contra-o-Estado. Importa, porm, detectar as foras que levam for-mao de algo como um aparelho de Estado, e tratar de sua relao com forasque resistem a esse processo ou que conduzem at mesmo a uma dissoluo dosEstados. Sem uma anlise desse tipo, a exterioridade formal ou paradigmtica damquina de guerra vista como uma exterioridade de fato, prpria de um tipode organizao apenas diferente (talvez melhor), independente. Mas h sempre

    tendncia formao de algo como um Estado. Do mesmo modo em que ele sempre assombrado por foras individuais e sociais que nunca so completa oufacilmente capturveis: o prprio Estado sempre esteve em relao com um fora,e ele no pode ser pensado independentemente dessa relao (MP, p. 445).

    O Estado asoberaniaque est sempre pronta para se apropriar da po-tncia no intuito de interioriz-la sob a forma de um poder hierarquizado. A for-ma-Estado tem uma forte tendncia a se reproduzir solicitando o reconhecimentopblico de seus direitos, como uma necessidade a necessidade da Lei. Mas amquina de guerra, como pura forma de exterioridade, s aparece e existe emprocesso, nas suas metamorfoses, como um fluxo com suas regras imanentes: nas

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    informaes que circulam na internet, num movimento religioso ou numa mani-festao de rua, nas gangues, nos movimentos de sem-terra, sem-teto, sem-voto,

    sem-formao etc. Sua apropriao ou eliminao pelos aparelhos de Estado sempre iminente, mas ela acaba implicando abertura para novos fluxos.

    O problema da anlise de Clastres , portanto, o seguinte: sugerir umaindependncia entre os dois paradigmas, quando o que h coexistnciae con-corrnciadentro de um campo perptuo de interaes. Nesse sentido, o exemploepistemolgico talvez seja mais adequado para mostrar essa dupla relao de coe-xistncia e concorrncia entre os paradigmas, afastando qualquer hiptese purista,de uma sociedade selvagem ou nativista, o que poderia tornar a mquina de guerra

    uma espcie de ideal, transformando, por exemplo, Gengis Khan, Antnio Conse-lheiro, desobedientes civis, funkeiros ou traficantes em heris.O caso do que Deleuze denomina imagens do pensamento agindo na

    prpria gnese das cincias ainda mais interessante por implicar diretamenteos prprios Deleuze e Guattari. Afinal de contas, ao escreverem plats em lugarde captulos justamente para ressaltar o carter pragmtico do livro, que norequer uma leitura sistemtica ou seqencial, mas que reclama uma abordagempelo meio, com cada um dos temas remetendo a uma regio contnua de inten-sidades, sem subordinao temtica na direo de um ponto culminante (ibidem,

    p. 32-33), os dois autores destacam a existncia de uma mquina de guerra naprpria atividade de pensar, abrindo campo para um diagnstico acerca dos limia-res a partir dos quais contedos e formas do pensamento tendem a se sedentarizarou enrijecer. O prprio Mil Platsaparece, desde ento, como uma tentativa decontato com a exterioridade, convocando no tanto a uma interpretao quanto aum uso dos conceitos tratados numa situao de combate.

    Na realidade, o modelo estatal pressupe uma evoluo de formas deracionalidade que acompanha a prpria variao da forma-Estado. Contra a redu-

    o ou subordinao do pensamento a esse modelo, Deleuze e Guattari procuramenfatizar a presena de um devir-problematizante que no pra de ameaar tudoaquilo que da ordem do saber como conquista ou posse, ocupando um lugarcentral na cultura. Esse pensamento, por assim dizer, guerreiro, faz surgir nocampo epistemolgico um tipo de cincia nmade ou menor. A noologia, comoestudo das imagens que um pensamento elabora a respeito de si mesmo, umainveno deleuzo-guattariana que nos ajuda a compreender melhor a maneira pelaqual a epistemologia tambm pode atestar a celebrada exterioridade da mquinade guerra. Por meio dos trabalhos de Michel Serres, por exemplo, possvel deli-mitar dois modos de formalizao bastante distintos, caracterizando, de um lado,

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    uma cincia real ou imperial e, de outro, uma cincia nmade. No primeiro tipo decincia, trata-se de um saber que pretende emergir de um pensamento afirmativo

    de universalidade e de afinidade com o verdadeiro. J no segundo tipo, estamosdiante de um tipo de cincia de difcil classificao, fruto de um pensamento in-forme que, por isso mesmo, no se presta jamais a servir a um Estado.

