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A PERSONAGEM NO DOCUMENTáRIO DE EDUARDO COUTINHO

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A personAgem no documentário de eduArdo coutinho

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Coleção Campo Imagético

Campos artísticos possuem uma dinâmica que extrapola tradições históricas. O Campo Imagético, assim pensado, parece convergir, impulsionado pela presença de tecnologias digitais. Mas, para além de uma linha evolutiva tecnológica, podemos reconhecer territórios bem-demarcados, campos de expressão artística. Esta coleção pretende mostrar a pesquisa histórica e a análise da imagem e do som no cinema, no vídeo, na fotografia, na internet, na televisão.

Fernão Pessoa Ramos Coordenador da coleção

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P A P I R U S E D I T O R A

A personAgem no documentário de eduArdo coutinho

cláudio Bezerra

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Bezerra, Cláudio A personagem no documentário de Eduardo Coutinho/Cláudio Bezerra. – Campinas, SP: Papirus, 2014. – (Coleção Campo Imagético)

Bibliografia.ISBN 978-85-308-1150-1

1. Cineastas – Brasil 2. Cinema – Brasil – História 3. Coutinho, Eduardo, 1933-2014 – Crítica e interpretação 4. Filmes documentários – Brasil I. Título. II. Série.

14-08077 CDD-791.4360981

CapaFoto de capaCoordenação

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Revisão

1ª Edição – 2014 Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR). DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. – Papirus Editora R. Dr. Gabriel Penteado, 253 – CEP 13041-305 – Vila João Jorge Fone/fax: (19) 3272-4500 – Campinas – São Paulo – Brasil E-mai l : edi [email protected] – www.papirus.com.br

Fernando CornacchiaZeca GuimarãesAna Carolina FreitasLúcia Helena Lahoz MorelliDPG EditoraEdimara Lisboa, Isabel Petronilha Costa e Simone Ligabo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil: Documentários: Cinema: História 791.4360981

Exceto no caso de citações, a

grafia deste livro está atualizada

segundo o Acordo Ortográfico da

Língua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009.

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Para Eduardo Coutinho, em memória.

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AGRADECIMENTOS

Aos professores Francisco Elinaldo Teixeira, Marcius Freire, Fernando Passos, Andréa Molfetta, Consuelo Lins, Marília Franco; aos amigos Alexandre Figueirôa, Yvana Fechine, Aline Grego e Paulo Fradique;

aos meus familiares, em particular Mercedes Arrais, Antonio Mário, Lu, Ciro, Artur e Cecília, pelo apoio fundamental durante a pesquisa que resultou neste livro, e, especialmente, ao professor Fernão Pessoa Ramos, pelos quase dez anos de convivência, orientação e incentivo.

