12 Meses no Funchal

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Colecção Funchal 500 Anos

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12 MESES NO FUNCHAL

12 MESES NO FUNCHAL

António Fournier [Organização]

Colecção “Funchal 500 Anos” [n.o 16]

COORDENAÇÃO GERAL

Francisco Faria Paulino

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Susana Sousa e Silva

CAPA

Le Départ, Martha Telles, óleo s/ tela, 1983

Museu de Arte Contemporânea do Funchal

DESIGN GRÁFICO

José Brandão | Susana Brito | Elisabete Rolo

[B2 Design]

IMPRESSÃO

Rainho & Neves, Lda.

ISBN

978 - 989 - 8182 - 01 - 2

DEPÓSITO LEGAL

276 179 / 08

TIRAGEM

1000 exemplares

EDIÇÃO

Empresa Municipal “Funchal 500 Anos”

Rua de Santa Maria, 170

9060-291 Funchal

www.funchal500anos.com

António Fournier ORGANIZAÇÃO E PREFÁCIO

12 MESES NO FUNCHAL

PREFÁCIO

Um Funchal eternoAntónio Fournier

JANEIRO

No Tempo de JaneiroAna Margarida Falcão

FEVEREIRO

Fevereiro, 1938Irene Lucília Andrade

MARÇO

Funchal, em MarçoFrancisco Fernandes

ABRIL

ParábolaMargarida Gonçalves Marques

MAIO

MaioLaura Moniz

JUNHO

JuneMaria Rosa Basílio

Índice

007

017

027

029

032

036

042

JULHO

Ruas de JulhoVítor Sousa

AGOSTO

Agosto Nelson Veríssimo

SETEMBRO

Violante, olhos de marHelena Marques

OUTUBRO

Aguarela de um outubro melancólicoMaria Aurora Homem

NOVEMBRO

No Funchal, o maquinistaAntónio Fournier

DEZEMBRO

Em Dezembro quando as gaivotas enlouquecemJoão Carlos Abreu

SOBRE OS AUTORES

046

050

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060

062

071

075

Prefácio007

Prefácio

Um Funchal eterno

Uma ilha à distância é como um cirro de cinza

ou um veleiro, uma vaga sombra no horizonte.

Vista de dentro é do tamanho do mundo.

Sant’Ana Dionísio, Atlânticas

Leva sempre Ítaca no teu coração, mas não apresses o regresso, encontrei uma vez

esta máxima num livro de Claudio Magris. E há também uma anedota de

Umberto Eco que li em tempos, em que às vezes penso: um emigrante, depois

de longos anos de ausência, um dia decide regressar à sua cidade natal. No com-

boio, já perto da estação de onde outrora partira, põe-se a imaginar quanta

gente estará à sua espera. À chegada, verifica para sua decepção que não há

nenhum comité de boas-vindas: a estação está vazia! Desiludido, porque queria

abraçar um amigo, transmitir toda a alegria de voltar a casa, sentir o calor dos

irmãos que acolhem o filho pródigo, pousa as malas no chão e olha à volta,

desesperadamente, à procura de algo ou alguém que o faça sentir em casa. Ao fundo

vê um homenzinho a varrer a estação. Aproxima-se e reconhece um antigo

colega de escola. Corre para ele e abraça-o efusivamente. O outro, surpreen-

dido, exclama: “Olá Giovanni, há quanto tempo! Estás de partida?”

Quantas vezes partindo, permanecemos na ilha, e quantas vezes ficando,

nos ausentamos? Quantas vezes vivendo quotidianamente a cidade, abandona-

mos os minutos, deixamos para trás os dias, e só nos lembramos daqueles que

fazem parte da nossa paisagem sentimental, quando damos de repente com

eles nas páginas terminais de um jornal? Quantas vezes partimos ou fazemos de

conta que partimos daquele castelo onde fomos e de onde nunca regressaremos?

A memória desliza sub-repticiamente para trás, à procura de um tempo feliz que

12 Meses no Funchal008

só existe na cabeça do habitante mental dos lugares, aquele que vive, como nenhum

outro, um presente eterno numa primavera perene. Mas isso tem os seus custos,

e ele sabe-o, torna-o numa espécie de guardião de um segredo, de uma dor antiga

que o corrói por dentro, que o faz temer o regresso e ansiar por ele todos os dias.

O tempo, esse, faz a todos nós – os que ficam e os que partem – o que se espera

que ele faça: avança, levando consigo aquilo que amamos. O mundo entretanto

passa por debaixo dos pés vorazes, mentais. Todos os dias o habitante mental das

ilhas se fixa num instante longínquo cristalizado na espessura do tempo.

Como no quadro de Martha Telles. A cor, como se sabe, é uma paisagem

moral. O automóvel aguarda a partida na sua indiferença metálica e descapotá-

vel, e os pais, já fantasmas, preparam-se para accionar esse mecanismo assas-

sino. As árvores negras e ancestrais como a figura longilínea do avô, observam

a cena que se desenrola à luz de outro sol. As sombras sábias cavam sulcos

profundos num território solar. O silêncio, que se mede na distância entre os

pais e as crianças, torna a cena ainda mais pungente. A terra vermelha e fofa,

boa de comer como diria Ernesto Leal, assiste a tudo, nutrindo o lugar, unindo

um arquipélago humano já fracturado à partida. Na casa feita da mesma maté-

ria quente e sentimental, a avó fica só. A menina, vestida do mesmo branco

imaculado das irmãs, assiste de longe àquela parte dela própria que lhe é assep-

ticamente cortada. À direita, o labirinto de círculos vegetais prepara-se para

acolhê-la, na sua tentativa de reelaborar o luto, breve ou definitivo.

A partida é uma das formas de sofrimento humano. Por isso o regresso é

também, inevitavelmente, um doce veneno, um cálice amargo. Regressar a uma

ilha é atravessar o vazio, o frio, o medo, a voragem dos dias, a perda de referên-

cias. A ilha estará lá ainda, ainda existe para lá das nuvens? Há dez anos que

parto e regresso ao Funchal, e se vivi mal durante muito tempo esta espécie de

esquizofrenia de imaginar a minha cidade natal a crescer longe da minha vista,

e este sentimento de culpa de crescer longe dela, hoje já me habituei à situação

de exílio perene e de insularidade portátil que me permite partir com nostalgia

e regressar com saudade. Regressar com frequência para que não aconteça o

mesmo que àquele emigrante. Estar no Funchal como se nunca tivesse partido,

não deixar que o regresso seja tão atroz. Mas a qual Funchal regressar? Um ano,

trezentos e sessenta e seis dias, não há um único dia igual ao outro. Oito mil

setecentos e oitenta e quatro horas. Todas irrepetíveis. Quinhentos e vinte e sete

mil e quarenta minutos. Todos inexoravelmente perdidos. Mais de trinta e um

milhões e meio de segundos, cada um pautado por 150 mil corações que batem

em uníssono. Um lugar que é como quem diz o Funchal, uma cidade em festa.

Prefácio009

Um ano que é como quem diz 2008, um ano de fogo. Era preciso eternizar

literariamente este tempo, deixar uma radiografia onírica desta cidade de orquí-

deas assassinas, poetas malditos e comboios fantasmas.

É difícil dizer exactamente como e quando o Funchal mudou. Pequeno porto

de mar de repente transformado em florescente capital do açúcar por onde anda-

ram Zarco e Colombo e tantos outros famosos e anónimos pioneiros da aventura

marítima europeia que ali deu com eles os primeiros passos, ponto de passagem

de todas as rotas que demandaram o grande oceano em direcção às suas duas

portas austrais ou mais plausivelmente em direcção ao Nada, o Funchal disfruta

hoje da qualidade do seu tempo suspenso, celebrando a sua fama internacional

de bonsai atlântico e o seu eterno destino de periferia primaveril da Europa, pro-

legómeno e epitáfio de todos os impérios inconsúteis. Na atmosfera exuberante

dos seus jardins tropicais conversa-se sobre os pequenas nadas, nas suas ruas

calcetadas cultiva-se as regras da convivência samaritana e a moral da aparência

burguesa, nas suas casas de prazeres e angústias ritualiza-se a ocasião social do

chá implantada pelas velhas famílias inglesas, ao sabor de recordações gulosas

dos tempos da cidade doce. O comportamento british está tão interiorizado que

se o renega e imita todos os dias, separando-nos altivamente uns dos outros,

unindo-nos a todos no nosso cosmopolitismo contaminado de invejazinhas de

província, na nossa forma aprimorada e ressentida de ser português, na nossa

resistência irónica e inócua a todos os destinos coloniais.

Dentro cresce uma espécie de narcisismo cósmico. Surdo e visceral, o cor-

dão enrola-se ainda mais à volta da ilha. A serpente morde a cauda. Nos quin-

tais as crianças sonham. A matéria-prima do lugar torna-se subitamente oní-

rica. Uma memória cristaliza-se. Onde estão as canas de açúcar que se roubava

dos camiões a caminho do engenho, combustível doce para as rodas dentadas

do nosso desejo? Para onde voaram as joeiras de cana, papel-manteiga e bar-

bante, estrelas coloridas nas tardes de vento, umbilicalmente ligadas ao cora-

ção do sonho? Que destino tiveram os carrinhos de verga e cana com que se

procurava desvendar sozinhos o melhor caminho para os nossos labirintos

futuros? Sobreviverão ainda as lagartixas cuja posse mortal e infantil se dispu-

tava com os francelhos medievais que pairavam sobre os maracujás, pitangas e

araçás da nossa paixão? Um véu de ilusão avançará ainda do mar, território do

infinito de onde provinham as projecções oníricas que contaminavam estas

paragens? Em que dura realidade encalhou o Elsinor, o veleiro-fantasma em

que nos anos trinta do século XX se rodava um filme baseado num conto de

Jack London, cujas luzes durante a noite causavam o pânico na cidade sensível?

12 Meses no Funchal010

Para que nova guerra cósmica fugiu o submarino alemão que em 1916 a des-

pertou do seu longo sonho de séculos? Que destino cruel levou o comboiozi-

nho com asas que transportava todos os dias, rigorosamente a horas, os seus

passageiros para lugar nenhum?

O Funchal mudou realmente neste dealbar de um novo milénio? Uma melo-

dia cega e triste continua a ecoar pelas suas ruas populares, dando um toque

cesário àquela parte da cidade; o último vagabundo novecentista continua a per-

correr a pé, perdido no seu autismo, a estrada até Papagaio Verde, passando

completamente à margem da velha Europa que continua a estanciar ociosamente

a oeste da cidade; os velhotes no Lazareto, no outro extremo, continuam a jogar

às cartas debaixo do carvalho, indiferentes ao que resta do último navio abalro-

ado pela ilha na sua longa deambulação pelo tempo, cobrindo-se como eles de

ferrugem; nos becos mesmo no coração da cidade, os territórios sentimentais

continuam a ser guardados por cães que acendem olhares furtivos por detrás de

persianas, mal se dobra a esquina. O vilão continua a apoiar à parede a sua indo-

lência, numa verticalidade inclinada e observadora, mãos cruzadas, olhando de

lado as coisas, comentando a vida da periferia do tempo. O funchalense continua

a passar apressado pelas esplanadas burguesas temendo mais do que o olhar

inocente do estrangeiro, o olhar do seu inimigo íntimo, aquele que conhece tão

bem quanto ele os segredos da nossa alma amorável e cínica, seu irmão, eterno

rival, eterno Caim. E quando o encontra, se os olhos não o puderem evitar, é uma

falsa efusão, como se o não visse há séculos, como se tivesse de facto partido.

De resto, o Funchal continua a ser separado pelas suas três eternas ribeiras,

à volta das quais se concentram três formas diferentes de viver a cidade: a parte

popular a nascente, onde desagua todos os dias a enchente de vida laboriosa

oriunda do hinterland madeirense, que percorre as ruas num misto de espanto

e vergonha perante as novas catedrais brancas do comércio em que futuriza o

seu desejo; o Funchal burguês que vive a cidade no presente absoluto, nos seus

gestos simbólicos, pausados e patriarcais de velhos comerciantes, donos ilusó-

rios do lugar; o Funchal turístico a poente, onde invernam as cabeleiras louras

vindas do frio, em busca dos sinais do lugar onde outrora vivia o tio abastado

de Jane Eyre, e os turistas provenientes da parte mais ocidental da Europa

(tão próxima e tão distante) talvez ainda a tentarem sintonizar a cidade real

com o imaginário que traziam de “uma ilha quentinha, cheia de ananases, com

muitos casinos e um yes a cada esquina” como disse Sant’Ana Dionísio.

Depois, esta multidão colorida, contrastante, diferentemente vestida, os de

fora na sua primavera fora de estação, os da ilha no seu inverno perenemente

Prefácio011

ameno, uns ao ritmo de quem flana, outros ao ritmo de quem corre para lado

nenhum, cruza-se, acotovela-se nas esquinas, encontra-se e desencontra-se nas

mesmas pontes migratórias por onde passou ao longo de séculos, um tout le

monde composto de aventureiros do velho e novo mundo, mercadores italianos

e corsários magrebinos, piratas franceses e oficiais britânicos, jesuítas espa-

nhóis e sultões persas, pintores flamengos e pregadores escoceses, preceptoras

berlinenses e gibraltinas ociosas, aristocratas russos e princesas austríacas,

comerciantes sírios e odaliscas turcas, infantas tísicas e poetas sonhadores,

monarcas exilados do seu sonho witteleuropeu e ditadores latino-americanos

órfãos da sua tirania, mas também toda uma turba indistinta, anónima e apá-

trida, de escravos, vagabundos, vadios, mendigos, emigrantes e emigrados,

visionários, pedintes, degradados, utópicos, condenados, famintos, proscritos

e exilados que desapareceu nas mesmas veias azuis e impuras dos funchalen-

ses. Por isso, as árvores, as flores, as pedras, os homens da cidade profunda são

sábios e inocentes.

O céu de estrelas dançantes sobre o Funchal assistiu a tudo. Pelas mãos terre-

nas dos seus habitantes, sobreviventes de séculos, passaram todos os tráficos,

consumaram-se todos os crimes: sangue de dragão e mãos de sangue, presépios

de Nápoles, retábulos da Flandres, cristais de Veneza, nácares do Mar das Péro-

las, pipas de Madeira para Napoleão e exércitos de alfinim para o Papa, peles de

Mobydick, telegramas e cabos submarinos, postais do Cabo e selos do Panamá,

correio aéreo de zeppelins e estilhaços de bombas de Uboats, lembranças de

Dover, despojos de Varna, aguarelas de Römer, porcelanas das Índias, missangas

africanas, calhas enferrujadas, âncoras órfãs e corpos carbonizados, hidroaviões

de folha e aviões de papel, esquadras transatlânticas e barcos de cabotagem, flo-

res de fogo, magnólias e gatos angorás, berlindes e carrinhos de linha, agulhas e

dedais, dragonas para esquadras de fantasia e pistolas para duelos passionais,

beijos em cartas manchadas, recados com travo a dor, ódio e fome, rebuçados de

funcho, carne azeda e pão duro, moedas de mergulhança, lenços sujos ou filigra-

nados, seda e organdins, cruzes e ex-votos, forcas e amarras, pelourinhos e carros

de cesto, foices e baionetas, bostas de boi e seringas de drogados.

No Funchal todas as paixões são botanicamente moduladas pela cor dos chei-

ros e pelo cheiro das cores, num fulgor policromático que mais do que um seu

topos literário, é um lugar comum tão incontornável quanto o cerco do oceano; no

Funchal todos os vícios são alimentados pela pressão onírica do mar de onde

chegam os grandes cisnes do mundo, e pela pressão melancólica do campo que

se esbate contra as pequenas quintas que o absorvem e dignificam, e os quintais,

12 Meses no Funchal012

mais modestos, onde ele cresce selvaticamente junto com as galinhas e os instin-

tos. Por cima, o céu ilumina-se de uma limpidez conivente com a alegria botâ-

nica, e a colmeia inclinada e solarenga que é o Funchal sorri, acesa por um ines-

perado caleidoscópio de cores; ou então, pelo contrário, as nuvens adensam-se

em nembos pensativos que descem inclementemente sobre a cidade, exerci-

tando uma terceira forma de pressão solidária nas guelras dos seus habitantes,

metabolizando-se no sangue, tornando-os esquivos e sorumbáticos.

Nos cafés literários, todos diferentes, na sua atmosfera cosmopolita e alma pro-

vinciana – o Golden, o Pátio, o Teatro – os visionários sonham, os intelectuais

conspiram, os poetas extinguem-se, por entre uma fauna ridente e ociosa que está

para o Funchal como quem está para uma fotografia dos Vicentes. Por detrás das

fachadas principais, enquanto as televisões e os ecrãs sintonizados mais que nunca

com o mundo, policromatizam a velha e a nova penúria, uma população inteira de

abelhas operosas pulula e lateja, esventrando as casas e as lojas, entrando e saindo,

subindo e descendo, insuflando linfa espiritual na velha capital europeia do açúcar,

cobrindo tudo com algum daquele pó doirado que teima em reluzir até ao fim da vida,

de que fala Raul Brandão. Repetem desde tempos imemoriais os mesmos gestos,

os mesmos passos. Os nossos misteriosos passos quotidianos. Os nossos glorio-

sos gestos anónimos. O pensamento precisa do afecto. Não se pensa literariamente

uma cidade sem afecto. A beleza dos lugares está no seu implícito que ninguém

pode narrar, no imortal que ninguém pode contar, no que foge ao contingente, no

que subjaz para sempre ao literário. Mas é desse poço obscuro e profundo, desse

reino sonâmbulo e flutuante onde pulsa intensamente a alma nobre e plebeia de

uma cidade quinhentista, que é preciso beber continuamente.

Todos os anos, em finais de Maio, o tapete amarelo de tipuanas na Pena volta a

resvalar para o fundo da memória, quando se cruza momentaneamente com a

floração dos jacarandás nas ruas centrais do Funchal e a cidade parece flutuar

numa nuvem de cor. De cada vez que atravesso esse corredor, ao voltar à ilha, entro

num outro Funchal, vejo-o já do outro lado dessa clepsidra de pétalas amarelas que

voltei a inverter ou que o tempo voltou a inverter por mim. E talvez porque o faça

assim tão sazonalmente, me apercebo melhor da lenta e inexorável oscilação da

cidade. Parar e olhar o mar a partir da janela de tipuanas que se abre na Avenida

Arriaga, entre o Golden e a praça da Restauração, sem ser ameaçado por aquele

mecanismo metálico e assassino do quadro de Martha Telles é já um regresso a um

tempo anterior ao meu, uma pequena jóia íntima: parar pela primeira vez no meio

de um Funchal devolvido a sua dimensão humana, sintonizar-me com a minha

cidade, reapropriar-me do sentido da pertença, repetir um gesto imortal.

Prefácio013

De Folgore da San Gimignano são recordados os Sonetti dei Mesi dedicados

a cada um dos meses do ano, e mais recentemente Mário Cláudio estruturou

da mesma maneira o seu contuário As Máscaras de Sábado. Desde sempre a

escrita literária joga com o alfabeto do tempo, porque ambas, vida e literatura,

utilizam os mesmos dados da experiência. Neste calendário lúcido e evocativo,

onze escritores contam o Funchal na fugacidade de uma permanência. Perten-

cem a diferentes gerações, compreendidas entre os 20 e os 70 anos, aquelas

que se cruzam no arco plausível de uma existência humana, testemunhas lite-

rárias de um lugar e de um século que já abandonámos, que já nos abandonou

definitivamente. Há oito anos que somos órfãos de uma parte de nós e essa

fractura simbólica persiste neste livro: se exceptuarmos os meses de julho e

setembro que reescrevem o mito fundador a partir do ponto de vista dos eter-

nos proscritos da História, o feminino e o plebeu, quase todos os outros regres-

sam a esse tempo afectivo. E quando o tempo de janeiro abre o ano com o

Funchal dos anos oitenta, embora seja também o meu, de repente apercebo-me

de que é já tão distante, irremediavelmente distante, pertença de uma substân-

cia cardíaca que já nenhum de nós possui, mas de que somos simultaneamente

guardiões e prisioneiros.

Em sua homenagem, em homenagem ao que de Funchal vive em nós, cons-

truiu-se imaginariamente esta cidade, sempre igual e sempre diferente como

as buganvílias sobre as nossas ribeiras sentimentais de modulação e caudal

variáveis, que renascem todos os anos dando aquela impressão de eternidade

que Ferreira de Castro aqui e só aqui intuiu. Esta é uma cidade literária entre

tantas outras possíveis. Porque há também uma outra cidade íntima, aquela

que os olhos eternizam na penumbra e nenhuma escrita pode registar, porque

os seus habitantes, melhor que ninguém, a reescrevem, vivendo-a na primeira

pessoa todos os dias. Aquilo que se ama verdadeiramente permanece, nunca

nos poderá ser arrancado, escreveu uma vez Blaise Cendrars. E com Rilke

aprendemos que são os lugares a reconhecerem-nos, são eles a trazerem até

nós a memória dos passos que já foram nossos e as pegadas dos outros que

repercorremos e repetimos. São eles a trazerem água límpida à consciência.

Água daquele poço profundo e insondável que é a cidade mental pertença

exclusiva de cada um de nós. Onze escritores beberam dessa fonte da eterna

juventude e viverão literariamente para sempre.

Depois da città dolente e melancólica dos escritores oitocentistas que a

demandavam à procura de um ideal que se chamava saúde (Júlio Dinis, Antó-

nio Nobre), depois do Funchal ridente e pitoresco de jornalistas cosmopolitas

12 Meses no Funchal014

sintonizados com uma época de explosão do turismo (Hugo Rocha, Luís Tei-

xeira, Norberto de Araújo) depois do Funchal integrado em périplos de reco-

nhecimento por um Portugal continental, insular ou colonial (Brito Camacho,

Henrique Galvão, Raul Brandão) ou como ponto de passagem nas rotas de

cabotagem sentimental das ilhas (Vitorino Nemésio), depois do Funchal roma-

nescamente recriado por Teixeira Gomes, Jaime Cortesão, Ferreira de Castro,

Assis Esperança, Marmelo e Silva, Natália Correia e Agustina Bessa-Luís, fal-

tava uma visão de conjunto, a partir de dentro, do Funchal.