    As cincias oficiais possuem seu estatuto bem definido, funcionando emproveito do Estado, de quem obtm respaldo. Seu modo de formalizao apresentaquatro caractersticas bsicas: 1) enxerga a realidade como um slido, podendomesmo ser definida como uma teoria dos slidos; 2) pretende constituir modelosestveis, homogneos, eternos, sempre cata de invariantes; 3) faz da realidade

    algo de plenamente mensurvel, pressupondo um espao linear, fechado, em quevamos de retas a paralelas espao estriado(mtrico), em que a mensurao pre-para para uma ocupao sedentria; 4) um modelo teoremtico de cincia, isto, baseado numa racionalidade pressuposta, para a qual os problemas no passamde obstculos a serem superados rumo ao elemento essencial.

    Em contrapartida, os nmades praticam cincia de uma maneira que su-pe outra concepo, excntrica, mais prxima do que denominamos artes. Seumodo de formalizao vago. Suas quatro caractersticas, por oposio ao mode-lo do aparelho de Estado so: 1) a realidade vista como um conjunto de fluxos

    (devires), ensejando um modelo hidrulico; 2) sua matria heterognea, semforma preestabelecida; 3) isto implica um modelo turbilhonar, operando num es-pao visto como liso(topolgico) que ocupado sem ser contado ou medido, quese delineia em funo da distribuio de fluxos; 4) constitui-se como um modeloproblemtico, isto , como um modelo para o qual pensar problematizar semque a razo nada possua de direito. Assim, enquanto o aparelho de Estado limitao elemento-problema para subordin-lo a um teorema com suas proposies de-monstrveis, a mquina de guerra o paradigma da experimentao. Todo conhe-

    cimento a afetivo, no sentido em que as figuras que emergem s tm valorem funo do que as afeta. Cada figura designa, portanto, um acontecimento e nouma essncia.

    A crtica dirigida ao modelo epistemolgico do Estado uma crtica aosmodelos euclidiano e hilemrfico, o primeiro por abstrair um espao, tornadoindependente, e o segundo por pressupor uma forma, supondo-a inaltervel emface de uma matria homognea. No paradigma da mquina de guerra, porm,o espao vetorial e as formas se do junto com do movimento permanente deuma matria heterognea. Do ponto de vista noolgico, o apoio que o pensamentopode encontrar no Estado j que a maneira pela qual uma cincia ou uma con-

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    cepo de cincia, participa da organizao do campo social (...) faz parte da pr-pria cincia em questo (MP, p. 456-457), pode at ser til, mas haver sempre

    um aspecto que fica inevitavelmente de fora (sob pena de perda de vigor), naexata medida em que pensar no se faz a partir de um solo estvel com objetivosclaros de fixar zonas de atuao privilegiada, por exemplo para um trabalho oupara afirmao de uma posio social: a aliana to em voga no Brasil acadmicode hoje, entre especialismo, titulao e visibilidade miditica.

    compreensvel, ento, que a exterioridade noolgica da mquina deguerra se manifeste mais pelo estilo do que pelos contedos ou matrias tratadas:o aforismo nietzscheano, o conceito como algo que deve ser criado em funo de

    problemas originais que no param de se impor a cada um de ns, forando-nosafetivamente a pensar (Deleuze).