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PREFÁCIOFernão pessoa ramos

INTRODUÇÃO

1. EVOLUÇÃO ESTILÍSTICA DE COUTINHO primeira fase: experimentação

segunda fase: gestação de um estiloterceira fase: documentário de personagem

2. TRAJETÓRIA DA PERSONAGEM COUTINIANApersonagem vítima e/ou heroína

personagem contraditóriapersonagem performática

3. perFormAnce E DOCUMENTÁRIOPerformance, performer e personagem documentária

perfil das personagens de coutinhoprocedimentos de filmagem

procedimentos de montagem

4. perFormAnces NO DOCUMENTÁRIO DE COUTINHOPerformance xamanística

Performance musicalPerformance provocadoraPerformance exibicionista

Performance divertidaPerformance educativaPerformance esotérica

Performance melodramáticaPerformance indecisa

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

sumário

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Eduardo Coutinho foi um cineasta de múltiplas facetas que encontrou o veio mais fértil de sua cinematografia no último terço da vida. Nesse período, além da maturidade estilística, contaram a favor o background de produção representado pela Videofilmes e o intercâmbio com um grupo de artistas cinematográficos maduros, com trocas ativas na discussão e na finalização dos filmes. A personagem no documentário de Eduardo Coutinho debruça-se principalmente sobre essa época, com um recorte conceitual original. A proposta de abordagem não foca um período histórico, mas um traço estrutural da obra. Pela análise da forma narrativa documentária coutiniana, concentrando-se na noção de personagem (afinal, o que é uma personagem documentária?), Bezerra vai buscar o conceito de performance, nas artes dramáticas e nas artes plásticas de vanguarda, para trabalhar esse cinema. O casamento entre a concepção performática da ação artística e a encenação documentária tem em Coutinho um desenvolvimento particularmente produtivo. Utilizando ferramental proposto por Roselee Goldberg e Renato Cohen, entre outros, a análise caminha nessa trilha, propondo um desenvolvimento tipológico de categorias de ação performática, por meio de modalidades como performances xamanística, musical, provocadora, exibicionista, divertida, esotérica, educativa, melodramática e indecisa. A trilha revela-se produtiva e, percorrendo-a, nos sentimos situados no coração da obra de Coutinho.

De igual densidade, e provocadora em sua amplitude afirmativa, é a divisão da filmografia do cineasta, agora finalizada, em três fases: uma primeira fase, de experimentação e aprendizado, centrada principalmente em sua carreira no programa Globo Repórter; uma segunda fase caracterizada pela gestação de um estilo, já com foco exclusivo no documentarismo, na qual obras diversas são

preFácio

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realizadas e se destaca a feitura de Cabra marcado para morrer, filme maduro que abre novas fronteiras para Coutinho e para o cinema brasileiro; e a terceira fase, chamada documentário de personagem, em torno da qual se centra mais a proposta analítica do livro. Ao trazer para a análise fílmica o conceito de performance e a percepção de que demandas narrativas para a construção de personagens ocupam o centro das preocupações de Coutinho, o livro realiza um movimento frutífero que revela dimensões ainda pouco exploradas na filmografia do diretor.

A oposição árida entre o que é documentário e o que é ficção impede a percepção de que, no campo do documentarismo, a construção de personagens é um movimento essencial na articulação narrativa. E Coutinho desenvolve uma obra por excelência voltada ao projeto de construir personagens, seja no levantar de uma mise en scène que sirva a essa demanda (bem-definida no livro pela noção de dispositivo), seja na dimensão da articulação narrativa propriamente, decupagem e mixagem, prevista para a valorização da expressão de fisionomias e gestos como carne do mundo, presença como vida na tomada. Se todos nós podemos ter vida e personalidade diante da câmera, Coutinho, como artista que é, sabe escolher no mundo aqueles que possuem a vida que, pela fisionomia, pode ser expressa. Mas sabe também de que modo estabelecer esse embate com outrem, do qual sairá a matéria-prima de sua arte: carne do rosto e do corpo que se abre para si, Coutinho, pela circunstância da tomada, enquanto viver no mundo.

Pois é também lá, na tomada, que vem bater o espectador que olha a fisionomia que passa, enquanto filme, na situação espectatorial. Se ele, espectador, pode se lançar para a tomada, é porque lá existe um ponto-câmera, um sujeito-da-câmera que dá força de gravidade ao que vê e, assim como o recebe (espectador), para ele atua. Certamente não são desenhos, não são pinturas, que estamos vendo nos filmes de Coutinho, mas vida na tomada, traço fotográfico, ponto-câmera nessa vida, aqui pouco importando o tipo de suporte (película, suporte vídeo ou digital) que dá densidade à marca do corpo da personagem e sua fisionomia.

Certamente o conceito de performance é um conceito pertinente, denso e de ampla tradição na história da arte, que pode ser trazido a este campo, a fim de dialogar com a realidade bruta, com a força bruta do mundo na narrativa documentária. O deslocamento, estabelecido originalmente por Bill Nichols em Blurred boundaries, bem-exposto e situado por Bezerra em seu livro, revela, então, todo o seu potencial. Revela igualmente o peso que teve a noção de performance na teoria do documentário, quando foi inicialmente introduzida em meados dos anos 1990. Ao ampliar sua conhecida tipologia dos modos documentários para introduzir o modo performático, Nichols sintonizou o norte de seu arcabouço teórico para a forte tendência subjetiva do documentário contemporâneo, abrindo espaço para um diálogo produtivo com o documentário em primeira pessoa e uma ética da voz

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expositiva que, no início do século XXI, tem dificuldades ao querer centrar-se num saber objetivo e impessoal do mundo. Mesmo a dimensão redentora do discurso reflexivo do cinema-verdade, apontando para a desconstrução da enunciação como ponto cego da ética, agora se vê ameaçada pela humildade e pelos limites do ponto de vista do “eu” que enuncia sem ver muito além de seu próprio nariz. Movimento téorico e cinematográfico significativo que está em sintonia com as novas modalidades de comunicação pela rede digital. Nela, a afirmação da “representação de mim” (selfies e outras figuras) expande-se a níveis antes inimagináveis. O interessante do conceito de performance, conforme proposto, é possuir uma interface ativa com a imperiosa necessidade de representação do ego, virando-se simultaneamente para a figuração das determinações sociais conflitivas que atravessam o “eu”.