Todavia, repito, este Funchal de invenção, esta cidade de fantasia é cons-

ciente de que a cidade real continuará a viver para além de todas as visões lite-

rárias, alimentando-se de todas mas resistindo a reconhecer-se em qualquer

uma delas, englobando-as no seu património simbólico, para as desmentir

logo de seguida, porque o Funchal é não só uma cidade no meio do Oceano, é

também uma cidade no meio do Tempo. Estes doze contos peregrinos no tempo

contam pois a sua acção sobre a memória literária do Lugar. Um ano passado

no Funchal é simultaneamente muito e pouco tempo, mas um sonho é por

natureza itemporal, porque se espraia pelos confins de um território imaginá-

rio tão vasto como o universo ou tão pequeno como a gota de água em que ele

por inteiro se reflecte. Agradeço a todos os onze escritores terem sonhado

comigo este Funchal eterno, e habitado durante um ano a cidade literária que

eles próprios inventaram.

António Fournier

12 Meses no Funchal

António Fournier (Organização)017

Janeiro

No Tempo de JaneiroAna Margarida Falcão

Contava-se em casa de Ana Lima que o seu antepassado Augusto Teodoro fora

o responsável pelo enriquecimento e ascensão social da família. Vivendo no Norte

da Ilha, o próprio desconheceria as suas origens mais remotas, pois raras eram as

notícias sobre o povoamento do Arquipélago da Madeira, mesmo para quem as

pesquisasse nas antigas crónicas. Ignorava, pois, se descenderia de ambiciosos

nobres em busca de ascensão ou de criminosos que cumpriam as suas penas

mas, no seu íntimo, sempre ouvira a voz de uma crença secreta e inconfessável

que lhe repetia ser ele descendente dos últimos e não dos primeiros.

Em finais do séc. XVIII dedicara-se Augusto Teodoro ao cultivo da vinha e das

cerejeiras pretas, cultivos estes interactivos e pouco ortodoxos pois o suco quase

negro das cerejas dava mais cor ao vinho do Norte, tornando-o equiparável ao do

Sul da Ilha, de modo a poder ser exportado para Tenerife e, depois, para a Ásia.

Contra esta fraude nortenha se uniram, em Janeiro de 1788, dezanove negocian-

tes de vinho da Madeira, na maioria ingleses, o que originou, a 27 de Fevereiro

seguinte, um edital do Governador da Ilha com medidas rigorosas no sentido de

extinguir as cerejeiras pretas e acabar de vez com a falsificação.

Perante tais factos, fizera Augusto Teodoro contas e mais contas, balanços e

mais balanços, até que a indecisão se transformara em clara e inabalável von-

tade: venderia as propriedades do Norte e mudar-se-ia com a família para o

Funchal, onde compraria a nobre casa desde sempre sonhada, na qual viveria

em paz o descanso que lhe restava de vida, tendo como única actividade, como

sempre ambicionara, fazer os possíveis e os inpossíveis por frequentar uma

sociedade que ele sabia sempre ter aberto as portas ao dinheiro.

Assim fora comprado por Augusto Teodoro, no mês de Abril de 1788, o Solar

dos Espinheiros, na Rua da Carreira, no Funchal, e de imediato se procedera a

obras que, apesar de orquestradas pela sua mão pesada e rude, mantiveram a

12 Meses no Funchal018

traça e os pormenores originais por graça da sua divina falta de imaginação e

de saber. Apenas no jardim mandara arrancar o matagal de arbustos e as árvo-

res que podiam viver quinhentos anos, cheios de flores delicadas, frágeis e

brancas, ou de bagas vermelhas e medicinais, talvez porque ignorasse a sua

íntima ligação com o nome do Solar. Segundo os cálculos de Augusto Teodoro

os arranjos deveriam estar prontos em Setembro, pois planeara já passar o

Natal bem instalado na cidade, mas acabaram por sofrer algum atraso devido a

sucessivos contratempos que haviam surgido na adega.

Uma das duas entradas para o Solar, a de serviço, porta mais simples, sem

escadaria nem vitrais como a principal, dava directamente para a adega, e vários

foram os acidentes ali ocorridos, contabilizáveis em frequentes ataques convul-

sivos e maléficos de dois mestres até aí saudáveis, ferimentos graves e quase

inexplicáveis de cinco operários e, ainda, a morte súbita e misteriosa do capataz

que controlava os trabalhadores. Além de tudo isto, acontecera, vezes sem

conta, os operários depararem com arranjos que tinham sido dados na véspera

como prontos e que surgiam desfeitos na manhã seguinte, a tal ponto que

vários trabalhadores tinham recusado trabalhar na adega, dizendo-a amaldiço-

ada ou embruxada. Assim, só no dia 31 de Dezembro de 1788 acabara Augusto

Teodoro a mudança definitiva e pudera ver entrar a esperança de liberdade do

ano de 1789 festejando em família, no imenso salão de baile, nesse dia ainda

sem outros frequentadores.

A 26 de Agosto de 1815, quando Augusto Teodoro sentira aproximar-se o fim

do seu tempo e passara já o governo dos rendimentos a seu filho primogénito,

João Teodoro, assolara a Ilha, de clima habitualmente sempre ameno, um grande

e quase nunca visto aluvião. As margens das ribeiras não estavam preparadas

para tal portento de força da natureza e as águas, pejadas de terra, pedras, lodo e

os mais diversos materiais, haviam galgado as margens e aberto caminho através

de campos e cidade, invadindo ruas e casas, semeando o pânico à sua passagem.

Assim acontecera na Ribeira de São João, onde a enchurrada arrastara cerca de

vinte casas, desde a ponte de São Paulo, no extremo oeste da Rua da Carreira, a

meia centena de metros do Solar, no qual as águas loucas ainda haviam galgado

o baixo muro que sustentava o gradeamento do jardim e, mais abaixo, invadido a

adega e as cozinhas, situadas ao nível da rua.

Contava-se na família de Ana Lima que fora já João Teodoro quem man-

dara altear o muro do jardim e presidira ao reparo dos restantes estragos do

aluvião, concluídos precisamente a 31 de Dezembro desse ano, e dizia-se

ainda que, depois desse Janeiro, ele nunca mais voltara a ser o mesmo filho

António Fournier (Organização)019

cumpridor e sereno. Após a morte de Augusto Teodoro, que ocorrera justa-

mente na passagem de ano, às primeiras horas de 1816, João Teodoro deam-

bulara demasiados dias pela casa em obstinado e ziguezagueado silêncio.

Estas primeiras manifestações de desequilíbrio mental, atribuíveis ao des-

gosto e ao luto, ultrapassariam, lá por finais do mês de Janeiro, as raias da

normalidade, e quem primeiro se deu conta disso foi a criadagem, pois João

Teodoro transferira as suas deambulações silenciosas para a Rua da Carreira,

a qual percorria manhã, tarde e, por vezes, mesmo noite, em passo lento,

compassado e milimetricamente igual, para diante e para trás, para trás e

para diante. Contra seu hábito desde que vivia no Solar, agora passara a sair e

a entrar atravessando sempre a adega e as cozinhas, utilizando invariavel-

mente a porta de serviço e, na soleira desta, quer saísse quer entrasse, parava,

perfilava-se, tirava o chapéu negro, protegia com ele o coração e fazia uma

profunda vénia dirigida à segunda coluna da esquerda, a que suportava o arco

central da adega.

E assim continuaria, dia após dia, persistente e inofensivamente, até à sua

morte, com a qual João Teodoro só se encontraria ao atingir a considerável

idade de 101 anos. Apesar desta longevidade, Maria Augusta Teodoro Lima,

mãe de Ana Lima, não assistira aos bizarros rituais deste estranho avô pois

grande parte da família se radicara já, por casamento ou profissão, em Lisboa,

e apenas em criança ela viera algumas vezes passar férias ao solar. Mas ouvira

contar que, na noite da passagem de ano de 1881, vinha a família de regresso

dos festejos, às primeiras horas de Janeiro de 1882, quando, depois de procu-

rar em vão João Teodoro por todos os quartos do Solar, dera com ele em camisa

de noite, morto e desfraldado, como um fantasma, abraçado ou colado – como

se de uma tardia e despropositada amante se despedisse com fervor – à segunda

coluna da esquerda da adega, aquela que sustentava o arco do meio, o mesmo

junto ao qual fora encontrado, em 1788, o capataz que aparecera misterio-

samente morto.

Em Julho de 1987 Ana Augusto Lima terminou o seu curso de arquitectura

em Roma. Regressada a Lisboa, entre várias hipóteses de estágio e colocação

surgira-lhe uma na Ilha da Madeira. Apesar de a família se ter radicado há

muito em Lisboa, Ana Lima sentiu uma atracção muito forte por aquela ilha

que abrigara gerações e gerações dos seus antepassados. Tinha conhecimento

de que sua mãe, Maria Augusta Lima, herdara um velho solar, o Solar dos Espi-

nheiros, abandonado no Funchal, na Rua da Carreira, e começou a desenvolver

12 Meses no Funchal020

dentro de si a vontade de, simultaneamente, fazer estágio e recuperar o solar,

entusiasmada pelos pais, com quem debatera o assunto.

Um estúpido acidente de carro deixou-a lesionada por dois meses e impe-

diu-a de concretizar a viagem em Outubro, como planeara, mas, apesar de o

estágio ter sido adiado para Janeiro, não quis deixar de passar o famoso fim

de ano na cidade do Funchal. A 30 de Dezembro de 1987 encontrava-se, pois,

instalada num hotel da Baixa funchalense, situado entre o Jardim Municipal

e a Rua da Carreira. A 31, desceu algumas ruas até ao Cais da Cidade para se

surpreender com o espectáculo de fogo de artifício, impossível de ser fixado

em película fotográfica ou fílmica que seja, tal a essencialidade, para o dis-

frutar, de uma osmose directa entre o olhar e o cenário vivo. Ainda emocio-

nada, Ana Lima deixou-se depois arrastar pelo movimento dos transeuntes e

deambulou pelas ruas cheias de vozes, música, luz e cor. A intensidade das

iluminações e o calor das gentes era tal que lhe transmitia, apesar de se

encontrar sozinha, a segurança acompanhada de um passeio diurno. Às pri-

meiras horas de Janeiro de 1988, já cansada, deu por si a completar o per-

curso circular da baixa, encontrando-se à entrada de uma estreita e longa

rua. Na parede do prédio de esquina podia ler-se, sobre rectângulo negro, e

escrito a branco, como gordas letras desenhadas a giz em quadro de aula, a

designação «Rua da Carreira».

Não pôde deixar de rir baixinho e, vinte minutos depois, deu consigo junto

ao seu Solar dos Espinheiros, recuando para melhor contemplar a fachada de

cal enegrecida pontuada por desbotados varandins trabalhados em ferro outrora

verde escuro. Observou depois os dois grandes portões de madeira: um, mais

simples e tosco, ao rés da rua, e outro, mais trabalhado, encimado por um vitral

e situado no topo de uma escadaria de pedra. Ana Lima rodou então o olhar um

pouco para a esquerda e focou-o num muro decrépito acima do qual se vislum-

bravam árvores enriçadas e vegetação desordenada. Sentiu uma necessidade

súbita e imperiosa de lá entrar e ainda pensou voltar ao hotel, onde deixara

documentação e chaves da herança de Maria Augusta Lima mas, ao desviar-se

de um grupo de bem animados transeuntes, apoiou-se sem querer contra o

portão secundário do solar, sentindo, ao mesmo tempo, que perdia o equilíbrio

pois a velha porta cedeu como se lhe acompanhasse o corpo, num convite estra-

nhamente silencioso, imperioso e rápido.

A luz viva das iluminações de Natal da rua penetrava com moderação no

espaço rectangular, muito longo, que se estendia à sua frente, apenas cortado

por três arcos suportados por colunas. Devia ter sido a antiga adega e, na suave

António Fournier (Organização)021

penumbra, adivinhavam-se-lhe os vestígios de um uso antigo, tamisados por

um suave arco-íris, como se uma síntese das luzes coloridas do exterior tei-

masse em entrar. Ainda parada na soleira de pedra da larga porta, a vontade do

corpo sem pender nem para fora nem para dentro, Ana Lima reparou com

espanto que um foco avermelhado de luz se desprendia do arco-íris e ilumi-

nava a coluna esquerda que sustentava o arco do meio dos três arcos da adega.

Nesse preciso momento, a imaginação fez-lhe ver, por uns segundos, a vivifica-

ção hipotética da narrativa ouvida à mãe e que descrevia o vulto de seu bisavô

João Teodoro, desfraldado em camisa de noite antiga, como lençol de fantasma,

já morto e ainda abraçado à coluna. Um arrepio gélido percorreu-lhe o corpo e

a alma e fê-la recuar para a rua, que sabia cálida de temperatura e de gente, e

dar meia volta, apressando-se em direcção ao hotel, sem se preocupar sequer

em fechar a pesada e danificada porta que deveria ter sido a da serventia da

adega e das cozinhas do Solar.

Nas ilhas o ritmo da terra e do ar é mais lento e o saborear dos dias, gosto-

sos ou amargos que sejam, acalma com maresia a pressa do mundo. Passara-

-se quase um ano sem que Ana Lima quase desse conta disso e, perto do Natal

de 1988, deu por terminadas as obras de restauração imprescindíveis para

que se pudesse instalar no Solar dos Espinheiros, à Rua da Carreira. Transfor-

mara em atelier a imensa adega e parte das cozinhas adjacentes, aproveitando

o mais que pudera traves, vigas, madeiras, recantos, nichos, prateleiras, pipas

e armários, mantendo a grande porta que outrora fora entrada de serviço

como acesso destinado apenas ao atelier; reconstruíra, ao fundo, os desapare-

cidos e breves lances de escada, mantendo a ligação interior que conduzia a

um pátio que, por sua vez, dava acesso às traseiras da casa principal e ao jar-

dim, este ainda bastante próximo do matagal que encontrara, apesar de algu-

mas operações de limpeza. Mas Ana gostava dele assim e mandara apenas

plantar alguns espinheiros que esperava florissem de branco e dessem bagas

cor de sangue, a fazer jus ao nome do Solar.

Da parte principal do imóvel, com acesso pelo alto e largo portão enci-

mado por vitral, ao cimo da escadaria exterior de pedra, Ana Lima fizera recu-

perar apenas o essencial à sobrevivência da casa: estuques, soalhos, rodapés,

florões e frisos de gesso nas paredes, tectos e lambris, deixando, com prazer,

que o sentimento de velho solar abandonado continuasse a fazer-se respirar

e sentir. Decidira manter quase todos os quartos vazios, povoados apenas

pelas folhas secas que, do jardim, levadas por um vento leve que ali parecia

12 Meses no Funchal022

também viver, penetravam na casa pelas janelas agora quase sempre aber-

tas. Praticamente só mobilara, e muito parcialmente, o imenso salão que

devia ter sido destinado a festas ou bailes, desdobrando-o em quartos imagi-

nários: no recanto mais afastado da entrada, ao fundo, dispusera um antigo

roupeiro de porta com espelho, uma velha camilha madeirense com balda-

quim e uma caixa de açúcar vinda da área das cozinhas; noutro recanto,

mais ao centro esquerdo, um sofá de três lugares e as suas duas cadeiras de

braços, forrados a meio ponto com cenas campestres em medalhões; no cen-

tro direito, uma mesa de abas encostada à parede, ladeada por duas cadeiras

de assento de palhinha. Espalhara, por entre estes móveis, alguns almofa-

dões das cores dos vitrais das bandeiras de porta da casa e comprazia-se com

os grandes espaços que mediavam os núcleos de móveis e que separavam

estes do hall de entrada, deixado vazio na pura exibição dos seus belíssimos

materiais naturais.

Coincidência ou não, Ana Lima planeara abandonar o hotel e mudar-se

para o Solar no princípio de Dezembro desse ano de 1988 mas, nos últimos

dias de Novembro, súbita doença de Maria Augusta Lima, que levou a inter-

venção cirúrgica, mesmo que não grave, fê-la deixar a Ilha e ficar depois em

Lisboa a passar o Natal. Recuperada a mãe, passados os dias natalícios, Ana Lima,

num súbito impulso, decidiu repetir a data e hora da sua primeira viagem,

chegando pela segunda vez ao Funchal, desta vez directamente para o Solar

dos Espinheiros da Rua da Carreira, no dia 30 de Dezembro. Mas a 31, apesar

de já ter feito amizades na cidade, um forte impulso impeliu-a a tomar a deci-

são de repetir a ida solitária ao Cais da Cidade e o passeio lento pela Baixa. No

regresso, percorrida quase toda a Rua da Carreira, ao passar pelo portão de

serviço do Solar, Ana Lima não conseguiu evitar a paragem que um ano antes

fizera e, ao transpor a entrada, quase não se surpreendeu ao ver um foco

avermelhado de luz, vindo do exterior, a iluminar a coluna esquerda que sus-

tentava o arco do meio dos três arcos da adega, fazendo-a rever, por uns largos

segundos, a visão do vulto lendário de seu bisavô João Teodoro, em camisa de

noite antiga, branca e desfraldada como lençol de fantasma, ainda abraçado à

coluna. Um renovado e gélido arrepio voltou a percorrer-lhe o corpo e a alma,

fazendo-a recuar para a rua e dar meia volta, subindo em correria a escadaria

de pedra para entrar, contra seu costume, pelo portão principal. Nessa noite,

às primeiras horas da madrugada de Janeiro de 1989, Ana Lima teve o pri-

meiro de três sonhos que haviam de mudar por completo a sua visão do

mundo, o seu destino na terra e a sua missão na vida.

António Fournier (Organização)023

No primeiro sonho, ocorrido a essas primeiras horas do ano de 1989, era

noite e Ana deu por si a dançar no centro de uma clareira no meio de um denso

bosque; em seu redor ardia um círculo de fogueiras que deixavam entrever,

parcialmente ocultos pela chama, vultos que agitavam bem alto ramos da

mágica e poderosa sorveira-brava que, com as suas bagas cor de sangue, lhe

faziam lembrar os espinheiros do Solar. Ana sentiu, mais do que soube, que

estava algures num tempo da Irlanda, quando o seu nome significava fertili-

dade e abundância mas também temor. Sem que o comandasse, o seu corpo,

quando rodava, ora oferecia reflexos luminosos de amor e afecto, ora projectava

sombras terríveis e devoradoras. As vozes vindas do outro lado do círculo de

fogueiras ressoavam no seu cérebro, repetindo vezes sem conta, até ao estonte-

amento e à vertigem, e sem que ela discernisse o seu significado imediato, a

frase. «a vida está latente na morte que se oculta».

Ana Lima acordou deitada no chão gelado do lajedo da adega, sentindo-se

transformada em deusa telúrica, e logo que conseguiu erguer-se nos antebra-

ços rastejou até o que sentia serem os seus domínios, no jardim, e deixou-se

cair, imóvel, junto a um buxo de ramos de espinheiro, onde permaneceu em

delírio até ao alvorecer. Três dias depois, já recuperada, racionalizou o incidente

e o seu próprio comportamento, explicando-o pela forte gripe que se lhe seguira,

e não pensou mais no acontecimento. Já mesmo quase esquecera o estranho

caso quando, exactamente um ano depois, - e após o agora já inevitável per-

curso pela baixa funchalende e subsequente encontro com o antepassado na

adega -, às primeiras horas de Janeiro de 1990, pouco depois de adormecer, se

manifestou o segundo dos misteriosos sonhos.

Ana sabia que estava de novo numa ilha, possivelmente de novo na Irlanda

ou então num país nórdico, entre o dia e a noite, pois à sua volta celebravam-se

as festas do Solstício de Verão, início da vitória das trevas sobre a luz, quando

as árvores sagradas são guardadas por fadas. Mas em seu redor, e cada vez mais

próximos, podia reconhecer variados seres mitológicos do Bem e do Mal: drui-

das, gigantes, profetisas, elfos e faunos, ogres e fadas aproximavam-se dela

cada vez mais e uma formosa feiticeira, que parecia guiá-los e a quem chama-

vam Sidi, trazia pela arreata um bela égua vermelha cujas rédeas entregou a

Ana, dizendo-lhe que era Lai, a égua de fogo, e que a conduziria à pedra mágica

da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Mas, pelo caminho,

Ana tinha que afrouxar continuamente a cavalgada para que Lai se detivesse

junto de certos arbustos que logo se cobriam de flores brancas em tudo idênti-

cas às dos espinheiros do jardim do Solar. Quando chegaram perto de um

12 Meses no Funchal024

imenso lago, a égua de fogo transformou-se num belo cisne branco de tama-

nho desmesurado que, depois de atravessar parte do lago, se elevou nos ares e

conduziu Ana numa viagem vertiginosa por sobre terra e mar, durante a qual

o vento lhe sussurrava sem descanso, mas desta vez docemente, a frase: «a vida

está latente na morte que se oculta».

Quando Ana Lima acordou tinha a certeza de que ela e a bela égua verme-

lha Lai, depois transformada em imenso cisne branco, se dirigiam para a

redescoberta de uma ilha perdida no tempo, onde ela encontraria a pedra

mágica da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Tornou a

fechar os olhos, procurando continuar o sonho, e chegou mesmo a descer até

á adega e a abraçar-se à segunda coluna, onde horas antes tornara a ver o vulto

do bisavô João Teodoro. Deixou depois escorregar o corpo até ao chão mas

mantendo a cabeça apoiada à pedra, como se numa possível osmose com o

seu antepassado residisse o desvendamento de um segredo ou a resposta à

continuação do seu sonho. Mas este não havia de voltar antes da passagem do

ano de 1990 para o ano de 1991.

