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I Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 12 - janeiro/abril de 2013 | ISSN 2175-5280 | Editorial | Vinte anos depois | Artigos | Crimes de posse | Claus Roxin | Os Crimes de posse | Eberhard Struensee | Direito penal dos marginalizados linhas da política criminal argentina | Fabián I. Balcarce | Panorama dos crimes de posse | José Danilo Tavares Lobato | Problemas processuais dos crimes de posse | Daniel R. Pastor | A legítima defesa e o seu excesso não punível no novo projeto de código penal | Bruno Moura | Reflexão do Estudante | A possibilidade de investigação defensiva dentro do modelo constitucional brasileiro | Bruno Mauricio | Diego Henrique | História | Sequelas da ditadura militar no Brasil | Alexandre Leque dos Santos | Resenha de Filme | “Hotel Ruanda” | Catarina Nogueira Possatto | Rhuan Dergley da Silva | Resenha de Livro | Sistema Penal x Sistema Econômico: resenha da obra punição e estrutura social | Fernanda Carolina de Araujo Ifanger | Resenha de Música | “Liberdade, Liberdade” | Camila Campaner Pacheco | 12

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I Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 12 - janeiro/abril de 2013 | ISSN 2175-5280 |

Editorial | Vinte anos depois | Artigos | Crimes de posse | Claus Roxin | Os Crimes de posse | Eberhard Struensee | Direito penal dos marginalizados

linhas da política criminal argentina | Fabián I. Balcarce | Panorama dos crimes de posse | José Danilo Tavares Lobato | Problemas processuais dos crimes

de posse | Daniel R. Pastor | A legítima defesa e o seu excesso não punível no novo projeto de código penal | Bruno Moura | Reflexão do Estudante | A

possibilidade de investigação defensiva dentro do modelo constitucional brasileiro | Bruno Mauricio | Diego Henrique | História | Sequelas da ditadura

militar no Brasil | Alexandre Leque dos Santos | Resenha de Filme | “Hotel Ruanda” | Catarina Nogueira Possatto | Rhuan Dergley da Silva | Resenha de

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ExpedienteInstituto Brasileiro de Ciências Criminais

Ouvidoria:Paulo Sérgio de Oliveira

Coordenador-chefe da Revista Liberdades:Alexis Couto de Brito

Coordenadores-adjuntos:João Paulo Onsini Martinelli Humberto Barrionuevo Fabretti

Conselho Editorial:Alaor LeiteAlexis Couto de BritoCleunice Valentim Bastos PitomboDaniel Pacheco PontesGiovani Agostini SaavedraHumberto Barrionuevo FabrettiJosé Danilo Tavares LobatoLuciano Anderson de Souza

Publicação Oficial do

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

DIRETORIA DA GESTÃO 2011/2012Presidente: Mariângela Gama de Magalhães Gomes1ª Vice-Presidente: Helena Regina Lobo da Costa2º Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna1ª Secretária: Heloisa Estellita2º Secretário: Pedro Luiz Bueno de Andrade1º Tesoureiro: Fábio Tofic Simantob2º Tesoureiro: Andre Pires de Andrade KehdiDiretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais: Eleonora Rangel Nacif

CONSELHO CONSULTIVOAna Lúcia Menezes VieiraAna Sofia Schmidt de OliveiraDiogo Rudge MalanGustavo Henrique Righi Ivahy BadaróMarta Saad

Colaboradores da edição:Caroline CippicianiGlauter Dias Del NeroMilene Maurício

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A possibilidade de investigação defensiva dentro do modelo constitucional brasileiroBruno MauricioBacharelando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Associado ao IBCCRIM.

Diego HenriqueBacharelando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Professor Orientador: João Paulo Orsini MartinelliMestre e Doutor em Direito Penal pela USP.Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Resumo: Trata este artigo acerca do sistema jurídico brasileiro de investigação criminal, criticado com razão por muitos. Abordaremos a respeito do princípio da isonomia e do direito à prova durante a fase investigativa, no qual notaremos a diferença entre acusação e defesa. Analisaremos o direito de o advogado (defensor) do assistido conduzir, por vias próprias, sua investigação (colhendo todos os tipos de elementos que julgar necessários), com o intuito de esclarecer os fatos de maneira favorável a seu cliente.

Palavras-chave: Inquérito policial; Investigação criminal defensiva; Direito à ampla defesa; Paridade de armas; Garantias processuais.

Abstract: This paper focuses on the Brazilian legal system of criminal investigation which has been rightly criticized by many for many years. We will address the principle of isonomy and the right to evidences in the first stage of investigation and will point out to the difference between accusation and defense. We will analyze the attorney-at-law’s right to conduct his own investigation (collecting all types of elements that he may deem necessary) on behalf of the person assisted with the objective of clarifying the facts in favor of his client.

Key words: Police investigation, defensive criminal investigation, full right to defense, equality of arms, procedural guarantees.