Bezerra percebe bem esse movimento em sua tipologia das performances em Eduardo Coutinho. Agora, para se falar do outro, desse grande outro do cinema brasileiro que é o povo, deve-se passar pelo “eu”. Não pelo “eu” de “mim”, pois certamente não é Coutinho que surge exibido na tela, mas pelo “eu” do outro no outro, espaço onde se detém o alcance dos enunciados sociais que o filme pode pretender asserir. O “eu” das personagens de Coutinho, nas modalidades das performances diante da câmera, aparecem, então, como espécie de ponto-limite que cada vez mais caminha para se fechar em si, deixando para trás, deixando no ar, a possibilidade de grandes enunciados generalizadores sobre a realidade social a que se remetem. Se esse “grande enunciado” ainda se vislumbrava com densidade na performance da segunda Elizabeth Teixeira, no Cabra marcado para morrer, de 1984, as falas das personagens de Jogo de cena rodopiam em torno de um eixo de enunciação que gira na própria gravidade do “eu”, submetida à flexão performática. Certamente não parecem rodar no vazio, mas adquirem força centrípeta necessária fechando-se em si, para daí decolar além dos próprios dilemas da encenação que enfrentam nessa representação do “mim”. Digo a segunda Elizabeth Teixeira, pois a primeira (haverá ainda uma terceira, que parece ter encenado também para Bezerra, cineasta), em 1964, asseria igualmente sobre o mundo da exploração e da miséria em Sapé, na Paraíba, de maneira bem mais afirmativa e didática. Asseria nas modalidades da encenação construída, e não mais “direta” (como a veremos mais tarde encenando no segundo Cabra...), momento, no primeiro Cabra..., em que a dimensão performática ainda não se coloca diretamente, ao menos nos termos que é trabalhada por Bezerra em seu livro.

Explicitamente, por uma correta opção metodológica, a encenação do ator profissional é deixada de lado em A personagem no documentário de Eduardo Coutinho, embora esse tipo de encenação construída tenha sempre aparecido, na obra de Coutinho, como um limite a ser transposto e manipulado pela mise en scène documentária. Elemento que fica claro em seus últimos filmes, tanto em Moscou, como em Jogo de cena. Coutinho chega a trabalhar com atores “estrelas”, manipulando

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seu trabalho de atuação para além da encenação de si como personalidade, coisa muito rara na tradição documentária.

Mas é a encenação do homem e da mulher comuns, trabalhada como performance, que atrai o diretor e é ela que percorre de modo fulgurante sua obra, principalmente na última fase. Coutinho fez percurso nessa direção, partindo, nos anos 1980, de documentários de denúncia social com voz expositiva over mais tradicional (período posterior a Cabra... e ao Globo Repórter), para uma afirmação cada vez mais nítida da enunciação na camada da individualidade do “eu” encenado, dando a essa camada a espessura das contradições sociais de quem vê esse “mim” como outrem, camada de individualidade que o próprio Coutinho expressa conscientemente, em entrevistas, referindo-se a seu trabalho como constituição de personagens em documentário. É quando descobre o modo de dar corda ao mundo, às pessoas no mundo, para explorar a constelação da expressão fisionômica em matéria (em carne) para a câmera.

Coutinho encontra, então, o veio mais profícuo de sua obra. A essa atuação, a essa encenação para si (“si” Coutinho, sujeito-da-câmera), dá-se o nome de performance, da qual foi mestre em saber estabelecer, nas formas do embate consigo, sujeito atrás da câmera. Que esse seja o âmago de sua obra parece ser difícil negar, como fica claro na trilha que Bezerra abre ao percorrer o conjunto de seus filmes mais significativos. Conjunto de obra que, de certa forma, encontra sempre a vida do autor, como intuiu Pasolini ao dizer que toda obra só é completa ao poder-se ver pelo farol que a ilumina de trás para frente, no final da linha. Final que é dado pela matéria sempre intensa que a fecha como vida, como o que foi. Final que todos nós, seres humanos caminhando para a morte, acabamos por tocar.

