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XXV Encontro Nac. de Eng. de Produção – Porto Alegre, RS, Brasil, 29 out a 01 de nov de 2005 ENEGEP 2005 ABEPRO 2589 Quase-acidentes: conceito, classificação e seu papel na gestão da segurança Fabrício Borges Cambraia (UFRGS) [email protected] Tarcísio Abreu Saurin (UFRGS) [email protected] Carlos Torres Formoso (UFRGS) [email protected] Resumo O sucesso de qualquer sistema de gestão da segurança necessariamente está condicionado a busca e ao tratamento dado às informações pró-ativas. Dentre essas, os quase-acidentes constituem uma das mais relevantes, na medida em que são eventos relativamente freqüentes e que poderiam ter gerado um acidente sob circunstâncias levemente diferentes. Esse artigo discute o conceito e a classificação desses eventos, em particular para o contexto da construção civil. Para tanto, foram registrados, classificados e analisados 122 quase- acidentes em um canteiro de obras. Os resultados do levantamento indicaram que esses eventos podem ser usados tanto para reforçar boas práticas de segurança quanto para apontar falhas de gestão que implicam em grave e iminente risco de acidentes. Além disso, o envolvimento dos trabalhadores no processo de coleta é essencial para ampliar o número de registros, servindo ainda como mecanismo para desenvolver a sensibilidade dos trabalhadores em relação aos perigos. Palavras-chave: Quase-acidentes; Medição de desempenho; Segurança do trabalho; Gestão da segurança. 1. Introdução A possibilidade de aprendizagem a partir dos eventos denominados quase-acidentes tem uma longa história como parte dos programas de gestão da segurança, especialmente em setores como aviação civil, plantas de energia nuclear, indústria química e, mais recentemente, em setores como transporte ferroviário e medicina (VAN DER SCHAAF; KANSE, 2004). É provável que sua utilização tenha surgido nas indústrias com maior propensão para acidentes organizacionais (REASON, 1997), visto que, como esses acidentes são raros, catastróficos e, em geral, podem resultar na falência da organização, torna-se vital a coleta do máximo de informações em prol da prevenção (BRAZIER, 1994; VAN DER SCHAAF, 1995). Hinze (1997) defende que é importante conhecer os quase-acidentes e desenvolver planos para reduzir ou eliminar a possibilidade de um acontecimento semelhante. Além disto, os quase-acidentes tendem a ser muito mais freqüentes que os acidentes, indicando áreas críticas para melhorias na gestão da segurança (HINZE, 1997; JONES et al., 1999; REASON, 1997; VAN DER SCHAAF, 1995). Esses eventos representam ainda o lado positivo (pró-ativo) do controle da segurança (JONES et al., 1999; VAN DER SCHAAF, 1995), visto que o foco de atenção está em eventos aquém dos acidentes, os quais, além de serem mais raros, geram um clima psicológico muito negativo. Os quase-acidentes também auxiliam na priorização dos perigos em um sistema de gestão da segurança e no fortalecimento da cultura de segurança entre os trabalhadores, quando os mesmos são motivados a participar do processo de coleta e não sofrem qualquer tipo de punição (JONES et al., 1999). Reason (1997) reconhece as dificuldades para a coleta desses eventos, uma vez que o relato dos mesmos depende da boa vontade dos indivíduos. Segundo Van der Schaaf e Kanse (2004), na perspectiva dos trabalhadores, os fatores que influenciam no relato de quase-

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    Quase-acidentes: conceito, classificao e seu papel na gesto da segurana

    Fabrcio Borges Cambraia (UFRGS) [email protected] Tarcsio Abreu Saurin (UFRGS) [email protected]

    Carlos Torres Formoso (UFRGS) [email protected]

    Resumo

    O sucesso de qualquer sistema de gesto da segurana necessariamente est condicionado a busca e ao tratamento dado s informaes pr-ativas. Dentre essas, os quase-acidentes constituem uma das mais relevantes, na medida em que so eventos relativamente freqentes e que poderiam ter gerado um acidente sob circunstncias levemente diferentes. Esse artigo discute o conceito e a classificao desses eventos, em particular para o contexto da construo civil. Para tanto, foram registrados, classificados e analisados 122 quase-acidentes em um canteiro de obras. Os resultados do levantamento indicaram que esses eventos podem ser usados tanto para reforar boas prticas de segurana quanto para apontar falhas de gesto que implicam em grave e iminente risco de acidentes. Alm disso, o envolvimento dos trabalhadores no processo de coleta essencial para ampliar o nmero de registros, servindo ainda como mecanismo para desenvolver a sensibilidade dos trabalhadores em relao aos perigos. Palavras-chave: Quase-acidentes; Medio de desempenho; Segurana do trabalho; Gesto da segurana.