Sumário: 1. Sistemas Processuais Penais; 2. O modelo de investigação brasileiro e sua necessidade de adequação constitucional; 2.1. O inquérito criminal; 2.2. Das garantias processuais constitucionais; 2.3. Crítica ao modelo inquisitivo de investigação brasileiro; 2.3.1. Lesão

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ao princípio da paridade de armas; 2.3.2. Lesão ao contraditório e à ampla defesa; 2.3.3. Lesão do direito à prova; 3. Investigação defensiva, modelos estrangeiros e possibilidade no Brasil; 3.1 Sistema norte-americano; 3.2 Sistema inglês; 3.3. Sistema italiano; 3.4. Da possibilidade da investigação defensiva no Brasil; 4. Conclusões; 5. Referências bibliográficas.

1. Sistemas processuais penais

Existem três sistemas que regem o processo penal, que serão brevemente expostos, quais sejam, sistema inquisitivo, sistema acusatório e sistema misto. O sistema inquisitivo é marcado por características que afrontam veementemente os direitos fundamentais atualmente consagrados, ignorando as garantias a serem observadas na sua proteção. Nesse sistema, não há separação de partes, os poderes estão concentrados na mão do julgador que exerce também a função de acusador, todo o procedimento é secreto e exclusivamente escrito, a confissão é considerada a rainha das provas – inclusive valendo-se da tortura para obtê-la –, não existe contraditório e a prisão preventiva e incomunicabilidade do acusado são a regra.1

A contrario sensu, o sistema acusatório se perfaz com a observância das garantias fundamentais resguardando os direitos individuais do acusado. Para tanto, verifica-se a divisão de partes; os sujeitos processuais agora são juiz, acusação e defesa, assegurados a imparcialidade do julgador e a paridade de armas entres as partes; o procedimento é oral e público, estes somados à presença inarredável do contraditório e a livre iniciativa de provas garantem a ampla defesa do acusado, que passa a ter a liberdade como regra e, sua privação é admitida somente após decisão condenatória definitiva.

Por fim, o sistema misto é aquele que admite os ditames tanto do inquisitivo quanto do acusatório, conforme Guilherme de Souza Nucci: “surgido após a Revolução Francesa, uniu as virtudes dos dois anteriores, caracterizando-se pela divisão do processo em duas grandes fases: a instrução preliminar, com os elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento com predominância do sistema acusatório”.2

Valendo-se dessa definição e apoiando-se nas lições de Rogério Lauria Tucci, Anonio Magalhães Gomes Filho, Marco Antonio

1 Nucci, Guilherme de Souza Código de Processo Penal comentado 11 ed rev, atual e ampl São Paulo: RT, 2012 No mesmo sentido Brito, Alexis Couto de Processo penal brasileiro. Humberto Barrionuevo Fabretti, Marco Antonio Ferreira Lima São Paulo: Atlas, 2012

2 Op cit, p78

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de Barros e Geraldo Prado, afirma Nucci que o sistema que rege o atual modelo processual brasileiro é o misto.3 Isso porque na fase pré-processual, o inquérito policial tem caráter inquisitivo, ao passo que a fase judicial se desenvolve sob a égide do sistema acusatório.

De todo conveniente a ressalva de Alexis Couto de Brito, Humberto Barrionuevo Fabretti e Marco Antonio Ferreira Lima:4 “O atual Código de Processo Penal brasileiro (1941) espelhou-se no Código de Rocco, elaborado à luz do fascismo, bem como guarda o reflexo do regime político da época de sua edição, estando em certo descompasso com a Constituição Federal de 1988. Apesar das inúmeras modificações sofridas no decorrer dos anos, ele ainda reflete o caráter repressivo da lei penal, diante do entendimento clássico à época de sua edição, que via a pena como um castigo e o processo como limitação indireta às garantias individuais consagradas”. Assertiva esta que ganhará maior relevância durante o presente trabalho.

2. O modelo de investigação brasileiro e sua necessidade de adequação constitucional

2.1 O inquérito criminal

No modelo processual penal brasileiro, é o inquérito criminal o meio de investigação preliminar para apurar eventuais transgressões à norma penal. O tipo de investigação criminal mais comum é o inquérito policial, conduzido por uma autoridade policial, que ocorre antes do processo judicial destinado à formação da opinio delicti. Assim, chegando à autoridade policial a noticia de um crime, será dado início à investigação.

A autoridade responsável irá presidir o feito na busca de elementos de prova que esclareçam quanto à materialidade e autoria do fato, procedendo às diligências que reputar necessárias à elucidação dos fatos, somam-se a estas, aquelas requeridas pelo Ministério Público e as requisitadas pelo juiz, ex vi do art. 13 do Código de Processo Penal.5

Nesse sentido, a polícia judiciária, ainda que pertencente à administração pública e subordinada ao Poder Executivo, funciona como órgão auxiliar do Poder Judiciário, como bem explicita Guilherme Nucci6 quando diz que “na sua atividade investigatória, visto constituir, buscar, produzir e colher provas que servirão, em última análise, ao processo penal e á condenação ou absolvição de réus em juízo”.