A 31 de Dezembro de 1990, Ana Lima repetiu o ritual dos anos anteriores

mas quase com pressa, na ânsia de regressar ao Solar pela porta da adega.

Desta vez havia de aproximar-se do vulto, em camisa de noite antiga e branca,

de João Teodoro. Mas quando, às primeiras horas de Janeiro de 1991, entrou

pela porta da adega não viu o vulto esperado e, em vez disso, sentiu que uma

força poderosa a guiava e a fazia abraçar-se à coluna da adega. Assim ficou até

deixar-se cair sobre o lajedo, vencida pelo cansaço e pela espectativa. Então

adormeceu e sonhou.

No seu terceiro sonho era de novo noite e Ana montava ainda o magnífico

cisne branco que anteriormente fora Lai, a égua de fogo, e sobrevoava o mar em

direcção a uma ilha deserta que ela logo imaginou ser o abrigo da pedra mágica

da poesia que une a vida à morte e o efémero à eternidade. Mas, ao aproximar-

-se, viu que a ilha não era deserta e que o cisne a fazia sobrevoar uma bonita

cidade encravada no mar, rodeada por um anfiteatro de montanhas pontuado

de pequenas luzes de casario disperso. Ana não conseguiu deixar de se sentir

decepcionada, pois sabia que numa ilha povoada não iria encontrar a sonhada

pedra mágica da poesia, mas à desilusão seguiu-se a surpresa, ao verificar que

o cisne pairava e descia, aproximando-se cada vez mais das ruas da cidade que,

de perto, estavam cheias de luz, música, vozes e côr, até a deixar pousada frente

a um muro quase em ruínas e desaparecer no ar com a rapidez de um relâm-

pago. Abandonada, Ana constatou, por si mesma, estar frente ao Solar dos

António Fournier (Organização)025

Espinheiros num tempo em que Augusto Teodoro, e depois dele João Teodoro,

e depois deste ela própria, Ana Teodoro Lima, o haviam por três vezes recupe-

rado. Ana sentiu que devia entrar pela porta principal, entreaberta já num con-

vite, e dirigir-se a um dos altos espelhos paralelos que ladeavam a entrada.

Ao olhar-se na superfície espelhada, manchada pelo tempo, viu apenas reflec-

tida a imagem de um estranho torso com cabeça de dupla face que, de perfil,

lhe falava, alternadamente e com timbres de voz diversos, ora na direcção do

seu ombro direito, ora na direcção do esquerdo:

«Sou Janus, o deus romano dos portões e das portas, das entradas e das saí-

das, do pôr-do-sol e da alvorada, dos começos e dos términus, do amor e do

ódio, da guerra e da paz, do passado e do futuro, da plenitude e da miséria. Sou

aquele que erradamente deu nome ao mês de Janeiro. E tu és um dos meus

reflexos, Ana, mulher gémea de Ani, meu irmão e deus etrusco dos céus mais

altos e insondáveis. Tal como o teu antepassado descobriu, neste solar os habi-

tantes devem assumir o poder de Ana, Ani ou ainda Aine, meu lado feminino

e ambíguo que oferece a sua fertilidade e afecto mas também a sua dimensão

sombria e devoradora. Todos comandamos as portas do bem e do mal, da luz e

das trevas, da justiça e da injustiça; todos somos entidades simultaneamente

diversas e unas e através de todos nós se manifesta a instabilidade única do

momento em que a vida está latente na morte que se oculta. Representamos o

mais que efémero instante, o limite entre fim e início, o encontro entre duas

instâncias que se tocam num instante sem dimensão, a porta entre Dezembros

e Janeiros, entre mortes e vidas. Sempre que quiseres sentir-me, desce à adega

deste Solar, coloca-te na soleira da porta e vira-te de frente para a coluna

esquerda que sustentava o arco do meio. Podes saudar-me e ver em mim o teu

reflexo de prémio ou de castigo, mas nunca me dirijas a palavra antes do final

de um tempo e o início de outro.»

Ao acordar, Ana Teodoro Lima sabia o significado da frase: «a vida está

latente na morte que se oculta»; sabia agora que o seu percurso de vida seria o

símbolo do encontro de duas instâncias que se tocam num instante sem dimen-

são, num instante que representa, para além dos paradoxos da vida e do tempo,

a incerteza do ser ou a incerteza que, afinal, guia, à sombra da morte, o per-

curso de toda e cada vida humana. Sabia que iria passar a cumprimentar o

tempo, do limiar ambíguo da porta, em direcção à coluna esquerda do segundo

arco da velha adega na Rua da Carreira, no Funchal, acenando com mão leve e

alegre, cada vez que entrasse ou saísse do Solar dos Espinheiros, pois agora

sabia qual a sua missão. A mão esquerda de Ana Lima estava pousada nas pági-

12 Meses no Funchal026

nas de um livro aberto sobre o lençol branco, um livro que ela juraria ter dei-

xado caído no chão, abandonado há já vários dias. Era, de um conjunto de

ensaios de Borges, um texto intitulado «O Tempo» e um fio muito brilhante de

luz, vindo de nenhures, sublinhava uma frase: Não poderíamos imaginar pre-

sente puro: seria nulo. O presente contém sempre uma partícula do passado e uma

partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo. E Ana Teodoro Lima

repetiu baixinho e acrescentou, muito lentamente, num murmúrio: «necessário

ao tempo... e necessário à vida».

Funchal, Janeiro de 2008

António Fournier (Organização)027

Fevereiro

Fevereiro, 1938Irene Lucília Andrade

Tudo haveria de decidir-se em Fevereiro e Fevereiro era ela nesse mês das

suas vésperas mais felizes. Ainda que houvesse um mundo enorme, cidades,

montanhas e mares, águas de todas as formas, luzes de todos os brilhos, que

lhe dissessem vulgaridades sobre felicidade e outras inflexões, ela, só ela, sabia

que Fevereiro ia dentro de si como se o mundo se resumisse ao potencial do

seu ventre. Fevereiro movia-se, circulava pela sua cabeça, envolvia-lhe o corpo,

descia-lhe até aos pés e voltava a subir.

Era suave e fresco sob a chuva com um sol mortiço coroando os beirais no

Largo do Chafariz e as carantonhas da fonte tinham naquele dia o riso protec-

tor dos anjos como se tudo à volta declinasse alegria por vê-la passar.

Entre a Catedral e os jacarandás media-se a maior avenida que alguma vez

houvera, sem que fosse preciso mais espaço, nem definições para a vida, nem

invenções de coisas por descobrir. A alegria ia assim dentro dela e mais nada.

Ali ficava o Convento do Carmo e em frente A Benamor e a loja do João onde

iria comprar um lenço. Um lenço lindo... se vissem! Para pagar mais tarde, que

o comércio facilitava o crédito aos de poucos haveres, quanto mais aos paren-

tes. Eram indescritíveis as cores e o padrão do lenço. Nunca vira um pano

assim. Imaginem o íris da seda com a supremacia do amarelo canário, um

turquesa claro raiado de branco como uma espuma assomando a praias jamais

conhecidas, que as daqui puxam para o cinza, basalto rolado, as únicas que lhe

era dado conhecer. Era um lenço de beira-mar com viagens em fundo, uma

ideia que a ninguém contou e fazia parte dum futuro que ia docemente emba-

lando no ventre.

Os canários haveriam de entoar um coro frenético, empolgante e assombro-

samente belo no viveiro do quintal, quando ela por ali andasse com o lenço nos

ombros. Amarelo atrai amarelo e por isso os canários haveriam de cantar a beleza

12 Meses no Funchal028

que exibia a sua cor. E Fevereiro continuava nos passos dela determinado e

promissor. Era um mês de algumas chuvas acautelando reservas em Aquário,

o signo do seu desejo, a arca da sua aliança, ia o Inverno no pino da metade

final, que os dias cresciam e traziam às vezes uma brisa menos fria no princí-

pio da tarde, um fiozinho subtil de Primavera e a cidade parecia-lhe o lugar

mais confortável do mundo.

Ainda raros automóveis circulavam, havia pouco tempo tinha sido retirado

o rastro do carro americano por onde uma carruagem puxada por cavalos fun-

cionava em trilho de calhas entre a Sé e a estação do Pombal. A cidade moder-

nizava-se, as lojas proliferavam, a Rua do Carmo abrira ao comércio um com-

plexo familiar que constava de chapelaria, loja de tecidos, perfumaria com bar-

bearia anexa. A Benamor publicitava a marca de perfumes da época, a gama

completa, essências, sabonetes, pó de arroz. A loja do João era a dos tecidos e

acessórios de vestuário em cuja montra o lenço pontificava um toque de irresis-

tível atracção. Esse fora um momento de supremo prazer, a hora em que deci-

dira cobrir os ombros dessa cor de sol que resplendia, amarelo canário engas-

tado numa orla de espuma e o mar anunciado em pequenas ondas de cor tur-

quesa. No seu ventre a vida continuava a saltar, Fevereiro crescia dia a dia e as

pequenas gotas dos beirais enfeitavam um orgulho de rainha a que só bastava

o domínio natural das paisagens oferecidas aos olhos, rainha seria, não por ser

herdeira de valores dinásticos, mas apenas senhora dum reinado de emoções e

enleios superior a todas as riquezas. Era magnífico o efeito dos pingos de chuva

nos beirais, teara de brilhantes que lhe ornamentava a fantasia e agitava dentro

dela um poema de sangue e amor.

As manhãs descreviam aquele mês como se não houvesse noites, que os

luares eram claros, luminosos, e tudo, como disse, porque Fevereiro era ela e a

sua grandiosa gravidez. Brevemente saberia que uma filha haveria de ser a

permanente luz dos seus dias, a quem chamaria adorada.

Uma filha a quem ofereceria a beleza do lenço posto nos ombros na hora da

maior festa da sua vida. A expectativa definia-lhe essa hora como o aconche-

gante umbral do futuro. Depois, ao longo do tempo, era só deixar que, de Feve-

reiro em Fevereiro, até muito tarde, a lucidez lhe permitisse evocar sempre o

mês mais feliz de todos os seus amores.

António Fournier (Organização)029

Março

Funchal, em MarçoFrancisco Fernandes

Esta posição é confortável... Estou de cabeça para baixo, os braços cruzados, as

mãos fechadas, fortemente cerradas, mesmo junto à cara. As pernas estão dobradas

de tal forma que os pés se juntam às mãos. O dorso está arqueado para que esta

posição seja possível. Acreditem, é mesmo confortável, embora possa não parecer.

Não consigo fazer muitos movimentos com a cabeça, mas isso não me faz

falta. Na verdade, o espaço por aqui já foi mais generoso. Altura houve em que

até podia nadar cá dentro, neste quentinho. Agora não, fico só no aconchego,

ouvindo uma batida compassada que me adormece. Não preciso fazer nada.

Alguém faz tudo por mim, e fá-lo tão bem feito que nada me falta.

Lá fora ouço vozes que falam entre si de coisas que não entendo, umas vezes

baixinho, outras mais alto. Ainda há pouco falavam da casa, do quarto para

mim, de uma pintura na parede, de datas,... Bem, não percebo nada, mas pare-

cem preocupados com algo que deve estar quase a acontecer. Não sei porquê,

mas acho que está relacionado comigo...

Outras vezes acho que falam para mim, as vozes ficam doces, sinto que me

tocam levemente. Cantam para mim. Ouço música. Essas vozes têm nome:

mãe e pai. Ela fica horas falando comigo. Ele, menos tempo, e quando me toca

é desajeitado: toca-me nas costas ou acaricia-me um pé. Ela parece saber sem-

pre onde me encontro, adivinha sempre as minhas voltas.

Tenho um pressentimento que o tal acontecimento deve estar muito perto

de ocorrer. Há uma agitação diferente lá fora. Por outro lado, a comidinha

aqui vai rareando, por enquanto estou bem, mas nunca se sabe... Falam de

mim e falam Março.

12 Meses no Funchal030

O espaço que me entala a cabeça, está ficando mais largo. Sinto que algo

me empurra para baixo, de tempos a tempos, e com intervalos cada vez

mais curtos. A batida do meu coração acelerou. Tenho fome! Não tenho

espaço para me mexer. Apetece-me espreguiçar, mas não sei como. Há vozes

estranhas lá fora.

Outra vez aquele empurrão, como se me quisessem expulsar deste quenti-

nho. E outro! E mais outro! Ouço a mãe. Ouço o pai. Há muito movimento lá

fora, a posição da mãe mudou. Isto está ficando incómodo cá dentro, a sério!

Quero sair daquiiii!!

Faço força com a cabeça, mas isto não abre. Sinto que me puxam para fora.

O espaço é apertado, não consigo sair. Esforço-me. Ouço várias vozes desco-

nhecidas. Parece que me querem ajudar a sair daqui. Já não era sem tempo!

Acho que são muitos a ajudar, mas não há maneira de sair.

Ouço gritar. Sinto que me puxam pela cabeça. Sem cerimónias! Calma aí

que isto é frágil, ainda fico com a cabeça deformada, pá! E eles a puxar

Valeu a pena mais um esforço. A cabeça já está lá fora. Agora estou preso

pelos ombros. Continuam a puxarrrrr...E já está!

Ui, esta luz... não consigo abrir os olhos. Tantas vozes. Estão a festejar.

Metem-me um tubo na boca. Ar! Ar! Quero ar! Ouço-me gritar, berrar. Sou eu

que grito assim! Estou novamente de cabeça para baixo. Atiram-me para cima

da mãe. Um rapaz????, pergunta a mãe. Um rapaz!, dizem todos.

Sou eu!

Estou numa casa pequena, na Rua das Árvores, tem um outro nome, eu sei,

é uma data, mas prefiro “das Árvores”, são plátanos, estão lá debruçados sobre

a ribeira, que ainda escorre água de uma invernia que recusa o tempo à prima-

vera que vem aí.

António Fournier (Organização)031

Por vezes passa um carro, massacrando o empedrado e expelindo fumos

para as janelas térreas da casa, que estremece. A rua acaba um pouco mais

acima, na Ponte de Pau, e depois diverge para o Caminho de D. João e o Cami-

nho dos Saltos, que nascem em forquilha, com um fontanário no vértice da

ladeira que se divide.

Da casa do lado chega o odor de pão fresco, ainda antes do sol se mostrar,

temperado pelas vozes dos que caminham para o mercado, para as casas de

bordados, para o porto, para o comércio. De permeio, há conversas acaloradas,

com restos de noite bebida.

Logo pela manhã ouço o ronco do vapor do Cabo, que chega inchado de

gente que vem da estranja e fica umas horas no Funchal, primeiro debruçados

nas amuradas enquanto decorre a manobra de fundear, deliciando-se com a

perícia dos bomboteiros que agitam toalhas bordadas, e da miudagem que

mergulha pelas moedas, que vai armazenando na boca.

Depois desembarcam em lanchas ronceiras e sobem a medo a escada lodosa

do cais, onde são novamente assediados pelo labor artesão em forma de “bor-

dado Madeira” e cestos de vimes. À beira do cais os carros de bois aguardam

para ganhar frete em concorrência com os táxis descapotáveis, ansiando por

uma volta à ilha que safe a jornada, em dia de vapor.

Uns ficam logo ali, outros encaixam-se na esplanada do Sunny Bar ou na

esquina do mundo para um café, antes de percorrerem a rua principal, olhos

na Sé e fitos no mercado.

E o frio de Março só me deixa uma breve espreitada na janela, no colo da mãe

que perscruta as horas no relógio do Hinton, perpendicular à parede da fábrica,

adornado de rendas de ferro verde.

São seis da tarde. O pai deve estar a aparecer.

Em breve chegarão à beira da fábrica os carros carregados de canas, prontos

para serem engolidos pela usina que, pontualmente, às oito da manhã, quatro

da tarde e meia-noite, apitará o silvo que avisa a mudança dos turnos operários.

Entrarão carros cheios, sairão vazios para novas cargas e longas esperas, noite

adentro, no espaço das árvores e na fronteira da ribeira.

O fumo traz o cheiro dos melaços que se cozem entre o ranger das máqui-

nas, que espremem sumo e rejeitam o bagaço seco que voltará à terra, agora

como adubo de outros cultivos.

Mais tarde sairão sacas de açúcar de tons pardos e ali permanecerão, mais

tempo, as enormes cubas de álcool à espera de outros fins.

No frio de Março, fui recebido no Funchal de 1952.

12 Meses no Funchal032

Abril

ParábolaMargarida Gonçalves Marques

Poucas coisas abalavam a pequena urbe que era o Funchal de 1920. Por isso

ninguém se admiraria que o anúncio de um casamento tivesse alvoroçado a

cidade e acordado os populares naquela manhã de Verão pleno. Raramente

alguém casava ao meio-dia na Catedral e nem sempre acontecia que a noiva

fosse a filha de um Senador da República. Daí o empenho dos curiosos de mar-

car lugar, bem cedo, no adro e arredores para não perder pitada dos mais ínfi-

mos pormenores que, mais tarde, dariam assunto para longas e apetitosas con-

versas de soalheiro.

O cortejo de carros de bois, que trazia os noivos, os familiares e os convida-

dos entre os quais, diziam os mais informados, se contavam vários ministros

vindos expressamente da metrópole, hipnotizou a multidão que se apinhava

nas imediações da Sé. Os boieiros apresentavam-se vestidos de lavado, com os

seus fatos brancos e chapéus de palhinha, e as cortinas dos carros-trenó, apa-

nhadas aos lados sob o toldo de oleado preto, resplandeciam de alvura anilada

e permitiam entrever a elegância dos trajes femininos. Tudo se conjugava para

compensar a ansiosa espera e deslumbrar a imaginação dos desocupados.

A pouco e pouco, ordenadamente e sem delongas de maior, os convidados

iam saindo dos carros e formavam pares, que se antecipavam no interior do

templo manuelino, à chegada da noiva.

E, pelo braço do pai, Beatriz apeou-se, linda como a multidão esperava, o véu

de renda descido sobre o rosto em modesto recato. Descrever a beleza da noiva

parece-me escusado. Beatriz era bela como o são quase sempre as raparigas de

dezoito anos. Tinha vivos olhos castanhos da cor dos cabelos cacheados, que

emolduravam uma face de porcelana. Mas, na opinião do velho tio Januário, os

seus pés eram motivo de especial enlevo: tão pequeninos e brancos que, no seu

estilo gongórico, ele os descrevia como «um susto de neve».

António Fournier (Organização)033

Quando já casados, José Maria e Beatriz saíram da Catedral, o povo não

lhes regateou as palmas, o arroz e as pétalas de rosa, gratificado por não

terem sido defraudadas as suas esperanças e sinceramente desejando-lhes os

melhores augúrios.

Depois da cerimónia , um almoço de requintada ementa na Quinta Pavão

reuniu os cerca de trezentos convidados. Ao fim da tarde, os noivos seguiram

em lua-de-mel para Lisboa com ternas despedidas no cais da cidade. A viagem

prolongar-se-ia por dois meses até Itália, com regresso ao Funchal directamente

do porto de Génova.

Estavam já instalados na ampla casa do Ribeiro Seco, que José Maria herdara

de uma madrinha, quando o jovem casal teve a confirmação de que o seu pri-

meiro filho vinha a caminho.

Beatriz, no meio de inegável felicidade, apenas lamentava a distância que

a separava da moradia dos pais na Rua das Mercês. Agora grávida, mais frá-

gil na sua sensibilidade, medindo as horas que o marido passava no enge-

nho de açúcar, apetecia-lhe estar todos os dias com a família, para seguir de

perto o enxoval que a mãe preparava para a criança, com rendas e bordadi-

nhos, cosido à mão, como era da praxe. E isto sem falar das peças tricotadas,

especialidade da velha avó. Outra coisa preocupava Beatriz: precisava resol-

ver as dúvidas que sempre a assaltavam, na sua estreia de maternidade,

temente de qualquer gesto desastrado que fizesse perigar a integridade do

seu menino.

E um dia, já o marido saíra cedo para acudir ao desgoverno numa das máqui-

nas do engenho, Beatriz, sentindo mais vivas as saudades dos pais e sem dar

conhecimento à velha ama que a criara e fizera questão de acompanhá-la depois

de casada, tomou sozinha o primeiro carro de bois que passava naquele fim de

mundo e ordenou ao boieiro que rumasse à rua das Mercês.

Os dois bois pequenos e mansos, de pelagem castanho-dourada, como eram

os seus semelhantes ilhéus, puseram-se em marcha, fazendo tilintar os choca-

lhos do pescoço. O boieiro, de vez em quando, dizia:

— Vem cá pr´a mim, boizinho. Vem cá.

Abril esbanjava cores, aromas e trinados e, no silêncio apenas interrom-

pido pelo ruído deslizante do carro, Beatriz inebriava-se com a generosidade

da mãe Natureza. As quintas iam desfilando com seus festões de gaitinhas

amarelas e com as nuances do roxo e do vermelho intenso das buganvílias

que se desdobravam como colchas exóticas no cinzento dos muros. Para

completar a sua euforia, ela pôde admirar, através de um portão entreaberto,

12 Meses no Funchal034

o leque rendilhado e majestoso da cauda de um pavão branco, passeando

lentamente pelas áleas de uma vivenda cor de rosa. Teria gozado plenamente

aquele dia usurpado à sua forçada clausura, não fora uma pontinha de

remorso a toldar-lhe a alegria da liberdade.

— Precisa de muito repouso- dissera o médico da família.