    1. Introduo A possibilidade de aprendizagem a partir dos eventos denominados quase-acidentes tem uma longa histria como parte dos programas de gesto da segurana, especialmente em setores como aviao civil, plantas de energia nuclear, indstria qumica e, mais recentemente, em setores como transporte ferrovirio e medicina (VAN DER SCHAAF; KANSE, 2004). provvel que sua utilizao tenha surgido nas indstrias com maior propenso para acidentes organizacionais (REASON, 1997), visto que, como esses acidentes so raros, catastrficos e, em geral, podem resultar na falncia da organizao, torna-se vital a coleta do mximo de informaes em prol da preveno (BRAZIER, 1994; VAN DER SCHAAF, 1995).

    Hinze (1997) defende que importante conhecer os quase-acidentes e desenvolver planos para reduzir ou eliminar a possibilidade de um acontecimento semelhante. Alm disto, os quase-acidentes tendem a ser muito mais freqentes que os acidentes, indicando reas crticas para melhorias na gesto da segurana (HINZE, 1997; JONES et al., 1999; REASON, 1997; VAN DER SCHAAF, 1995). Esses eventos representam ainda o lado positivo (pr-ativo) do controle da segurana (JONES et al., 1999; VAN DER SCHAAF, 1995), visto que o foco de ateno est em eventos aqum dos acidentes, os quais, alm de serem mais raros, geram um clima psicolgico muito negativo. Os quase-acidentes tambm auxiliam na priorizao dos perigos em um sistema de gesto da segurana e no fortalecimento da cultura de segurana entre os trabalhadores, quando os mesmos so motivados a participar do processo de coleta e no sofrem qualquer tipo de punio (JONES et al., 1999).

    Reason (1997) reconhece as dificuldades para a coleta desses eventos, uma vez que o relato dos mesmos depende da boa vontade dos indivduos. Segundo Van der Schaaf e Kanse (2004), na perspectiva dos trabalhadores, os fatores que influenciam no relato de quase-

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    acidentes podem ser reunidos em quatro grupos: (a) medo de ao disciplinar, como resultado de uma cultura de se buscar culpados; (b) aceitao do perigo, pois esses eventos so vistos como algo que faz parte do trabalho e no podem ser prevenidos ou da cultura machista existente em alguns ambientes industriais; (c) inutilidade, ou seja, no percepo e entendimento de como a gerncia utiliza as informaes para melhorias no sistema e; (d) razes prticas, isto , a percepo de que difcil coletar esses eventos, alm de consumir muito tempo.

    Em que pese as contribuies dos relatos e investigaes dos quase-acidentes na gesto de muitas indstrias, na construo civil seu emprego relativamente recente. Neste sentido, ao investigar boas prticas em gesto de segurana por parte das empresas de construo norte-americanas, Hinze (2002) concluiu que, diferentemente dos resultados alcanados em pesquisa similar desenvolvida anteriormente (Liska et al., 1993), os quase-acidentes foram includos como eventos que compem as estratgias de preveno daquelas empresas.

    Como exemplo de estudos no Brasil, Saurin (2002) prope um modelo de planejamento e controle da segurana (PCS) para obras de construo, o qual utiliza os quase-acidentes como umas das principais medidas de desempenho para melhorias da segurana. Nos estudos empricos para desenvolvimento desse modelo, os quase-acidentes eram freqentemente coletados pelos tcnicos de segurana do trabalho (TST) e pelo prprio pesquisador. Deve-se notar que, nesses estudos, embora muito esporadicamente, aconteceram relatos de quase-acidentes por parte de alguns trabalhadores, apesar da inexistncia de aes sistemticas para tanto.