3 Op cit, p79

4 Brito, Alexis Couto de Op cit, p 8

5 O inquérito policial está disciplinado fundamentalmente nos arts 4º ao 23 do Código de Processo Penal

6 Op cit, p 112

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Ainda à autoridade policial compete apreciar requisição de diligências feitas pelo indiciado ou ofendido (art. 14 do CPP), podendo deferir ou não o pleito, sem necessidade de fundamentação, bem como assegurar o sigilo das investigações (art. 20 do CPP). No mais, realizará livremente atos de investigação sem a necessidade de ciência do investigado. Não há, portanto, direito à ampla defesa.

Por se tratar de procedimento apuratório, destinado a coletar evidências pertinentes à elucidação dos fatos, e que deveria gozar de imparcialidade, não se admite o contraditório, ficando este restrito às provas chamadas não repetíveis, aquelas que não poderão ser novamente produzidas em juízo, portanto necessitam ser contraditadas nesse momento, sob pena de nulidade.

Em resumo, o desenho do inquérito policial atualmente é o de um procedimento administrativo, inquisitório e sigiloso, destinado à investigação de fato criminoso, desencadeado por um conjunto de atos de investigação, sem uma sequência formal legalmente definida, garantindo a liberdade de melhor proceder à elucidação dos fatos, supostamente imparcial, que visa instruir o órgão acusador sobre a ocorrência de fato delituoso ou não.

2.2 Das garantias processuais constitucionais

A Constituição Federal de 1988 traz encartada uma lista de direitos e garantias fundamentais inerentes a um Estado Democrático de Direito. Estabelece dentre estes o devido processo legal,7 que pode ser considerado o guarda-chuva dos princípios processuais garantistas, do qual os demais são corolários.

O devido processo legal desenvolvido à luz de um Sistema Acusatório é expressão máxima de garantia do cidadão frente ao arbítrio estatal no exercício do jus perseguendi in juditio, não podendo ser outro o sentido teleológico do conteúdo estampado em nossa Carta maior. Assim, como corolários do devido processo legal e vigas mestras do Sistema Acusatório, aparecem os princípios da paridade de armas, contraditório e ampla defesa.

A paridade de armas diz respeito à igualdade processual das partes, a possibilidade de ambas as partes receberem tratamento equânime para atuarem na defesa de seus interesses, tendo suas razões e conjunto probatórios a mesma força a influenciar e firmar o convencimento do magistrado.

A relação processual se desenvolve de maneira dialética, daí a necessidade das partes de tomarem ciência prévia, acompanharem

7 Art 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988

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e se manifestarem diante de todos os atos processuais, podendo contrariar afirmações e provas integradas ao processo. O contraditório é, segundo Alexis Couto de Brito,8 “em resumo a ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”.

A ampla defesa, que apesar de estar contida no mesmo dispositivo que o contraditório9 com este não se confunde, diz respeito à possibilidade de o acusado alegar e provar tudo que possa favorecê-lo de maneira a obstar uma condenação, é imprescindível à regularidade do procedimento e legitimação do jus puniendi. A ampla defesa se verifica de duas maneiras: a autodefesa que é exercida diretamente pelo acusado, tanto em seu interrogatório, sob a égide dos direitos ao silêncio e a não produzir provas contra si, quanto no exercício do direito de presença e direito de audiência. E a defesa técnica, que será exercida por profissional habilitado, é indeclinável e essencial à paridade de armas.10

Desses dois princípios (contraditório e ampla defesa) é que se extrai o direito à prova, que nada mais é que a possibilidade de ambas as partes levarem à autoridade competente quaisquer meios legais que demonstrem a veracidade de suas alegações. Pertinente a esse assunto, acrescenta André Augusto Mendes Machado, que o direito à prova se dá, além da coleta dos dados que as partes entenderem pertinentes e relevantes para formar o convencimento judicial, por meio da participação dos atos probatórios e manifestação sobre o resultado.

De todo relevante, ressaltar a importância do direito à prova, assim entendido por Antonio Magalhães Gomes Filho11 “um verdadeiro direito subjetivo à prova, cujos titulares são as partes no processo (penal, no nosso caso), supõe considerar que as mesmas devem estar em condições de influir ativamente em todas as operações desenvolvidas para constituição do material probatório que irá servir de base à decisão; nessa visão, a prova, antes de tudo, deve ser atividade aberta à iniciativa, participação e controle dos interessados no provimento jurisdicional”, razão pela qual entendemos o direito à prova como garantido pelo exercício do contraditório e da ampla defesa.

8 Op cit, p 26

9 Art 5º, LV, da Constituição Federal de 1988

10 Brito, Alexis Couto de Op cit, p 24

11 Gomes Filho, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: Yarshel, Flávio Luiz; moraes, Maurício Zanóide de Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover São Paulo: DPJ, 2005 p 307

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2.3 Crítica ao modelo inquisitivo de investigação brasileiro

A princípio, a afirmação de que “o inquérito policial é peça meramente administrativa que se destina à formação da opinio delicti do Ministério Público”, não traria nenhum espanto. Entretanto, saindo da superfície do inquérito policial e imergindo no assunto, pode-se encontrar com facilidade que “meramente administrativa” é uma terminologia equivocada.