Só se deu conta de que algo corria mal no itinerário, quando percebeu

que o boieiro seguia por ruas e travessas desconhecidas, distanciando-se a

seu ver e cada vez mais do destino pretendido. O carro começou a deslizar

de canto a canto, em tremendos solavancos que lhe provocavam incómo-

dos terríveis.

A certa altura, numa decisão arbitrária, o boieiro, completamente embria-

gado, via-o agora, parou o carro no primeiro desvão da estreita rua e, sem mais

aquelas, estendeu-se na berma do empedrado e adormeceu, roncando em

haustos profundos e regalados.

Beatriz depressa se arrependeu da ousadia daquele passeio. Dores estranhas

atormentavam-lhe os rins e a sua agonia, por se ver só e longe de qualquer alma

conhecida, aumentava a cada instante.

Quando, passada mais de uma hora, viu sair da porta verde de uma casa

uma mulher já não muito nova mas ainda bonita, agarrou-se à ideia de pedir-

-lhe socorro.

— Ajude-me, por favor.

A outra, num breve olhar, avaliou a jovem burguesa nitidamente grávida.

Tornou atrás nos mesmos passos, abriu a porta que acabara de fechar e,

amparando Beatriz, levou-a para o interior. Foram dar a uma sala de equilibra-

das proporções, com janelas vestidas de damasco vermelho, inúmeras almofa-

das dispersas por tudo quanto eram cadeiras, poltronas e sofás e até sobre os

tapetes que amorteciam os passos num conforto asiático.

Meia dúzia de raparigas rodearam Beatriz e fizeram-na recostar-se numa

«chaise-longue» de veludo acolchoado. Olharam-na com curiosidade e simpa-

tia. Algumas eram da mesma idade que ela, bonitas como ela.

Beatriz tomou o chá de tília que lhe ofereceram e, quando a viu mais calma,

a sua anfitriã sugeriu-lhe que contasse o que acabava de acontecer para que

pudesse ser mais eficaz o auxílio a prestar.

Inteirada, a mulher temeu que a criança pudesse nascer ali, o que não con-

viria a ninguém, muito menos ao seu próspero negócio. Chamou então uma

velha, aposentada com certeza do seu ofício, e ordenou-lhe que fosse depressa

ao engenho de açúcar e trouxesse quanto antes o marido da senhora.

António Fournier (Organização)035

José Maria não queria acreditar no que os seus ouvidos escutavam. E não

sabia nem da missa a metade. A única coisa que percebeu era que Beatriz deso-

bedecera ao médico, saíra de casa sem o prevenir e fora recolhida por desco-

nhecidos depois da aventura do boieiro bêbado.

Ao chegar à morada indicada pela velha, José Maria apeou-se do trem e

não teve dificuldade em classificar a casa que dera abrigo à sua mulher. Viu

Beatriz serena, rodeada de atenções, pequena rainha no meio das suas

damas de honor. E mau grado o ambiente duvidoso, acalmou a sua ira e

engoliu a série de admoestações que trazia engatilhadas. Fez cálculos rápi-

dos. Eram sete da tarde. Em breve anoiteceria e os clientes começariam a

chegar. Tornava-se urgente tirá-la daí. Discretamente, agradeceu o bem-fazer

daquela incrível samaritana e retomou com Beatriz o trem de aluguer para-

do à porta.

Nessa mesma noite, pôs o médico a par do acontecido. Ele examinou Beatriz

e declarou não haver motivo para preocupação. Deviam ambos ficar gratos à

desconhecida que proporcionara à futura mãe umas horas de relaxe físico e

mental, abalada como ficara com o inusitado passeio.

Dois dias depois nascia- lhes o primeiro filho. A criança viera perfeita. A mãe

estava bem. As «Notas Mundanas» do Diário de Notícias local deram relevo ao

bom sucesso de Beatriz.

Quando a família começou a pensar no baptizado , seguido de uma festa

linda como impunha a entrada de um novo cristão no seio da Igreja, o nome já

tinha sido escolhido.

— Victor.

— Victor?- estranhou o avô. Não há entre nós, nem de um lado nem de outro

ninguém com esse nome. Sabe bem, Beatriz, que é tradição na nossa família

usar Alexandre, Vasco, José, Pedro ...

— Mas o nosso filho será Victor, pai – reafirmou José Maria. Estivemos a

consultar um livro sobre o significado dos nomes e vimos que Victor quer dizer

vencedor. Será Victor.

- Concorda, Beatriz?

- Plenamente, pai.

Ela trocou um olhar cúmplice com o marido. Os avós não poderiam saber

nunca que o seu neto primeiro quase viera ao mundo num bordel e que fora

graças à bondade e discernimento de uma tolerada que a criança nascera sau-

dável e a mãe resplandecia como uma rosa de Abril. Eles também não pode-

riam saber jamais que a dona do bordel se chamava Victorine.

12 Meses no Funchal036

Maio

MaioLaura Moniz

Do jardim jorrava uma cascata de flores amarelinhas que Dona Maria Engrácia

Nunes dos Santos gostava de olhar através da janela do seu quarto. Uma nesga

de Funchal surgia-lhe assim, emoldurada às vezes por buganvílias, outras por

jacarandás fecundos. Era um Maio suculento, o deste ano, e mãos cheias de mio-

sótis prometiam-se para mais tarde, dentro da forma de coração desenhada em

redor dos pés de cada uma das árvores, obedientes sentinelas daquela casa.

Dona Maria Engrácia Nunes dos Santos fechou os olhos para apreciar aquele

lado da existência que mais a dominava – saborear as cores e os sabores que

estas sugeriam e o sorriso que estes lhe desenhavam sobre os lábios antes que

se tivessem de repente endurecido num rito social.

Dona Maria Engrácia Nunes dos Santos inclinou-se e estendeu a mão para a

pequena sineta que tinha a seu lado. Era altura de chamar a nova empregada e

saber o andamento das ordens que lhe dera. Não que esperasse duma servente

algo mais do que dizer se acabara ou não as várias voltas que lhe atribuíra.

Gostava de ver nos olhos das criadas de campo o tom de subserviência, o sor-

riso de plástico de ocasião que punham para as patroas e para os patrões, o

revirar de insolente humildade das suas mãos por detrás das costas, ou, nas

mais jovenzitas, o agarrar desesperado das saias rodadas e dos aventais, para

não caírem de vergonha e medo.

Dona Maria Engrácia tocou a sineta e esperou. Veva apareceu percorrendo a

alcatifa sem rumor. Era um dia solarengo e a sua figura alta não deixava sombra

sobre as estantes, nem sobre o desbotado papel de parede, nem sobre o piano

velho, nem sobre o tom mais claro das jarras e jarrinhas e bibelots de porcelana

que Dona Maria Engrácia coleccionara durante toda a vida.

Dona Maria Engrácia antegozava já a sua primeira reprimenda à recém che-

gada. Um só deslize, um só esquecimento, uma só nervura encarquilhada do

António Fournier (Organização)037

tempo que lhe destinara enchê-la-ia de prazer. Mas Veva respondera com pre-

cisão e desenvoltura e Dona Maria Engrácia perdera, pela primeira vez na vida,

uma batalha contra uma serviçal.

Eram três da tarde. Dona Maria Engrácia tinha descido ao Funchal. Cha-

mara o taxista que a deixara ao pé do Golden Gate. Calcorreara a Avenida

Arriaga, debruçara o olhar para o topo dos edifícios citadinos, como se visitasse

a cidade pela primeira vez, enveredara a seguir, sem pensar, pelos habituais

trilhos de memória e chegara à igreja de São Pedro onde fizera as suas habi-

tuais orações. À saída tivera os habituais dedos de conversa com as senhoras

suas amigas. Tecera os habituais elogios ao esplêndido mês de Maria de sua

veneração e enviara as suas costumeiras invectivas à juventude cansada que

nada devia ao tempo que ela vivera. Era conhecida pela sua devoção e obras de

caridade e participação no círculo de beneficência da cidade. Dona Maria Engrá-

cia fora a esposa modelo, a jovem perfeita, a irmã adorada, a viúva infeliz e fiel,

a mãe de honestos filhos e era agora a senhora elegante e fina, de entre as

senhoras finas e elegantes do Funchal. Dona Maria Engrácia, com pele rosada,

lábios delgados, cabelo branco, olhos azuis de anjo, só lhe faltavam as asas para

chegar ao céu. E todos achavam que no céu havia já um lugar reservado, tão

incorruptível e inquebrável parecia cada fibra do seu carácter e da sua paciente

e nobre vida de funchalense.

Dona Maria Engrácia dirigia-se para casa agora e o sol de Maio brilhara durante

todo dia. Apetecia-lhe descansar sob os ramos das árvores de casa bebendo um

sumo de maracujá, sonhando com um verão de praia no Porto Santo. Beberia

sumos e comeria saladas e contaria velhas histórias aos netos e seria o paraíso

– falar-lhes-ia da sua juventude transcorrida impecavelmente, do seu casamen-

to com o falecido marido, desfiaria o seu infindável leque de memórias perfeitas

e felizes onde não havia lugar para fome, nem miséria, nem guerras esquecidas,

nem labutas incómodas, nem sufocos inúteis e vãos de plebe.

Era Maio e num dia assim Deus pavoneava-se despudoradamente pela ilha.

Dona Maria Engrácia, sentada no táxi, agradecia à única divindade que conhe-

cia a vida admirável que tivera. Agora chegaria a casa, entraria, depositaria a

mala sobre o divã, retiraria o lenço do pescoço, calçaria as sandálias amarelas,

envergaria o seu vestido mais leve, pois era Verão, um verão prematuro, diria à

criada que lhe preparasse o lanche, transportaria o seu corpo de 79 anos para o

jardim, estender-se-ia sobre o cadeirão, abriria um dos seus livros preferidos,

respiraria o ar da tarde profunda e sacramente, e diria sou feliz. Sou perfeita.

12 Meses no Funchal038

Tenho uma vida imaculada e santa. A mim ninguém nunca apontará com o

dedo. E iria sentir a sua pele de pêssego acariciada pelo ar quente da tarde, as

suas faces encherem-se de suor delicado, o perfume channel entrar-lhe pelas

narinas lembrando-lhe a sua ociosa e próspera realidade de todos os anos.

Dona Maria Engrácia abriu o portão de ferro da sua casa na parte alta da

Rochinha. Através deste o jardim bombardeava os visitantes de perfumes flori-

dos e irisados. Dona Maria Engrácia atravessou o seu Éden escondido, acari-

ciada por verdes tons e garridas cores inesperadas. A entrada principal da sua

casa era talvez uma das mais bonitas do Funchal, uma espécie de jardim secreto

e fantástico que poucos conheciam. Nada ao acaso. Nem os ramos que se agita-

vam contrariavam o calendário quotidiano da sua existência. Nem as pedrinhas

do jardim tinham sido dispostas de forma a irritá-la ou contrariá-la. Havia um

coração para cada árvore desenhado no chão, havia uma mão cheia de flores

para cada estação, para que nada ali faltasse. A parte mais importante da casa,

dizia ela, era ou o jardim ou então a cozinha. O coração de toda a existência

estava subordinado à decoração desses espaços, os momentos de lassidão e

desespero curavam-se no sono, o despertar e a acção deviam-se unicamente ao

que os olhos viam e a boca saboreava. Como uma religião. Como a construção

de uma catedral. A catedral da sua vida assentava sobre esses eternos pilares de

energia. Cor e sabor. Olhar e boca. Jardim e cozinha.

Dona Maria Engrácia abriu a porta que dividia a sua sombra entre a cozinha

e o jardim. Qual não foi pois o seu espanto quando, chegando à sala e olhando

através da janela, viu Veva atarefada sobre o jardim, banhando-o com a sua

sombra, invadindo-o com a sua existência. Dona Maria Engrácia nesse momento

sentiu um baque feroz no coração, uma vertigem que a dividiu em duas. Uma

delas não recordou. O que esquecera, esquecido estava e ela não recordou. Sen-

tiu apenas um calafrio inusitado e regressou ao quarto. Eram cinco da tarde

quando ouviu uma sirene e nesse momento a outra parte de si achou que estava

a acordar. Ainda não pusera o casaco de lã que retirara do roupeiro. Tivera um

grande esquecimento. Vestiu o casaco lentamente. Os seus braços começavam

a cansar-se de repente. Deviam ser cinco da tarde quando ouviu a sirene. Depois

ficou à espera. A campainha do portão tardava em tocar. A sirene devia ser para

ela. Dona Maria Engrácia intuíra que a campainha e a sirene, não de ambulân-

cia, deviam ser para ela. Como se tivesse estado à espera ao longo desses anos,

uma longa viagem de comboio perante paisagens deslumbrantes, e só o bater

ligeiro das asas da viagem sobre a sua cabeça. E durante a longa viagem ela

ainda não recordara nada. A recordação era importante mas ela não se lem-

António Fournier (Organização)039

brara. Ainda. E o sol continuava a brilhar por cima da sua cabeça e a sua vida

por mais umas horas continuaria a fazer sentido e o bater do seu coração con-

tinuaria em lenta cadência a acompanhar o dlinguedlongue do relógio de

parede, imperturbável perante as formas desregradas da existência, regular

como o voltejar de borboleta da Lua em volta da Terra. Dona Maria Engrácia

continuaria à espera dentro de casa, olhando os movimentos no jardim, a cala-

midade do fim do dia abatendo-se com o sol dourado, depois vermelho, que se

esvaía no horizonte.

Veva tinha uma única fotografia do tio mais novo. Veva era pequenina

quando o tio a levantara no ar com os seus braços fortes e lhe tentara dizer

– isto era o que lhe contava a sua mãe – que tinha trazido do Funchal uma botas

azuis, novinhas, de verniz, para ela. Veva era pequenina mas, de cada vez que

o tio aparecia lá em casa, deixava-se encantar com o som da voz do tio Carlos

que trabalhava no Funchal e por isso raramente conseguia ir a Machico. Veva

era pequenina e eram demasiado pobres para procurarem o tio Carlos quando

este tardou meses em aparecer, e depois anos. Veva cresceu a pensar nas botas

azuis que o tio lhe trouxera e na única fotografia que este deixara de si, pegando

nela ao colo, com aquele ar pasmado que ele tinha. O tio Carlos era um gigante

peludo que pouco falava e que, quando ela chorava, a levava ao colo e lhe can-

tava cantigas de embalar que mais ninguém em Machico conhecia. O tio Carlos

cheirava à erva dos jardins do Funchal e tinha mãos calejadas, rosto escuro,

tostado, o mais humilde do mundo. Tinha um colar, um fio de prata com um

pendente em marfim, o seu único tesouro. Veva lembrava-se da máscara escul-

pida, um dos olhos perfurados no qual ela enfiava raminhos de erva enquanto

o tio cantava e ela deixava de chorar.

A mãe de Veva dissera-lhe que o tio um dia voltaria, fora ao Funchal com-

prar mais umas botas e andava muito ocupado. Veva sentava-se muitas vezes

na beira da estrada, com pés descalços, esperando o tio com as botas novas

vindas do Funchal e só chegando à adolescência é que percebera que às vezes

há viagens sem regresso e talvez a viagem do tio tivesse sido uma dessas. Em

Abril de 2007, com a mãe adoentada que já não conseguia bordar à noite, Veva

decidira procurar um trabalho para ajudar a pagar as contas. Vira um anúncio

no Diário de Notícias do Funchal. Procuravam uma empregada para uma casa

particular, ofereciam cama e comida. E Veva lá fora para uma entrevista e

tinha sido aceite. Começara a trabalhar no dia 9 de Maio. Conhecera o filho da

Senhora Dona Maria Engrácia e habituada que estava a tarefas domésticas e

12 Meses no Funchal040

todo o tipo de lida caseira não lhe parecera nada de impraticável. Tinham com-

binado que começava na segunda semana de Maio, que se apresentaria à nova

patroa pela manhã. Veva contara à mãe que iria servir numa nova casa, na

Rochinha, e a mãe dissera-lhe sem fazer muito caso ah sim pequena... teu tio

trabalhava na Rochinha antes de mudar de trabalho.

Veva não pensava no tio Carlos quando começou a limpar o jardim. Aquela

zona parecera-lhe descurada, pouco limpa, algumas folhas caídas, um

pedaço de gesso que despontava no meio da erva, talvez a falta de jardineiro

permanente e a insistência da senhora em tratar sozinha das plantas e do

jardim. Veva achou que podia ajudar, afinal tinha acabado todas as voltas que

tinha para fazer e ainda lhe sobrava espaço nesse dia, dois dias de trabalho

não lhe tinham parecido nada extenuantes e pela tardinha do dia seguinte

tinha telefonado à vizinha para poder falar com a mãe e contar como era a nova

patroa e o novo trabalho e que até tinha tempo para limpar o jardim. A mãe

dissera-lhe que em Machico o tempo não estava mau mas que uma espécie

de nevoeiro estava a entrar pelo mar adentro. Não se lembrava de outro dia

assim na sua vida.

Falaram de muitas coisas, de galinhas, de bordados, da telenovela preferida,

e depois Veva voltou para casa. A senhora Dona Engrácia esperava o jantar e

que lhe preparasse o banho e não a iria deixar sair mais tarde para telefonar.

Veva retirara as folhas soltas de todo o jardim, mondara o terreiro, varrera,

podara, limpara aqui e ali, por puro prazer. Sentia a brisa fresca que vinha do

mar, o cheiro húmido de Maio. Olhando a linha do horizonte vira as nuvens

baixas que iam cobrindo a cidade, o sol que brilhava por cima encontrava um

cobertor espesso de vapor.

Quando puxou o pedaço de gesso que despontava no meio das flores fê-lo

sem pensar. Puxou, num gesto normal e distraído, até encontrar inesperada

resistência. A conclusão fugaz do momento foi: um ramo, afinal não é gesso.

E foi puxando até sentir nos dedos uma forma perceptível, sólida. Só então

olhou. Só então viu o colar. Ficou-se a olhar esse momento mudo. Revirou o

marfim nas mãos sujas, tentou enfiar um dedo na agora mínima entrada da

máscara. Começou a vir-lhe de longe a verdade. O tio chegando a casa com as

botas novas na cidade.

Nesse instante Dona Maria Engrácia chegava transportando o ilusório sol

do seu último dia de amnésia. Depois chegara-se à janela. Dona Maria Engrá-

cia viu. Viu tudo. Veva com mãos nervosas que afastava a terra e as plantas

António Fournier (Organização)041

daquele pedaço de jardim e que descobria, escavando a terra húmida, o que

um dia fora um pescoço, um crânio, um tórax. Veva que enfiada no tórax

encontrava aquela faca que há anos desaparecera do faqueiro preferido de

Dona Engrácia. Veva que, em câmara lenta, se levantava e afastava para olhar

melhor, para perceber melhor, com a mão direita fechando o pedaço de mar-

fim, e depois olhava na sua direcção. Dona Engrácia cujo olhar se fixara sobre

a faca vira Veva, a única batalha que não ganhara, caminhar lentamente para

o portão. Veva que saía. Dona Engrácia que dizia está despedida e que, duas

agora, uma delas esquecida, voltara ao quarto para ir buscar um casaco. Para

onde iria certamente faria frio.