    Com base em um estudo realizado para aperfeioar o modelo de PCS (CAMBRAIA, 2004), no qual foram propostas aes sistemticas para coletar quase-acidentes por meio do envolvimento dos trabalhadores, este artigo busca contribuir para um melhor entendimento dos quase-acidentes no contexto da construo civil, atravs da proposta de um conceito, classificao e exemplos corriqueiros desses eventos neste contexto.

    2. O conceito de quase-acidente na perspectiva de autores de diversas reas O conceito de quase-acidentes, assim como o de acidente, varivel em funo de seus objetivos para fins preventivos, do contexto em anlise e dos interesses dos envolvidos. Neste sentido, as principais divergncias verificadas na literatura acerca da definio de quase-acidentes dizem respeito s conseqncias do evento, uma vez que em alguns contextos eles podem gerar danos pessoais, materiais ou combinao de ambos e em outros no. Assim, a conseqncia atribuda a um quase-acidente vai depender do que se considera como conseqncias do acidente em um determinado contexto. Contudo, deve ser destacado que dentro de um mesmo contexto podem existir diferentes vises em funo especialmente dos interesses dos grupos envolvidos em sua definio.

    Cabe salientar que a palavra incidente tambm utilizada com significado semelhante quase-acidente, embora no exista consenso na literatura. Para alguns autores, em especial aqueles que estudam a gesto da segurana na indstria qumica, incidente e quase-acidente so conceitos distintos. Nessa linha, os incidentes so todos os eventos indesejveis segurana, o que engloba acidentes, quase-acidentes, atos e condies inseguras (BRAZIER, 1994; JONES et al., 1999; VAN DER SCHAFF; KANSE, 2004). Uma outra corrente defende que, tanto o termo incidente quanto quase-acidente, podem ser empregados para descrever eventos de mesma natureza (GUIMARES; COSTELLA, 2003; REASON, 1997; SAURIN, 2002). Nesse artigo considera-se que esses termos so distintos e podem ser melhor compreendidos nas prticas de gesto atravs da proposta defendida pela primeira corrente de autores discutida.

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    De forma geral, os quase-acidentes so entendidos como sinais iminentes de um acidente (JONES et al., 1999). Para Bier e Mosleh (1990), so os precursores dos acidentes e para Brazier (1994) so indicadores de potenciais acidentes quando a sorte deixar de estar ao nosso lado.

    Em indstrias que trabalham com substncias altamente perigosas, Jones et al. (1999) propem classificar os quase-acidentes em dois tipos. Os primeiros, chamados quase-acidentes organizacionais, dizem respeito aos casos considerados mais graves, representativos de uma situao perigosa na qual o sistema de segurana planejado mostra-se ineficiente ou inadequado e as conseqncias poderiam originar um acidente organizacional, caso a seqncia dos eventos no fosse interrompida. A legislao pertinente aos pases da Unio Europia (Diretiva Seveso II) exige que esses eventos sejam informados s instituies controladoras, de forma a constituir-se em uma experincia de aprendizagem que pode tambm ser transferida para outras organizaes (JONES et al., 1999).

    No segundo tipo, os quase-acidentes so situaes de perigo, eventos ou atos inseguros, nas quais a seqncia dos fatos, caso no fosse interrompida, poderia provavelmente causar acidentes individuais. Segundo Jones et al. (1999), nesse caso a experincia de aprendizado visa proporcionar melhorias internas na organizao. Apesar do enquadramento de atos e condies inseguras nesse segundo tipo de quase-acidentes, neste artigo considera-se que os mesmos so eventos distintos. adotada a proposta de Saurin (2002), o qual faz uma diferenciao entre ato inseguro e quase-acidente pelo tempo da ao: os atos inseguros so eventos em que a situao de perigo decorre de uma ao contnua de um ou mais trabalhadores durante algum tempo, enquanto os quase-acidentes tambm normalmente envolvem a ao humana, porm a mesma instantnea, sem continuidade.

    Enfocando acidentes organizacionais, Reason (1997) afirma que o quase-acidente qualquer evento que poderia ter resultado em conseqncias graves. Eles podem variar de uma penetrao parcial das defesas a situaes nas quais todas as protees disponveis foram vencidas, embora nenhum prejuzo significativo tenha ocorrido. De acordo com Reason (1997), a identificao e anlise dos quase-acidentes fornece feedback positivo sobre a resistncia do sistema, principalmente quando as defesas funcionam como planejado, mas, em alguns casos, representam feedback negativo, na medida em que pequenos danos pessoais e materiais podem ser gerados.