Sérgio Marcos de Moraes Pitombo12 pontuou que o inquérito policial é um procedimento cautelar, de natureza administrativa, quanto à forma, e judiciária, quanto à finalidade, por meio do qual se ultima investigação acerca da materialidade e autoria de fato supostamente criminoso. É desse posicionamento que partilhamos.

E não é de reputar esse posicionamento, pois é notório que o inquérito tem a finalidade de instruir uma possível ação penal.13 É nas informações contidas no inquérito policial que o magistrado se baseará para receber ou não a denúncia ou queixa oferecida.

Como já pautado por Édson Luís Baldan,14 o inquérito policial constitui-se, na verdade, em processo policial judicializado, ainda que despido de rigidez procedimental. Primeiro porque, por força de previsão constitucional, deve ser elaborado exclusivamente pela policia judiciária, auxiliar do Poder Judiciário.

Em segundo lugar, porque, durante esse procedimento, pode ser que ocorra alguma medida cautelar (a exemplo da prisão preventiva), que é tão somente expedida pela autoridade judiciária competente – e que certamente será decretada com base nas informações contidas no inquérito policial, colecionadas sem o crivo do contraditório, à míngua da ampla defesa, ao arrepio das garantias individuais constitucionais.

Por fim, submete-se ao acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário e contém atos processuais por delegação, uma vez que há atos que integrarão definitivamente o processo na fase judicial.

12 PitomBo, Sérgio Marcos de Moraes Inquérito policial: novas tendências Belém: CEJUP, 1987 p 15

13 O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto faz a seguinte alusão ao conceito de inquérito policial: “Caracterizar o que seja inquérito policial, para mim, permanece uma incógnita. Talvez, pudéssemos resolver o impasse, dizendo que o inquérito policial é um inquérito policial, ou seja, é uma categoria jurídica própria. Essa é a melhor definição: substante em si. Não é rebarbativo dizer isso. Inquérito policial é o quê? É o inquérito policial, algo que tem uma autonomia entitativa, ou seja, é uma entidade própria, autônoma, inconfundível com qualquer outra conhecida no Direito”.

14 BaldaN, Édson Luís Investigação defensiva: o direito de defender-se provando RBCCrim, n 64, v 15, p 263, 2007

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Somente aquele que tem seu nome estampado nos autos de um inquérito policial é quem sabe a força que tem uma peça que intitulam de “meramente administrativa”. Seu defensor, a partir desse momento, não será mais que um mero espectador das investigações.

2.3.1 Lesão ao princípio da paridade de armas

Ao adentrarmos o assunto de uma investigação defensiva, no qual o objetivo seria que o indiciado se defendesse provando sua inocência, confrontaríamos de imediato com certos obstáculos, como é o caso do princípio da paridade das armas, que claramente não foi incluído nessa parte da persecução penal.

O art. 14 do Código de Processo Penal preceitua que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada ou não, a juízo da autoridade”. A nosso ver, o problema do referido dispositivo legal reside no vocábulo juízo.

À luz da Constituição Federal de 1988, o juízo que a autoridade deveria fazer não seria um juízo de valor meramente arbitrário, mas sim de verificar se o meio probatório que está sendo requerido é legal, ou seja, lícito e legítimo. Nesse entendimento, deveria ser feito o juízo da legalidade daquele meio pela autoridade policial que, procederia ou não com tal requerimento. Portanto, o requerimento de alguma diligência somente deveria ser indeferido em caso de ilegalidade, seja porque os meios pelos quais se produziria a prova afrontem a legislação, seja até mesmo em casos de o requerimento ter como objetivo protelar a conclusão do procedimento.

Seria surreal acreditar que esse posicionamento fosse sequer o minoritário.

No sistema processual penal brasileiro, não é isso que vivenciamos. Estamos diante de um sistema desigual entre acusador e acusado. Assistimos ao Ministério Público requerer inúmeras investigações e produções de provas (art. 129, VIII, da Constituição Federal) e à defesa, nada.

Ademais, acompanhamos o Ministério Público estruturar órgãos investigativos e periciais próprios. No Estado de São Paulo, por exemplo, há o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) e no Estado do Rio de Janeiro o GAP (Grupo de Apoio aos Promotores) e o Gate (Grupo de Apoio Técnico Especializado).

Se de um lado temos grupos que atuam junto ao Ministério Público, de outro temos o investigado que carece de infraestrutura e que até o presente momento apenas sugere a realização de diligencias à autoridade policial, as quais passarão pelo juízo da autoridade e serão realizadas ou não.