12 Meses no Funchal042

Junho

JuneMaria Rosa Basílio

gosto de ir a casa da avó

a minha mãe deixa-me ir sozinha é perto desço a minha rua passo no largo entro

no beco que cheira a enxofre e saio no torreão junto aos dois plátanos enormes há

uma fonte pública com duas bicas atravesso para o outro lado desço as escadas são

quinze degraus subo uma pequena rampa e chego ao alpendre cheio de vasos de

fetos e avencas e sansevérias e jarros no meio está uma mesa com uma toalha posta

em losango com um vaso de avencas à volta cadeiras de ripas

a porta está sempre encostada a minha avó é surda pode não ouvir bater

subo ao primeiro andar no cimo da escada há um relógio de pé alto que dá as

horas vou ao quarto de jantar e ponho-me à janela a ver correr a ribeira que ali

defronte soa melhor porque bate e faz remoinho numas pedras um pouco mais

abaixo as buganvílias estendem-se de um ao outro lado da ribeira

gosto dos móveis de carvalho claro estilo inglês e da cómoda miniatura que

é da prima irene que vive nos açores e a deixou ali quando vinha do brasil

cobiço-a mas a avó ignora o meu desejo a irene tornou a passar para o brasil

mas não levou a cómoda que não sei que fim levou

gosto de estar à janela da minha casa

estamos no são joão a bandeira passou à nossa porta seguram-na uns miú-

dos atrás estão os mordomos e mais atrás ainda os músicos a bandeira é linda

no fundo está desenhada a figura do santo de túnica curta e sandálias e com o

cordeiro às costas a minha mãe deu-me uma moeda preta que joguei na ban-

António Fournier (Organização)043

deira quando passava o meu avô às vezes é mordomo porque tem uma loja na

rua da carreira que pertence à freguesia do santo

a minha mãe gosta de ir ao arraial de são joão eu também gosto vamos a pé

porque é perto da nossa casa a minha mãe gosta de chegar antes das dez da

noite porque depois aparecem muitos romeiros e não conseguimos entrar na

capela que é pequena e fica logo a tope

a capela está cheia de cravos brancos e vermelhos e a rua da ribeira está

enfeitada com ramos de murta gosto dos seus pequenos frutos que me lem-

bram tabaibos estrancinho-os com os dedos para sentir-lhes o cheiro

o ar rescende a carne de vinhadalhos e o meu pai escolhe a tasca onde vamos

cear quase sempre a minha mãe discorda esperamos que haja uma mesa livre

e sentamo-nos eu tomo sempre uma laranjada os meus pais bebem sangria de

vinho doce e comem iscas de carne de porco a minha mãe diz que em casa a

carne nunca sabe assim tão bem eu como uma isca de bife de atum com molho

depois de comer ficamos um pouco a escutar a música a banda de que mais

gostamos é a dos artistas

outras vezes vamos cear a casa da avó atum salprezado e batatas cozidas com a

pele pimpinelas e feijão cozidos com a casca gosto quando ficam com sal a mais

às vezes a avó traz para a mesa algumas cebolas de escabeche que sobraram do

natal eu e os meus primos comemos na cozinha na mesa comprida onde há sem-

pre café na cafeteira coberta com um tapa bule e pão grande no cesto de verga

a noite de são joão é sempre mágica ouvimos contar histórias de encantos e

feiticeiras o fernão aproveita para nos meter medo quando estamos sentadas

no banco de correr da cozinha num dos pés ele põe uma corda fininha que

puxa e o banco começa a andar

no centro da mesa está um candeeiro de petróleo que projecta sombras dis-

formes são feiticeiras diz o fernão e a rita e a teresa dão gritinhos de medo e a

tia filó vem à cozinha ver que gritos são aqueles

a tia filó namora há muitos anos com o vieira na noite de são joão ela quer

sempre saber se vai casar com ele ou não deita azeite num copo com água e

12 Meses no Funchal044

procura adivinhar o significado da figura que se forma outras vezes faz a

sorte com um ovo acabou solteira e com a mania de ir ver casamentos em

são pedro e na sé

as primas e eu prendemos uma chave num fio de cabelo que suspendemos

sobre um copo a chave oscila bate no rebordo as vezes que bater dão a letra do

nome do homem com quem casaremos

mas o encanto maior é ir ver a sombra no mar vamos até à parte redon-

da do fim do cais ali estou eu projectada com os meus pais sou tão peque-

na estou de mão dada com a minha mãe que bom para o ano estaremos

todos vivos

são só um quarto de quilo mas são tão bonitos e cheiram tão bem

a minha mãe encarregou-me de partir a fruta para a salada é quinta feira

de corpo de deus a família virá para ver passar a procissão a minha mãe fez

bolo de nata tirada do leite durante duas semanas há canja e sandes de

galinha e de carne assada a salada de fruta não pode faltar há anos em que o

ananás vem dos açores mandado pelo tio jorge

gosto do cheiro que o ananás deixa nas mãos corto a laranja de umbigo que

também veio dos açores já deitei a papaia tem uma polpa macia é a vez de cor-

tar os morangos gosto de ver-lhes o coração é um fruto lindo os que parto

cheiram bem pena serem só um quarto de quilo

neste ano saio na procissão levo a farda branca do colégio quando pas-

sei à minha porta estavam todos à janela a ana sentada em cima de uma

almofada parecia uma boneca a minha avó está contente porque a neta

saiu na procissão

as ruas por onde passámos também se enfeitavam com murta levei um

raminho para casa cheguei já era alpardinho estavam a beber os licores feitos

pelo meu pai e a minha mãe falava na verbena de são pedro que é o seu santo

predilecto diz sempre com orgulho que nasceu na freguesia de são pedro que

é onde moramos agora

António Fournier (Organização)045

o colégio fica ali ao lado este é o mês do sagrado coração de jesus inter-

rompemos as aulas ao meio dia quando toca a sineta vamos para a capela

rezar a ladainha

estamos na aula de inglês a dona gabriela a nossa elegante professora per-

gunta-nos qual o mês do ano em que os dias são maiores entreolhamo-nos não

sabemos ela junta os lábios grossos e pintados de vermelho une-os em forma

de beijo e diz “june”

15 de Novembro de 2007

12 Meses no Funchal046

Julho

Ruas de JulhoVítor Sousa

Já muito tempo se passou desde que me semearam nos tempos desta

cidade. Séculos. Nasci e penei longe, na Mouraria. Pelo bulício daquelas ruas,

rumorejavam apelos de novos Mundos, e era de Belém, diziam, que partiam

naus e caravelas para os lugares impossíveis da quimera. Não compreendia a

ânsia daqueles que queriam dilatar o Mundo, quando a pequenez do meu já

era de uma infinda dor. Um dia, bêbado, arrastei os pés descalços pelos solos

torcionários, mas apagou-se-me a consciência durante a viagem. Não me

lembro de chegar a Belém, mas lembro-me de que nunca mais regressei ao

bairro onde gostava de agonizar, para viver a morte onde nasci. Muitos anos

depois, quando o sonho de morrer na Mouraria se desfazia no degredo da

segunda descoberta, descobri-me, quase anónimo, nas letras de um poeta.

Nem velho era, mas converteram-me no “velho do Restelo”. Até compreendo

que, com o bafo do vinho rasca que deveria inquinar o ar quando vomitava

agoiros, aquele poeta semi-cego me visse velho. Perdoo-o. Mas nunca lhe

perdoei ter sido, por ele, roubado ao berço, impondo-me o Restelo. Redimiu-

-se, porém, com uma nova mentira, atribuindo-me um “aspecto venerando”

que o fingimento poético exigia.

Eu detestava o Restelo, porque de lá via as águas, e aquela opressora linha do

horizonte. Na minha alienação de bêbado, o sufoco aumentava perto das águas,

porque sentia o fio do horizonte aferroar-se à garganta, esmagando a imensi-

dão do meu nada. Nunca tinha confessado o medo que o mar e o rio me infun-

diam. Não podia fazê-lo, aliás, porque não tinha amigos. O meu verbo era

mudo lá fora. Só tinha voz dentro de mim. Mas, naquela manhã de Julho que

se eclipsou nas brumas da memória, eternizando-se em letras de um fulgor

alheio, o meu medo infiltrou-se, clandestino, na armada que zarpava, anteci-

pando monstros nebulosos nas águas plácidas do Tejo. Deverão ter tentado

António Fournier (Organização)047

calar-me, não sei. Mas sei que me puniram, detendo-me num calabouço.

Depois, lançaram-me na turbulência dos meus temores, e exilaram-me num

local de onde não podia fugir deles.

Era uma ilha. Ilha da Madeira, como a baptizaram. Cheguei à ilha numa

tarde fúlgida de Verão. Se certas estavam as contas do meu desespero, corria o

mês de Julho. Depois de tanto tempo, sei que, naquela tarde, nasceu o triste

fado da minha eternidade, noutros. Quando lá cheguei, desembarquei sem

mais nada para além do ferrete do ostracismo. Ao meu lado, muitos abandona-

vam a caravela curvados pelo peso do estigma, mas só eu sangrei a virgindade

daquela terra. Caí e amparei a minha implosão com as mãos. Fitei-as, e no

caudal de sangue desfilavam as almas feridas das esquinas.

Comecei, desde logo, a trabalhar a terra virgem, desflorando-a com as minhas

mãos de tantos chãos. Os homens trabalhavam sem tréguas, porque se avolu-

mava a crença na elevação daquela vila a cidade, por graça régia. Roubávamos

à terra o ar selvagem e puro, vestindo-a com as cores da civilização. E a civili-

zação não se fazia sem a cruz inquisidora. Por ordem do Rei, grande parte dos

recursos foi canalizada para a construção de uma Sé opulenta, perto do mar. O

Rei, de filiação divina, queria que a Sua omnipresença fosse perceptível logo à

chegada, e por isso os homens aproximaram a Cruz de Cristo dos céus. Por

insistência minha, trabalhei nos pormenores finais da Cruz. Queria, lá em

cima, sentir-me mais perto de um céu em que não acreditava, e de uma divin-

dade que me abandonara. Nos escassos minutos de descanso, enquanto os

companheiros de degredo regressavam ao solo, eu levitava sobre aquele mar

de funcho, e sussurrava ânsias e segredos à liberdade que voava. Ainda hoje,

séculos depois, as minhas ânsias de liberdade elevam-se quando uma gaivota

pousa no cimo de uma cruz, e os meus segredos viajam nos trinados crípticos

que ela oferece ao vento.

Desde a minha chegada à ilha, percebi que, para me cumprir como implo-

são, não podia coabitar, sempre, com o chão. Só cai quem se eleva, e eu, naquela

condição rastejante, nem queda conseguia ser. Quis ser, então, a altura, pelo

que solicitei a minha inclusão nos trabalhos da torre sineira. De manhã, esca-

lava os andaimes, já com o escasso farnel que me garantia o dia. Trabalhava,

comia e repousava lá em cima, na minha miséria alta. Por essas alturas, a soli-

dão era descontínua, já que mantinha algum contacto com um navegador

proscrito, acusado de incitar uma rebelião de escravos, durante a viagem para

a ilha. Não o abordei, porque nunca abordava ninguém. Mas ele reconheceu-

-me. Disse-me que integrava a armada que partiu de Belém, na manhã esque-

12 Meses no Funchal048

cida da minha eternidade. O seu discurso jorrava, candente, mas mutilei-o

porque só uma curiosidade me satisfazia, e nenhum mundo novo me interes-

sava. Então, soube que o fio do horizonte era ilusório, como um adiamento

constante. Recebi a novidade com um suspiro indefinido, abafado por um

escarcéu festeiro. A graça régia havia chegado, finalmente. Eu não sabia viver

sem os meus medos.

A comemoração da elevação a cidade foi longa e ruidosa, como só as festas

religiosas conseguem ser. No templo, um aglomerado indefinido agradecia a

Deus e ao Rei o Reinício. Nesse dia, um novo pedido fez-me sineiro. Vi e ouvi

tudo, através de uma frincha no telhado. Depois de o Corpo de Cristo ser aco-

lhido por saciados e famintos, era a hora de ressoarem os sinos. Irromperam

badaladas estranhas, guturais, num som em gradual definhamento. Nas faces,

os trejeitos dubitativos duraram pouco. Todos sabiam por quem dobravam os

sinos, mas ninguém soube quem com eles se dobrava. Com a corda apertada

ao pescoço, desfiz-me naquelas badaladas secas, e vivi a minha morte numa

dor sem horizonte.

Nem o meu adeus pude escolher. Se fosse poeta, reinventava-me só para

poder morrer num alívio. Mas todas as cidades precisam de uma alma escura,

pelo que a Cidade do Funchal não podia nascer amputada. Votaram-me a um

novo degredo, desta vez fragmentado pelas esquinas promíscuas. Ao longo dos

séculos, quase tudo mudou nesta cidade que vi nascer, e não me deixa morrer.

Os tempos deram novos matizes ao sangue e sabores renovados à dor antiga.

Angústias sem rosto petrificaram-se em calçadas museológicas, e anciãos

falam de ruelas onde já não podem morrer.

Ruelas onde já ninguém pode morrer, menos os loucos, que também me

herdaram. Todos os anos, eles descem até ao centro da cidade, num ritual

apócrifo de consagração aos guardiães ocultos da cidade. Julho. “Julho é o mês

do nosso orgulho”, vociferam. Quando alguém os aborda, alegando que “Nin-

guém vos percebe”, riem-se com o despudor de sãos bêbados, e respondem

que “Ninguém não existe”.

Em Julho, principalmente em Julho, a alma velada do Funchal exibe-se,

com todo o mórbido esplendor da fidelidade à dor. Desde os adros das igrejas,

os homens das esquinas, em silêncio, assistem ao tropel de destinos cruza-

dos. Asseguram a identidade da cidade quando os nativos tiram férias dela, e

estrangeiros as invadem. Alguns erram pela cidade, num silêncio soturno e

curvado. Por vezes, quando vêem um louco a gritar o absurdo calado, des-

viam-se ou escondem-se, porque sabem que a cidade só lhes reserva as esqui-

António Fournier (Organização)049

nas se respeitarem o pacto do silêncio. De outro modo, desfazer-se-iam na cal

asséptica que consome a loucura. Muitos loucos, quando compreendem,

finalmente, o apelo de silêncio da cidade, calam-se e abrigam-se em esquinas

renovadas. Mudos, vivem durante todo o ano a lealdade desprezada, mas não

lamentam a sua sorte. Assumem o legado da alma obscura, e convertem-se

em escudeiros lúcidos de uma cidade em trânsito imóvel. Uma cidade de

Ninguém. A cidade deles.

Quando os homens abandonam as esquinas, andam com a palma das mãos

viradas para o alto, e fitam-nas com uma intensidade hipnótica. Têm nas mãos

todas as ruas do Funchal, em plantas sobrepostas desenhadas a sangue por

gerações de quedas. Os mais velhos, que herdaram linhas traçadas por poeira

e pedras, ainda hoje, cansados, procuram novas ruas para cair e dormir.

Durante o dia, todos jazem nos adros das igrejas, ou nas escadas de uma

capela, movidos por impulsos que não controlam, nem compreendem. Quase

sempre, no alto, uma gaivota sobranceira acompanha-os no silêncio, perscru-

tando a cidade. Ambos partem quando repicam os sinos tumulares de mais

um dia. Nessas badaladas, eu canto os lamentos seculares daquelas almas que

a cidade ignora.

Alguns homens não regressam às esquinas, no crepúsculo, e caminham por

camadas extintas da cidade, perdidos num tempo paralelo. Quando desapare-

cem, diz-se que foram morrer em ruas que já não existem. Nas ruas de Julho,

que só nós recordamos, memórias de uma cidade de Ninguém.

12 Meses no Funchal050

Agosto

Agosto Nelson Veríssimo

Agosto só motiva quem muda de terra. Voltar à ilha, ficar pelo Funchal com

um trabalho da Faculdade para fazer, destinado a uma cadeira irremediavelmente

remetida para a segunda época de exames, arrasava o mês de supostas férias, ora

soalheiro ora sombrio. Os meus amigos estavam no Porto Santo ou nas Caná-

rias. O bar do Teatro, para mim, estava mesmo vazio. Andava com aquele caderno

de notas, aconselhado no curso, à procura da história que não aparecia.

Se a história recomendada fosse de livre escolha, estaria safo. Havia mulhe-

res despertas para amores secretos que nem a pura ficção suplantaria. Mas o

tema proposto não se compadecia com encontros estivais. O professor solici-

tara episódio insólito da emigração madeirense. Faltava-me paciência para pro-

curar velhos emigrantes e descobrir aventuras singulares em arraiais de Verão,

por essa ilha de festas em continuados fins-de-semana.

Havia uma jovem de cabelos negros que falava entusiasticamente das festas

em São Vicente, numa dessas tardes de café. Não conseguia entender aquele

seu arrebatamento, e ela desafiava-me a lá ir. Talvez por ser mais velho e estar

pouco habituado a essas festas que agora atraíam a juventude para os velhos

arraiais. Pormenorizadamente, ela descrevia-me, com particular afecto, a dis-

coteca ao ar livre e as muitas barraquinhas. Vinha-me, porém, à memória ima-

gem diversa. Era a banda de música no coreto, brincos e despiques esganiça-

dos, a procissão, a espetada nos braseiros e muitas pessoas que, apinhadas,

subiam e desciam ruas estreitas, umas alegres, outras a cumprir o ritual.

A moça de cabelos de azeviche não parava de falar da festa dos Lameiros e

da animação que por lá costumava existir. Eu necessitava de uma história,

uma boa história, relacionada com a emigração madeirense, e que me poderia

render uma nota elevada na disciplina final da licenciatura em Jornalismo. O Fun-

chal parecia esgotado. Pelo dia, contava o bronzear. As noites tinham pouco

António Fournier (Organização)051

interesse. Uma monotonia. Nem a música conseguia arrancar das cadeiras

imperturbáveis bebedores. Havia casais de turistas mais folgazões, umas

moças estrangeiras interessantes e as habituais da terra nas esplanadas e

bares. São Vicente pareceu-me hipótese interessante. Pelo menos, ficaria a

saber o que tanto entusiasmava aquelas meninas, com casa arrendada para o

fim-de-semana glorioso nos Lameiros.

Com automóvel emprestado, lá me decidi a conhecer o arraial predilecto da

juventude. Nada de especial, em princípio, pude constatar. Boa música. Muita

cerveja. Grande movimento. Diversão com muitos copos, e pouco mais. De modo

que decidi espreitar as mercearias e bares das redondezas. Gente mais velha.

Aqui poderia estar a chave. O segredo era ouvir. Descobrir os embarcados, acer-

car-me deles e desencantar a cobiçada história.

Havia conversas exaltadas sobre a Venezuela, sem qualquer proveito. Assal-

tos a supermercados e fazendas, sequestros e pouco mais. Sem pronúncia cas-

telhana, um homem já idoso, de vez em quando, lembrava que, na África do

Sul, tudo era diferente. E nada mais adiantava. Fixei-me nos seus gestos e pala-

vras. Parecia esconder qualquer coisa. O chapéu de palhinha não lhe cobria só

a cabeça. Por muito que lhe perguntassem as razões da diferença, ele agarrava-

-se ao copo e sorvia largo gole de cerveja, sem deixar escapar qualquer explica-

ção. Eu também bebia cerveja no canto do balcão, indiferente às conversas do

grupo que me rodeava. A jovem de cabelos negros bem se esforçava por me

desviar daquele posto de observação, mas, dizia-lhe baixinho, que me parecia

divisar ali a ponta de uma boa história, o que ainda mais a aborrecia.

Fora para Jornalismo por gosto, apesar de não receber apoio consensual de

familiares e amigos mais próximos. A média do 12.º ano permitia-me escolher

outro curso. Prevaleceu, todavia, a primeira opção e, já quase no final da licen-

ciatura, podia afirmar que fora correcta. Não estava, porém, habituado a traba-

lhar em Agosto. Aquela malfadada disciplina a isso obrigava. Julgo que o objec-

tivo era incutir nos futuros jornalistas a ideia de que em qualquer mês se pode-

ria fazer uma reportagem, ou, melhor, de que haveria que inventar notícias

para um mês de agenda política menor. O homem, que sempre lembrava as

diferenças da África do Sul, apercebeu-se da minha insistente atenção às suas

enigmáticas frases soltas. De repente, deixou o grupo e dirigiu-se para o largui-

nho em frente da mercearia.

Aproveitei o momento e acerquei-me. Desconfiado, perguntou-me se era da

polícia. Expliquei-lhe que estava ali por causa das amigas que me acompanhavam.

Elas tinham-me convencido a conhecer a festa dos Lameiros. Verdadeiramente,

12 Meses no Funchal052

o que pretendia era uma boa história sobre emigrantes, por causa do curso que

frequentava, e aproveitava o tempo para ver se conseguia ouvir alguma coisa inte-

ressante. Apesar destas explicações, o homem não parava de me fazer perguntas,

sendo a última sobre a minha intenção ou não de publicar essa história em algum

jornal. “Não. Ainda não sou jornalista. É só um trabalho para o curso e com nomes

fictícios.” Voltou a entrar na mercearia e pediu mais uma cerveja, colocando-se no

mesmo lugar. Defronte, imitei-o na bebida.

Passado algum tempo, saí convencido de que ali nada conseguiria obter.

E deambulei pelo espaço da festa até às sete, hora em que habitualmente termi-

nava. Numa das minhas fugas ao grupo, cansado com a estridência da música,

encontrei o homem das diferenças, e perguntei-lhe se ia ou não explicar-me as

suas razões. Confessou, então, que não era dali. Nascera e vivia também no

Funchal. Só estava nos Lameiros pelos amigos e por uma mulher, já bem velha,

que nos últimos anos habitava naquele sítio, na companhia de uma filha viúva.

Naquela maior aproximação, convidei-o para um encontro tranquilo no Fun-

chal. Ele concordou: na terça-feira seguinte no bar junto à porta principal do

mercado, por volta das 10 h.

Esperei-o pontualmente no dia aprazado. Quando chegou, já eu tomava

um café na esplanada. Sentou-se e pediu também um café com leite. Foi difí-

cil o retomar da conversa. O ambiente também não ajudava. Pessoas que

entravam e saíam do mercado. O trânsito nas ruas circundantes. Turistas que

fotografavam a fachada. Depois de muitos rodeios, haveria de brotar a histó-

ria que me fez passar na famosa disciplina e deixou-me o resto de Agosto

livre para outros devaneios:

“Eu fui para o Cabo ainda nem tinha 15 anos, com uns primos meus mais

velhos. A gente arranjou trabalho na pesca num navio duns rapazes duma

freguesia da costa de baixo. Eu não sabia pescar, nem nadar. Mas tudo se

aprende. O pior é que um dos pescadores da embarcação resolveu tomar

conta de mim, sem eu pedir. De tudo o que eu ganhava tinha que lhe dar

metade. Às vezes, escondia o que recebia a mais, mas ele ameaçava-me e

batia-me. Cada um deles tomava conta de um novato, dizia-se, e a todos iam

exigindo metade dos salários. Assim, eu não conseguia amealhar nem man-

dar nada para a Madeira, para a minha mãe se sustentar e depositar no banco.

Falavam que noutros barcos também era igual. Passaram-se cinco anos e não

conseguia levantar cabeça. Ele dizia que se eu não entregasse o dinheiro ia ser

perseguido, e até podiam matar-me. Um meu primo, mais chegado, tinha

António Fournier (Organização)053

vivido o mesmo, mas conseguiu livrar-se do seu protector depois de uma vio-

lenta rixa. Então, enchi-me de coragem e, quando a gente estava a pescar em

mar alto, dei-lhe um empurrão, abiquei-o, e até hoje ninguém mais soube

dele. Foi dado por desaparecido, em acidente de trabalho. Depois mudei de

embarcação, e nunca mais me fizeram uma daquelas. Carrego com isto para

a cova, mas olhe que só assim consegui fazer a minha vida. E à mãe desse

malvado, nos últimos anos, mando sempre entregar algum dinheiro, quando

vou à festa dos Lameiros, só porque sei que ela precisa.”