    J na medicina, o acidente costuma ser considerado como a morte do paciente, o que abre espao para que outros eventos, com diferentes graus de gravidade e danos, sejam considerados quase-acidentes (NASHEF, 2003). Esse autor prope uma classificao dos quase-acidentes em trs tipos, segundo principalmente o grau de gravidade do evento e o momento da cadeia de erros humanos em que o mesmo se ocorre. No caso mais grave, o quase-acidente pode ser exemplificado pela necessidade de internao do paciente na unidade de tratamento intensivo em virtude dos erros de todos os agentes envolvidos (mdicos, farmacuticos, enfermeiros e at mesmo do prprio paciente).

    Na engenharia de trfego terrestre, um quase-acidente denominado conflito de trfego. Um conflito qualquer situao em que o motorista tem que fazer uso de suas habilidades para evitar a ocorrncia de um acidente. Amundsen e Hyden (1977) definem o conflito como uma situao observvel em que dois ou mais usurios da via aproximam-se entre si, em espao e tempo, e suas trajetrias resultaro em uma coliso iminente caso seus movimentos permaneam inalterados. DeJoy (1990) destaca que o conflito de trfego uma importante fonte de retro-alimentao para o motorista, uma vez que pode influenciar positivamente seu comportamento no trnsito. Contudo, essa viso preventiva perdida pela maioria dos motoristas, dado o baixo esforo para anlise dos fatores causais envolvidos.

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    Nos sistemas de controle de trfego areo, o quase-acidente tambm corresponde a um acidente que esteve prximo de acontecer, mas que, por algum motivo, seja sorte ou uma rpida tomada de deciso (julgamento), no aconteceu. Por exemplo, um quase-acidente caracterizado quando duas aeronaves voam suficientemente prximas de forma a gerar interferncias ou alarmes, mas no ocorrem perdas em termos de leses ou danos materiais (NASHEF, 2003).

    Saurin (2002) define o acidente como uma ocorrncia no planejada, instantnea ou no, decorrente da interao do ser humano com seu meio ambiente fsico e social de trabalho e que provoca leses e/ou danos materiais. Com base nesse conceito de acidente e das vises de diferentes reas e autores discutidas acima, proposto um conceito de quase-acidente para o mbito da construo civil. Nesse contexto, considera-se um quase-acidente como sendo um evento instantneo, no planejado, com potencial para gerar um acidente que, no entanto, no chega a ocorrer. Sua conseqncia pode ou no resultar em danos (leses pessoais e/ou danos materiais). Porm, resultando em danos, esses sero mnimos ou imperceptveis, ou seja, no significativos. As perdas de tempo ocorrem com freqncia nos quase-acidentes. Alm disto, em que pese existncia de um certo grau de subjetividade, nos casos de quase-acidentes no h necessidade de tratamento de primeiros-socorros.

    4. Mtodo de Pesquisa O empreendimento estudado consistia de dois prdios (10 e 13 pavimentos) destinados a ampliao das dependncias de um hospital. A empresa participante foi escolhida por seu interesse em melhorias na gesto da segurana, motivadas principalmente pela forte exigncia de seus clientes. O canteiro em questo apresentou um pico mximo de 300 trabalhadores, sendo 95% deles subempreitados. A obra teve durao de 18 meses e, particularmente nesse empreendimento, as exigncias do cliente em relao a segurana no eram rigorosas, restringindo-se s exigncias legais.

    A coleta dos quase-acidentes analisados neste artigo foi dividida em duas etapas. Na primeira etapa, que aconteceu de dezembro de 2002 a abril de 2003, os quase-acidentes foram coletados por intermdio de entrevistas semanais com os TST e atravs de observaes do pesquisador junto ao canteiro. Na segunda etapa, que aconteceu entre os meses de maio e agosto de 2003, alm da coleta realizada pelas observaes dos TST e do pesquisador, os trabalhadores foram tambm envolvidos. Para tanto, inicialmente foram realizados treinamentos objetivando esclarecer os mesmos sobre o seu significado, assim como inform-los quanto importncia desta informao para a gesto da segurana. A partir do incio de junho at o final de agosto de 2003, diariamente durante o DDS (Dilogo Dirio da Segurana), os trabalhadores eram questionados acerca da ocorrncia, no dia anterior, de quase-acidentes. O DDS consistia de pequenas prelees dirias sobre segurana, com durao de aproximadamente 20 minutos e sempre antes do incio das atividades produtivas. Em geral, os tcnicos de segurana eram os responsveis por esta atividade.