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Como bem assinala Antonio Scarance Fernandes, “no âmbito do processo penal, o princípio da igualdade garante, de um lado, o tratamento paritário aos que se encontram em posições jurídicas idêntica no processo e, de outro, as mesmas oportunidades para as partes comprovarem os seus argumentos”.15

Pertinente o que sustenta Luigi Ferrajoli ao dizer que “para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes: em primeiro lugar, que a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação; em segundo lugar, que o seu papel contraditor seja admitido em todo estado e grau do procedimento e em relação a cada ato probatório singular, das averiguações judiciárias e das periciais ao interrogatório do imputado, dos reconhecimentos aos testemunhos e às acusações”.16

Certamente o indiciado e seu defensor enfrentam uma desigualdade sem tamanho durante as investigações no inquérito policial.

2.3.2 Lesão ao contraditório e à ampla defesa

O inquérito policial compreende dois tipos de atos: o de investigação e o de instrução.

Entende-se por investigação todo o ato de pesquisar, indagar, buscar informações necessárias para a elucidação de um fato.17 Portanto, compreende-se que, no inquérito policial, os atos de investigação são aqueles com finalidade de procurar o delito e o seus autores, tais como as providências e diligências realizadas pela autoridade policial, como a preservação do local do crime e a busca de vestígios da infração.

Por outro lado, a instrução é aquisição ou transmissão de conhecimentos e, por isso, compreende o conjunto de atos praticados a fim de aparelhar o juiz para julgar. São exemplos os atos probatórios e os periciais.

Assim, o método da investigação deve ser sigiloso para impedir que a diligência seja obstada. Entretanto, a partir do momento em que a autoridade policial reduz a termo a diligência efetuada, passa-se, então, da investigação à instrução.18 O próprio Código de

15 FerNaNdes, Antonio Scarance Processo penal constitucional 3 ed São Paulo: RT, 2002 p 46

16 Ferrajoli, Luigi Direito e razão Teoria do garantismo penal São Paulo: RT, 2002 p 490

17 aPolôNio, Luiz Apud saad, Marta O direito de defesa no inquérito policial São Paulo: RT, 2004 166

18 No mesmo sentido, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal no HC 88190-4, de relatoria do Min Cezar Peluso: “Há, é verdade, diligências que devem ser sigilosas, sob o

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Processo Penal, em seu art. 9.º, preceitua que todas as peças devem ser reduzidas a escrito e rubricadas pela autoridade, bem como o § 1.º do artigo seguinte determina que a autoridade faça minucioso relatório do que houver sido apurado e envie os autos ao juiz competente.

Então, impedir que o defensor acesse19 os autos e examine o que foi produzido de provas contra seu cliente é impedir o direito ao contraditório e à ampla defesa que lhe é assegurado constitucionalmente (art. 5.º, LV, da CF).

Fauzi Hassan Choukr20 alega que na investigação deve haver contraditório e ampla defesa pelo fato de ser o inquérito policial um processo administrativo preparatório ao exercício da ação penal, no qual existiria conflito de interesses e, portanto, litígios e litigantes.

Seguindo o mesmo raciocínio, Rogério Lauria Tucci21 afirma que a contraditoriedade da investigação criminal consiste num direito fundamental do imputado, direito esse que, por ser “um elemento decisivo do processo penal”, não pode ser transformado, em nenhuma hipótese, em mero “requisito formal”e cuja observância, por isso, se impõe, sob pena de nulidade dos atos procedimentais praticados sem a efetiva assistência do defensor técnico constituído pelo indiciado, particular ou público.

2.3.3 Lesão do direito à prova

Diogo Malan, sabiamente, alega que “de fato, durante essa fase investigativa podem ser produzidas provas cautelares, não reproduzíveis ou antecipadas, todas elas passiveis de valoração pelo juiz criminal na sentença (art. 155 do CPP). Nesse sentido, o acusado (na acepção ampla, abrangente do investigado, indiciado etc.) tem legítimo interesse em amealhar, já na fase de investigação preliminar do delito, elementos informativos que lhe sejam favoráveis – seja por ensejarem juízo de admissibilidade da acusação seja por influenciarem favoravelmente o convencimento do juiz na sentença”.22

risco de comprometimento do seu bom sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade instrutória, a formalização documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque, é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo”.

19 Em 2004, sob a relatoria do Min Sepúlveda Pertence, no julgamento do HC 82354-8, foi concedida a ordem para que os advogados do indiciado pudessem ter acesso aos autos e extraíssem cópia dos mesmos A questão é complexa, pois, para que os defensores do indiciado tivessem acesso aos autos do inquérito policial, todas as instâncias judiciais anteriores indeferiram o pedido de vista, o que nos causa perplexidade

20 choukr, Fauzi Hassan Apud machado, André Augusto Mendes Investigação criminal defensiva São Paulo: RT, 2010 p 109

21 tucci, Rogério Lauria Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro São Paulo: Saraiva, 1993 p 389

22 malaN, Diogo Investigação defensiva no processo penal RBCCrim, ano 20, vol 96, p 296, 2012

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O direito à prova também deve ser reconhecido antes ou fora do processo, até como meio de se obter elementos que autorizem a persecução, ou possam evitá-la.