Pois o livro não poderia prever, na época em que foi escrito, embora estranhamente aponte para lá, o lado para a qual se viraria a obra de Coutinho, ao fazer da encenação do mundo como performance experiência do relato indizível, experiência da vida como intensidade bruta. Experiência de relato daquilo que não se vive, que não seja como trauma, como o presente na fala de tantas personagens suas. Performance de uma ação que nela, vida, não pode caber, pois aí ela mesma é que acaba. Pois que o próprio Coutinho teria, então, de tornar-se personagem de si, encenando a fala de uma experiência de vida que não supunha ser sua, encenando como tragédia, tragédia grega, aquilo que por definição (definição essencialmente baziniana) não se encena na vida: o ato da própria morte.

Fernão Pessoa Ramos

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A atuação de pessoas do mundo histórico diante das câmeras é um recurso amplamente aceito e usado desde os primórdios do cinema documentário. Como observa Ramos (2008, p. 26), “o documentário aparece quando descobre a potencialidade de singularizar personagens que corporificam as asserções sobre o mundo”. Mas ainda há poucos estudos que se debruçam sobre esse importante elemento da narrativa documentária, em particular no Brasil. Não deixa de ser uma contradição, uma vez que grande parte da produção contemporânea se estrutura com base em uma narração em primeira pessoa, seja ou não do próprio realizador.

Este livro discute a natureza e a função da personagem no documentário de Eduardo Coutinho, no intuito de saber de que modo pessoas comuns se tornaram personagens por meio de certos procedimentos adotados por esse diretor, marcando, assim, uma determinada presença no mundo do filme e da vida. Embora lance um olhar macro sobre sua obra, o trabalho tem como foco os últimos filmes de Eduardo Coutinho, a fase do documentário de personagem. A hipótese trabalhada é a de que Coutinho formatou um estilo de fazer documentário, e este gerou a construção de uma personagem de caráter peculiar – performática.

Para dar conta dos seus objetivos, o livro foi estruturado em quatro capítulos. O primeiro destaca o percurso do diretor. Com base em uma análise de quase todos os seus filmes,1 proponho uma divisão da obra documentária de Coutinho em três

1. A grande lacuna é o período do programa Globo Repórter. O Centro de Documentação da TV Globo (Cedoc), no Rio de Janeiro, não possui cópias de outros filmes realizados pelo diretor além dos citados aqui. Também não foram objetos da pesquisa o documentário Um dia na vida (2010), por ser um filme de montagem de cenas da programação televisiva brasileira, nem o último trabalho filmado pelo

introduÇÃo

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fases consecutivas, mas não excludentes, que, vistas em seu conjunto, sinalizam um percurso, mesmo que involuntário, de construção de um estilo. A primeira fase diz respeito ao período do programa Globo Repórter (1975-1984), da TV Globo, quando Coutinho é iniciado no campo do documentário, realizando filmes de média-metragem.

Chamo essa fase inicial de experimentação para demarcar que o diretor ainda não tinha intimidade com a narrativa documentária, nem sabia ao certo se pretendia tornar-se um documentarista. Apesar do formato convencional do Globo Repórter, estruturado por um narrador-apresentador, locução off e depoimentos, havia certa liberdade de criação para os realizadores. Coutinho, por exemplo, pôde fazer um documentário até então inusitado como Theodorico, imperador do sertão (1978), inteiramente sem locução e construído pelo protagonista ora falando direto para a câmera, ora atuando como entrevistador, ou ainda encenando situações cotidianas de sua vida pessoal, de político, fazendeiro e empresário.

A segunda fase começa com Cabra marcado para morrer (1984), primeiro documentário de longa-metragem do diretor feito para o cinema, e de maneira independente, fora da instituição televisiva. A partir desse filme, de modo voluntário ou não, Coutinho inicia a busca por um trabalho autoral, em termos artísticos. É o período da gestação de um estilo, que só vai se configurar mais claramente na fase seguinte.