    Na segunda etapa alguns quase-acidentes tambm foram coletadas durante entrevistas com trabalhadores, no mbito de um dos mdulos do modelo de PCS, denominado ciclo participativo. Esse ciclo um canal de participao presente no modelo de PCS, em que so realizadas entrevistas com grupos de trabalhadores, sendo que as demandas levantadas so, em seguida, analisadas pela gerncia que, aps definir um plano de ao, se rene com os trabalhadores para apresentar esse plano. Uma outra fonte de identificao de quase-acidentes da segunda etapa foi a coleta do indicador PPS (Percentual de Pacotes de Trabalho Seguro), em que um observador (TST ou pesquisador) caminha pelo canteiro com intuito de observar se os processos em desenvolvimento esto sendo realizados com segurana. Esse indicador tambm um elemento do modelo de PCS.

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    Durante as entrevistas do ciclo participativo e nas visitas espordicas do pesquisador obra, foram relatados alguns eventos que, em um primeiro momento, poderiam ser enquadrados na classe acidentes com primeiros socorros. Entretanto, uma vez que os trabalhadores no fizeram qualquer tipo de comunicao imediatamente aps o fato, nem sequer procuraram atendimento de primeiros socorros, considerou-se que os danos foram mnimos. Assim sendo, esses eventos foram considerados quase-acidentes.

    5. Resultados A figura 1 mostra o nmero de quase-acidentes coletados ao longo das duas etapas de coleta realizadas neste estudo, como tambm os eventos identificados por intermdio dos estudos de Saurin (2002). Comparativamente, pode ser destacado que, como os estudos de Saurin (2002) e a etapa 1 deste estudo foram desenvolvidos praticamente com a mesma durao (4 meses) e empregaram os mesmos procedimentos de coleta, foi verificado um nmero de registros aproximado. Em que pese diferenas no risco e nas fases das obras estudadas, provvel que os procedimentos de coleta utilizados apresentem importante interferncia nos resultados finais. Os resultados da etapa 2, que tambm teve durao de 4 meses, mostram que a existncia de mecanismos que busquem o envolvimento dos trabalhadores essencial para uma melhor eficcia na coleta, desde que os mesmos sejam devidamente treinados para isto e conscientes da importncia desses eventos em prol da preveno.

    10

    11

    12

    110

    0 20 40 60 80 100 120

    Estudo emprico 2 (SAURIN, 2002)

    Estudo emprico 1 (SAURIN, 2002)

    Etapa 1

    Etapa 2

    Nmero de ocorrncias

    Figura 1 - Nmero dos registros de quase-acidentes dos estudos de Saurin (2002) e nas etapas deste estudo

    Neste estudo constatou-se que o nmero de quase-acidentes registrados realmente foi superior ao nmero de acidentes. Na etapa 1 foi 33,3% superior e na etapa 2 foi 27,3%. Embora na etapa 1 o nmero de relatos possa ter sido influenciado, por exemplo, pelos procedimentos de coleta empregados, pela inexistncia de exigncias internas quanto ao registro destes eventos e tambm pela falta de conhecimento de seus benefcios por parte, principalmente, dos TST resistentes no canteiro, o percentual foi maior que na etapa 2. Na etapa 2, apesar do nmero significativamente maior de quase-acidentes coletados, o menor percentual pode ter sido influenciado, especialmente, por alteraes nos procedimentos de coleta dos acidentes, em particular dos acidentes que resultaram em primeiros socorros, os quais raramente eram registrados na etapa 1.

    Particularmente em relao etapa 1, dentre as informaes coletadas, os casos mais graves foram relatados pelos trabalhadores, sendo que os de menor gravidade, especificamente os quase-acidentes nos acessos (tropeo e escorrego), presenciados pelos tcnicos de segurana. Embora pequenos tropees ou escorreges muitas vezes possam ser classificados como quase-acidentes de baixa gravidade, em algumas ocasies esses eventos podem ser considerados de extrema gravidade em funo do local que o fato ocorrer. Desta forma, um escorrego ou tropeo prximo a uma serra eltrica podem representar um grave acidente.