Na tradição inquisitorial, as atividades de pesquisa probatória prévia constituem tarefa confiada exclusivamente aos órgãos oficiais de investigação penal, mas, no modelo acusatório, com a consagração do direito à prova, não ocorre ser possível negá-las ao acusado e ao defensor, com vistas à obtenção do material destinado à demonstração das teses defensivas.23

3. Investigação defensiva, modelos estrangeiros e possibilidade no Brasil

O conceito trazido por Édson Luís Baldan e André Boiani Azevedo acerca da investigação defensiva é: “o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido, em qualquer fase da persecução criminal, inclusive na antejudicial, pelo defensor, com ou sem assistência consulente técnico, tendente à coleta de elementos objetivos, subjetivos e documentais de convicção, no escopo de construção de acervo probatório lícito que, no gozo da parcialidade constitucional deferida, empregará para pleno exercício da ampla defesa do imputado em contraponto à investigação ou acusação oficial”.24

3.1 Sistema norte-americano

O sistema norte-americano, embora possua o sistema jurídico da common law, atribui às partes (acusação e defesa) a responsabilidade de produzirem as provas que julgarem necessárias para atingir o objetivo final da lide, seja a condenação ou a absolvição. Isso inclui dizer que acusação e defesa poderão investigar os fatos, inquirir testemunhas, consultar peritos para proferirem pareceres técnicos etc.

3.2 Sistema inglês

Na Inglaterra, a Polícia é responsável, em primeiro lugar, pela investigação dos crimes. No caso de haver indícios suficientes para embasar uma acusação, assim fará. No caso de haver essa acusação, a polícia entregará o caso ao Serviço da Promotoria da Coroa (Crown Prosecution Service) – criado em 1985 pelo Prosecution of Offences Act, objetivando conduzir o inquérito e de limitar os

23 Gomes Filho, Antonio Magalhães Direito à prova no processo penal São Paulo: RT, 1997 p 83

24 azevedo, André Boiani e; BaldaN, Édson Luís. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva (ou do direito de denfender-se provando). Boletim IBCCrim, ano 11, n 137 p 7, 2004

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poderes da polícia –, que preparará o caso para julgamento. É dever da polícia, com o conselho do serviço da Promotoria da Coroa, reunir as provas para sustentar uma acusação.

Na prática, o assessoramento jurídico do serviço da Promotoria da Coroa compõe-se de advogados assalariados que dirigem todas as acusações em nome da Rainha, denominados de solicitor. O seu papel é o de aconselhar a polícia, revisar a decisão de acusação e preparar os casos para julgamento e apresentá-los aos Tribunais.

Nesse sistema, assim como o solicitor que atuará buscando provar a culpa do acusado, haverá o solicitor que atuará para defender o acusado, buscando elementos favoráveis ao cliente que fora acusado.

René David, ao tratar sobre o sistema inglês, faz uma crítica que é pertinente trazer: “não é uma luta desigual entre um acusador público, vestindo uma toga de juiz, sentando-se no mesmo estrado do juiz, tendo relações de amizade com este, e um pobre coitado sobre o qual pesam, desde a origem do processo, as suspeitas”.25

3.3 Sistema italiano

No sistema jurídico italiano, com o advento da Lei 397, de 07.12.2000, que alterou artigos do Código de Processo Penal, lapidou a investigação defensiva que tratamos aqui. Essa lei “alterou diversos artigos do Código de Processo Penal, para regulamentar, de maneira detalhada, a investigação defensiva. Na verdade, este diploma legal objetivou reequilibrar a posição das partes na persecução prévia, atribuindo ao defensor poderes investigatórios já previstos para o Ministério Público e a Polícia Judiciária”.26 Assim, o legislador italiano incluiu a paridade de armas entre as partes (acusação e defesa) no momento em que atribuiu a ambas as investigações o mesmo valor probatório.

Segundo André Augusto Mendes Machado, “hoje a investigação defensiva, além de ser tema bastante estudado pela doutrina italiana, vem sendo cada vez mais utilizada pelos defensores para buscar elementos de prova favoráveis aos assistidos. Prova disso é que existe portal jurídico italiano específico sobre a investigação defensiva, cujo endereço virtual é ‘www.indaginidifensive.it’. Em tal

25 david, René O direito inglês. São Paulo: Martins Fontes, 2000 p 50

26 machado, André Augusto Mendes Investigação criminal defensiva São Paulo: RT, 2010 p 146

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site, constam obras doutrinárias e julgados relacionados à investigação defensiva, bem como modelos dos principais atos que podem ser executados ao longo deste procedimento”.27

É certo que a legislação italiana acabou atribuindo ao advogado defensor um direito-dever de buscar por evidências, provas e até laudos técnicos, que favoreçam seu cliente.