12 Meses no Funchal054

Setembro

Violante, olhos de marHelena Marques

Subo à torre da Casa Grande para olhar o mar. Venho todas as tardes, mesmo

quando uma bruma espessa e leitosa desce das montanhas e cobre campos,

ruas e casas com um véu de mistérios. O mar é como o tempo: indecifrável e

inquietante na sua infinita capacidade de surpreender. E embora o mar conti-

nue a não trazer notícias de Estêvão e o tempo persista em não anunciar a

minha iminente entrada no mosteiro, este espaço de solidão e de silêncio que

todos entendem e respeitam nesta casa, contribui para reconciliar-me com as

incertezas da minha vida. Os avós, minha única família, envelhecem visivel-

mente, de mês para mês, procurando manter a mesma confiança no regresso

de Estêvão. Mas porque eu própria já não consigo afastar premonições e temo-

res de solidão, decidi assegurar-lhes com tranquila e inabalável convicção que,

se Deus entender chamá-los à Sua presença antes de Estêvão vir reclamar a sua

prometida, poderão partir em paz, porque saberei honrar o pacto estabelecido

com eles e assumirei, de alma serena, os votos monásticos.

Venho todos os dias à Casa Grande, porque D. Maria de Noronha, minha

madrinha, que foi amiga dilecta de minha mãe e mantém por minha avó pro-

funda estima, sempre me franqueia as portas e o coração e me acolhe como

se sua filha fosse. Para aqui chegar, tenho apenas de atravessar o jardim, pois

foi nas suas vastas orlas exteriores que fizeram casa as famílias mais próxi-

mas do capitão-donatário. É um prazer quotidiano percorrer este enorme

espaço, rico em flores de múltiplas espécies e cores, que crescem em exube-

rância sob as frondosas copas de árvores robustas e nobres, árvores nativas,

desconhecidas no Reino, sobreviventes do grande incêndio que, há muitas

décadas, abriu espaço, lá em baixo, para a construção da cidade. Foi assim que

aprendi pela voz de meu avô, Afonso Peres, escrivão que foi, na juventude, de

João Gonçalves Zarco, o primeiro capitão-donatário do Funchal, e cumpre as

António Fournier (Organização)055

mesmas funções, mau grado os anos, junto de seu filho e sucessor João Gon-

çalves da Câmara, o senhor desta cidade, desta gente e desta casa, em nome

de El-Rei Dom Manuel.

A Casa Grande, que toda a cidade conhece por Casa das Cruzes, foi constru-

ída num lugar alto, sobranceiro à baía, bem perto da Igreja da Conceição de

Cima, a que o novíssimo Mosteiro de Santa Clara se apoiou para crescer. Quando

D. Isabel de Noronha, freira clarissa em Beja, regressou ao Funchal para assu-

mir o alto cargo de primeira abadessa do mosteiro de Santa Clara, os meus avós

levaram-me à praia para assistir ao desembarque da filha mais velha de João

Gonçalves da Câmara e D. Maria de Noronha, aos quais uma bula papal havia

recentemente concedido o padroado do mosteiro. Porque minha avó tinha ensi-

nado D. Isabel e todos os seus irmãos a ler, escrever e contar, tivemos fácil e

rápido acesso à nova abadessa. Apesar de eu ter apenas sete anos nesse Inverno

de 1497, recordo claramente o carinho com que D. Isabel abraçou minha avó, e

a minha própria emoção ao fazer-lhe a vénia e beijar-lhe a mão. E recordo, tam-

bém, a curiosa excitação de me encontrar tão perto da nau que trouxera as mon-

jas de Lisboa e que me pareceu maior do que olhada de longe, da torre da Casa

Grande, mais volumosa e mais sólida para enfrentar com segurança a vastidão,

o poder e os perigos do oceano, de que sempre ouvira falar.

Acompanhei, depois, os meus avós às cerimónias religiosas que assinala-

ram, festiva e solenemente, a inauguração do convento há tanto tempo espe-

rado pelas gentes da Madeira, que sempre e muito tinham sofrido ao ver partir

para o Reino as jovens que respondiam ao apelo da vocação monástica.

Apesar da clausura imposta às clarissas, D. Maria de Noronha tinha rece-

bido do Papa permissão para visitar suas filhas (D. Joana também tomara véu

em Beja e regressara à Ilha com sua irmã), podendo fazer-se acompanhar de

algumas familiares e amigas. E foi assim que me tornei frequentadora assí-

dua do convento, atenta às histórias que ouvia contar às monjas, e logo fervo-

rosa admiradora de Clara e Francisco de Assis, esses eleitos de Deus que

encontravam, no serviço e no bem dos outros, paz e alegria para cantar as

maravilhas da Criação.

Ao longo dos meses e anos seguintes, acompanhei minha madrinha,

inúmeras vezes, nas suas frequentes visitas a Santa Clara. Enquanto mãe e

filhas conversavam em terna alegria, compensando as saudades do prolon-

gado afastamento, passeava eu pelos jardins e pelos claustros, na compa-

nhia de jovens freiras ou noviças, quase todas amigas e companheiras de

D. Isabel e D. Joana, com elas vindas do convento de Beja ou a elas reuni-

12 Meses no Funchal056

das, em comunhão de fé, na hora jubilosa da chegada. Sempre gostei, par-

ticularmente, do claustro gótico, com as suas austeras arcadas de pedra e o

seu jardim central, zelosamente tratado. E também me agradava muito o

jardim dos cheiros, essa pequena horta, junto das cozinhas, onde cresciam

dois esguios funchos e um loureiro e eram cultivadas plantas igualmente

odoríferas, como a hortelã, os orégãos, a segurelha, a salsa, a erva cidreira,

a erva doce e tantas outras, destinadas a ser utilizadas, com sabedoria e sub-

tileza, na confecção das refeições e da delicada doçaria que se tornou famosa

em toda a Ilha.

Não tenho a menor dúvida de que serei, no mosteiro, tranquilamente feliz.

Sofrerei, por certo, a ausência definitiva de Estêvão – mas também a sofreria, e

talvez mais dolorosamente ainda, se permanecesse no mundo. Agrada-me o

silêncio da clausura, apenas cortado pela voz dos sinos. Aceitarei sem reserva

as regras e a disciplina. Gosto das orações e dos cânticos, da paz e da solidão

pessoal - e espero que D. Isabel, na sua indulgência, me permita subir à torre

da Igreja e olhar o mar, como faço aqui, na Casa Grande. Se tiver de entrar no

convento, a única dor que levarei é a de ter perdido Estêvão, é de Lisboa o ter

levado de mim.

Perguntei, uma vez, ao meu avô, como era a vida na Corte. E ele, naquele seu

modo lento de quem pesa pensamentos e palavras, respondeu-me que na Corte

tudo se passa como aqui na Ilha, só que numa escala muito mais vasta e numa

medida muito mais sumptuosa, mais complexa também, em que os ricos são

incomparavelmente mais ricos, os pobres tão pobres como os nossos mas em

muito maior número, e as intrigas mais vis, ínvias e traiçoeiras – enfim, dema-

siada gente, demasiados enredos, tramas e tumultos para um soberano gerir e

superar, a par dos pesados negócios do Reino com o resto da Europa e do cres-

cente avanço dos Portugueses pelos mares desconhecidos.

Não sei se partirei, algum dia, numa nau, rumo à Corte. Não sei. Mas gosta-

ria tanto… E fico-me a imaginar como será uma viagem pelo mar e pelo tempo,

que sentiria eu se percorresse os caminhos das ondas, se perdesse a terra de

vista e ficasse apenas, dias e dias e dias, entre céu e água, entre nada e nada.

Será belo ou assustador? Ou belo e assustador ao mesmo tempo? Imagino que

será muito belo e um pouco assustador. O avô diz e repete que só os insensatos

não respeitam o mar. Eu respeito o mar, sem dúvida que respeito, e sei que teria

medo de uma tempestade, teria pavor das vagas altíssimas e dos ventos indo-

máveis, como meu pai terá sentido por certo. Mas se me fosse dado viajar até

ao Reino, como viajou Estêvão, correria o risco sem hesitar. Entraria na nau

António Fournier (Organização)057

sem temores e ficaria na amurada a ver as gaivotas regressarem à praia e a terra

desaparecer na distância. E permaneceria apoiada à amurada a olhar o mar,

incansavelmente a olhar o mar, à espera do porto desconhecido.

Quando quer arreliar-me, o avô chama-me Violante-olhos-de-mar. E explica

que não é apenas porque a cor dos meus olhos passa do azul ao verde, percor-

rendo todas as tonalidades intermédias, mas também (continua ele, troçando

de mim) porque é da contemplação do mar, das tempestades que o escurecem

até ficar azul escuro, da concentração de algas que o torna verde ou das calma-

rias que lhe devoram toda a cor, que esses cambiantes se alimentam. O avô ri

do meu embaraço, mas eu não levo a mal os comentários porque sei quanto me

quer bem e apenas pretende distrair-me da saudade dolorosa e permanente dos

pais que quase não tive. E essa saudade perene, essa profunda mágoa, essa

imensa nostalgia de um amor que não me foi dado receber, explicarão por

certo, e melhor do que qualquer outra coisa, as sombras que por vezes me obs-

curecem os olhos e lhes retiram a luz e o brilho. Penso, até, que essa orfandade

de alma nunca irá desaparecer dentro de mim – ou então desaparecerá somente,

e por graça especial de Cristo Nosso Senhor, no dia em que eu própria gerar

uma criança, um filho de Estêvão, e puder dar-lhe todo o amor que não tive

tempo de receber de meus pais e que, repetidamente o pressinto, me será então

devolvido com abundante generosidade.

Minha mãe morreu quando eu nasci, minutos depois de eu ter brotado dela

num último espasmo de dor. Colocaram-me nos seus braços que se estendiam

para mim. O seu rosto exausto e exangue iluminou-se ao aconchegar-me ao

peito e um sorriso de bem-aventurança entreabriu-lhe os lábios para logo se

apagar. Meu pai fechou-lhe os olhos, olhos de mar, olhos de morte, ajoelhou no

chão, junto da cama, e deitou a cabeça encostada à dela.

Dois anos depois, meu pai desapareceu num naufrágio, quando a caravela

em que seguia para Porto Santo, em missão do capitão-donatário, foi apanhada

por uma tempestade de ventos cruzados e se desfez contra os rochedos da

Ponta de S. Lourenço.

As únicas memórias que guardo de meus pais, inestimáveis memórias, são

os retratos de ambos, muito jovens, pintados por um mestre flamengo, um

desses homens sempre curiosos e ávidos de viagens que, na época áurea do

açúcar, vinham de Antuérpia à Madeira fazer a entrega pessoal de pintura sacra,

encomendada pelos ricos comerciantes locais para suas residências e capelas.

Alguns desses mestres pintores aceitavam pequenos trabalhos, enquanto aguar-

davam a partida de uma das naus que rumava aos Países Baixos, carregada de

12 Meses no Funchal058

açúcar. Os retratos de Simão e Leonor, meus pais, fixados na incomparável per-

feição da juventude, comovem-me até às lágrimas: encontro em minha mãe

estes meus olhos de mar de que fala o avô; e no meu pai, as mesmas sobrancelhas

alongadas para as têmporas sob a testa alta e o mesmo cabelo castanho claro, cor

de favo de mel, igual ao meu, segundo diz a avó.

Uma das razões por que subo, todas as tardes, à torre da Casa Grande é ver

as naus e as caravelas acabadas de chegar, como se me fosse possível adivinhar

a presença, em alguma delas, de uma carta de Estêvão – ou do próprio Estêvão.

Já lá vão três anos, tinha eu quinze, quando mestre Filipe Anes, seu pai, regres-

sou ao Reino, respondendo à chamada irrecusável de Francisco Arruda, mestre

de obras reais, então a trabalhar na construção do Mosteiro dos Jerónimos.

A mulher e os filhos partiram com ele, naturalmente, mas ficou firmado, entre

as duas famílias, o compromisso de Estêvão regressar logo que estivesse ini-

ciado na arte de trabalhar as cantarias, segundo os novos padrões alusivos aos

descobrimentos. Em três anos, recebi apenas quatro cartas de Estêvão, cartas

de muito bem-querer e confirmação de todos os nossos projectos, é certo, mas

tão poucas, tão espaçadas no tempo, que me deixaram marcas de insatisfação e

amargura. Procuro vencer a tristeza chamando-me à razão, obrigando-me a

raciocinar com lucidez e bom senso, repetindo, uma e outra vez, para mim

mesma, que são longas e acidentadas as viagens, sempre incerto o seu destino

final, impõe-se manter a fé e a confiança.

Procuro distrair-me olhando a cidade que não cessa de crescer a Oriente, em

torno da igreja de Santa Maria do Calhau, onde vivem os artesãos e suas famí-

lias. As ribeiras, que ficarão caudalosas e turbulentas com as chuvas de Inverno,

traçam riscos sinuosos de Norte para Sul, das montanhas até ao mar, e as pontes

de madeira que ligam as margens, começaram a ser substituídas por pontes de

pedra. Esta Casa das Cruzes onde me encontro é, sem dúvida, a mais nobre e

imponente da cidade, embora a nova classe abastada dos comerciantes de açú-

car comece a afirmar sua ascensão e importância com casas sobradadas, assen-

tes no antigo Campo do Duque, cerca da Sé, da Alfândega Nova, da Casa do

Concelho e do Paço dos Tabeliães, uma urbe nova e nobre que, segundo diz meu

avô, será em breve o verdadeiro centro do Funchal. Algumas dessas casas sobra-

dadas, com cobertura de telhas, ostentam pequenas torres, corpos centrais ele-

vados acima do telhado, com janelas nas quatro faces, que permitem uma exce-

lente visão do mar e da sempre esperada chegada das naus e caravelas.

Também os moinhos de açúcar cresceram por todo o lado e multiplica-se o

seu nome na toponímia da cidade: Largo dos Moinhos, Travessa dos Moinhos,

António Fournier (Organização)059

Beco dos Moinhos, Rua dos Moinhos. Até ao próprio mar se estendeu já a

influência do açúcar produzido nos engenhos locais, tornando-se comum,

Europa fora, falar da rota do açúcar como se todos os caminhos conduzissem à

Madeira, trazendo prosperidade para uns, é certo, mas deixando os que mais

trabalham na mesma vil e apagada miséria.

Passos leves estão a subir a escada, mas nem olho. Será, por certo, uma das

crianças em busca de companhia e de uma história, ou trazendo-me qualquer

recado. Mas nem olho. Continuo virada para poente, os olhos vagueando pelo

mar, acompanhando a eclosão do crepúsculo que, neste findar de Setembro, já

se reveste da majestade e do fulgor que atingirá o apogeu com o avançar do

Outono. O sol está tão baixo que incendeia o mar e a terra, acende brilhos e

reflexos, ouros velhos, vermelhos densos, laivos roxos, que cintilam e se mul-

tiplicam na ondulação das águas. Estêvão esteve aqui, comigo, em inúmeras,

inesquecíveis vezes, em crepúsculos como este. Partilhámos tantos momen-

tos semelhantes, unidos na quieta contemplação da beleza perdulária do

poente, dominados pela majestosa, gloriosa despedida do sol, que é como se

sentisse de novo o seu corpo a colar-se suavemente às minhas costas, numa

viva e quente evocação, numa dádiva mágica da memória. Mas logo uns bra-

ços familiares envolvem os meus e uma boca inesquecível percorre-me a nuca

e os ombros. Percebo então que não se trata de um fantasma provindo da

minha saudade desesperada. E volto-me dentro do seu abraço e sorrio como

sei nunca ter sorrido na vida, e olho-o com toda a paixão, com toda a luz da

minha imensa alegria.

No andar de baixo, soam risos e palmas. Estêvão e eu descemos a escada ao

seu encontro. #

12 Meses no Funchal060

Outubro

Aguarela de um outubro melancólicoMaria Aurora Homem

É outono.

Sinto-o nos pingos de água que como uma cortina, fecham o meu olhar

estendido pela praça. Aconchego-me num malvasia perfumado no canto da

esplanada e releio um poema de Baptista. Quando levanto os olhos já o sol,

fulgurante, se instala sobre o repuxo prateado, a centrar a ampla praça. Gosto

destes pequenos momentos que recorto na convulsão dos dias. Revoadas de

pombas baixam da grande árvore de fogo, rompem da torre e despenham-se

dos beirais à mão do milho que ondula no ar.

É outono e chuvisca a espaços. Estou só e adoro esta solidão propositada.

A fachada da Igreja do Colégio no seu maneirismo e aparente rigidez jesuí-

tica enquadra um canto da praça e convida à meditação. Em frente o municí-

pio, palácio oitocentista de equilibrada elegância limita-a a norte e alinha-se em

múltiplas varandas e janelas a vasculhar o que lhe passa à porta. Leda e o Cisne

pousam no jardim interior. Dois ciprestes rematam a frente, em arcos, do Palá-

cio Episcopal e a escadaria é um convite assinado a açúcares e a sonhar a Flan-

dres em roteiros de arte.

É outono, o sol foi-se, caem sombras sobre a paisagem, sombras leves, ras-

gadas a tempos por résteas de luz.

Não sei se te amei no comboio do Vouga a resfolegar pelas serras beirãs. Ou se

te inventei nas margens do Sena, na descida dos Champs Elysées ou nas areias do

Chambre d’Amour em Biarritz, talvez na mansarda de Rue Royale de Sainte Marie

em Bruxelas, ou no Blue Hoot em Düsseldorf. Possivelmente quando te aconche-

guei ao peito na Casa das laranjas ao rés duma levada em Câmara de Lobos.

É outono, penso em ti, deixou de chover, sinto-me menos só.

Pela praça um grupo de políticos polemiza apressado com ar de quem

manda. Uma sobranceria típica de pequenos ditadores espartilhados em fatos

António Fournier (Organização)061

escuros e gravatas exuberantes. Um padre de sotaina apertada minuciosa-

mente desce as escadas do Colégio. Atravessa em passo miúdo a malha preta e

branca que atapeta o chão. Quatro crianças de bata azul debruçam-se no fonte-

nário onde agora se pendura um arco-íris. E de novo uma chuva muito fina

empurra os passeantes para a protecção das portas.

É outono. E estou à tua espera numa tarde incaracterística, cheira a malvasia

e a terra molhada.

O meu olhar vai trazer-te de longe, acima de quem passa, o corpo recortado

na moldura da praça, o passo elástico, os ombros levantados, cabelo aloirado a

descair na testa. Pareces-me neste momento, a esbanjar juventude, um atleta

na maratona da vida. Mesmo de muito longe sei que és tu. E que chegarás pon-

tualmente como nas outras tardes (eu adianto-me sempre, sobressaltada).

Estás mais perto: a mão a afastar o cabelo da testa, a alisar a face, a descair

no bolso direito. A cara a abrir-se num sorriso jovem. A tua boca aflora o meu

rosto. Acredito que saibas do meu coração alvoroçado, da intensidade da minha

ternura, deste amor tenro que se encostou a estes dias outonais em que tudo

parece esmaecer à nossa volta.

Não sei quantas vezes te amei desde que te instalaste nos meus olhos talvez

nos campos de Tours, nas noites de serenata na Sé Velha, nas corridas de toiros

de Pamplona, no Trastevere num setembro aloirado, em Sintra, na Estalagem

da Raposa ou sentados no Louvre enfeitiçados ao olhar de Gioconda ou no Prado

extasiados com as meninas de Velásquez. Talvez num bar de hotel ao sabor

dum gin tónico ouvindo o João Luís a tocar Gershwin. Certamente num terraço

sob o Cabo Girão a ouvir Albinoni de madrugada.

É outono. Estás comigo. E chove. E saboreio um malvasia e estendo o olhar

sobre esta praça e esbarro com o obelisco nacionalista que Raul Lino aqui dei-

xou rematado com as armas da cidade. Ficarás o tempo exacto de tomar uma

bica. Tens o mundo todo à tua espera.

A chuva sossegou. Apressadas, as pessoas cruzam-se na praça. Parece-me

que o sol se pôs no teu olhar. Aceno-te uma despedida. É tarde na tarde deste

outono sereno. É outono. Também em mim. Tenho 70 anos. E preciso destes

momentos para segurar a vida.

12 Meses no Funchal062

Novembro

No Funchal, o maquinistaAntónio Fournier

o coração abandona o corpo

para apanhar o último comboio

Yao Jingming

Em memória de Ernesto Leal

Não sei se sabe, meu jovem amigo, no fundo as melhores respostas são

aquelas que se dão a perguntas inexistentes. Mas está bem, aprecio a sua

curiosidade. São as iniciais do meu nome: Ez Loomis. Mas isto não é um livro,

é só um pequeno caderno onde vou anotando as minhas impressões. Sabe, é

preciso paciência para traduzir a memória em imagens. Paciência e algum

sentido de humor. Viajar é uma guerrilha constante contra o esquecimento.

Quando se começa a viagem depois é sempre difícil parar. E quando isso acon-

tece, há a tendência a cair na melancolia. Por isso evitamos estar parados

muito tempo no mesmo lugar. Somos como árvores sem raízes. É como se

com o tempo as nossas raízes no mundo se tornassem fluidas, aquáticas, olhe,

um pouco como esta cidade.

Sim, sempre fui um viajante. Está-me no sangue. Quando era criança tinha

um caderninho como este e passava horas a desenhar os enormes navios trans-

atlânticos que fundeavam diante da minha cidade. Li recentemente que o Nef-

talí Reyes tem uma locomotiva em sua casa em Isla Negra. E não era o Stelio

Éffrena que tinha um navio de guerra verdadeiro entre as árvores da sua pro-

priedade num lago não longe daqui? Percebo-os. Abandonaram a vida de

nómadas, mas é como se continuassem a viajar numa dimensão paralela. Pes-

soas como eles têm muita dificuldade em resistir ao apelo da viagem. Nas

António Fournier (Organização)063

noites de luar, sentem como que uma agitação no sangue, aquele arrepio que

percorre o corpo todo antes da partida. Então, levantam-se e entram nas loco-

motivas ou nas canhoneiras dos seus sonhos. São como sonâmbulos. Sonham

a vida que tiveram. Creia-me, são poucos os que têm essa sorte.