Como uma etapa intermediária entre a iniciação e a formatação desse estilo, a segunda fase é marcada por uma série de percalços, retrocessos e contradições. Esteticamente, alguns trabalhos são fracos e confusos, a exemplo dos vídeos militantes realizados para organizações não governamentais, carentes de falas vigorosas, espontâneas e cheias de vida, uma das características marcantes não só de Cabra marcado para morrer como também de todos os bons filmes posteriores do diretor.

De Santo forte (1999) em diante, Coutinho formata um jeito próprio de pensar e fazer cinema documentário, cuja finalidade é promover um “acontecimento fílmico” capaz de estimular um processo de transformação criativa de pessoas comuns em personagens fabuladoras, de grande expressividade oral e gestual. O documentário de personagem configura, portanto, um ser peculiar, que marca uma presença no mundo da vida de maneira semelhante ao performer da arte performática.

A gênese dessa personagem performática pode ser encontrada em Theodorico Bezerra, no período do Globo Repórter, ou em Elizabeth Teixeira e João Virgínio, ambos de Cabra marcado para morrer. Mas multiplica-se quando o diretor deixa de fazer documentários temáticos e ilustrativos para investir, exclusivamente, na capacidade de expressão por atos de fala.

cineasta, em novembro de 2013, com jovens do ensino médio de escolas públicas do Rio de Janeiro, porque estava inacabado quando Coutinho faleceu.

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O segundo capítulo do livro aborda a natureza e a função da personagem em cada fase do documentário de Coutinho. A personagem vítima e/ou heroína corresponde à fase de experimentação do Globo Repórter. No geral, são personagens coletivas, típicas, com papéis e discursos socialmente bem-definidos. Escapando aos rótulos da identificação social rígida, a partir da segunda fase, surgem personagens contraditórias, de personalidades ambíguas, nem vítimas, nem heroínas, portanto, mais próximas da complexidade humana.

A personagem performática é uma evolução da personagem contraditória e nasce quando o diretor formata um estilo de fazer documentário estruturado pela palavra. O bom desempenho das pessoas diante das câmeras torna-se, então, o elemento essencial para a existência do próprio filme. O que se espera é que elas não se prendam aos clichês de sua condição social, não sigam um roteiro prévio, mas inventem um para si, mesmo errático, inverossímil, incoerente.

A performance da personagem de Coutinho é uma espécie de teatro, um gesto peculiar de se colocar em cena, de entrar no jogo proposto pelo diretor e marcar uma presença para o filme, com base em uma experiência de vida. A performer-personagem é um ser que se lança sem rédeas no ofício de narrar, mergulha na coisa narrada, forjando outros para si com a memória do presente, criando, assim, outras possibilidades comunicativas por meio de gestos, falas e expressões, muitas vezes peculiares.

O Capítulo 3 discute a arte performática em termos conceituais e como é possível abordá-la no âmbito do cinema documentário, em particular da terceira fase de Coutinho. O que se pretende mostrar é que, para entender a inscrição da arte da performance no documentário, é preciso saber o que está aquém e além dele, ou seja, é necessário conhecer o processo de realização do filme, como foram produzidas as filmagens, os posicionamentos da câmera, a maneira pela qual a pessoa “real” se constitui como personagem, a presença do diretor e da equipe na imagem, a seleção e a montagem das cenas filmadas, e a própria recepção do filme.

O último capítulo identifica nove modos performáticos de as personagens marcarem presença no documentário de Coutinho e no mundo da vida. São elas: divertida, melodramática, xamanística, educativa, provocadora, musical, exibicionista, esotérica e indecisa. Essa taxonomia, no entanto, não obedece a um critério rígido; diz respeito aos aspectos dominantes de atuação, pois muitas personagens, como boas performers, oscilam entre um ou outro modo de expressão.

Embora não tenha a intenção de fazer um julgamento moral do tipo certo e errado, bom ou ruim, procurei destacar na análise a atuação das performers-personagens que conseguem desprogramar o previsto, a simples reprodução social de comportamentos, posturas e falas, amplamente disseminados na mídia, para instaurar algo novo e peculiar, o devir de uma outra possibilidade de existência no mundo.

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