Por isso, o defensor italiano deixa de ser um mero espectador passivo da atividade investigatória e passa a ter um papel totalmente contrário, tornando-se uma peça de fundamental importância para o desenrolar das investigações. Digo isso, pois, o defensor, que conduzirá sua própria investigação, buscará elementos que tentarão afastar seu cliente de futura ação penal e que, em contrapartida, forçará a polícia judiciária a realizar as investigações mais a fundo.

3.4 Da possibilidade da investigação defensiva no Brasil

Embora muito se questione a investigação defensiva no processo penal brasileiro, temos que admitir que a legislação não é o maior impeditivo dessa modalidade.

O Brasil promulgou, pelos Decretos 592/1992 e 678/1992, respectivamente, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de São José da Costa Rica, via de consequência se incorporando ao nosso sistema jurídico interno.

Como ambos os tratados internacionais versam sobre tutela dos direitos humanos, são incorporados com hierarquia de normas constitucionais, como preceitua o art. 5.º, § 2.º, da Constituição Federal.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos garante os direitos a: “dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa” e “obter o comparecimento e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação” (vide art. 14, 3, b e e).

Já o Pacto de São José da Costa Rica prevê “a concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa” e o “direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos” (vide art. 8.º, 2, c e f).

27 Idem, ibidem

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Frise-se que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional também foi promulgado pelo Decreto 4.388/2002 e, igualmente aos dois Pactos supracitados, constitui garantias ao acusado.

Em verdade, não há expressa previsão legal que impeça o advogado brasileiro de realizar sua própria investigação, assim como não há para que o Ministério Público proceda paralelamente à sua investigação. Ocorre que, se o advogado realizar sua própria investigação, não contará em hipótese alguma com o auxílio da policia judiciária e, tanto o promotor de justiça quanto o magistrado, poderão desconsiderar a investigação trazida pelo defensor.

Mais ainda, ao analisarmos o art. 396 do Código de Processo Penal, “nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”; bem como o art. 396-A “Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”, encontraremos um momento processual no qual o acusado poderá levar a juízo todos os elementos que considerar necessários para evitar o recebimento da acusação, evidenciando a preocupação do legislador em evitar acusações desprovidas de sustentabilidade.

Contudo, esse juízo de prelibação será exercido levando-se em conta, de um lado uma acusação munida de um robusto conjunto de informações, coletados pela autoridade policial sob o auxilio de todo um aparato estatal – realização de diligências, perícias, poder coercitivo, fé pública dos atos praticados, poder de polícia etc. –, que levou à formação da opinio delicti; e, do outro, uma defesa impossibilitada de proceder uma investigação própria de mesma força, seja pela ausência de previsão legal, seja pela impossibilidade de ter em seu auxílio a máquina estatal, a evidenciar a disparidade de armas à míngua dos direitos individuais do cidadão.

Patentes são os dispositivos que garantem o direito ao contraditório e à ampla defesa, não só na ação penal, como também durante o inquérito policial.

Dessa forma, além dos princípios basilares que citamos neste artigo (contraditório, ampla defesa e isonomia), é imprescindível acrescentar o direito do acusado à investigação defensiva, o qual, segundo Diogo Malan,28 fundamenta-se tanto no direito à prova defensiva quanto à paridade de armas.

28 malaN, Diogo Investigação defensiva no processo penal RBCCrim, ano 20, vol 96, p 304, 2012

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Assim, para que começasse a se concretizar o direito à investigação defensiva, deveríamos, antes de mais nada exigir duas inovações: a primeira visando alterar o Código de Processo Penal, para que inclua essa possibilidade; a segunda, disciplinando o dever ético de investigação defensiva no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

E ainda, tanto Diogo Malan quanto André Augusto Mendes Machado têm o posicionamento de que a investigação defensiva não seria uma faculdade a ser exercida ou não de forma discricionária de cada advogado, mas sim um poder-dever. Ademais, àqueles que não têm condições de arcar com os honorários advocatícios, socorrer-se-ão aos defensores públicos. Portanto, a dificuldade econômica do imputado não obsta a investigação defensiva, que deverá ser realizada pelo próprio Estado, por meio do defensor público, caso seja necessária para a defesa do imputado, conforme estratégia a ser adotada.

Por fim, necessário citar as principais vantagens globais, trazidas pela investigação defensiva, apontadas por Edson Luis Baldan:29 1. a investigação defensiva obriga o aprimoramento da investigação policial ou do Ministério Público, a fim de que esta possa se opor à investigação realizada pela defesa; 2. fomento ao desenvolvimento das ciências ligadas ao Direito Penal – Criminalística, Criminologia, Medicina Forense; 3. redimensionamento da atuação jurídica do advogado na constituição da prova criminal, antes como mero espectador passivo, agora como produtor dessa prova; 4. obriga a motivação judicial na admissão da acusação com uma análise mais veemente sobre os elementos indiciários e de prova; 5. fortalece a prova criminal, agora produzida tanto por defesa como por acusação de maneira igualitária, favorecendo a busca da verdade real e dando sustentáculo maior à decisão motivada do magistrado.