    Os Trs Aspectos da Mquina de Guerra

    Essa crtica a um modelo verdadeiro de pensamento e a um modelo hi-lemrfico de cincia prolongada por Deleuze e Guattari numa srie de direesinusitadas. Em todas elas, podemos dizer que o que est em jogo a questo daimanncia e do nomadismo. Ou seja, trata-se sempre, aqui e ali, de recusar a sepa-rao dos paradigmas em regies estanques, enfatizando, ao contrrio, a tenso,atrao e concorrncia entre eles. No h, nesse sentido, dicotomia entre mquinade guerra e aparelho de Estado, nem sequer uma posio de transcendncia de umdos paradigmas ou de ns e da sociedade com relao a eles. sempre deles quese trata, mas deles como aes possveis diante dos devires que constituem a vida,aceleraes e cristalizaes.

    Surge aqui a ocasio para a apresentao de um segundo axioma, comple-mentar ao primeiro e que explica o ttulo do captulo-plat-tratado: A mquinade guerra a inveno dos nmades (enquanto exterior ao aparelho de Estado e

    distinta da instituio militar). Em vista disso, a mquina de guerra nmade temtrs aspectos: um aspecto espacial-geogrfico, um aspecto aritmtico ou algbri-co, um aspecto afetivo (MP, p. 471).

    As proposies de V at VII lidam precisamente com essa existncianmade, que efetua as condies exteriores da mquina de guerra no espao, im-plicando elementos numricos tpicos dela e se valendo das armas que ela utiliza. esse triplo movimento que se traduz nos aspectos espacial-geogrfico, algbricoe afetivo mencionados no axioma.

    Em termos de espao geogrfico, os autores mostram que o nmade, bemmais do que aquele que se desloca de um territrio para outro, desterritorializa-

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    dor. O importante na ao de Gengis Khan no seria liderar tribos efetivamentenmades, mas sim lider-las de modo a arrancar o territrio ocupado de seu se-

    dentarismo. A partir da, as rotas asiticas deixam de ter um centro. Em termosaritmticos, so as linhas de percurso que deixam de possuir um ponto zero (departida) e um ponto de chegada toda trajetria se completa no infinitesimal.Os autores tambm fazem questo de distinguir o nmade da figura do migrante.Este vai sempre de um ponto a outro (do Nordeste ao Sudeste do Brasil, mas nocaminho oposto tambm, em busca de emprego ou de sossego), ao passo que onmade s afirma o deslocamento durante o seu movimento num momentoGeorge Jackson quer fugir da priso, mas encontra uma arma... (assim tambm

    alguns dos personagens dos filmes de Wim Wenders...). A direo do movimentose d concomitantemente ao movimento, como no poema de Antonio Machado:caminante no hay camino... caminando se hace el camino....

    Ainda no campo numrico, da aritmtica ou da lgebra, Deleuze e Guat-tari destacam uma distino semelhante, entre o nmero numerado (como numacontagem regressiva) e o nmero numerante (a cifra). O nmero numerado dadode antemo, marcando ou demarcando um espao a ser percorrido, definindo umespao de estrias com seus nmeros correspondentes. J a cifra, como uma somaem dinheiro que contada ao mesmo tempo em que nos chega s mos. A conta-

    gem a autnoma e imanente. Ela goza de uma leveza que a prpria leveza deseu elemento mvel. Leve, o mvel pode se deslocar em ziguezague, sem lugarde chegada, ganhando uma velocidade que a marca da desterritorializao. Mas por ganhar peso em determinados momentos que o corpo mvel perde veloci-dade e tende a ser dominado por uma fora centrpeta, levando sua captura nainterioridade naturalizada do aparelho de Estado. Vrios exemplos podem ser da-dos aqui... O organismo biolgico subordinando a atividade corporal a um bomfuncionamento geral dos rgos, em nome de um ideal de vida ou de uma mera

    sobrevivncia; os enclosuresna Inglaterra pr-capitalista; o intelectual espera deum cargo na burocracia estatal; as minorias defendendo especificamente o seulugar na sociedade; o artista-acadmico, chefe de escola; os partidos polticosobedientes ao jogo poltico do momento... Mas, a velocidade est no corpo semrgos artaudiano, na terra que s marcada pela ocupao, no intelectual sem r-tulo, na minoria cujas conquistas no implicam a formao de uma identidade, noartista sem escola, nos partidos quando agem fora da cena poltica privilegiada...