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    De forma geral, em circunstncias como as verificadas na etapa 1, a contribuio dos trabalhadores tende a acontecer em funo da gravidade dos eventos e com uma participao de trabalhadores especficos, isto , aqueles que tm zelo e maiores preocupaes com a segurana. A figura 2 apresenta uma classificao dos quase-acidentes da etapa 1 segundo seus agentes, mostrando o total de ocorrncias em cada classe e um exemplo.

    Classificao Total Exemplos

    Acessos 04 Queda de dois trabalhadores que tropearam em um feixe de ao que estava espalhado pelo canteiro. Mquinas e equipamentos de transportes 07

    Queda de pequenas peas de ao cortado e dobrado, que se encontravam no interior de peas maiores, durante seu transporte pela grua.

    Ferramentas manuais 01 Desprendimento da cabea de um martelo durante a montagem de frmas.

    Figura 2 - Classificao segundo o agente causador dos quase-acidentes, total de ocorrncias e exemplos

    Os quase-acidentes coletados na etapa 2 foram classificados, segundo sua natureza, conforme indica a figura 3. Esta classificao teve como base a natureza dos acidentes proposta pela NBR-14280 (ABNT, 2001). Como pode ser observado, 50% (55 ocorrncias) dos eventos foram relacionados com a queda de materiais, ferramentas e equipamentos, seja em nveis diferentes (28,2%) ou no mesmo nvel (21,8%). A predominncia dessas duas classes pode ser explicada parcialmente pelas fases da obra em que esses dados foram coletados e pela maior visibilidade desses eventos, uma vez que vrias pessoas tm, ao mesmo tempo, a possibilidade de visualizao da queda de, por exemplo, madeira e peas de escoramento, tanto nas desfrmas e escoramentos das periferias quanto no interior dos pavimentos.

    Natureza do quase-acidente Total Exemplos Queda de materiais, ferramentas e equipamentos com diferena de nvel 31

    Queda de uma pea de andaime, que estava sendo montada no 4o pavimento, no subsolo.

    Queda de materiais, ferramentas e equipamentos no mesmo nvel 24

    Cabos energizados, que estavam presos na laje, caram sobre a serra circular e seu operador.

    Impacto sofrido pelo trabalhador 10 Queda de um painel de compensado sobre um trabalhador durante uma desfrma. Desequilbrio do trabalhador por deficincias nos acessos 10

    O trabalhador enroscou seu p na tela utilizada na estrutura do piso do subsolo.

    Impacto do trabalhador contra objeto fixo 10

    Barra de ao perfurou a botina de um trabalhador, atingindo de raspo seu tornozelo.

    Iminncia de impacto envolvendo mquinas e equipamentos de transporte de cargas

    09 Em funo do posicionamento de um refletor em cima do andaime para concretagem do pilar, a viso do operrio foi comprometida e quase a caamba da grua impactou o mesmo.

    Impacto de mquinas ou equipamentos de transporte de cargas 06

    Ao baixar uma pea pr-moldada, a grua apresentou uma pane eltrica, o que fez com que a pea casse em queda livre sobre os andaimes.

    Arremesso de materiais e ferramentas 04 Um p de cabra foi lanado de um pavimento para o outro, por pouco no atingindo um trabalhador. Iminncia da queda de andaimes e escadas com trabalhadores 03

    O funcionrio fixou seu cinto em uma torre de andaime que no estava contraventada e esta quase caiu com o trabalhador.

    Choque eltrico 02 Um trabalhador sofreu uma pequena descarga eltrica junto caixa central de distribuio de energia.

    Atrito e abraso 01 Durante uma concretagem sob chuva, o funcionrio teve a perna toda ferida pelo atrito com a bota de borracha .