Tem razão, já explico: imagine ontem quando cheguei, uma criança em

terra firme, entretida a desenhar barcos da janela do seu quarto. Diga-me: não

lhe parece que para aquela criança que vê ao longe o comboio em que eu viajo,

a atravessar a laguna rente ao espelho de água, é como se visse um navio a

atravessar a linha do horizonte? Agora imagine, quando ainda havia comboios

e barcos a vapor como no meu tempo. Então era a mesma coisa: uma chaminé

a deitar fumo ao longe. É natural que aquela criança se ponha a imaginar para

onde irá aquele navio, que paragens desconhecidas visitará. Invejará a sorte

dos passageiros, imaginá-los-á aventureiros, românticos, destemidos. Sonha

que está dentro daquele navio que vê ao longe.

Agora veja a ironia: eu que estou naquele comboio, que não conheço aquela

criança, nem ela me conhece a mim, de repente passo a estar dentro do seu

sonho. Eu que passei a vida a viajar, estou na sua linha de horizonte. Mas já não

na minha. É esse o meu dilema. Aquela criança preferia estar no meu lugar, e eu,

se calhar, hoje, preferia estar no lugar dela. A certa altura, percebi que o que pro-

curava, tinha deixado para trás. Quando pensamos ter finalmente encontrado o

que procurámos a vida inteira, somos já diferentes, irreconhecíveis a nós mes-

mos. Quer simplesmente dizer que crescemos. Como o gato, que tem sete vidas,

e precisa de morrer seis vezes para conhecer a última. Olhe, é como se começasse

aqui hoje, terça-feira, um de Novembro de 1966, uma nova vida para mim.

Sabe, na minha terra havia um homem, a quem chamavam wizard of the

north, que um dia saiu de casa decidido a conhecer o mundo, e se pôs a cami-

nhar, sempre ao longo da costa, com a linha do horizonte ao fundo. Viajou

durante semanas. Viu os barcos a passar ao longe, assistiu ao nascer do sol,

atravessou os campos, encharcou a roupa à chuva e caminhou ao sol, cantou nas

feiras, venerou os mortos e adormeceu a olhar as estrelas. Depois de ter cami-

nhado muito, um dia reconheceu à sua frente a porta de casa: tinha voltado ao

ponto de partida! O feiticeiro descobriu que afinal vivia numa ilha. Foi preciso

ele fazer essa caminhada para perceber realmente o que isso significava. Pois

bem, também eu sou uma espécie de aprendiz de feiticeiro, ando a fazer o meu

percurso circular, só que a uma ilha muito maior.

Sim, lembro-me muito bem da minha infância. Passava as noites a obser-

var o Atlântico. Às vezes, a lua surgia inteira e ficava a cintilar sobre as águas.

12 Meses no Funchal064

Era uma lua de coral, um enorme olho frio e inquietante parado no céu. O seu

reflexo escorria até às ruas da minha cidade que se abriam para o mar, e a noite

entrava assim lentamente nela. Era como se um rio de esquecimento a sub-

mergisse. Ficava tudo hipnotizado, imerso naquela luz pálida. Outras vezes

não havia lua e o céu não se distinguia do oceano. As estrelas confundiam-se

com as luzinhas dos barcos que passavam ao longe. Punha-me a observar todo

aquele tráfego nocturno, aqueles pequenos periscópios de luz. Era estranho.

Para onde iam, porque é que não tocavam a ilha? Ficava triste. De vez em

quando chegava um navio vindo do horizonte. Era uma estrela cadente, e eu

fazia um pedido. Quando chegavam vários ao mesmo tempo, o coração estre-

mecia de felicidade e eu adormecia sonhando que viajava naqueles cascos vaga-

bundos. Sabe, quando penso na minha infância, é como se fosse um sonâm-

bulo. Tenho sempre o mesmo sonho, quer que lhe conte?

A primeira coisa que sinto é uma aragem fria debaixo dos pés. De repente

abro os olhos. Olho à volta, um pouco assustado, e vejo que o meu quarto não

tem tecto nem paredes, é noite, o céu está cheio de estrelas. Tento levantar-

-me, olho para baixo e então apanho um susto. Nada, não há nada debaixo dos

meus pés. Estou suspenso no vazio! Oiço o vento na folhagem, olho de novo

para cima e apercebo-me que estou pendurado a uma árvore, mesmo à beira

do abismo. Sou um enorme coração verde que palpita, uma anona presa a um

ramo frágil. Pouco a pouco vou-me habituando à situação, é uma sensação

agradável, é como se eu fosse uma substância pura, sublimada. A certa altura

vejo um enorme veleiro a aproximar-se suspenso e silencioso, as velas enfu-

nadas, a âncora pendurada no vazio. Por detrás, uma lua enorme paira no céu.

O veleiro passa mesmo por cima de mim, vejo-lhe as luzes acesas, o casco

escuro, luzidio. A âncora roça na copa da árvore e eu vou agarrado a ela.

Sabe, tenho pensado que andar de barco é um pouco como voar. Se pensar

bem, estar num barco no meio do oceano é como estar suspenso sobre um

abismo. Se calhar é por isso que na minha ilha damos aos barcos nomes de

aves: Bútio, Falcão, Gavião. Como vivemos cercados pelo mar, é como se esti-

véssemos condenados a viver nas montanhas, como se sentíssemos uma espé-

cie de nostalgia da planície. O vale está escondido nas profundezas do oceano.

Observando-o do alto, o mar parece mesmo uma muralha azul que esconde da

vista o que está do outro lado. Não é difícil para uma criança pôr-se a imaginar

o que haverá por detrás dele. É difícil explicar esta sensação. Numa cidade plana

como esta, vendo um navio, não tenho a percepção do seu ponto de partida

nem de chegada, é um único plano em movimento. Mas quando o mar é visto

António Fournier (Organização)065

de cima, um barco que parte parece um caracol que vai subindo a parede dei-

xando atrás de si um rasto branco, e depois a certa altura desaparece. Fica uma

nuvem ao longe, um indício de mistério.

Você também vive numa ilha, não? Gostei muito da primeira impressão que

tive deste lugar. Ontem havia uma greve e os comboios estavam todos atrasados.

Estava muito cansado, tinha dormido pouco e a viagem parecia interminável.

Chovia e o nevoeiro cobria tudo. Percebi a certa altura que estava a atravessar o

mar. Estava sozinho na carruagem, e ouvia o barulho cadenciado do comboio a

deslizar nos carris e no entanto estava a andar sobre o mar! Não havia dúvida,

via a água ali mesmo, a brilhar. Às tantas, ouvi o chiar característico de um com-

boio quando trava. Compreendi que tinha chegado. Apeei-me, havia vapor por

todo o lado, estava frio, era como a toca de uma moreia gigantesca. E foi ao sair

dela, aos primeiros raios do sol, que me deparei com este cenário inesperado, o

aspecto etéreo dos palácios como nuvens pairando sobre as águas, os reflexos

dourados das abóbodas, o verde-garrafa da água como um veludo macio. Apa-

nhei um choque, vi uma cidade que parecia nascer das águas.

Bem vê, para mim uma estação ferroviária é como uma câmara escura, con-

serva a memória de todas as partidas e de todas as chegadas. É como atravessar

uma passagem secreta entre o estado sólido e o gasoso, que é a matéria dos

sonhos. Entrar nesta cidade assim é como se me tivesse sublimado numa outra

dimensão. Foi como se tivesse chegado às portas de Atlântida, percebe. Na

minha ilha, conta-se que quando o nevoeiro vem do mar e cobre tudo, ouvem-

-se vozes numa língua estranha, sons de baleias, há quem diga que em certas

circunstâncias, se chega a divisar palácios fabulosos quase ao alcance da mão.

A avó Vicência contava que uma vez estava a pôr a roupa a enxugar. O sol via-se

mal, coado pelo lençol. De repente viu sombras humanas. Afastou o lençol e...

nada. A planície oceânica estava calma como azeite. Está a ver, é como se eu

tivesse afastado o lençol e esta cidade tivesse surgido aos meus olhos ainda a

escorrer água, novinha em folha.

Estou hospedado aqui perto, nas Zattere, o meu hotel fica mesmo junto ao

canal. Não podia ter escolhido melhor lugar! Estive entretido até há pouco a

ver os barcos a passar. Cheguei a uma conclusão: aqui de manhã, os grandes

navios passam todos na mesma direcção, saem para o alto mar, imagino. Esta

manhã passou um grande transatlântico branco com a chaminé amarela e

um enorme C pintado. Pus-me a imaginar: quem sabe se aquele navio não irá

aportar justamente à minha ilha? Está a ver o paradoxo de que lhe falava?

Pensar que aquelas pessoas poderão estar daqui a uns dias num lugar onde já

12 Meses no Funchal066

não ponho os pés há quase cinquenta anos! É por isso que lhe dizia que habi-

tamos sempre o sonho de alguém.

Lembro-me que quis ser um viajante no dia em que conheci o capitão Marks.

Na minha ilha, havia um serviço fluvial de steamboats. Transportava forasteiros

até à nascente do rio que era um famoso local de vilegiatura, onde havia vários

hotéis de luxo e jardins frescos e misteriosos. Era um lugar onde o tempo pare-

cia ter parado, envolto numa atmosfera féerica e cosmopolita. Ali, no meio do

oceano, longe de tudo, veraneavam reis, príncipes e nobres vindos de toda a

Europa. Vinham para se curarem das doenças do frio e da alma naquela cidade

amena, cheia de bananas e papaias, sob a qual pairava uma nuvem de spleen.

Era uma cidade povoada de anjos louros e diáfanos, só que feridos de morte.

Tossiam e um besouro vermelho aflorava aos lábios. Eu e os meus amigos cos-

tumávamos ver todos aqueles viajantes passar, todas aquelas fardas e vestidos

elegantes, todas aquelas línguas estranhas, parecia um circo exótico que desfi-

lava diante dos nossos olhos. O nosso maior sonho era ser tripulantes daquele

steamboat, como Mark Twain.

Você viu Mary Poppins? O capitão Marks era como o almirante Boom. Lem-

bra-se do almirante Boom? Aquele oficial da marinha reformado, que tinha

apetrechado o sótão da sua casa como a proa de um barco, e todos os dias, a

uma determinada hora, ordenava uma salva de canhão, que obrigava a vizi-

nhança a proteger as porcelanas de casa. Na minha cidade todas as casas que

davam para a baía tinham uma torre, que sobressaía do telhado. Quando um

navio aparecia no horizonte era ver todos os capitães Boom da ilha de monó-

culo, a perscrutar a distância. O capitão Marks pertencia à Esquadra Submarina

de Navegação. O steamboat era a menina dos seus olhos.

Aos domingos engalanava-o e descia o rio, recolhendo a bordo os elementos da

esquadra, vestidos a rigor, com a farda de cerimónia. Depois, parava num deter-

minado ponto e a parada continuava então a pé por entre canas de açúcar, bana-

nais e plantações de tabaco. Contruíam pontes de fragatas, corvetas, canhoneiras

em cima das árvores, adaptavam os terraços e a torres das suas casas com altos

mastaréus, com gáveas e traquetes, sobre os quais drapejavam ao vento os galhar-

detes e as flâmulas de sinalização. Faziam sinais de bandeiras entre as casas, havia

senhas que eram passadas na cidade durante a semana, para combinar o próximo

objectivo estratégico. Homens feitos brincavam aos marinheiros.

Uma vez até, o nosso rei visitou a ilha e ficou admirado com aquela compa-

nhia luzente e aprumada que lhe fazia a continência com ar tão marcial. O rei

apreciou e retribuiu a saudação. E quis saber a que arma pertenciam. Quando

António Fournier (Organização)067

soube, conta-se que não gostou nada da brincadeira. Mas há uma coisa que

ninguém sabe, contou-me o capitão Marks em pessoa: na madrugada seguinte,

fugindo ao protocolo, o rei subiu o rio sozinho com ele, no steamboat. O rei com

os seus bigodes louros e aristocráticos, conduzia o steamboat e fazia soar o

apito, ao passo que o capitão Marks metia lenha na caldeira. Onde é que já se

viu um maquinista monárquico e um rei proletário!? Imagine, um barco fan-

tasma a subir o rio àquela hora, o que nunca acontecia. As pessoas que mora-

vam ao longo das margens e que costumavam despertar com o primeiro apito

do steamboat acordaram muito mais cedo nesse dia. E eles os dois ficaram ali a

conversar e a beber Madeira até ao amanhecer. O velho capitão Marks falava-

-nos sempre com orgulho daquela noite memorável em que o rei, que era um

grande oceanógrafo, lhe contara as suas viagens.

Mas havia também uma esquadra rival, a Esquadra Torpedeira de Navegação

a que pertencia o outro steamboat comandado pelo capitão Rose. Os dois eram

velhos lobos do mar, e apesar de pertencerem a esquadras rivais, eram grandes

amigos. O rio tinha-os aproximado, o rio e a paixão comum pelos barcos a

vapor. Referiam-se sempre àquela vez em que a Esquadra Torpedeira resolvera

apropriar-se do steamboat do capitão Marks. O capitão Marks costumava fazer

uma breve paragem a meio do percurso, ao fim do dia. Quando nos aproximá-

vamos, sentia-se o cheiro a pão fresco e ele incumbia sempre um de nós, o que

era motivo de orgulho, a “assaltar” a mercearia, sem que ele parasse o steamboat,

apenas abrandando a marcha. Içávamos o Jolly Roger, saltávamos para terra,

íamos buscar o pão e depois voltávamos a saltar para bordo.

Ora, foi ali que a esquadra rival resolveu preparar o assalto. A inteira compa-

nhia estava escondida entre as bananeiras, armada e em pé de guerra. De um

momento para outro, ouviu-se o toque de combate e viu-se todos aqueles vultos

a saírem do crepúsculo, como uma brigada de piratas. Intimaram o capitão

Marks a render-se e a entregar-lhes o steamboat. Mas ele, que amava aquele barco

acima de qualquer outra coisa, manteve o sangue-frio, e disse com a maior das

calmas que se quisessem, viessem buscá-lo. Pegou na pá do carvão e mal tenta-

ram a abordagem, foi correndo com todos eles à pazada. Era vê-los a saltarem,

surpresos com tão acérrima defesa. Eles com espadas em punho e o capitão,

franzino mas resoluto, a empurrá-los para fora, entre as gargalhadas dos que

assistiram àquela memorável cena. Depois, acabaram todos ali na tasca a beber

um copo. Eram crianças que tinham acabado de brincar à batalha naval.

Só que uma vez foi mesmo a sério. Era uma manhã de inverno, era final de

novembro, início de dezembro, já não me lembro bem. De repente a cidade

12 Meses no Funchal068

acordou com uma explosão. Estava-se numa guerra muito grande, a n° 1, mas

ali a guerra parecia estar muito longe. Naquele dia, porém, a guerra bateu

mesmo à nossa porta. Nunca me esquecerei do barulho das explosões e dos

gritos que ecoaram por toda a cidade. Um submarino alemão estava a atacar

o porto. Na baía estavam fundeados três navios. Em pouco tempo, o subma-

rino meteu a pique um a um, começando pelo navio de guerra francês, aquele

que podia oferecer maior resistência. Foi um pandemónio. A princípio nin-

guém percebia o que se estava a passar. Depois, viu-se aqueles corpos todos a

boiar na água... Mal refeita da surpresa, a guarnição de terra pôs-se a disparar

com canhões do tempo de Napoleão, e o submarino, a coberto de um veleiro

fundeado na baía, começou a bombardear a cidade. Na estação fluvial, quando

ouviram as bombas a cair na cidade, meteram-se todos no outro steamboat

que começou a subir o canal o mais depressa que podia, procurando refúgio

no interior da ilha.

O capitão Marks preparava-se para a primeira viagem do dia. Estava a fazer

a barba e observou tudo da torre de sua casa. Com o seu monóculo, via nitida-

mente aquele caixão flutuante soltando esguichos de fogo, o silvo, o silêncio, e

depois o estrondo e os gritos de pânico. Era uma afronta, dizia ele, os combates

marítimos são no mar, não se ataca uma cidade indefesa. Ele tinha orgulho em

pertencer à Esquadra Submarina de Navegação, era uma questão de honra. Aca-

bou de fazer a barba. Vestiu com calma a farda de combate, o boné, os galões

dourados e a espada, trouxe a bandeira monárquica que o rei em pessoa lhe

tinha oferecido, e ordenou que deitássemos carvão na caldeira e atestássemos

o depósito de água. Depois, deu ordem de combate.

Estou ainda a vê-lo. Montou a pequena columbrina que tinha preparado

desde o dia do incidente com a esquadra rival, tomou posição à proa e com

numa mão a espada desembainhada e na outra a bandeira, ordenou então que

avançássemos a toda a brida, descendo o canal, para defrontar o submarino.

Seria um combate desigual, entre David e Golias: o nosso pequeno CFM n° 3

contra o imponente U-47, da imperial marinha de guerra prussiana. A certa

altura, cruzou-se com o outro steamboat que vinha da cidade, apinhado de

gente. Passando por eles a toda a velocidade, fez a continência e gritou “Prepa-

rar-se para a abordagem, tigres de Mompracem”, perante o olhar estupefacto

de todos. Parece que o estou a ver, como num velho filme mudo, a sépia,

fumando cachimbo e vociferando ao mesmo tempo.

Soube-se depois que já na noite do dia anterior, tinha acontecido uma coisa

incrível. Um barco de pesca estava na faina, os pescadores apontavam as lanter-

António Fournier (Organização)069

nas para a água, tinham lançado as redes e agora estavam a recolhê-las. Via-se

ao longe as luzes familiares da costa, estava uma noite calma. Ouvia-se a água

a bater no barco, tchap, tchap, tchap, e o farol iluminava compassadamente o

mar, incidindo sobre todo aquele alegre fervilhar prateado. A pesca ia ser boa.

Estavam todos alegres. De repente, um deles pareceu ouvir um barulho estra-

nho, os risos foram abrandando, até que se silenciaram de todo. Puseram-se à

escuta: dir-se-ia que qualquer coisa se aproximava, vinda do fundo. Então, no

momento exacto que a luz do farol iluminou o mar, viram despontar das pro-

fundidades um monstro escuro e assustador. Imagine o susto que foi. Alguns

desmaiaram, outros ficaram paralisados de medo. Nunca tinham visto nada

assim. Sabe o que pensaram? Mobydick? O Nautilus? Não, não, nada disso!

Oiça só. Pensaram que eram os atlantes que se vinham vingar por eles esta-

rem ali a roubar, com as suas redes, os pássaros e as borboletas dos jardins

submersos da Atlântida!

Ah sim, o capitão Marks… Bem, a verdade é que ele nunca chegou ao mar.

Não, meu bom amigo, o capitão Marks não chegou a defrontar o submarino

inimigo. Não podia. É que o seu barco, aquele fabuloso steamboat no qual subi

e desci todos os dias o rio da minha infância, não era um barco mas um com-

boio, uma pequena locomotiva a vapor. Aquele rio era uma linha de caminho-

-de-ferro a cremalheira, e o steamboat do capitão Marks, um comboiozinho que

subia lentamente até ao cimo do monte por entre muros cobertos de musgo,

bananeiras e canas de açúcar. E subia tão lentamente que parecia que estáva-

mos parados e que era a ilha que ia descendo, engolida pelo mar. Agora que

penso nisso, subir naquele comboio era como se escapássemos ao oceano.

Não sabe o que é uma cremalheira? Tem razão, percebo a sua perplexidade.

Conhece esses fechos-éclair que agora se usam? O que é que evita que o fecho

se abra? Aquele pequeno pinhãozinho que se prende ao fecho. A única maneira

de o comboio não escorregar pela encosta abaixo, era esse pinhão que ia encra-

vando na cremalheira. A locomotiva, ao subir, fechava uma enorme cicatriz

aberta na terra, e ao fazê-lo, soltava vapor que parecia provir directamente das

vísceras vulcânicas da ilha. E toda a ilha ficava coberta por uma única nuvem

libertada por aquele pequeno vulcão ambulante. Esta é última imagem que

conservo da ilha. No barco que me levava para longe dela, vi aquele comboio-

zinho que subia em direcção ao tecto de nuvens baixas, fumegando como se

as aspirasse, como se elas fossem o seu combustível, antes de desaparecer

envolto nelas. Esse rio é desde então o meu fio do horizonte. Nunca mais o vi

desde os meus onze anos.

12 Meses no Funchal070

E já agora, lamento muito decepcioná-lo, você já deve ter percebido. Eu não

sou a pessoa que você está a pensar. Sei que mora algures nesta cidade. Ontem

julguei até ter-me cruzado com ele, ali na Ponte delle Maravegie. Quando você

me propôs esta entrevista, tive a certeza que era ele. Achei que não me levaria

a mal se eu tomasse o seu lugar por uma hora. No fundo, as conversas mais

importantes fazem-se sempre com os grandes ausentes.

Sabe, quando viajamos, vivemos com várias cidades na cabeça, mas só temos

uma única cidade mental. Um dia descobrimos que a cidade que procurámos

a vida inteira, a nossa Samarcanda, é a cidade da nossa infância de onde parti-

mos para nunca mais voltar. Imagino muitas vezes que regressarei ao entarde-

cer. Então aquele comboiozinho descerá das nuvens, para me vir buscar. Nele

subirei ao Monte como se fosse a primeira vez, sem olhar para trás. Só então

me virarei para contemplar de novo a linha do horizonte. Então poderei final-

mente adormecer. Voltarei a ser sonâmbulo. Voltarei a chamar-me Ernesto.

Ernesto Leal, do Funchal.