    Toda a questo de sabermos quando o espao deixa de ser suporte parase tornar apenas ou principalmente territrio. Territrios e reterritorializaessempre h. Contudo, para o nmade o territrio ponto de troca e de passagem e

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    a reterritorializao se d sobre seu prprio corpo, sempre. O corpo do nmade eo espao so indiscernveis, assim como nmero e ponto numerado. No podemos

    sequer dizer que o nmade ocupa um espao ou que o nmero serve para indicarum ponto ou para medir. No podemos mais dizer que viver, pensar, criar ou agirpoliticamente seja sequer prximo de sobreviver, ter razo, embelezar ou distri-buir poder para si e para outros. Trata-se de outra coisa...

    Esta outra coisa talvez possa ser explicada por meio de uma breve alu-so proposio VII. Nela so mencionados os afetos que se constituem naexistncia nmade. Eles so as armas da mquina de guerra. O nomadismo inven-ta a mquina de guerra e tem seus afetos nas armas que esta mquina utiliza.

    Mas como assim?A questo aqui remete aos instrumentos de que o nmade dispe. oagenciamento de cada pea que pode definir o que ela vir a ser: utenslio paraum trabalho determinado (caso do aparelho de Estado) ou arma para uma aoimediata. Armas e utenslios dependem dos agenciamentos de desejo que se es-tabelecem: as armas esto relacionadas com uma projeo, os utenslios comuma introcepo (posio relacionada a um centro). Um instrumento moldadosegundo uma forma especfica, fabricado em srie para o trabalho dos homens,com uma finalidade que responde s necessidades do aparelho de Estado, pode

    se transformar, de um momento a outro, num afeto-arma. Mas se um utensliocomporta mecanismos de projeo que o abrem para um tipo de utilizao afe-tiva, a recproca tambm vale para a arma do soldado ou mesmo do militantequando ela adquire um aspecto racional-teleolgico de cumprimento lgico e ob-jetivo de uma finalidade. Desse modo, est claro que armas aqui no designamnecessariamente metralhadoras, pistolas e bugingagas do gnero. Ao contrrio,elas raramente designam esses objetos. As mos livres do karat so muito maisafetos-armas do que os sabres dos samurais em seus cavalos.

    As armas da mquina de guerra so (ou se tornam) os afetos dos n-mades simplesmente porque no esto jamais sujeitas a uma ao definida por umcentro racional ou poltico, para o qual deve voltar sua face. Elas podem, claro,tender a esse centro por fora de um novo agenciamento, deixando de ser afetos-armas e se tornando armas apenas, armas do exrcito em particular. O manejodas armas pela mquina de guerra est relacionado a uma ao livre e no a umobjetivo. Nesse sentido, as armas do exrcito so mais utenslios do que armas.O movimento dos utenslios relativo a uma finalidade. Mas o movimento dasarmas absoluto, imanente. A ao livre faz de qualquer instrumento uma arma um cartaz numa manifestao, o tijolo de uma casa ameaada de desabamento,

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    um conceito filosfico em conexo com um problema urgente, um ready-mademoda de Duchamp...

    As instrues e os manuais so da ordem dos utenslios, cuja gravida-de exige cuidados e preparativos. A arma est ligada a um vetor-velocidade. Elapertence a um sistema doperpetuum mobile(MP, p. 494). J o utenslio atende aum regime, a uma organizao e desenvolvimento de formas. Tal regime se opeao regime afetivo da mquina de guerra porque no aceita a reduo do trabalhoa uma ao imediata. Pretende regul-lo, com horrios, locais e hierarquias to-que de recolher. Um afeto, porm, (e um trabalho afetivo segue esse regime) uma descarga rpida e momentnea, uma exteriorizao imediata. Um afeto no