4. Conclusões

O advento da Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova ordem jurídica no Brasil, pautada nos ditames das liberdades individuais, elevando à condição de cláusulas pétreas um extenso rol de direitos e garantias a preservar aquelas. Rol este que, somado à carga principiológica constitucional, não nos deixa opção outra, senão de entendermos que, no tocante ao Direito Processual Penal, o sistema que rege nossa lei adjetiva deve ser o acusatório.

Contudo, no modelo processual brasileiro estão ainda impregnados alguns aspectos de um sistema puramente repressivo. Isto se verifica não somente por uma legislação infraconstitucional retrógrada, inspirada em um modelo fascista, mas também pela dificuldade

29 BaldaN, Édson Luís Investigação defensiva: o direito de defender-se provando RBCCrim, n 64, v 15, p 270, 2007

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de reformulá-la; em que pese as várias alterações recentes, ainda resta um longo caminho. Isso porque essa legislação está legitimada por uma sociedade social e culturalmente imatura, que clama por justiça, quando na verdade espera vingança.

Essa faceta nebulosa do direito processual penal manifesta-se de maneira mais veemente na fase pré-processual, na figura de um inquérito policial inquisitivo que, como já demonstrado, se desenvolve ao arrepio das garantias e direitos fundamentais do cidadão. Ataca frontalmente o contraditório, a ampla defesa – ainda que alguns defendam a existência do exercício do direito de defesa nessa fase, em razão das limitações impostas, não pode ser considerado amplo pelas barreiras impostas, v.g. não haver contraditório – direito à prova, à isonomia – material e formal –, enfim, realiza uma verdadeira devassa na intimidade do averiguado e põe em risco seu status libertadis – garantidos na Lei Maior – à mingua do devido processo legal.

Embora muitos concordem e defendam que o inquérito policial seja sim uma peça meramente administrativa e que há somente o direito à ampla defesa, excluindo o contraditório, esse posicionamento precisa ser revisto à luz do sistema acusatório, e a lei infraconstitucional deve buscar sua fundamentação na lei superior – aliás, assim já propunha o velho Kelsen em sua TPD. Isso porque, mesmo os poucos direitos da defesa já consagrados, por vezes são tolhidos, seja pelas autoridades, policial e judiciária, seja – pasmem! – pelos serventuários da administração pública.

Assim, ainda que estejamos acobertados pelo manto do direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, cotidianamente os defensores de acusados se deparam com situações que não conseguem contornar, devido ao desrespeito do princípio da par conditio. Nesse contexto é que se verifica a possibilidade / necessidade da realização de uma investigação defensiva, parcial, realizada paralelamente àquela estatal, com a mesma força instrutória daquela, de maneira que o acusado não apenas se defenda, mas também possa provar sua inocência.

Muito embora tenhamos argumentado a possibilidade de o acusado requerer diligências à autoridade policial (art. 14 do CPP), não é esse o escopo da investigação defensiva. Nesta, o defensor do acusado conduzirá a sua própria investigação.

Por derradeiro, acreditamos que transpor essa teoria da investigação defensiva ao ordenamento jurídico brasileiro representará uma evolução do sistema atual, tendendo ao abandono de um sistema misto, impregnado de resquícios do sistema inquisitivo, rumo a um sistema acusatório puro. Contudo, irá depender de muitas alterações na legislação, sobretudo infraconstitucional, a exemplo do modelo italiano.

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Se essa inovação se concretizasse, dar-se-ia paridade de armas ao acusado (em sentido lato), podendo evitar o recebimento da denúncia ou da queixa-crime. Evitar-se-ia que o acusado e seu defensor ficassem estáticos, enquanto uma investigação criminal tomasse os rumos de sua condenação, apenas assistindo ao desenrolar do inquérito policial como mero espectador.

5. Referências bibliográficas

Azevedo, André Boiani e; Baldan, Édson Luís. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva (ou do direito de denfender-se

provando). Boletim IBCCrim, ano 11, n. 137 p. 7, 2004.

Baldan, Édson Luís. Investigação defensiva: o direito de defender-se provando. RBCCrim, n. 64, v. 15, p. 270, 2007.

Brito, Alexis Couto de. Processo penal brasileiro. Humberto Barrionuevo Fabretti, Marco Antonio Ferreira Lima. São Paulo: Atlas, 2012.

David, René. O direito inglês. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Fernandes, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: RT, 2002.

Ferrajoli, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002.

Gomes Filho, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997.

_______. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: Yarshel, Flávio Luiz; Moraes, Maurício Zanóide de. Estudos

em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005.

Machado, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: RT, 2010.

Malan, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. RBCCrim, ano 20, vol. 96, p. 304, 2012.

Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2012.

Pitombo, Sérgio Marcos de Moraes. Inquérito policial: novas tendências. Belém: CEJUP, 1987.

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Saad, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: RT, 2004.

Tucci, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993.