    Figura 3 - Distribuio dos quase-acidentes da etapa 2 segundo sua natureza e exemplos

    Alm da classificao apresentada acima, os quase-acidentes podem ainda ser classificados em funo da ao ou no das medidas preventivas existentes no canteiro. Neste sentido, um

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    quase-acidente ser de feedback positivo quando as medidas preventivas atuarem, evitando o acidente. No quase-acidente com feedback negativo as medidas preventivas no funcionaram como era esperado ou as mesmas no existiam. Na etapa 2, 17,3% dos casos foram de feedback positivo e o restante (83,7%) de feedback negativo. Todos os quase-acidentes da etapa 2 foram avaliados segundo uma matriz subjetiva para priorizao das aes corretivas, proposta por Saurin (2002). A figura 4 apresenta os resultados desta avaliao, a qual indica que os eventos de prioridade 1 (vermelho) representaram 13,7% dos quase-acidentes coletados. Analisando-se com nfase na severidade, nesse grupo, caso o acidente efetivamente ocorresse, s conseqncias poderiam ter sido gravssimas, resultando em morte ou em uma leso incapacitante permanente. A maior parte dos casos (75,4%) foi enquadrada no grau de prioridade 2. Os quase-acidentes com prioridade 2 (amarelo) poderiam resultar no afastamento do trabalho por um longo perodo (leses incapacitantes temporrias), e em alguns casos at mesmo em leses incapacitantes permanentes. Os quase-acidentes de menor gravidade, ou seja, de prioridade 3 (10,9% dos casos), so aqueles em que o acidente resultaria em um atendimento de primeiros socorros e, nos casos mais graves, no afastamento do trabalho por poucos dias.

    I II III IV VProbabilidadeSeveridade

    A

    B

    C

    D

    E13,7%

    75,4%

    10,9%

    Figura 4 - Matriz de avaliao e priorizao dos quase-acidentes

    6. Concluses Com base no conceito de acidente adotado neste artigo e, principalmente, por intermdio da coleta de 122 quase-acidentes em um canteiro de construo, proposto um conceito para esses eventos. Assim, define-se quase-acidentes como toda ocorrncia instantnea, no planejada, com potencial para gerar um acidente que, no entanto, no chega a ocorrer. Sua conseqncia pode ou no resultar em danos (leses pessoais e/ou danos materiais). Porm, resultando em danos, esses sero mnimos ou imperceptveis, ou seja, no significativos. Alm disto, em que pese existncia de um certo grau de subjetividade, nos casos de quase-acidentes no h necessidade de tratamento de primeiros-socorros.

    Os quase-acidentes podem receber diferentes classificaes, muitas delas similares as classificaes comumente empregadas para categorizar os acidentes, tais como segundo seus agentes e sua natureza. Neste estudo, foram levantados como agentes causadores de quase-acidentes, por exemplo, os acessos, as mquinas e equipamentos de transporte e as ferramentas manuais. A partir dos 110 quase-acidentes classificados segundo sua natureza, pode-se destacar que 50% dos mesmos envolveram a queda de materiais, equipamentos e ferramentas, tanto no mesmo nvel quanto em diferentes nveis. Isso pode ser justificado, muito provavelmente, pelas caractersticas e etapas da obra pesquisada.

    Uma classificao de quase-acidentes diferenciada dos acidentes diz respeito a possibilidade de avaliao qualitativa das aes da gesto da segurana. Neste sentido, os quase-acidentes podem ser usados tanto para reforar boas prticas de segurana quanto para apontar falhas de

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    gesto que implicam em grave e iminente perigo de acidentes. Assim, podem ser classificados como de feedback positivo (quando as medidas preventivas estavam implementadas e foram eficazes) ou negativo (quando inexistiam medidas preventivas ou as mesmas no foram eficazes). No canteiro investigado, dos 110 eventos registrados, 17,3% dos casos foram quase-acidentes com feedback positivo. Dentre os papis dos quase-acidentes frente a gesto da segurana pode-se salientar que esses eventos so mais frequentes que os acidentes e proporcionam informaes pr-ativas, que fazem com que, muitas vezes, os acidentes possam ser prevenidos em decorrncia de aes corretivas geradas por meio de sua coleta. Alm disso, essas aes corretivas podem ser priorizadas a partir de uma matriz subjetiva de avaliao. Por intermdio desta matriz, verificou-se que 13,7% (dos 110 registros do canteiro analisado) poderiam ter resultado em acidentes com graves consequncias. Especialmente para esses eventos considerados de prioridade 1, as aes corretivas so de vital importncia.

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