    nunca afeto de, assim como um trabalho no se resume a um trabalhopara. Afetoe trabalho so regimes intensivos na mquina de guerra. Designam devires dequem afetado ou trabalha um material qualquer. O ponto crucial aqui reside naoposio afeto-sentimento, bem mais do que na posio aparentemente idealistaque ope ao livre e trabalho. O afeto a descarga imediata de uma emoo, arplica passional e imprevisvel at para quem replica, enquanto o sentimentoprocede como uma emoo sempre retardada, deslocada. Eis o sentido em queas armas so afetos, e que permite afirmar que os utenslios seriam sentimentosinteriorizados como as obrigaes de uma vida bem administrada: a casa com

    seu funcionamento ideal.Entretanto, o que chamei at aqui de instrumento para falar dos objetos

    ou peas de cada um dos paradigmas instrumentos-utenslios do aparelho deEstado, instrumentos-armas da mquina de guerra , precisam ser fabricados, for-jados. A partir da, o prprio processo de concepo de utenslios e armas passaa requerer uma anlise. Deleuze e Guattari chegam, ento, ao solo comum dosdois paradigmas, afirmando e coroando o princpio imanentista que anima todo oempreendimento de Capitalismo e Esquizofrenia.

    A nova figura introduzida a figura do metalrgico como intermezzoliso-estriado, espao esburacado em que experimentao de materiais e formasaparecem mesclados, mas que deve ser visto como primeiro movimento de des-territorializao, indicando a passagem ou a transio de todas as formas para seuexterior nmade. Isto porque as peas fabricadas pelo metalrgico no obedecema um molde, mas so produzidas segundo a coagulao instantnea dos ma-teriais trabalhados. A metalurgia surge, portanto, como fora criadora capaz deameaar o aparelho de Estado e como limite desse aparelho. Trata-se da proposi-o VIII (a metalurgia constitui em si mesma um fluxo que concorre necessaria-

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    mente com o nomadismo), que responde ao seguinte problema (III): Como osnmades inventam ou encontram suas armas? (MP, p. 502).

    Concluso: a metalurgia e o combate efetivo

    O problema enunciado mais acima seguido de um ltimo axioma (III).Este, por sua vez, acompanhado por uma ltima proposio (IX) a respeito daprpria noo polmica de guerra. Talvez fosse mais adequado concluir estebreve comentrio por uma abordagem direta do axioma e da proposio. Prefiro,no entanto, concluir por um gancho, artificial e indevido talvez, entre o usoque Deleuze e Guattari fazem do fenmeno da metalurgia e o problema da luta

    (micro) poltica. O motivo simples: que a metalurgia acaba sendo a melhorilustrao das caractersticas nmades, sem, todavia, negar sua proximidadecom a forma-Estado.

    nesse sentido que devemos tentar compreender a idia do axioma III,segundo a qual a mquina de guerra uma forma de expresso correspondente forma de contedo do metalrgico. Trata-se de explicitar o fato de que os dois pa-radigmas esto numa relao de pressuposio recproca, mas que a metalurgiaque desempenha o papel de estado de coisas ensejando uma ao de tipo m-quina de guerra. A importncia desse gesto quase final dos autores est em contor-nar qualquer idealismo que convoque todos para uma celebrao da mquina deguerra como constitutiva absoluta do aparelho de Estado, precisamente a partir daassociao do primeiro paradigma com o devir s haveria devir, o ser no pas-sando de uma derivao... Contudo, vemos aqui que o solo comum que comunicaaparelho de Estado e mquina de guerra a metalurgia. No h uma vida-devir,como podem pensar os adeptos de uma univocidade de destinao, distensionadae abstrata, mas devires concretos que so limites ou pontos de fuga de formas rela-tivamente estveis: devires sempre minoritrios, mas inseparveis de um contexto

    macro... Eis porque no h devir do que j conquistou lugar historicamente... Masno h tampouco devir em separado dessa luta que eventualmente leva formaode uma maioria, a um novo padro ou modelo. Devir-mulher, devir-homossexual,devir-negro, devir-criana, isto sim todos sempre indissociveis de um movi-mento de resistncia metalrgica. Mas no devir-homem, devir-heterossexual,devir-branco, devir-adulto e nem sequer desconectados da histria. No h onto-logia que no seja, desde o princpio, tica e poltica.