António Fournier (Organização)071

Dezembro

Em Dezembro quando as gaivotas enlouquecemJoão Carlos Abreu

Dezembro nasceu nos olhos brilhantes da criança que tão impacientemente

começara já em Junho a sonhar com o Natal. Repetidas vezes perguntava à mãe

porque não era ainda Dezembro. Ele queria que fosse Natal não pelos brinque-

dos mas sim pela lapinha gigante que a mãe lhe oferecia todos os anos. Naquela

manhã a mãe disse-lhe que já tinha tirado os pastores das caixas em que fica-

vam guardados, em armários, de um ano para outro, cobertos com areia do

Porto Santo para que não se partissem. Pastores comprados no Talassa e feitos

à mão pelo mestre Eduardo, especializado nesta arte. Só o menino Jesus, S. José,

Maria e os Reis Magos tinham direito a uma gaveta almofadada. Todos os cui-

dados eram poucos para conservar estas verdadeiras peças de arte que herdara

dos avós. Aliás o avô João e a avó Joana eram amantes de viagens aos mais

recônditos recantos da terra. Falavam correctamente três idiomas, francês,

inglês e espanhol. Passaram uma grande temporada em Demerara onde fize-

ram uma pequena fortuna. O presépio compraram-no em Nápoles, na casa de

um velho artesão, Giovanni Battista.

Habitualmente as searas de trigo e de milho em grão deitavam-nas no dia de

Nossa Senhora da Conceição. O Manuel João, irmão mais velho do pequeno

Fernando, descobriu que usando a tesoura de costura da mãe podia por as sea-

ras todas da mesma altura. Cortava-lhe as pontas e à medida que cresciam

aparava-as. Assim elas permaneciam sempre frescas.

Chegou ao tão desejado dia: a mãe, Mariana Rodrigues de Sá, montou a

base da lapinha com cadeiras, bancos velhos e caixotes de frutas às ripas.

Colocando aqui e ali umas tábuas de madeira de pinho tosco, ia dando forma

à sua imaginação. A lapinha ocupava mais de metade do espaço do escritório

do pai. Os dois filhos do casal esfregaram as mãos de contentes, quando viram

o António, empregado da casa, chegar com um carregamento de socas de cana

12 Meses no Funchal072

vieira arrancados do Toco. Espalhou-as pelo chão. A mãe com a sua imensa

fantasia foi colocando um a um aqueles tocos enrugados criando os espaços

adequados à lapinha. Seguiu-se uma segunda fase: enquanto o Manuel João

ponha ao lume a panela com farinha e água para fazer as papas que iam ser-

vir de cola para ensopar os jornais, o Fernando, sob a orientação da mãe colo-

cava-os cuidadosamente sobre as socas: nasciam os caminhos, as veredas os

riachos e os lagos. Depois o pai, que desfizera o vioxéne em água quente, ini-

ciava a pintura do papel. Fazia-o com muita atenção para que não se rompes-

sem os jornais. Aos miúdos estava ainda reservada a missão de soprarem os

pós dourados, prateados, vermelho e verde metálicos. Os pós eram postos

sobre um pedaço de papel. Eles sopravam-nos dando ao castanho do papel

tonalidades diferentes e atraentes. Divertiam-se muito porque quando acaba-

vam de espalhar os pós estavam com os narizes e as faces prateadas e doura-

das, ficavam irreconhecíveis.

Na distribuição dos pastores todos tinham uma palavra a dizer: havia o guar-

dador de rebanhos com mais de vinte ovelhas. As casas de cartolina cobertas de

palha de milho tinham o seu lugar próprio. Outro sim a procissão, a banda de

música e o casamento. No fundo dos lagos eram postos espelhos para reflecti-

rem a sombra dos cisnes de barro.

Naquela manhã corria uma aragem muito fresca. Era a brisa do mar que

invadia as ruas mais próximas e as flores que se fecharam com a noite abriam-

-se com claridade da manhã que nascia. A mãe vestiu apressadamente o casaco

de abafo, em lã aos quadrados, pretos e brancos, enfiou nas cabeças das crian-

ças os barretes escoceses e meteram-se rua abaixo. De mãos dadas chegaram à

igreja, já ali havia começado a missa do parto. O celebrante era o padre Manuel,

conhecido pela sua pontualidade e pelo copinho de aguardente que logo pela

manhã bebia – é para aquecer, costumava dizer. Encontraram na igreja um

casal de ingleses, os Smith, que festejavam a sua quinta visita à Madeira, mas

curiosamente era a primeira vez que participavam numa “missa do parto”.

Estavam muito intrigados com a cerimónia, pois nunca ouviram referências a

estas missas. D. Mariana, no seu inglês do Colégio Alexandre Herculano, onde

estudara, tentou explicar-lhe que as missas tinham início no dia 16 de Dezem-

bro. Eram nove novenas em honra a Nossa Senhora do Parto, antes do dia da

consoada, com cânticos especiais. Terminadas as missas o povo vinha para a

rua cantar, bailar e comer. Os Smiths estavam maravilhados e já na rua entra-

ram na roda com uma alegria esfusiante. Aliás, eles não tinham muito a ver

António Fournier (Organização)073

com a forma de ser dos ingleses. Eram de religião anglicana, divertidos e sobre-

tudo muito comunicativos. Por isso decidiram sair de Chichester onde viviam

para passarem todo o mês de Dezembro na Madeira.

D. Mariana explicou-lhes que as missas do parto só aconteciam na ilha,

eram uma velha tradição que se arrastara através dos tempos. D. Raquel,

amiga da família Rodrigues de Sá, interveio para dizer que lera muito recen-

temente que para além da Madeira as mesmas missas se celebravam nas

Filipinas, país muito católico, de arreigadas tradições religiosas. D. Raquel

acrescentou que não se admiraria nada que fossem levadas para ali por

algum madeirense. Aliás – exemplos não faltavam de tradições introduzidas

por emigrantes madeirenses: o caso do jogo do bicho que da Madeira passou

ao Brasil e ainda a braguinha madeirense hoje um famoso instrumento do

Hawai, o ukulele. Mais espantoso: os portugueses inventaram o famoso five

o’clock tea na Inglaterra.

As noites da Madeira são fascinantes, mas em Dezembro com o céu límpido

e estrelado é convidativo a passeios nocturnos, às vezes sob uma aragem ligei-

ramente fresca, mas agradável. Dezembro é conhecido pelo mês da família e da

amizade. A ilha reflecte-se no mar.

Dizem os antigos que os madeirenses se debruçam nos varandins do cais

– como se estes fossem amuradas de navios fundeados na baía, e deitam no

Oceano Atlântico os seus segredos mais íntimos. Formulam votos de desejos

frutos de sonhos sonhados.

Os Smith são convidados dos Rodrigues de Sá para assistirem ao grande

espectáculo de fogo de artifício na noite de 31 de Dezembro – um espectáculo

único, jamais igualado no mundo. A Sra. Smith fez questão de dizer que esco-

lheram também o mês de Dezembro para poderem assistir ao famoso fim do

ano na ilha, tão exaltado por milhares de visitantes.

Cerca das 22 horas as duas famílias foram para bordo do paquete Santa Maria,

onde os festejos de fim do ano eram rijos e conhecidos pela sua extraordinária

gastronomia. Três orquestras abrilhantavam a noite que desceu de mansinho

sobre a baía resplandecente de luz.

Quando os Smith se aproximaram das varandas do navio não esconderam

a sua comoção perante a grandiosidade do espectáculo. A Sra. Smith escon-

deu com as suas mãos longas os olhos e deixou que as lágrimas corressem

livremente pela face – foi apenas um retroceder no tempo para recordar alguns

amigos desaparecidos – disse. Ernesto João Rodrigues de Sá apressou-se a infor-

12 Meses no Funchal074

mar que entre as quatro baías mais bonitas do mundo estava o Funchal. As ou-

tras eram: Sidney, Hong - Kong e Rio de Janeiro.

Wonderful! Wonderful! exclamavam sem parar os Smith, deixando derra-

mar o champanhe sobre as mãos. Entraram no salão de festas sob uma chuva

de serpentinas e dançaram loucamente até a noite morrer nas ondas ligei-

ras do atlântico, onde o Santa Maria estava reflectido esplendorosamente

na sua iluminação.

Para mim o mês de Dezembro constitui sempre uma viagem na memória

onde estão arquivados todos os natais da minha existência. Vem de pequeno

este meu desejo de segredar a palavra amor que em Dezembro ganha mais

força, porque em Dezembro todas as coisas acontecem numa perspectiva dife-

rente. Têm razão os meus compatriotas, é a festa da família, a festa da amizade.

Pelo menos para mim assim é.

Na minha casa, como na maioria das casas madeirenses, faziam-se os pick-

les com mostarda e caril e os licores de tangerina, de cacau, de ovos, de anis e

o mais delicioso de todos o Tin-tan-tum. Nunca ninguém me explicou até

hoje porque se chama Tin-tan-tum. Aos 72 anos de idade procuro ainda uma

explicação para tal nome. Um meu amigo costumava dizer: embebeda-te com

Tin-tan-tum e saberás a razão do nome. Um dia alguém me insinuou que o

nome do mais delicioso de todos os licores caseiros foi inventado por uma

mulher muito bonita, pele de chocolate, alta, cabelos negros, olhos verdes,

que completamente bêbeda numa noite misturou vinho Madeira, passas

canela e tantos outros ingredientes numa garrafa de álcool que tinha à mão.

Quando refeita da bebedeira no dia seguinte lhe perguntaram que licor era

aquele, respondeu com o seu sorriso branco e charmoso: Tin-tan-tum e logo

acrescentou: um licor tão delicioso e misterioso como misteriosas são as noites

madeirenses que se prolongam nos nossos corpos nus cobertos de orquídeas. Justa-

mente em Dezembro, onde todas as coisas acontecem na ilha e onde pela

manhã bem cedo as gaivotas enlouquecem na sedução dos percursos que as

conduzem do céu ao mar.

Sobre os Autores

Sobre os Autores077

Ana Margarida FalcãoNasceu no Funchal. É Professora na Universidade da Madeira, onde se dou-

torou na especialidade de Teoria da Literatura/Literatura Portuguesa, com

defesa da dissertação intitulada Os Novos Shâmanes – um Contributo para o

Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa mais Recente. Tem participado e/

ou co-organizado anualmente Colóquios e Seminários e publicado textos críti-

cos e textos literários. Colaboradora regular de programas da RTP-M, RTP-I e

RDP-M, bem como de revistas da especialidade, entre as quais «O escritor»,

«Dédalus» e «Islenha», da qual é directora da secção literária. A sua escrita está

ainda presente em diversas antologias de narrativa e de poesia, algumas das

quais traduzidas para francês, italiano e húngaro, tendo co-organizado Litera-

tura de Viagem – Narrativa, História, Mito, (ensaios) e publicado Um Arquipé-

lago de Escritores-Viajantes, (monografia), Olargo ou o percurso de um habitante

(conto/s) e Z de Zacarias (romance).

Irene Lucília AndradeNasceu no Funchal. Frequentou a extinta Academia de Música e Belas Artes

da Madeira e, em 1968, licenciou-se em Pintura pela Escola Superior de Belas

Artes de Lisboa. Entre 1962 e 1975 colaborou com o Posto Emissor do Funchal,

onde foi realizadora e fez teatro radiofónico. Tem colaborado em encontros de

poesia e em iniciativas culturais de vária índole, sendo também autora de textos

e canções de carácter juvenil, alguns editados em disco e em obras de carácter

pedagógico. Integrou diversas colectivas de Pintura na Madeira e nos Açores e

tem publicado textos em jornais e revistas nacionais. É autora de livros de poe-

sia, entre os quais, Hora Imóvel (1968); O Pé Dentro d�Água (1980); A Mão que

Amansa os Frutos (1991); Estrada de um dia Só (1995); Protesto e Canto de Atena

(2002); Água de Mel e Manacá (2002). De ficção: Angélica e a sua Espécie (1993);

Porque me Lembrei dos Cisnes (2000); A Penteada Ou o Fim do Caminho (2004);

Crónica Breve da Cidade Anónima, À Hora do Tordo (2008). Está representada

nas antologias Ilha 2, Ilha 3 e Ilha 4 (1979, 1991 e 1994); Narrativa Literária de

Autores da Madeira. Século XX (1990); Duplo Olhar (1997); Récits Contempo-

rains de Madère (1997); Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (2001); Sauda-

des da Ilha (2003); Nostalgia dei Giorni Atlantici (2005); Pontos Luminosos – Açores

e Madeira (2006); Contos Madeirenses (2006); Os Sons Atrás do Mar (2007);

Crónica Madeirense, 1900-2006 (2007).

12 Meses no Funchal078

Francisco FernandesNasceu no Funchal em 1952. É economista, mestre em Gestão do Desporto

e doutorando em Motricidade Humana, ramo de Ciências do Desporto. É actu-

almente responsável pelos pelouros de Educação, Desporto e Cultura do Governo

Regional da Madeira. Publicou obras nas áreas da investigação, narrativa, lite-

ratura infantil e romance. As suas peças de teatro – Andaime (2002) e O Natal

de Joana (2004), foram adaptadas para telefilme, pela RTP-M. Dois dos seus

contos infantis, O Diogo quer ser Futebolista (Porto, 2005) e A Estrela Perdida

(Porto, 2006) estão incluídos no Plano Nacional de Leitura. O seu romance

A Casa do Penedo da Gaivota (Porto, 2004) foi distinguido com Menção Hon-

rosa pelo Prémio Edmundo Bettencourt e o seu conto A Esquina do 95 (2005),

recebeu o prémio António Feliciano Rodrigues (Castilho). Está representado

na antologia Crónica Madeirense, 1900-2006 (Porto, 2007).

Margarida Gonçalves MarquesNasceu no Funchal em 1929. Desenvolveu a sua vida profissional na docên-

cia até 1979, ano em que ingressou na carreira técnica superior, sempre no

sector da Educação, até à sua aposentação em 1993. Colaborou, nos anos cin-

quenta e sessenta do século XX, no Diário de Notícias do Funchal, assinando

crónicas e contos com o pseudónimo de Teresa Passos Vela. Presentemente,

dedica-se à família, ao voluntariado e à escrita. Um dia depois do outro, o seu

primeiro romance, obteve o Prémio Vergílio Ferreira, instituído pela Câmara

Municipal de Gouveia, em 1999. O seu segundo romance Noventa e Nove Jus-

tos, aparece em 2003. Ambos foram editados pelas Publicações Dom Quixote,

Lisboa. Está representada nas antologias: Contos Madeirenses (Porto, 2005);

Quarenta (Lisboa, 2005), Nostalgia dei giorni atlantici (Asti, 2005), e Crónica

Madeirense, 1900-2006 (Porto, 2007).

Laura Moniz Nasceu em Santo António da Serra em 1967. É Leitora de Língua Portuguesa

na Universidade de Trieste, cidade em que reside actualmente. Revelou-se com

o conjunto “Nuvens e lugares”, na revista Atlântico (1988) tendo ainda partici-

pado nas obras colectivas Poet’Arte 90, Vers’Arte 91 e Ilha 4 (Funchal, 1994).

Sobre os Autores079

Integra as colectâneas Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (2001), 10+1

Poetas para Estar (2004), Poesia no Porto Santo, organização PEN Club (2004),

Nostalgia dei giorni atlantici (2005), Contos Madeirenses (2005), Pontos Lumino-

sos (2006), Sapori incontri fragranze (2006). É autora de Cartas para um Tenente

(poesia, Funchal, 1996); O Templo Móvel, (poesia, Porto, 2002); Lupus in Fabula

(poesia, Funchal, 2002); A Musa das Coisas Pequenas (poesia, Funchal, 2002)

e Cerejas (contos, Vila Nova de Gaia, 2007).

Maria Rosa Basílio Nascida no Funchal, viveu até à adolescência na Madeira, tendo-se transfe-

rido para Lisboa onde concluiu a licenciatura em Direito na Universidade

Clássica de Lisboa, aí se estabelecendo como advogada. Actualmente dedica-se

à escrita das suas memórias familiares. Publicou o conto “Tra due maree” na

antologia Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005).

Vítor Sousa Nasceu no Funchal em 1984. Depois de ter cursado Psicologia na Univer-

sidade do Algarve, regressou à Madeira, onde é finalista em Comunicação,

Cultura e Organizações, na Universidade da Madeira. Durante o ano lectivo

2005/2006 estudou em Pisa, no âmbito do programa europeu Erasmus.

Dessa estadia na Toscana nasceu o seu primeiro livro O Tricot do Tempo (Lisboa,

2007). Ainda em 2005, tornou-se impulsionador involuntário da campanha

presidencial de Manuel Alegre, depois de ter lançado uma petição “online”

que exortava à candidatura do poeta. Como consequência, foi convidado para

a Comissão de Honra do candidato. É autor do blog Estranho Estrangeiro

(http://estrangeiros.blogspot.com).

Nelson VeríssimoNasceu no Funchal em 1955. Licenciado e doutorado em História, é pro-

fessor da Universidade da Madeira, desde 2002. De 1987 a 2002, dirigiu a

revista Islenha: temas culturais das sociedades atlânticas, editada no Funchal.

12 Meses no Funchal080

É autor de mais de oitenta artigos e comunicações sobre História do Atlân-

tico, Património Cultural e História da Educação, publicados em revistas,

portuguesas e estrangeiras, e em actas de Congressos Nacionais e Interna-

cionais. Colabora regularmente no Diário de Notícias do Funchal, desde

1984. Publicou diversos livros de História, organizou três antologias literá-

rias e editou um livro de crónicas da sua autoria. Está representado nas

antologias Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005) e em Crónica Madeirense,

1900-2006 (Porto, 2007).

Helena Marques De famílias madeirenses, nasceu em Carcavelos em 1935. É autora dos

romances O Último Cais (1992), A Deusa Sentada (1994), Terceiras Pessoas

(1998) e Os Íbis Vermelhos da Guiana (2002) e do livro de contos Ilhas Contadas

(2007), todos editados por Publicações Dom Quixote. Recebeu o Prémio

Revista Ler / Círculo de Leitores, o Grande Prémio de Romance e Novela da

Sociedade Portuguesa de Escritores, o Prémio Máxima de Revelação e o Pré-

mio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa. Está traduzida em alemão,

espanhol, italiano, grego, búlgaro e romeno. É casada com o jornalista Rui Cama-

cho e tem quatro filhos – uma tradutora e três jornalistas.

Maria Aurora Homem Natural do Sátão – Viseu onde nasceu em 1937, vive no Funchal desde

1974. Antiga jornalista de órgãos de comunicação escrita e audiovisual de

Lisboa, na Madeira tem exercido os mais activos papéis de agente e dinami-

zadora cultural, organizando e participando activamente em debates, coló-

quios e feiras do livro, programas de rádio e de televisão. É assessora cultural

na Câmara Municipal do Funchal e editora da revista Margem. Autora de

livros infantis e de um livro de crónicas, publicou os seguintes livros de poe-

sia: Raízes do Silêncio (Funchal, 1982); Ilha a Duas Vozes (em co-autoria com

João Carlos Abreu, Funchal, 1988); Cintilações (Funchal, 1994); Uma Voz de

Muda Espera: Monografia Sentimental (S. Pedro do Sul, 1995); 12 Textos de

Desejo (Funchal, 2003); Antes que a Noite Caia (Vila Nova de Gaia, 2005);

Discurso Amoroso (Porto, 2006). De ficção: A Santa do Calhau (Lisboa, 1992);

Para Ouvir Albinoni (Ponta Delgada, 1995); Leila (Vila Nova de Gaia, 2005).

Integra as antologias Narrativa Literária de Autores da Madeira, Século XX

(Funchal, 1990); Récits Contemporains de Madère (Funchal, 1997); Nostalgia

dei Giorni Atlantici (Asti, 2005); Contos Madeirenses (Porto, 2005).

António Fournier Nasceu no Funchal em 1966. Antigo assistente na Universidade da Madeira,

vive actualmente em Itália onde é docente de Língua e Tradução portuguesa e

brasileira na Universidade de Turim, tendo sido anteriormente Leitor de Língua

e Cultura Portuguesa pelo Instituto Camões na Universidade de Pisa. Organi-

zou as seguintes antologias: Nostalgia dei Giorni Atlantici (Asti, 2005); Arte do

Voo de José António Gonçalves (Vila Nova de Gaia, 2005), Lusitania Express: 20

Storie per un Film Portoghese (Asti, 2006). Coordenou ainda os números mono-

gráficos da revista literária Margem dedicados, respectivamente, aos escritores

Ernesto Leal (Outubro 2007) e José António Gonçalves (Maio 2008).

João Carlos Abreu Nasceu no Funchal em 1935. Antigo jornalista, estudou em Roma e parti-

cipou nos trabalhos de imprensa do Concílio Ecuménico do Vaticano II.

Viveu em Bolzano – Itália e na Inglaterra. Preside actualmente à Associação

“CRIAMAR”. Foi durante 24 anos Secretário Regional de Turismo e Cultura.

Tem organizado e participado em Congressos, Colóquios e Seminários sobre

literatura, ambiente e turismo. É membro do PEN CLUB. Colaborou em jor-

nais e revistas portuguesas e estrangeiras. Publicou as seguintes obras em

prosa: Dona Joana Rabo de Peixe; Mete-me no Teu Coração; Dos Deuses ao Turismo

dos nossos Dias; Viagem ao Coração; O Turismo das Culturas; Carta aos Autarcas

da Minha Terra. Os seus poemas estão traduzidos e publicados em revistas da

especialidade em França, Itália e Espanha. Publicou os livros (poesia): Porta

Aberta; Água no Mar; Da Ilha e de Mim; Poemas do Silêncio; Vozes que Navegam

Dentro de Mim; A ilha a Duas Vozes; Sobre o Voo da Gaivota. Está ligado à Cidade

Antiga do Funchal pela sua recuperação. Recuperou ainda o centro da Vila de

São Vicente e o Bairro dos Pescadores de Madalena do Mar. É detentor de vários

prémios literários e de turismo.