    A metalurgia traduz, portanto, a tenso entre os dois plos paradigmticos

    discutidos, afirmando a fuga s capturas promovidas pelo aparelho de Estado, massem remeter a um fora absoluto que poderia fazer crer num ponto de ruptura total,

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    numa fuga para o imaginrio ou numa posio de recuo la Heidegger. O me-talrgico talvez seja Maiakovski ou Brecht, freudismo e marxismo, o levante do

    Potemkin e a independncia dos EUA. Ele serve tanto mquina de guerra quantoao aparelho de Estado. bem verdade que sua prtica de criao no comportaum telos. Os objetos fabricados acabam, todavia, se destinando a algo de espec-fico. O metalrgico trabalha para o estabelecimento de um modo de vida. bemverdade, ainda, que o metalrgico apaga a extenso em prol das matrias-fluxosintensivas, como o nmade. Mas ele elimina esse espao extensivo unicamentepor uma supresso da distncia entre ele e a matria. Em todo caso, ele permanececomo duplo, comunicando com sedentrios e com nmades (MP, p. 516), pois

    os paradigmas que emergem da ao desses grupos (o aparelho de Estado e a m-quina de guerra) esto longe de exprimirem qualquer moral ou ideologia poltica.Eles indicam apenas movimentos de acelerao e lentido, caractersticos da vidaindividual e coletiva. No representam esquerda ou direita, democratas do votoou monarquistas, parlamentaristas ou presidencialistas, sociedades primitivas oumodelo poltico grego / moderno, agentes pr ou contra globalizao, movimen-tos sociais organizados ou mesmo como os termos podem sugerir tendnciasestatizantes ou neo-liberais. H Estados, no sentido macropoltico, que compor-tam campos de exterioridade bastante amplos. H movimentos sociais que apenas

    combatem por mais zona de influncia. A mquina de guerra no uma bandeirado Estado mnimo ou por qualquer outro tipo de reivindicao. Ela no espon-tanesta e nem sequer democrtica. Ela no passa de um paradigma da criaoe da ao contnuas. Na melhor das hipteses, ela a no-censura, o desbloqueio,o engajamento para achar uma sada, no uma soluo para problemas naturaliza-dos, mas uma sada quando estes nos sufocam. Mas a sada no uma mera fuganegativa, mas uma busca de oxignio: um pouco de possvel seno sufocamos...A fabricao de possvel requer o trabalho de materiais do metalrgico, sob pena

    de se transformar num possvel que apenas objeto de nossa imaginao.O que parece, enfim, que os combates tico-polticos de todos os tem-

    pos s tm a ganhar ao manter essas tendncias como um horizonte a ser pensado,tanto para poderem escapar do aprisionamento num aparelho de Estado (uma per-da de velocidade que compromete a criao ou adoo de novos modos de vida)quanto para poderem dar consistncia aos movimentos da mquina de guerra (fa-zendo com que a velocidade no redunde num caos generalizado).

    No se trata, portanto, maneira brasileira, de ser contra ou a favor, dissoou daquilo, mas de ver como isso ou aquilo so forjados. Trata-se, talvez, de umaateno redobrada ao trabalho de metalurgia, que envolve a fabricao de novos

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    instrumentos: armas para o combate e a reinveno do socius, mas tambm uten-slios para sua manuteno, dependendo dos agenciamentos de desejo que formos

    capazes de engendrar.

    Referncias

    DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille plateaux. Paris: ditions de Minuit, 1980.

    Paulo Domenech Oneto doutor em Filosofia pela Universit de Nice. Doutorandoem Literatura Comparada pela University of Georgia. Atualmente leciona no Programa de Ps-

    Graduao da UGF-RJ (Universidade Gama Filho) como bolsista pela FAPERJ (Fundao deAmparo Pesquisa do Rio de Janeiro).